letras & devaneios - azul cinza do céu vermelho.

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azul cinza do céu vermelho (mixtape) letras & devaneios by: j.p schwenck (out. nov. 2022)

Sobre o projeto: nascido originalmente como um disco, azul cinza do céu vermelho é uma mixtape. sim, mixtape. quando eu tava finalizando as primeiras faixas, me deparando com o aspecto cru delas, fiz questão de afirmar: é uma mixtape. e é crua como eu queria. as faixas (que são 20) refletem um lado mais pessoal que sempre coloquei na minha escrita mas não muito coloquei nos meus ruídos. além do mais, esse disco (perdoem me o vício) é inteiro spoken word, nenhuma faixa instrumental. e ficará somente no bandcamp e no youtube. samples livres encontrando a voz distorcida. citações variadas, escritas cruas. azul cinza do céu vermelho é dividida em quatro partes (azul, cinza, céu e vermelho) e mais uma parte "extra" (violeta). a parte 1 (azul) é mais simplista, a parte 2 (cinza) é mais urbana reminiscente da viagem que fiz para SP e que me transformou. a parte 3 (céu) é mais sentimental, a parte 4 (vermelho) é mais caótica e a parte 5 (violeta) é minimalista e mais saudosista.

voz (em todas as faixas), manipulação de fita (em faixa 12), piano (em faixas 17, 18 e 19), gravação (em faixa 20), produção, edição, capa j.p schwenck

1. “Sonar” AZUL

“Vou sair correndo desta cidade em busca de um lugar qualquer onde possa escrever o poema da minha desgraça

Vou, porque já é demais para mim o espetáculo incessante da simulação e inexpressão das almas

Vou sair correndo, correndo... correndo pelas avenidas, pelas ruas, através os homens vestidos e as mulheres nuas E os edifícios… vou sair, fugindo, fugindo dos olhares estéreis dos edifícios, correndo pelas ruas como um ladrão que se sentisse perseguido

Vou sair, vou movimentar toda essa gente fazendo com que me olhem, vou parar os carros fazendo com que não me matem, vou

Porque não posso mais desse irremediável vou tão maior e tão mais fraco do que eu mesmo, que me leva e me deixa gravado em todas as faces da vida.” (Vinícius de Moraes)

não, esse não será o fim as vezes carnaval as vezes o carnal sim de todas as perguntas em dez meses desanuvio contudo, enquanto penso fico aceso a ver pavios do fogo sombrio que corta os olhos vazios em silêncio, denso híbrido de amormaço, queimo e danço em palavra, força e promessa no fogo que nunca apago. esse não será o fim as vezes um grão de areia

sempre um pedaço de mim em que ligo, o eu cinético que lhe observa no breu panóptico nunca seria o seu fanático mero dilema, viver simbiótico (se não ético) como se mede o tamanho de uma coisa sem antes tentar vivê la? como poderia viver em medidas se nesse céu não há estrelas? eu queria subir em todos esses prédios nas árvores desse cinza jardim pra quando de cima, eu encarar o momento e dizer que nunca será o fim.

(é um desse sonhos que tive, não sei se vou acordá lo e vivê lo)

Sobre a faixa: A base dela é "Cementerio Club", do Pescado Rabioso. A letra é dividida entre uma citação de Vinicius de Moraes e um poema meu. Faixa de introdução.

"amálgama da pele"

entrarei em retrospectos em cenas, calos em zeros estarei sempre por perto em flechas, flores e Eros.

serei trajeto troço de um incêndio insensível penso se serei possível quando só viro silêncio. enquanto o peso não desce e os descalços pés não avoam amálgama do pão e da pele vazio que dentro trovoa se sou o pano ou a roupa se a água molha o que destoa? quando o mar abraça a onda neutra os braços marejam e a brisa é outra. (e só) a pele enruga o mal deturpa sei o que destrói deixo que destrua o quarto esquenta

a porta pra rua serei cachorro uivando pra lua penso na vida e no que dela é nua descasco a carne e a como crua se a lava queima o banho suja o espelho ouve a parede escuta preso ao cabide e a mesma conduta de acordar na glória de ser filho da puta. "do desejo"

“morremos sempre. o que nos mata são as coisas nascendo: hastes e raízes inventadas e sem querer e por tudo se estendendo rondando a minha subindo a vossa escada. presenças penetrando na sacada. invasões urdindo tramas lentas.

insetos invisíveis nas muradas.

eis o meu quarto agora: cinza e lava. eis me nos quatro cantos (morte inglória) morrendo pelos olhos da memória. aproximam se. e libertos da presença da carne se entreolham.

o teu nascer constante traz castigo. os teus ressuscitares serão prantos.”

