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Mais de 500 trabalhadores são resgatados em situação análoga à escravidão em 2023
Setores escravistas variam desde o ramo da construção civil à indústria rural; episódios recentes de denúncia caracterizam o chamado “trabalho escravo contemporâneo” e, principalmente, da divulgação da lista destes infratores. Em 2004, a Portaria n. 540/2004 do Ministério do Trabalho criou a chamada “lista suja”, em que há o cadastro de empregadores que tenham mantido trabalhadores em condições análogas à escravidão.
Entretanto, conforme observado por Fabíola Marques, professora de Direito do Trabalho da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e sócia do escritório Abud Marques Sociedade de Advogadas, com os governos Michel Temer e Jair Bolsonaro, a aplicação da lista lidou com impasses.
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Enquanto no governo Temer, a regulamentação do cadastro das empresas infratoras e a divulgação da relação dependia de determinação expressa do Ministro do Trabalho, no governo Bolsonaro, embora os dados fossem atualizados, a dificuldade residia em ter acesso aos autos de infração das empresas autuadas por submeter pessoas a trabalho análogo à escravidão.
Direitos violados
Cerca de 520 pessoas no Brasil foram resgatadas de trabalhos análogos à escravidão só nos três primeiros meses deste ano, segundo o levantamento do Ministério do Trabalho e Emprego. Episódios de exploração vieram à tona em São Paulo, no Rio Grande do sul e em Goiás.
32 trabalhadores rurais foram encontrados em condições insalubres em uma fazenda, em Pirangi, no estado de São Paulo.
O local fornecia cana-de-açúcar à Colombo Agroindústria, fabricante da marca Caravelas. Os trabalhadores eram submetidos a péssimas condições para exercer seus ofícios e sofriam privação alimentar, além de estarem em situação de servidão por dívida.
No Rio Grande do Sul, 207 pessoas foram resgatadas de um alojamento onde trabalhavam sob ameaças, espancamentos e choques elétricos. Elas foram admitidas por uma empresa que presta serviços e mão de obra às vinícolas da região. O grupo prestava serviços diariamente das 5h às 20h, cerca de 15 horas por dia.
Em Uruguaiana, também no Rio Grande do Sul, 56 trabalhadores, incluindo dez adolescentes, foram retirados de duas fazendas de arroz. Eles entravam em contato direto com agrotóxicos perigosos nas plantações, não recebiam ferramentas de trabalho e tampouco eram alimentados como deveriam.
O caso mais recente de resgate de funcionários foi em Goiás, onde 212 pessoas foram libertas. O grupo era contratado por uma empresa de prestação de serviços terceirizados e trabalhava em usinas de álcool e produção de cana de açúcar. Os trabalhadores, tinham que arcar com os custos de alimentação e moradia precária, além de terem que comprar os próprios instrumentos de trabalho. Todos foram levados clandestinamente para diversas cidades do estado goiano.
Falta de punição é a principal causa
Em entrevista ao Contraponto, Mayra Goulart, professora de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (PPGCS), afirma que o problema persiste no país devido ao alto nível de impunidade dos contratantes responsáveis: “Se as pessoas que oferecessem esse tipo de serviço fossem punidas, de fato, investigadas, denunciadas, e a sociedade na totalidade se comprometesse em punir quem explora esse tipo de trabalho, a incidência do problema seria menor”.
Ainda, segundo a docente, a segunda causa da questão diz respeito ao costume que o Brasil tem em uma superexploração do trabalho. Logo, se trata de um problema fortemente enraizado: “Nós somos uma sociedade tolerante com a superexploração do trabalho. Isso é uma característica de países de capitalismo tardio, então a sociedade e, inclusive, as próprias vítimas já têm um histórico, já vivem em uma episteme que tolera a exploração do trabalho”.
Para combater os episódios corriqueiros caberia ao atual governo incentivar a retomada de processos de atualização
Ainda segundo a especialista em Direito do Trabalho, quando o empregador submete o empregado a trabalhos forçados, a jornadas exaustivas ou não garante condições mínimas de higiene, saúde, repouso ou alimentação, quadros assim já podem ser caracterizados como “escravidão contemporânea”.
Para Fabíola, ao mínimo, os direitos dos trabalhadores que enfrentaram tais condições devem ser garantidos e ressarcidos por lei: “Os empregados resgatados têm direito ao recebimento de três parcelas do Seguro-desemprego Especial no valor de um salário-mínimo e acesso prioritário ao Bolsa Família. Além disso, o Ministério Público do Trabalho pode negociar um Termo de Ajuste de Conduta que estabeleça uma indenização para os trabalhadores”.
De acordo com a advogada, nada impede que o servidor promova uma reclamação trabalhista pleiteando todos os direitos decorrentes da prestação de serviços que não foram observados, como o pagamento dos salários atrasados, horas extras, FGTS ou danos materiais. Para ela, o debate, que se trata de um quesito humanitário-civilizatório, em âmbito jurídico, e não deve ou pode ser esvaziado.
A união do Estado, da sociedade civil e das empresas é o início do combate a essa prática. A luta contra o trabalho escravo objetiva uma sociedade mais justa e igualitária, que valoriza o trabalho humano e respeita os direitos fundamentais dos cidadãos.