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Além da pena
A precariedade do sistema prisional com a ressocialização dos ex-detentos
Por Isabelle Maieru, Khadijah Calil, Laís Romagnoli e Yasmin Solon
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Superlotação, insalubridade, legislação débil e insuficiência judiciária. Essas são algumas das circunstâncias em que vive a terceira maior população carcerária do mundo. Hoje, o Brasil totaliza 919.951 presos, o maior número já registrado no país. Em sua maioria negros de classe baixa com o nível de escolaridade mínima, evidenciam o reflexo de uma sociedade hierarquicamente desigual.
O descaso com os penitenciários não gera tanta revolta na população quanto deveria, principalmente nas parcelas ricas da sociedade. Isso ocorre pois há uma falsa ilusão de que tamanha precariedade sirva de punição para os crimes cometidos.
A Lei de Execução Penal Nº 7.210/84 prevê, como dever do Estado, proporcionar condições de reintegração social ao condenado. A capacitação profissional, por exemplo, para além da remissão da pena, é importante para minimizar a ociosidade dos detentos. Outra ação é o Programa de Ressocialização do Preso com as empresas e órgãos públicos, que visa integrar os privados de liberdade ao trabalho externo. No entanto, embora assegurados em lei, o governo não os coloca em prática.
Em entrevista ao Contraponto, a estudante de direito e egressa do sistema prisional, Marcia Bernardes, lembra de experiências próprias: “Programas de ressocialização não saem da teoria, não há absolutamente nenhuma iniciativa na prática. O sistema não faz nada para que os detentos tenham uma opinião diferente sobre os crimes que cometeram. E pior, lá dentro nós temos muitas opções de negócios para quando sair”.

Ela ainda conta sobre a discriminação que sofreu no âmbito universitário e que seus antecedentes criminais foram mencionados no processo de guarda de seu enteado. Após passar por experiências traumáticas, Marcia lançou um podcast de entrevistas com outras egressas e seu objetivo, após se formar, é oferecer reabilitação gratuita a ex-detentos e firmar parcerias com empresas que ofereçam vagas de emprego a essas pessoas. Segundo o Ministério da Justiça, em 2019, menos de 20% dos reclusos tinham alguma ocupação e menos de 13% estudavam.
Marcelo Freixo, 55, deputado federal no Rio de Janeiro, conhecido por ter coordenado projetos educativos no sistema penitenciário, disse à Conjur em 2017: “Não ter política pública é a política pública do sistema prisional. Além disso, o Estado não cumpre a legislação. O objetivo da cadeia é não ter rebelião e fuga, não que os presos trabalhem, tenham um curso profissionalizante ou concluam seus estudos. O preso é classificado por sua facção, logo, a mensagem é que, para sobreviver, ele deve pertencer a alguma. E eu garanto que a maioria não tem vínculo organizado com o crime lá fora. Passa a ter dentro. O objetivo é excluir”.
Buscando transformar esse cenário, institutos e ONGs tomam iniciativas que busquem reduzir esse impacto e ajudar os egressos a se inserirem na sociedade outra vez. No entanto, é preciso ter cautela, como explica a assistente social Dóris Veronez ao Contraponto: “Gostaria de deixar claro que não existe ressocialização de um público que nunca foi socializado. As pessoas que já passaram pelo sistema carcerário nunca pertenceram a um meio social que viabiliza condições para garantir direitos em todo âmbito de vida. Nós, enquanto organização, assumimos uma responsabilidade social com os apenados a fim de retratar e amenizar os danos causados durante esse processo”.
Dóris atua no Instituto Responsa, em São Paulo. O principal objetivo do Responsa é dar o suporte necessário para as pessoas que tiveram uma carência em algum momento, sobretudo os que já foram privados de liberdade. O Instituto conta com cursos profissionalizantes e parcerias com diversas empresas, que garantem a empregabilidade de seu público. Atualmente, essas organizações cumprem um papel que deveria ser do Estado: “Não consigo enxergar de forma eficaz uma união entre Estado e Organizações, devido ao fato do Estado possuir uma lógica excludente e de manutenção do capital que é totalmente contrária à nossa missão”, ela afirma.
“Ao invés do sistema oferecer recursos para aquele sujeito sair apto a conquistar sua autonomia, vemos a precariedade dos estabelecimentos, superlotação, falta de condições adequadas para saúde básica, alimentação e higiene. Dado essas condições, não vejo a mínima possibilidade de o apenado voltar para a sociedade sem reincidir”, completa Dóris.
A assistente social reconhece que, além do sistema estatal que não assegura aos egressos seus direitos, a discriminação é também evidente. “Devido ao sensacionalismo da mídia e a visão sem análise crítica da sociedade, a inserção das pessoas privadas de liberdade em nosso meio social, torna-se cada vez mais difícil”, afirma. Questionada sobre qual o método que considera mais eficaz quanto a redução do preconceito estrutural, ela pontua: “Acredito que possamos fomentar a discussão sobre a lógica punitivista, o encarceramento em massa e disseminar informações verdadeiras em relação a todo esse sistema. É necessário cada vez mais falarmos sobre o assunto dentro das instituições de ensino, a fim de quebrar o ciclo do silêncio e aprimorar nosso senso crítico.”
Além do preconceito sofrido nas ruas e na sociedade, muitas vezes os apenados também têm de lidar com a falta de apoio familiar, que tenta ser suprido também nos institutos de apoio: “Nosso público é fragilizado, não somente pela privação de liberdade, mas por todo seu histórico de vida. É de extrema importância o acolhimento pós-cárcere para dar o suporte que precisam para mudar sua realidade”, acrescenta Dóris
“Através da escuta qualificada e o estabelecimento de vínculo com o egresso, é possível traçar estratégias junto ao nosso acolhido para sua inserção na sociedade, levando em consideração cada particularidade e necessidade. Para nós, nada é imposto e tudo é construído de forma conjunta, para que o sujeito seja protagonista da sua própria história”, conclui Dóris.