(hilda hilst)

Sobre a faixa: A base dela são as músicas "Castiçal", do Cassiano e "A Cruz", do Dafé. A letra é dividida entre um poema meu e uma citação de Hilda Hilst.

03. “Pretty Boy” (Lovesong) AZUL

polaroid of we dancing in your room i want to remember i think it was about noon it's getting harder to understand (to understand) how you felt in my hands (in my hands)

i could be a pretty boy i'll break a leg for you i could be a pretty boy and blind your point of view i could be your pretty boy won't ever make you blue i could be your pretty boy i'll lose myself in you.

i was sedated by you, now i cry just bleeding 'bout the fool that i was i was such a fool i'm alone now but it's better for me i don't need all your negativity i could be a pretty boy i'll wear a skirt for you i could be a pretty boy and blind your point of view i could be your pretty boy i'll ever make you bloom i could be your pretty boy i'll lose myself for you.

(Original: Clairo / Versão: J.P Schwenck. Na introdução, a primeira parte do poema "Cícero e Marina", na voz de Antônio Cícero.)

04. “Mientras” AZUL

I perdido na tipográfica missão de ser a exclamação mais nítida abro me, cadabro me, são vozes vídeos, olhares de medo e mídia análogo a ser analógico fugídio do aqui ao aurélio papelão de toda praça/graça da sala de projeções das cinematecas sanduíche mordido por todas as bocas de todas as loucas retalho das coxas das brancas cinismo do rock trabalho mal feito quem imaginaria? (e não se rebobina)

"quem imaginaria o cross over, o claro escuro, a maquiagem, a fotografia?"

Cinema, jeito de corpo, café, dois estados de espírito. A soma das coisas em mim resulta em um jeito tão eu que ainda estou contando os zeros.

Vilipendiado por um repentino estado de revolta

Eu só queria a vida que inventei pra mim de volta. Antes que a terra engula o sonho que se evapora "A fera que gritou “eu” no coração do mundo está aqui agora". II

"o homem do mar era uma construção serena peixe fresco corda alcatrão e a lembrança de velhos poderes imperiais no canal o nosso foi um fogo que queimou sem nos queimar morreu na praia estátuas silenciosas de sal virávamos páginas em branco a velha pergunta transbordando sempre de cada livro no alto da biblioteca de alto preço de cada escultura construída no além mar o mau fado me deixou a ver navios ressaca impronunciável e alheia falsas falésias falácias enseada escura e canoa furada" (hilda machado)

(e continuo cantando)

"cada vez que eu sinto um beijo seu na minha face eu luto pra manter o meu disfarce e não deixar tão claro que te quero..."

Sobre a faixa: A base dela são as músicas "Matriz e Filial" e "Pés Descalços", de Chitãozinho e Xororó. A letra é divida entre um poema meu e um poema da Hilda Machado. A inspiração pra base foi “Delirio de Grandeza”, da Rosalía.

