


Trabalhar com arte é, de certa forma, trabalhar com escuta. E no caso de Marcelo Conceição, escutá-lo é sempre instigante. Autodenominando-se como “garimpeiro urbano”, o artista viveu longo tempo nas ruas do Rio de Janeiro. Lugar de perigos, mas, também, de possibilidades e cuidados. Lugar que, para ele, foi também espaço de afirmar sua arte, suas ideias, fazer amigos e clientes.
Marcelo ouve com atenção. E responde, muitas vezes, com outras perguntas. Com olhares, reticências e interrogações. Quase sempre finaliza as frases convidando o interlocutor a expressar sua própria opinião, como quem constrói junto, ou quem sempre guarda um aberto de dúvidas.
Se, na fala, podemos encontrar hesitações, o mesmo não se pode dizer de sua criação: sua obra parece ser seu principal espaço de certezas. Seu dom.
Essa mostra, individual, fala da missão do Museu do Pontal que inclui valorizar os artistas, contribuir para sua difusão, fortalecer suas redes e memória. Para esta exposição convidamos Jorge Mendes para a curadoria, agradecendo a delicadeza com que veio somar conosco. Além de nosso acervo próprio, reunimos obras de diversos colecionadores que, antes de nós, ou ao mesmo tempo, vinham adquirindo as fantásticas esculturas desse artista: Paulo Tavares, Fabio Settimi, Leonel Kaz, Sulamita Danowski, Arjan Martins, Ana Maria Schindler, Zaven Paré, Jorge Guedes e Jorge Mendes.
Agradecemos a todos que se empenharam na realização dessa mostra, que inaugura duas novas galerias no Museu do Pontal. E convidamos o público a, junto conosco, mergulhar na poética de Marcelo Conceição.
Angela Mascelani e Lucas Van de Beuque, diretores do Museu do Pontal
Depoimento do curador Jorge Mendes para o catálogo da exposição “Marcelo Conceição: deslocamentos e travessias”
Meu encontro com o Marcelo foi de um reencontro com um idealismo. Quando eu tinha 20 e poucos anos, comecei a trabalhar como instrutor e técnico de assuntos culturais com a população em situação de rua, na Fundação Leão XIII. Passei 5 anos percorrendo o Rio de Janeiro, conversando com as pessoas nessa situação. Era um projeto de vida, eu acreditava na mudança. E quando “reencontro” o Marcelo, vem esse reencontro que é do olhar. Acredito que ninguém descubra ninguém. E a importância da exposição no Museu do Pontal se dá aí: não foi o Jorge quem teve um olhar para o Marcelo, mas sim diversas pessoas em momentos diferentes. Esse olhar para a pessoa que foi invisibilizada – porque a população em vulnerabilidade é extremamente invisibilizada – já fazia parte da minha história de vida. Assim como o olhar para o lado artístico, já que eu dava aulas de arte para pessoas em situação de rua. Eu já percebia o talento e o fazer artístico de muitas pessoas nessa condição.
Como cenógrafo, sempre frequentei feiras de rua em busca de objetos com história e potência. E sempre que eu via Marcelo na feira do Rolo (bairro de São Cristóvão) ou na feira da Praça XV (centro do Rio de Janeiro), com seu tapetinho. Havia ali um objeto muito bom e aquilo me instigava. Ele tinha um olhar apurado, existia uma curadoria própria na escolha dos objetos e na forma como ele
expunha para venda. Ao longo desse tempo, fui conhecendo ainda mais o seu olhar e sua história. Ele me contou uma vez que sua mãe, que trabalhava em casa de uma família rica de Niterói, o levava de vez em quando ao trabalho, pois não tinha com quem deixá-lo, e ele se encantava com os objetos dessa casa.
Até que, um dia, vi sua primeira peça, e ele negou a autoria – esta é uma história nossa. Perguntei a ele, mais de uma vez, quem a havia feito, pois eu tinha gostado. E ele me disse, repetidas vezes, que tinha sido um amigo. Assim foi com a segunda também. Essas peças vieram para a minha casa sem assinatura e, tempos depois, por diversas razões, acabaram descartadas. Não saber a autoria de uma obra sempre me incomodou profundamente porque por trás de cada objeto tem uma pessoa que o produziu, o criou. Nada é anônimo.
