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OPINIÃO

ESPAÇO JORNALISTA MARTINS DE VASCONCELOS

Organização: CLAUDER ARCANJO

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A HISTÓRIA DE JACOBINA, QUE FALAVA COM DEUS

EDMÍLSON CAMINHA

Escritor, membro da Academia de Letras do Brasil edmilson.caminha@gmail.com

Às vezes, são misteriosas as razões que nos levam, em determinado momento, a ler um livro. Aparentemente sem causa, abrimos o volume que por décadas esperou que lhe despertássemos do sono em que hibernava, para que possa contar a história que soube guardar com a paciência dos humildes. Leitura não se faz por acaso, ainda que pareça: há sempre motivo, claro ou não, para que eleja o leitor, naquela hora, um entre dezenas de livros à disposição na biblioteca. Assim foi com o romance Videiras de cristal (Porto Alegre : Mercado Aberto, 1990), do gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil. Trinta anos se passaram para que somente agora o lesse, quando há muito em comum entre o Brasil de hoje e o de século e meio atrás.

“O romance dos muckers”, como informa o subtítulo, é a saga de uma colônia de imigrantes alemães na província de São Pedro do Rio Grande do Sul, na segunda metade do século XIX. Devido às guerras napoleônicas e às transformações políticas, sociais e econômicas por que passava a Alemanha, milhões de camponeses desembarcaram nos Estados Unidos e no Brasil com o sonho de um futuro melhor. Vinham de povoações como Rothenburg-ob-der-Tauben, que o narrador evoca à maneira de Gabriel García Márquez: O grande feito da cidade tem um conteúdo raro: ocorreu em 1631, durante a Guerra dos Trinta Anos, quando o Marechal Tilly impunha um cerco pertinaz à Praça. Depois de muitas conversações, o comandante acedeu em retirarse se houvesse alguém disposto a beber de uma só vez um formidável caneco de três litros e meio repleto do vinho da região. Nusch, antigo burgomestre, ofereceu-se e salvou a cidade. Bebeu tudo em dez minutos, dormiu três dias seguidos e viveu mais trinta e sete anos, durante os quais não provou mais nenhuma bebida.

Aqui, os estrangeiros logo se deram conta de que estariam abandonados à própria sorte, sem o apoio do governo na luta por uma vida nova, alicerçada na justiça social e no progresso econômico a que todo ser humano tem direito. Assim foi com as famílias que se estabeleceram ao pé do morro Ferrabrás, em Sapiranga, no Vale do Rio dos Sinos, próximo a São Leopoldo.

Sem condições de buscar assistência médica na cidade vizinha, os colonos valiam-se dos conhecimentos empíricos de João Jorge Maurer, cujas receitas de ervas e de preparados caseiros deram-lhe a fama de milagreiro e o título de wunderdoktor, o doutor maravilhoso, pelas curas prodigiosas que supostamente operava. Por volta de 1868, com o barracão permanentemente cheio de homens e de mulheres fragilizados pela doença, a esposa, Jacobina Maurer, entretinha-os com a leitura da Bíblia e com prédicas de natureza escatológica, a antever o fim do mundo e a salvação de quem lhe seguisse os passos. Desde moça, comportava-se estranhamente, ao cair durante horas em sono profundo que, para os médicos, não passava de sonambulismo com sinais de histeria. Caldo de cultura para a autossugestão, que a fazia crente em uma linha direta com Deus, o “Espírito Natural”, que lhe inspirava profecias e o anúncio de penas para os pecadores.

Dos ajuntamentos ocasionais originou-se uma seita, com a mitificação de Jacobina: para alguns, Cristo reencarnado, à frente de ovelhas que deixavam o culto luterano e a missa católica para acompanhá-la. Tornouse, logo, desafeta do pastor Boeber e do padre Münsch; para este, “as almas dos fiéis se assemelham a videiras de cristal: fecundas nos verões luminosos mas frágeis e quebradiças quando cobertas pela geada do inverno”. Aos olhos dos dois, a falsa profetisa não passava de doente dos nervos a saciar a fome de sexo: beijava os homens na boca e ia para a cama com o fiel Rodolfo, sob a mansidão do marido complacente.

Sugeria, aos pais de crianças, tirálas da escola, para que não sofressem o que hoje se chama bullying, atitude que valeu pesadas críticas da imprensa de São Leopoldo aos muckers (ou aos mucker, no singular, como preferem alguns), termo que significa beatos, hipócritas, falsos devotos, nome que lhes deu um reverendo protestante. Criaram-se, assim, as perigosas condições para um movimento messiânico – único, na história do Brasil, liderado por mulher – que degenerou em violência, com facões e armas de fogo escondidos à espera de um confronto a que belicosamente se dispunha, ao atacar opositores e incendiar bens que lhes pertenciam. Processo que levaria ao banho de sangue em 1874, consequência do fanatismo religioso, das disputas políticas, da irra-

Ilustrativa

cionalidade ideológica e da intervenção militar que tiveram o efeito de faísca em pólvora. Dele, Jacobina emerge como uma das maiores expressões do misticismo nacional, precursora do Antônio Conselheiro de Canudos, em 1897, e do Beato José Lourenço do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, em 1937. Episódios que, significativamente, lembram os desacertos entre religiões, interesses políticos e exorbitâncias da caserna no Brasil de hoje, a tornar Videiras de cristal uma boa sugestão de leitura.