05. “E Cai a Vênus...” (Interlude) CINZA

“São Paulo foi descrita para mim como fenômeno natural e caos ordenado. Ele tentará ver a cidade como pessoa e se perguntar o que pensa dele. Um treinamento a estar presente. Não se sinta mais errado. O pessoal é poética. Não sei se acredito. Às vezes acho que o corpo da cidade que eu estava procurando poderia ser o meu corpo. Duas vozes em paralello. Ficar aqui significa negociar quem você é. Todos os dias. Havia uma portinha, sua avó passava por ela. Sinta todo. Tinha uma impossibilidade de sonhar no campo. Quando entrei, abaixei a cabeça e quando saí, bati nela. A crise econômica em 2010 varreu como um arado as ilusões, que perguntas tenho o direito de fazer? O íntimo pequeno é apenas um fragmento. Construir formas de narrá lo com dignidade. São Paulo para mim foi voltar a sonhar. Talvez eu gostaria de dizer tudo ao público. Se sentir parte, não quero mais me justificar. Vovó Flora sabia ouvir. É o fim da culpa, mesmo que o passado continue presente. E a água sempre foi. Nasci a dois quilômetros de uma lagoa. Deixe as coisas para a água. Para liberar, sem compromissos. Profere todas as palavras entregues. Sair do documentário para o poético. Proferir todas as palavras, é São Paulo quem me faz esta pergunta. Havia uma portinha, quando saí bati nela. A verdadeira mentira são todas as explicações que deixamos entre nós e o mundo. Senti uma força que precisava perseguir. Para avançar. Só sua avó passava por ela. A rigidez nos ombros para uma escrita desajeitada. E o resto estivesse perdendo seu significado na borda de uma cama. Estou deslizando no chão e empurro minhas omoplatas contra a parede. Ela não se levantava até

o livro terminar. Nada mais acontecera. O dever de aprender sozinha e o terror de ser julgada, de ter cometido um erro. Sempre observado. As pessoas que sonham batem a cabeça. Crença no imperfeito. Sendo quebrada na luta, esvaziada da fábrica. Tenho a responsabilidade de sonhar. Por ela entre os fragmentos. Em um espaço entre São Paulo e eu."

Sobre a faixa: A base dela é "O Mundo é um Moinho", do Cartola. Interlude do disco. A letra dela é um texto do Alessio Mazzaro, que conheci durante uma exposição no Pivô, em SP, pedi permissão ao próprio para usar para um curta metragem que estava planejando, mas resolvi gravá lo como uma faixa da mixtape.

06. “Procuro Me” CINZA

I procuro me no meio da cidade da eletricidade um balde se enche um fio se desencapa e eu no meio em uma só voltagem pelos lados procuro o salvamento as vezes momento e não mais personagem eu procuro a imagem que não consigo entender se sou o eu que faz as rotas do se achar e se perder e quando o cheiro do novo me transporta ao ontem procuro o lugar aonde me descarto aonde me jogo, aonde desembarco sem vértices ou vantagens onde envio as contas? clareio a mesma pergunta procuro no escuro um só recado (era relento ou era Ricardo?) o nome dele sumia, entre o silêncio gemia não era Fabrício, não era Francisco não era Roberto, não era princípio não era começo, não era enguiço era algo infinito

era o singelo grito.

às avessas deitado correndo em bando em bondes em búzios embora no vão do MAM no tapete vermelho do Odeon no Hotel Nacional última poeira do Palácio Central último preto de Santa Rita último corpo do cais aos rostos, aos restos às rédeas, radares eu procuro você de onde nunca me encontrei. II "estou entregando o cargo onde é que assino retorno outros pertences um pavilhão em ruínas o glorioso crepúsculo na praia e a personagem de mulher mais Julieta que Justine adeus ardor adeus afrontas

estou entregando o cargo onde é que assino há 77 dias deixei na portaria o remo de cativo nas galés de Argélia uma garrafa de vodka vazia cinco meses de luxúria despido o luto na esquina um ovo feliz ano novo bem vindo outro como é que abre esse champanhe como se ri mas o cavaleiro de espadas voltou a galope armou a sua armadilha cisco no olho da caolha a sua vitória de Pirro cidades fortificadas mil torres escaladas por memórias inimigas eu, a amada eu, a sábia eu, a traída agora finalmente estou renunciando ao pacto rasgo o contrato devolvo a fita me vendeu gato por lebre paródia por filme francês

a atriz coadjuvante é uma canastra a cena da queda é o mesmo castelo de cartas o herói chega dizendo ter perdido a chave a barba de mais de três dias

vim devolver o homem assino onde o peito desse cavaleiro não é de aço sua armadura é um galão de tinta inútil similar paraguaio fraco abusado soufflé falhado e palavra fútil

seu peito de cavalheiro é porta sem campainha telefone que não responde só tropeça em velhos recados positivo câmbio não adianta insistir onde não há ninguém em casa os joelhos ainda esfolados lambendo os dedos procuro por compressas frias oh céu brilhante do exílio que terra que tribo produziu o teatrinho Troll colado à minha boca onde é que fica essa tomada onde desliga?"

