Jornal de fato

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2 OPINIÃO

quarta-FEIRA, 27 de novembro de 2019

ESPAÇO JORNALISTA MARTINS DE VASCONCELOS

Organização: clauder arcanjo

DA ETERNIDADE Johann Freire

Escritor e bibliófilo johannfreire@msn.com

Não seria exagero dizer que me pus, naquele momento, diante de uma verdadeira obra-prima. À medida que os convidados escoavam do recinto, meus ânimos serenavam e eu podia por fim contemplar em paz o exímio trabalho dos embalsamadores. Se, a poucos centímetros de mim, não estivesse uma réstia do que fui outrora, juraria que aquela matéria inerte estendida no caixão nunca me pertencera. Mas tratavase mesmo do meu corpo. Asseado e bem vestido. De certo modo rejuvenescido. E morto. Os convidados pareciam ignorar esse pequeno detalhe, pois não paravam de me cumprimentar, de me parabenizar, de puxar toda ordem de assunto. No início, as mademoiselles mais delicadas fingiam certa condolência. Chegavam até mim ostentando suas maquiagens borradas e seus lencinhos encharcados (certamente do resfriado que já traziam de casa). Um rodízio de familiares, amigos, conhecidos; de qualquer forma, rostos com os quais eu mal me lembrava de um dia ter cruzado. Todos me amolavam com perguntas sobre trabalho, negócios, novos empreendimentos, viagens. Eu me continha ao máximo para não lhes lançar os mais inflamados vitupérios. Em vez disso, no entanto, com um sorriso que julgava ser o mais amável, apenas lhes dizia: — Senhores, não contem mais comigo. Meu expedien-

te acabou — e apontava para o caixão. — Sinto muito, sinto muito. Preenchia o estabelecimento um farfalhar azucrinante, adequado a qualquer tipo de evento, menos a um velório. E nem preciso sublinhar que nada disso estava entre os itens que preenchi no contrato. É certo que não solicitei nada de muito solene; mas também não contava com essa balbúrdia desenfreada. Seria o caso de mover uma ação judicial por essa falha grosseira da Organização? Não. Pouco importa, na verdade. Meu reino já não é deste mundo. Mais ao fundo, um grupo de convidados discutia aos berros entre si. Com muita chacota e fanfarrice. Por alguns segundos furtou a atenção dos cavalheiros que me importunavam. Aproveitei a distração para dar meia-volta e subir os degraus que levavam a uma salinha onde serviam café, chá, quitutes. Mergulhei na pequena multidão que se aglomerava em torno de uma das mesinhas. Uma dama de preto passou um tanto destrambelhada às minhas costas, derrubando o café que eu acabara de me servir. Não foi sem comoção que a observei abrir passagem até o ataúde. Ela se deteve por alguns instantes e, trêmula, acarinhou meus lábios sem vida. Quando consegui descer, a senhora já havia sumido sem que eu pudesse fixar-lhe a fisionomia. Dentro de mim acendeu-se uma vela, que um sopro gélido logo em seguida apagou. O processo de degenerescência iniciara cerca de um ano antes. Uma fisgada aqui, um desconforto acolá. Meus órgãos pouco a pouco clamando por repouso, denunciando que queriam parar por longos anos, talvez até para sempre. Incapaz de me manter de pé por mais de quinze minutos, meu corpo logo arqueava, e eu me sentia impelido a apoiar as mãos no chão e a sair cambaleando pelo calçadão, feito uma ponte que milagrosamente ganhasse vida.

Continuo aqui, encerrado entre quatro paredes. Não posso sair.

di­re­ção ge­ral: Cé­sar San­tos diretor de redação: César Santos Ge­ren­te AD­MI­NIS­TRA­TI­VA: Ân­ge­la Ka­ri­na

Meros indícios, sinais do meu corpo — esse fiel labrador — de que estava chegando a hora de seguir sem ele. Durante um curto período, a imagem dessa ponte errando pelo calçadão voltoume à mente. Para expurgá-la, rabisquei uma historieta, de tom realista, inspirada num cavalheiro, ex-ator, que conheci num café a poucas quadras da Praça São Venceslau. Deitei no papel minhas parcas e turvas impressões sobre ele. Depois disso preenchi a papelada necessária e a enderecei ao Comitê do Centro de Controle Populacional. Enquanto esperava a autorização, distraí-me com os preparativos do velório, das cerimônias fúnebres e da missa de sétimo dia. Seria tudo muito simples e discreto, como simples e discreto procurei ser em vida; o que, naturalmente, não se cumpriu. Passaram-se alguns meses e a carta do Comitê com a aprovação do meu pedido chegou. No dia e horário pré-estabelecidos, os funcionários

adentraram meus aposentos. Encontraram-me deitado, vestindo meu melhor terno, na postura de praxe e com dois nacos de algodão enfiados nas narinas. Julgava assim poupar-lhes o trabalho. Na manhã seguinte realizou-se meu velório. Fui um dos últimos a sair. Não é fácil se despedir de um companheiro da vida inteira, o único presente do berço ao túmulo. O vocabulário murcha, faltam palavras, os gestos são insuficientes. Voltei direto para casa. Sem ânimo para acompanhar as cerimônias fúnebres e decidido a não comparecer aos festejos da missa de sétimo dia. Eles que se divirtam sem mim. Meu expediente afinal chegou ao fim, não chegou? Fato é que não sei quantas décadas se passaram desde então. Continuo aqui, encerrado entre quatro paredes. Não posso sair. Aguardo impaciente a chegada do caminhão da Agência que me levará de uma vez por todas para o Paraíso.

Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.

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