2 OPINIÃO
domingo, 13 DE fevereiro de 2022
ESPAÇO JORNALISTA MARTINS DE VASCONCELOS
DURVAL AIRES, COM OS DEDOS SUJOS DE TINTA Edmílson Caminha
Escritor, membro da Academia de Letras do Brasil edmilson.caminha@gmail.com
Em 2022, o Ceará deve sentirse com a obrigação de fazer dois registros: o centenário do nascimento e os 30 anos da morte de Durval Aires, nome que se junta a Rogaciano Leite, Jáder de Carvalho, Eduardo Campos, Blanchard Girão, Juarez Barroso, Mário Pontes, Lustosa da Costa, Antônio Girão Barroso, talentos que, em meio às matérias do dia a dia nas redações de jornais, escreveram obras importantes da literatura cearense. Pouco volumosa, a produção literária de Durval Aires apresenta-se na Ficção reunida (Fortaleza : UFC / Casa de José de Alencar, 1994), organizada e competentemente apresentada por Dimas Macedo, com abas de Luís Sérgio Santos.São apenas quatro novelas – O Manifesto, Uma estrela na manhã, Barra da Solidão e Os amigos do Governador –,bastantes,porém, para inscrever o ficcionista entre os que deram ânimo à literatura cearense na segunda metade do século XX, pela riqueza das histórias e pela narração inovadora. Frases curtas, poucos conectivos, ritmo sincopado, às vezes telegráfico, como na passagem d’O Manifesto em que se mostra o centro de Fortaleza: O velho casarão do Mercado Central adormecido. Sem tomar conhecimento dos sons e ruídos que sobravam das pensões alegres. Fox, bolero,samba-canção.Impropérios,garrafas espatifadas.Gritos. Patrulhas do Exército, Marinha, Aeronáutica. Policiais. Meninos dormindo na entrada dos portões. Sobre jornais velhos. Encolhidos. A
cabeça sumida entre as pernas. Como se estivesse preparando o retorno ao ventre.
Do jornalismo que exerceu ao longo de décadas, Durval levou o texto ágil, o estilo sintético e o gosto pela política, pelo que se passava em cena aberta mas, sobretudo, nos bastidores do poder, no subterrâneo dos palácios e das assembleias, onde realmente se tomam decisões e se fazem acordos. Tempo em que, à sombra de Getúlio Vargas, as relações entre governo e imprensa eram nebulosas, suspeitas, quase promíscuas. Se jornais da provinciana Fortaleza eram postos pelos donos a serviço de quem lhes comprava apoio ou silêncio, jornalismo não chegava a ser profissão, mas um quase “bico”, a submeter redatores e repórteres à caça de empregos públicos ou de benesses que lhes permitissem viver um pouco melhor, como não pagar imposto de renda e viajar de avião pela metade do preço... Em cidades do interior, disputas de poder, confrontos eleitorais e questões de terra se resolviam a bala, quando coronéis abriam as portas da cadeia para que matadores saíssem, fuzilassem opositores e voltassem para as celas, sob a proteção de chefes de polícia e de delegados coniventes.É o que mostra Durval Aires em Os amigos do Governador, “novela-reportagem”, como ele próprio a rotulava, boa já pelo título,alusão aos que dissimuladamente se movem entre o público e o privado, afeitos à bajulação e à indignidade de quem servilmente lambe os pés das excelên-
Organização: clauder arcanjo
que a melhor maneira de penetrar no seu universo criativo é ler o conjunto de sua ficção como se fosse uma unidade, as quatro novelas que escreveu como partes superpostas de um romance, que ao final da leitura se completa e se materializa. As personagens projetadas pelo novelista são as mesmas, o mesmo o contexto existencial emergente, a mesma a realidade contingencial e histórica, a mesma a singularidade que permeia o trajeto do discurso e investe contra os surrados recursos narrativos dos seus contemporâneos.
Alter ego do escritor, Ricardo Menezes é o repórter que não se curva à sedução do poder,é voz que desafina no coro dos contentes,em nome da ideologia que o põe à esquerda, entre companheiros que cautelosamente se articulam nas redações e nas oficinas dos jornais. Confere à narração o caráter dinâcias: mico dos roteiros de cinema, de sorte que não apenas lemos o texNo Cariri, via de regra, a to, mas o vemos projetado em uma política começa onde terminam os limites das terras. tela, como nota o organizador da Nunca se sabe se um sujeito Ficção reunida: morre porque se elege Prefeito ou por ter mudado um pico de cerca. O coronel Antônio Mendes Brilhante não foi assim? Morreu enganchado no arame farpado,com cinco tiros nas costas. O sangue em bica pelos dedos, os braços balançando, moles. Metade do corpo dentro das terras do coronel José Inácio de Figueiredo...
Violência que também ecoa em O Manifesto:
Costurando o entrecruzamento das ações que se deixam colher na tessitura das quatro novelas, está a câmara cinematográfica que o jornalista Durval Aires/Ricardo Menezes carrega sempre nas mãos. É impossível ler Durval Aires e não assistir às imagens que se mesclam com as palavras numa simbiose bárbara e
feliz. É impossível que alguém leia Durval e não se sinta maravilhado pela objetiva dos seus instantâneos fotográficos, pela sutileza do seu enxugamento textual, pela disposição harmoniosa e congenial do estilo, pela aliciante linguagem poética que, como ficcionista, soube utilizar como ninguém. Ricardo Menezes me traz de volta o jornal O Povo, onde, na década de 1960, dei os primeiros passos no jornalismo. Sob a direção de Paulo Sarasate – deputado federal, governador do Estado e senador da República –, o vespertino bem representava, como na literatura de Durval Aires, a zona cinzenta em que se relacionam política e imprensa. Jovem, faltoume coragem para trocar ideias com o autor de Uma estrela na manhã, tal o renome que usufruía na classe. Um dos primeiros a chegar à redação, não havia tarde em que não descesse ao subsolo para ver a rotativa Man imprimir a edição do dia, o cheiro das bobinas de papel que ainda me faz proustianamente reviver o passado. Ao fim do expediente deixava a sede, na rua Senador Pompeu, com o exemplar cuja tinta me sujava os dedos. Como, penso hoje, o jornalista que admirava a distância, cheio de histórias que transformaria em ficção de excelente qualidade. Agora, dou-me conta de pelo menos uma coisa em comum entre aquele principiante e o colega ilustre que escrevera Os amigos do Governador: Durval Aires também tinha os dedos sujos de tinta...
Manhã cedinho,Wladimir, filho mais novo do coronel,subiu no banco de três pernas. No alpendre. Estudante em férias, 16 anos. Ainda segurava a gaiola da graúna quando um tiro o apanhou em cheio. Espingarda calibre 12. O crânio estourado. A cabeça quase separada do corpo... Entrechos, personagens e ambientes atravessam as histórias como fios que unem pedaços de um todo, na arguta observação do apresentador Dimas Macedo: Para uma compreensão da Ficção reunida,de autoria de Durval Aires, vários caminhos podem ser escolhidos, porque muitas são as sugestões que a sua obra oferece. Penso, no entanto,
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