(hilda machado)

Sobre a faixa: A base dele são as músicas "if you mess with me!" e "headcase" do Carl Crack. Originalmente seria a faixa mais longa do disco, e é dividida entre duas partes: Um poema de minha autoria e o poema "Miscasting", da Hilda Machado. O nome da faixa referencia a obra homônima da Lenora de Barros

07. “As Amargas, Sim” CINZA

Só restou pagar caro por táxis e pelo vagão quente do metrô. O delírio de grandeza urbano me faz escrever à marretadas e agora lerei um poema meu chamado “Tungstênio”, que é assim:

Os bois às quartas Tornando a vida mais densa Tomando um café entre danças Entornando o medo em lembranças.

“Telefones na Grécia são arcaicos”. Arriadas calças no Parque Augusta. “Talvez a vida seja isso”

Ele responde, com uma palpitação crescente.

Uma hora você está Com a baita agonia Da mesma fisionomia O esvaziamento só Vertendo entre os dedos.

(quem não chorou aos oito anos vendo “c'est pas moi, je le jure!” escondido dos pais, não absorveu nada do filme mesmo)

Ela se ensaboou e se jogou do prédio Os papéis rosas continuaram debaixo da cama.

Deito sobre sua virilha olhando para seu rosto Testando te levemente para tentar te encontrar. (Minha cabeça choque enrije, chuva inundando o poço escuro de nós dois)

O querubiano degenerado de mim Olhando constantemente as horas Essência do pequi mais doce Com espinhos fechando sobre a língua.

Último bloco do brickgame Corações que olham fixamente Última gota de mijo No canteiro das noturnas rosas.

Crystal la beija com miss biá Eu não estou, você não está Eu vou embora, você vai ficar Nunca seremos, nunca será.

Do perimetral Do pernoite Do sentimental Da curadoria.

Os polímeros do nosso corpo

Como o nesquik que ficou no copo Nunca mais o doce do morango Nunca mais a fantasia da arma química.

Antônio Cícero nas horas vagas Deixo as asas nas estradas Ele vai rasgar as horas mais cruéis do dia Com um só estilete enferrujado.

(Eu não ficaria surpreso se ele matasse alguém Espero que esse alguém não seja eu.)

Beijos cinzentos, reservas de amor Quem esvaziou o tanque?

Vilipendiado por um repentino estado de revolta Eu só queria a vida que inventei pra mim de volta.

Sobre a faixa: A base dele são as músicas "Volks Volkswagen Blues", de Gilberto Gil e "Buffalo", do Tyler, the Creator. O poema é autoral e foi um dos que escrevi logo após a viagem que fiz para SP.

08. “Hora de Fuga/Epicentro” CINZA

“Hora de Fuga” (Antes)

8 de julho: compro passagens de ônibus pra viajar sozinho pela primeira vez. auto retiro espiritual, uma súbita vontade de se jogar na surpresa. São Paulo em velocidade e fúria me atingiu em peso, meus destroços na rodoviária ficaram.

27 de julho: Escrevo isso há exato uma semana e dois dias depois de voltar de São Paulo. Esses dias desencadearam uma crise de identidade em mim, do tipo "quem sou eu? quem sou eu nesse mundo? diante dessa imensidão, desses prédios, esses lugares, essas pessoas, essas coisas?"

Essa viagem foi um impulso que acabou sendo uma pulsão de energia em mim, que ao voltar ao Rio e me deparar com minha vida como ela é (ou "era", ainda não posso me alongar nisso), fiquei com vontade de inventar uma nova vida pra mim, tudo vem pra mim como uma raiva, um inconformismo que cresce. Todas as camadas que me compõem se trovam.

No domingo, dia 17, um dia (ou melhor, algumas horas) antes de voltar pra casa, atravessando o Minhocão com o Bruno, vinha em mim uma onda tipo de final de temporada. Uma incerteza como uma névoa, pra onde ir? e coisas assim, falamos sobre futuro e eu perdido entre os prédios.

