A crise da abundância
A CRISE DA ABUNDÂNCIA
canções, álbuns ou discografias inteiras. Portanto, nunca o acesso à
Texto: Pedro Gonçalves
abundância foi tão simples e democrático. E barato, acrescente-se.
Ilustração: Maria Imaginário Há, por outro lado, a já proverbial questão da democratização da própria Nos dias que correm, a experiência de carregar o vício da música é
produção, gravação e difusão de música. O que faz com que todos os dias
semelhante à experiência de estar preso num abastado banquete de
nasçam coisas a que qualquer melómano deve dar atenção - uma canção, uma
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casamento: a oferta alimentar é tanta e tão variada que culmina em
banda, um músico, um movimento ou mesmo um vídeo, cortesia de YouTube
pesadelo, ansiedade e uma assinalável fominha. A culpa, ninguém duvide,
ou MySpace. Vista a coisa pelo lado da legalidade, são incontáveis as
é da internet.
lojas virtuais de música em formato digital, música que está à escassa distância de um download e um cartão de crédito válido. Ora não há
Há qualquer coisa de masoquista na atitude de não abdicar de conhecer
estômago para tanta guloseima. O que resta, então, a quem não dispensa
tudo quanto é fresco e fofo em matéria de edição musical de real
doses diárias de nova criação musical?
interesse. Isto porque, para ser sucinto, não há apetite que dê conta de tudo quanto se faz e se mostra em todos os cantos, pisos e subterrâneos
Pode variadíssimas coisas, e aqui voltamos à abundância. Pode ignorar a
da internet. Não é novidade para ninguém que o consumo compulsivo de
velocidade a que segue o comboio da informação, colar-se a uma carruagem
música deixou há muito de se traduzir em prateleiras e paredes forradas
e explorá-la de fio a pavio - nascem os especialistas em géneros ou
a vinil e caixas de plástico. Há coleccionadores à antiga, com dezenas de
movimentos. Podem, por outro lado, saltar de carruagem em carruagem
milhar de discos de vinil, que dominam melhor a internet do que os filhos
sem nunca perceber realmente o que se passa em cada uma delas - nascem
ou os netos. E, em boa parte dos casos, as prateleiras foram substituídas
os especialistas em tudo. Podem ainda ressuscitar a importância dos
por discos rígidos, substancialmente mais baratos e arrumados. De onde
opinadores (particularmente os que se expressam online) e deles fazer
se pode concluir que esta crise de abundância de música e informação é um
faróis de navegação - normalmente, são os mais esclarecidos. E enquanto
flagelo transversal a toda a sociedade. Um flagelozinho, vá lá.
não se decide, ou simplesmente enquanto aprende a viver com apenas uma de várias formas de consumo de música, há uma indústria inteira a definhar.
Daqui a muito poucos meses passa uma década sobre o início de actividade
Uma indústria que hoje é apenas vista como a indústria dos intermediários
do Napster, a mais emblemática das marcas no universo peer-to-peer, que é
entre criador e consumidor.
como quem diz a partilha de ficheiros no formato mp3 entre computadores em qualquer parte do mundo. De borla, sem qualquer preocupação com questões como os direitos de autor ou a saúde da indústria discográfica. Que, neste caso, conseguiu fazer valer a sua posição e ajudou a decretar a ilegalidade do Napster e aparentados. O mal da partilha estava feito e, até aos dias de hoje, foi apenas uma questão de aumentar eficácia e sofisticação - dos torrents aos sites como o RapidShare, que alojam