Na véspera da abertura de sua exposição no Museu Janete Costa de Arte Popular ("Transvendo o mundo", de 09/11/22 a 26/03/23), em Niterói, ele me revelou que era o artista daquelas primeiras peças que comprei, e disse a ele que, se ele não tivesse escondido sua autoria, ali poderiam estar as duas primeiras obras dele.
Ele então me contou que, à época, teve receio de revelar, pois, ao saber que ele as havia feito, eu poderia não ter mais interesse em comprar. Seu medo era eu pensar que não valeria a pena, pois ele não era um artista. E o almoço naquele dia já estava pago. Isso foi uma dor incrível, uma denúncia brutal.
Só depois de um tempo, pelo Largo do São Francisco e mesmo na Praça XV, comecei a perceber a rede de contatos do Marcelo. Descobri outras pessoas que estão ali caminhando com ele: como o Da Penha, um grande artista que tem uma barraca na Praça XV e que foi quem pediu para o Marcelo assinar pela primeira vez uma peça. Ele instigava muito o Marcelo. Como professor no Liceu de Artes e Ofícios, entregava sobras de materiais para o Marcelo produzir. Já na pandemia, por exemplo, o artista Zaven Paré também levava muitos materiais para ele. Continuei encontrando-o esporadicamente na feira do Rolo e foi lá que surgiram as conversas para sua primeira exposição no Rio de Janeiro, que seria no Museu Janete Costa – fato que ele sempre desacreditou.
Quando, enfim, montamos sua exposição no Museu Janete Costa, o importante para mim foi que ele esteve junto, ativamente participando do processo – assim como aconteceu no Museu do Pontal – para que
não fosse um processo unilateral, de se pegar um artista e colocá-lo em um museu ou galeria somente com um olhar de fora. Ou seja, não se trata do nosso olhar sobre as peças dele, mas, sim, dele decidindo junto quais obras entram e como, podendo mexer e interferir nas peças durante a montagem, como qualquer artista contemporâneo que expõe com controle sobre o que será apresentado ao público. E assim ele pôde se entender artista.
O que me toca no Marcelo e o que me faz refletir quando vejo ele e sua obra é a questão da impermanência. A clareza de que nada permanece, como a célebre frase de Heráclito sobre o tema do devir: "Tudo flui como um rio". Inclusive, sua obra vem de objetos utilizados para outras funções e por outras pessoas antes dele, que ele os transforma. É a finitude que me emociona, sua obra é frágil e isso faz parte. As instituições, como o Museu do Pontal, têm o papel de preservá-las, mas, para mim (e acredito que para outras pessoas que desejem ter uma obra dele), ter suas peças em casa não envolve a ideia de uma redoma protetora. Mas, sim, a de nutrir uma relação, assim como é a minha com o próprio Marcelo: cotidiana.
Nascido em 24 de maio de1966 e natural do estado do Rio de Janeiro, Marcelo Conceição é integrante de uma família com 11 filhos. Marcelo morava na cidade de Niterói (RJ), no Morro do Bumba, quando um deslizamento de terra (07/04/2010) soterrou a sua casa e matou um irmão e outros familiares e amigos.
A tragédia o levou a viver nas ruas do Centro do Rio de Janeiro, por onze anos, e sobreviveu vendendo em feiras populares objetos que recolhia em calçadas e avenidas do centro e da zona sul da cidade. Neste período adotou a rotina de caminhante urbano. Marcelo Conceição se autodenomina um garimpeiro urbano. Passou então a criar esculturas com o fruto do seu garimpo, peças baseadas em sua observação das ruas, que eram vendidas para os passantes. Assim sua vida mudou. Atualmente, é reconhecido como artista, valorizado por colecionadores e saiu das ruas. Hoje vive em um apartamento alugado em Niterói e suas obras estão em diversas coleções.
