Jornal De Fato

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2 OPINIÃO

sábado, 24 de julho de 2021

ESPAÇO JORNALISTA MARTINS DE VASCONCELOS

Organização: clauder arcanjo

Se o professor me reprovar, eu não aceito Aécio Cândido

professor da UERN, aposentado. Autor da obra Tempos do verbo aeciocandidocuite@gmail.com

As maluquices de hoje em dia surgem de uma hora para outra e de todas as direções. Mas para que uma maluquice se instale e ganhe foros de coisa séria é preciso que gente do entorno lhe dê crédito. Boa parte daquilo em que acreditamos, que julgamos verdadeiro ou que consideramos justo, não resiste a uma análise isenta. A razão para se acreditar numa proposição já foi a força física do emissor, sua riqueza e poder. Essas fontes de acreditação têm se deslocado um pouco, embora, em situações particulares, e às vezes gerais, elas mantenham sua força. Mas numa sociedade onde o indivíduo ganhou status de absoluto, sua palavra é a medida de tudo. Isso vale à direita e à esquerda do espectro político. É bom que o indivíduo seja o centro da vida social. O individualismo, no sentido sociológico, é um ganho. No sentido ético, filosófico, é deplorável. A análise sociológica aponta que nas sociedades modernas, não tradicionais, o indivíduo é representado por suas próprias qualidades e não, abstratamente, pelas qualidades da família, da procedência geográfica, da classe social ou da filiação política. Ao lado dessa representação, para assuntos de foro íntimo, a única voz legítima é a do indivíduo. É ele o dono de sua verdade. Casamento, por exemplo, com todas as preferências que ele envolve, é assunto dele. Nem sempre foi assim: casamento já foi assunto da família. Orientação sexual é assunto dele. Sua vida sexual só a ele interessa. Só a ele, vírgula – a ele e ao outro ou a outra ou aos outros com quem

ele se deita, simultânea ou separadamente. (Licença para um parêntesis: umas das cenas mais deprimentes de que tenho conhecimento foi a de Bill Clinton pedindo desculpas à nação americana por um, com o perdão do termo, “boquete” ocorrido, como deve ser, entre quatro paredes e entre pessoas adultas, com total consentimento das partes. Tudo bem que foi entre as paredes do Salão Oval da Casa Branca. Mesmo assim, ele não tinha que dar satisfação nenhuma a ninguém, exceto a Hillary, sua mulher, se ela quisesse enfrentar o assunto. A outra cena da série Cenas Deprimentes foi a de Palocci se insinuando para o juiz Sérgio Moro, oferecendo-se para uma delação premiada. Jogou-se nos braços do playboy, mas ele, sentindo-se no momento o Rei da Cocada Preta, nem tuiú (ou to you, se for verdadeira a derivação inglesa da expressão) para a oferta escandalosa, feita no clarão do dia e na frente de todos. Fim do parêntesis). O individualismo tem limites, porém, quando a natureza da questão sai da esfera subjetiva e ocupa os espaços da objetividade, porque objetivamente implica na vida de outros. Vale aqui a velha e esquecida máxima: “Seu direito termina on-

de começa o meu”. Vale aqui, do ponto de vista social, a noção de contrato, popularmente conhecida como regras do jogo. A validade do resultado de uma disputa ou de uma avaliação não é dada por uma das partes interessada. Porque a disputa não é algo subjetivo. O resultado é objetivo e previsto nas regras acordadas. Não adianta nada dizer: “Eu senti que ganhei o jogo”. Jogo não é objeto de sensação. O que determina se se ganhou ou não, não é a sensação de vitória, mas o número de gol feitos e validados pelas regras estabelecidas, se o jogo é de futebol. E se as regras foram respeitadas e o sujeito não aceita a derrota, o mais sensato que nos resta a fazer é lhe passar o conselho: “Ficou insatisfeito? Tire as calças e pise em cima”. Idem para uma eleição. No Peru, somente após um mês das eleições, o candidato vencedor foi declarado vencedor, porque havia questionamentos da candidata perdedora. Que negócio é esse? E agora quem diz quem ganhou uma eleição não são as regras eleitorais, mas sim o humor de quem perdeu a disputa? Trump fez escola, no rastro de uma direita acostumada a ganhar no grito. Lançar suspeitas, completamente infundadas, sobre a segurança das urnas eletrônicas é a tática

di­re­ção ge­ral: Cé­sar San­tos diretor de redação: César Santos Ge­ren­te AD­MI­NIS­TRA­TI­VA: Ân­ge­la Ka­ri­na DEP. DE ASSINATURAS: Alvanir Carlos

de Bolsonaro para tumultuar o processo democrático. É seu anúncio antecipado de que não respeitará o resultado das eleições. E daí? Em outros tempos, a opinião pública diria a esse sem-noção: “Não sabe perder não? Se conforme e espere a próxima”. Agora, parte dessa opinião pública, fanatizada por um sujeito que não merece um grama de admiração, defende o indefensável. Não se muda algo se a realidade não demonstra que é preciso mudar. Cadê as evidências de que as urnas eletrônicas são sujeitas a fraudes? Em 25 anos de uso, nem um só caso de falha ou burla no sistema. Quem vê o que não existe não merece outro diagnóstico: é doido. Minha amiga Cláudia Max, artista de Mossoró, sempre que o contexto permite, repete, um bordão que a cultura popular da cidade produziu: ”Cadê as provas de Adélia? Me mostre as provas de Adélia!” Não adianta acusar alguém, se eu não tenho provas da acusação. A única forma de fugir do jogo de palavras e identificar onde está a verdade é através das provas. Falta Bolsonaro mostrar as provas de Adélia em relação às urnas eletrônicas. Bolsonaro fala o que lhe vem à cabeça, sem a menor responsabilidade com as palavras. Como um bêbado. Ou como um doido. Um

adulta saudável, com as faculdades mentais ajustadas, pensa sobre o sentido das palavras que usa e sobre as mensagens que transmite. Um adulto saudável, não Bolsonaro. O pior é que o discurso irresponsável do presidente da República é copiado por seus seguidores. É bastante emblemático que Bolsonaro e seu batalhão de fundamentalistas religiosos elejam como mote de discurso a subjetividade de uma declaração religiosa: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Que verdade? A verdade de Alá, a de Javé, a de Cristo, a de Buda, a de Zeus, a de Oxalá, a de Odin, a de Ísis? Não são a mesma verdade, mas cada um, montado na sua crença, acredita que a verdade de sua religião, a sua verdade, é a verdade universal. Por vias transversas, o crente chega à conclusão de que a verdade é aquilo em que ele acredita. Se chegou nesse ponto, ele cria uma realidade paralela. Como construtor aferrado de realidades paralelas, Bolsonaro dá péssimo exemplo. Ao dizer que não aceita o resultado do voto eletrônico, ele autoriza o jogador a não aceitar o placar do jogo e o aluno, a recursar a legitimidade da avaliação do professor. Resta a quem ainda tem alguma sobra de juízo lhe passar o recado: lugar de doido é no hospício.

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