Veja-se, a propósito, o pensamento que o romancista atribui a Lúcio Schreiner, subdelegado de polícia em São Leopoldo, no império de Pedro II:

— Como autoridade policial, devo ser mais atento à verdade do povo do que à verdade dos fatos. O que importa não é como as coisas acontecem, mas sim como dizem que acontecem. A moralidade pública alimenta-se de versões.

E a atualidade da conversa entre um jornalista e o então chefe de governo gaúcho:

Von Koseritz mexeu-se na cadeira. — Não sei por que no Brasil a qualquer tropeço pensam logo nos militares. — Nossa polícia é apenas para reprimir vagabundos – o Presidente da Província sentiase pisando em terreno inseguro.

Von Koseritz cresceu: — E para reprimir cidadãos, chama-se o Exército. Bravo.

Note-se a competência com que o escritor dá vida e grandeza às suas personagens. Jacó-Mula, apelido que lhe vem do passado de tropeiro, parece criação de Dostoiévski: “Dizem que sou um bobo. Meus parentes todos, meu tio, meus primos, até minha mulher. Mas eu não acho que eu seja um bobo. Sou só um homem simples.” O doutor Christian Fischer exerce a medicina e manda cactos brasileiros para um benfeitor que teve na Alemanha, a quem escreve com o conhecimento da sociologia e da história tido, na verdade, pelo autor de que é criatura:

E assim a colônia apresenta duas faces: de um lado a face boa, isto é, a dos imigrantes que, aqui chegados há quase cinquenta anos, adquiriram fortuna e vieram morar em São Leopoldo. (...) E, como o dinheiro não pode estar em duas mãos ao mesmo tempo, fica de preferência nas mãos dos que já o têm. Revela-se assim a outra face da colônia: a má, constituída por toda esta gente que se espalha nas duas margens do rio dos Sinos e forma pequenos núcleos de vida apagada: falam apenas alemão, vivem em seus pequenos lotes de terras e tudo o que ganham não conseguem juntar porque estão sempre em débito com o comerciante, esse deus protetor e terrível. Raros são os que podem comprar um sapato, e a grande maioria não sabe ler nem escrever.

Com mão de mestre, Assis Brasil narra a história de diferentes pontos de vista, ao dar voz aos muckers, a outros moradores da região, ao poder econômico e político, aos missionários protestantes e católicos. Os pretensos milagres que se atribuem a Jacobina – levitação, línguas de fogo sobre a cabeça dos que a seguem, no dia de Pentecostes – são contados por eles próprios, como se de fato acontecidos. O que põe a verdade não em termos dogmaticamente absolutos, mas humanamente relativos: afinal, nada mais verdadeiro para um alcoólico, mergulhado no delirium tremens, do que os bichos que lhe passeiam pelo corpo...

Em 1874, tropa do exército imperial, sob o comando do coronel Genuíno Sampaio, enfrentou a comunidade dos muckers, com a execução de homens, mulheres e crianças que só se mens, mulheres e crianças que só se repetiria 23 anos depois, na destruição repetiria 23 anos depois, na destruição de Canudos. Terminava, assim, um de Canudos. Terminava, assim, um episódio de mitificação e de fanatismo religioso a que igrejas, políticos, jorreligioso a que igrejas, políticos, jornalistas e militares deram uma dimennalistas e militares deram uma dimensão que realmente não tinha, fruto da são que realmente não tinha, fruto da intransigência e do radicalismo em intransigência e do radicalismo em que fogem do controle as cobiças pesque fogem do controle as cobiças pessoais e as ambições de poder. soais e as ambições de poder.

Em 1978, chegava ao cinema Os Mucker Mucker, dirigido por Jorge Bodanzky e Wolf Gauer, com José Lewgoy, Paulo César Pereio e o bom desempenho lo César Pereio e o bom desempenho de Marlise Saueressig, como Jacobina. de Marlise Saueressig, como Jacobina. Realização honesta, em que se estraRealização honesta, em que se estranha, pelo que lhes coube fazer, a inexnha, pelo que lhes coube fazer, a inexplicável ausência do padre católico e, plicável ausência do padre católico e, sobretudo, do pastor luterano.

Longinquamente baseado no romance de Assis Brasil, A Paixão de Jacobina (2002), do diretor Fábio Barreto, tem Leticia Spiller no papel principal. Segundo o crítico José Geraldo Couto, é filme que se reduz a produção telenovelesca, com a façanha de incluir, em uma história no tempo de Pedro II, merchandising da Azaleia, indústria de calçados que surgiria cem anos depois...

Hoje, turistas vão à cidade gaúcha de Sapiranga para percorrer os “Caminhos de Jacobina”, com duas pobres estátuas de concreto que lhes chamam a atenção: em uma praça do centro, a da mucker que dizia falar com Deus; no morro Ferrabrás, a do coronel que a matou e que também perdeu a vida. Nesta, sem a cabeça significativamente arrancada, encontra-se uma placa em que se lê: “Homenagem a Genuíno Sampaio e aos seus comandados, que tombaram neste local a serviço da ordem e do progresso. Anno de 1874”. De lá para cá, muito tempo se passou, mas o preito ufanista nos soa preocupantemente atual. É só acusar Jacobina de perigosa agente do comunismo internacional, remover-lhe a estátua para o depósito da prefeitura, devolver a cabeça ao coronel que a perdeu e incluir na placa: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos!” Então, a história que aconteceu como tragédia se repetirá como farsa. O velho Marx sabia das coisas...

DI RE ÇÃO GE RAL: Cé sar San tos DIRETOR DE REDAÇÃO: César Santos GE REN TE AD MI NIS TRA TI VA: Ân ge la Ka ri na DEP. DE ASSINATURAS: Alvanir Carlos Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.

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