Se eu fizesse um filme, a minha trajetória de vida, eu queria que esse filme fosse rodado em todos os lugares onde eu trabalhei no Rio de Janeiro:
inclusive onde eu trabalho hoje, que é na minha casa, onde é meu ateliê.
“A arte é livre.”
A primeira peça minha foi uma bola e 3 madeiras que eu vendi. Eu ainda não assinava, eu não gostava, ta entendendo? Aí até foi o Jorge, o Jorge Mendes, né?
Ele sempre frequentou a feira e ele me perguntou
“Quem faz isso?” eu falei "esse é um amigo meu, ele não assina não”. Aí, sabe por causa de que eu falava isso? Porque, imagine
você na rua todo maltrapilho, todo sujo, cheirando mal, eu achava que ninguém ia comprar uma peça feita por uma pessoa igual a mim, então eu negava, eu falava
“não, não fui eu”, "foi um colega meu que faz e botou aqui pra vender", isso foi a primeira, a segunda a mesma coisa.
"a arte é infinita. Ela vai embora sem fim, em todos os sentidos."
Me incomodava, que as pessoas diziam "o senhor é um artista". Aquilo parecia que estava me dando uma apunhalada no peito e tava desmerecendo
os artistas, porque eu tinha comigo "eu não sou artista, um artista não tá jogado, não pode ficar jogado na sarjeta, um artista não pode ter provação de pão,
sem lugar pra tomar banho, sem lugar pra fazer as necessidades; um artista não é isso, um artista ele tem que estar no lugar de artista".
Então as pessoas falava mas era, olha, mas erademais, todo dia. Aí eu ia pra um lugar, ia pro outro, a mesma coisa.
"acredito que isso que eu faça é arte, né? mas eu digo
trabalho, gosto de chamar de trabalho. Porque é como qualquer um trabalho."
Você vê, eu nunca tinha entrado em museu, nunca entrei em galeria de arte, nem nada,
e já entrei com a minha arte. Então isso é muito forte, é uma coisa muito forte.
Então eu acho que esse trabalho meu, eu acho que é uma sustentação,
não só pra mim, como aquelas pessoas que tão vindo atrás, que não tem apoio.
“A minha preocupação era guardar, eu tinha que vender tudo. (...) Porque eu não tinha lugar pra guardar, como as peça era muito frágil, né?"
Exposição - Deslocamentos e Travessias: Marcelo Conceição
Jorge Mendes Curadoria
Angela Mascelani e Lucas Van de Beuque Concepção e projeto
Raphael Secchin Design Expositivo
João Rosa
Design Gráfico
Fabiana Comparato
Coordenação de Conteúdo
Marcella Bacha
Nicolas Januário (Assistente)
Coordenação Técnica
Sergio dos Santos (Conservador Chefe),
Vanessa Freire (Auxiliar de restauração) e
Mariana Gomes (Assistente de Museologia) Museologia
Sabrina Veloso (Coordenação),
Matheus Saudino (Assistente),
Julia Madeira (estagiária)
Produção
Benivaldo Cordeiro de Jesus (Marcenaria - SB Móveis)
Edivan Lima de Moura
Roger Ferreira Cardoso Marcenaria e Montagem
Julio Lobato e Felipe Messina | Boca do Trombone
Projeto Luminotécnico
Carlos Shizuka
Edinei José dos Santos
Osni da Silva Rodrigues
Técnicos de Luz
Base Comunicação Visual Impressão
Rubia Mazzini
Coordenação de Comunicação
Renata Magdaleno Assessoria de Imprensa
Ficha técnica catálogo
Angela Mascelani e Lucas Van de Beuque Concepção e projeto
Fabiana Comparato Coordenação editorial
João Rosa
Design gráfico
Lipe Borges Fotografia das obras
Andrea Capella Fotografia do artista
Sabrina Veloso (Coordenação), Matheus Saudino (Assistente),
Julia Madeira (estagiária)
Produção xxxxxxxxxxx Impressão