A velocidade de São Paulo é algo que me provoca. O metrô e seus andares, o clima seco, a noite em vísceras da agonia.

Deixo naquela cidade o eu que inventei, que atirei do alto do Esponja, que se deitou na escadaria da igreja da Sé, que saiu rodopiando no Bloco do Redondo, que espancou um fascista na Mário de Andrade, que correu de assaltantes no Minhocão, que se jogou do Copan, que se esmagou na Liberdade. E uma jaqueta que deixei na casa do Bruno pra ser customizada.

Cena não identificada: Externa: Quinta feira, dia 14 de julho. Esponja. A espontaneidade do momento combinada com as luzes magenta. “É babado as antigas, né?” Agora é hora de rezar!

16 de julho: Acordo, tomo café, pego o Uber e vou ao MASP pela primeira vez. na fila para entrar, um senhor me vende um livro de sua autoria, compro o e digo que também sou um

escritor, o senhor comigo ri e me manda seu email, o qual até hoje não respondi. Entro no MASP, vejo as obras mescladas expostas no segundo andar, encontro Kevin e andamos pelo resto do MASP, vemos a exposição do Alfredo Volpi, me questiono sobre linhas e cores e curvas e palmas. Saímos de lá, fomos almoçar, penso no cartão de crédito que até hoje não desbloqueei. Kevin e eu entramos no metrô da Paulista, eu acostumado com a simplicidade das estações daqui, fico meio perdido entre linhas e cores e direções. Enfim, pegamos um metrô que passou pelo Anhangabaú e depois parou na República, onde descemos. Kevin foi para a faculdade, eu fui para o Copan. Lá tem uma locadora de DVDs ainda ativa, uma cafeteria antiga, residência de vários artistas, a Megafauna e o Pivô, e justamente no Pivô, tava tendo uma exposição e uns ateliês abertos, fiquei lá até fechar. A noite acabou em pastel de queijo, ficar espremido em um carro, jam session lisérgica, papos entre luzes de LED e uma carona de volta pra casa (do Bruno).

Na segunda, dia 18, fui embora para o Rio vestindo uma camiseta preta com São Paulo escrita nela. Foi totalmente sem propósito, mas a coincidência foi menor que a situação.

“Epicentro” (Depois) entre a catraca, olhos de mistério seis e cinquenta, morte ao etéreo quando ainda falta? o que ainda sou? se o não contorna a vida, quem nela nunca errou? se nunca esqueço a identidade nesse rio aonde estou? pra onde eu vou? fuga mutante nada será como o distante pois não será um ato amante que deixará minha vida tão fácil como o que sinto cabe nos bolsos?

atiro a pedra do modo mais ágil

estou preso dentro de uma floresta induzido a imaginar uma cidade onde me escondo no devocional silêncio eu no dancing, spot vazio, no banco do quintal, no escuro, nas luzes, no frio, na ventania seca eu ficando em pontos e ônibus nessa travessa, por favor me leve pra casa sou a cópia do que foi deletado e no que imagino não pertencer a nada me prendo ao temporário onde toda boca é um mesmo buraco escavado na lesma parede responda me, com quantas pedras um bolso pode rasgas? o mesmo se enchendo de ar quanto de peso há? eu ali lambendo poeira de bazar entre araras ao luar a roupa gasta cabeça cortada louça lavada e alma decepada. vou jantar vou viver o sonho vou raspar a pele de areia parangoleando me

eu e a física.

eu e a visão ontem, lampejo hoje, claroa. você é real? de um ponto onde eu não sei distinguir. (e o que há por vir...)

Sobre a faixa: A base dela são as músicas "Eu e a Brisa", do Johnny Alf e uma mescla entre "Radio Tschernobyl" e "Durban Poison", do Carl Crack. A música é dividida entre duas partes escritas por mim.

agora o teatro é outro pois a vida é urgente e justamente o que urge em mim agora é flamíneo desejo da vida pois eu mereço o amor eu mereço a lua cheia eu me mereço. posso sempre me esquecer disso, mas ainda será o necessário

"porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. não sabia que, somando as incompreensões é que se ama de verdade".

um dia ainda vou aprender, e sucessivamente, até eu chegar ao fim da minha viagem, ou até a estação vazia se encher e eu dizer adeus ao meu incompleto.

de todos os personagens que eu invento para os outros, aqui estou eu, besta expectorante, engenheiro civil da visão noturna.

uma decepção para todas as estações. de todos os personagens que escrevo à arranhões, eu misturo todas as falas, nenhuma voz diz corta. nenhum aplauso, nenhum foco. de tão pouco jogar vídeo game na casa dos outros ainda não parei de apertar todos os botões pra ver se a vida pula de fase. de tanto olhar o mesmo quadro das exposições ainda não parei de firmar a mesma pincelada pra ver se me enxergo nela.

09.

e se esse não for o caminho? terei que recomeçar tudo sozinho?

o trem já passou junto com toda a água de chorar entre as coxas de chover entre quatro paredes a noite desceu a porta se fechou a luz se apagou pra onde mais iremos? pelos quatro cantos a voz reverberou quando o filme se encerrou e em bruma tudo cristalizou.

Sobre a faixa: A base dele é a música "Milagre Azul", de Renato Mendes. A introdução dela é o poema "Agora eu sou uma estrela", de Fernando Faro, recitada por Elis Regina. Letra com citação de Clarice Lispector.

10. “Íris/Lôa” CÉU “Íris”

"Você olha nos meus olhos E não vê nada é assim mesmo Que eu quero ser olhado" (trecho de “Máquina de Pinball”, de Clara Averbuck)

“Acordei e fui tomar café. Não, café é jeito de falar. Na verdade era leite em pó com Nescau. Não tomo leite, tenho

nojo. Coisas em pó são mais limpinhas. Nojo é uma coisa engraçada: engulo porra mas não tomo leite nem escosto em queijo. Até como, mas não toco. A não ser quando é na louça, trabalho sujo que sempre acabo tendo que fazer. Moro com um menino que amo. Amo muito, meu amigo, meu irmão que briga comigo porque sacudi as pipocas e o queijo foi pro fundo e que ri quando uso tomara que caia e diz que é a peça mais engraçada do guarda roupas feminino. Mas amor nenhum ameniza a irritação de ver duas semanas de louça fossilizando na pia. Morar com homem é uma merda, eles não sabem lavar as próprias meias e ficam esperando que suas mães se materializem para limpar o chão e dobras as roupas e esfregar as meias e tirar os cabelos do ralo. Não dá. Mas tudo bem, lavar a louça não é das piores tarefas domésticas. Tendo som alto e podendo cantar e levantar as mãozinhas ensaboas e usar a colher de pau como microfone, tudo fica bem. Stone Temple Pilots, Shangri La Dee Da. Bom pra caralho, como todos os outros. Tem essa música, “Hello It’s Late”, que me fez chorar copiosamente. It kills me just because it can’t be erased we’re married. Married. Married. Buá. We’re married. E de repente me dei conta de que aquele pé na bunda monumental foi a melhor coisa que poderia ter acontecido. Sou solteira. Solteira! Livre. We’re not married. Meu ex namorado tinha alianças, iriamos casar, assinar contrato, papel, negócio, ainda por cima foi ideia minha, onde eu estava com a cabeça? Amor não é contrato. Ufa, foi por pouco. Rotina é sempre uma merda, a não ser que você arrume um jeito para perder a noção de tempo. Não falo dos dias, mas das horas. Para perder a noção dos dias é simples. É só ser completamente normal. Gente normal me dá nos nervos. O dito normal é a coisa mais estranha que se possa imaginar. É estranho usar drogas pra se divertir? É estranho dormir até não ter sono? É estranho não querer se encaixar em padrões inventados por meia dúzia de manés no topo da cadeia alimentar? Acho que não. Estranho é o cara sair de muleta às 6h47 da manhã todos os dias, pegar o ônibus até o metrô e o metrô até a pequena companhia de seguros e trabalhar até as 6 em ponto e voltar para casa e comer bife com arroz na frente da TV sem falar com a mulher (que fez o bife com arroz) e nem olhar direito pros filhos (que mal sabem quem é aquele sujeito de barba que eles chamam de pai) e dormir (de pijama azul) logo depois do jornal noturno porque está cansado, muito cansado, e amanhã vai ter que fazer tudo isso de novo e depois também e depois vai se aposentar e olhar pra trás e achar que a vida foi digna e honesta e

justa e que viveu uma rotina estúpida em que não conseguia diferenciar um dia do outro. Esses humanos são todos uns loucos.”

“Lôa” “parar de fazer mil coisas ao mesmo tempo de bater de encontro as coisas de encontrar elefantes dentro das lojas sou de porcelana.”

(sagitariana, hilda machado)

"noite alta no ponto mais baixo e acidentado da topografia urbana vou me embrenhar num beco me embebedar num boteco tropeçar num teco teco puxar papo co piloto e sem brevê e sem para queda o cara me convida a bordo pra fugir da cerração um vôo sem plano um ar do campo um cheiro de mato me traz a jato me faz a cuca e a cabeça

noite alta no prédio mais alto e deteriorado da hipertrofia urbana vou me esticar num velho leito me amamentar num novo peito rememorar um preconceito apalpar o anfitrião e sem pudor e sem etiqueta o cara me convida pra dentro um beijo de macho uma fome de bicho me deixa oco me põe louco me abre a boca me faz a cuca e a cabeça."

with a little helpmate (glauco mattoso) publicada no lampião da esquina, ed. 6 (nov. 1978)

Sobre a faixa: A base dela é "QKthr", do Aphex Twin; "Silence", do Portishead; "Balsa", do Gustavo Cerati e "Bom Dia, Tristeza", de Adoniran Barbosa. A letra é dividida entre um trecho de “Ai de Mim, Copacabana”, do Caetano com o Torquato Neto, um trecho de “Máquina de Pinball”, de Clara Averbuck, o poema "Sagitariana", de Hilda Machado" e um poema de Glauco Mattoso.

11. “Virtual Me” CÉU

estou descobrindo a minha performance (pois no firmamento de minha cabeça, tábula rasa) juntando me em camadas em fotocópias alongando me em fragmentos parte xerox, parte nervo uma alusão ao silêncio e às novas descobertas de frequência em frequência mergulho no invisível no exercício de hudinilson para submergir em algo possível que venha para mim como um tiro discorro da ambiguidade quando de mim excreto o combustível tridimensional como a lua atravessaremos as nossas ruas sem saber se iremos nos encontrar.

estou descobrindo a minha performance pois no coletivo, a existência é uma película extendida um filme interminável de nenhuma conclusão é do tamanho do vento que grita meu nome do cansaço que tremula

todas as extremidades em uníssono: um suspiro de dor um grito de alívio microfonia do mundo jogo um piano na poça reduto do disfarce da nudez humana do olhar perdido fagulha que espeta em olhos vazios desculpo a voz no que não sorrio de sobretudo, instigo subtraio o castigo e o subtrato se o abstrato é um rastro sobre o estudo: eu te olho, você me olha e o coração desnudo quando não consegue dizer tudo. (o sonho não será um lugar desconhecido pois a o sangue brilhará mesmo quando tudo tiver partido.)

Sobre a faixa: A introdução é uma cena do filme Perfect Blue misturado com a música Virtual Mima (trilha sonora do filme) que se liga ao instrumental de "Immature", da Björk e encerra com um pedaço de uma cena do anime "Serial Experiments Lain"

12. “Chão Sujo” CÉU

I (eu) quem é o mecenas? quem é o curador disso tudo? quem patrocina? quem escreve esse roteiro? quem decide? e eu como hipster do século socorro transbordo me como no sonho que tive onde estou de volta à casa da minha infância os livros ainda estão no mesmo guarda roupa já o mofo, não era de lá. o sol entra pela janela o terraço cheio de folhas (a casa nunca teve espaço para árvores) desco todas as escadas não encontro meus pais não encontro a minha criança a tinta está fresca, mas não há cheiro. "morro pela boca vivo pelos olhos" e amo por mim mesmo.

II (leonilson antes)

"ontem à noite eu tava conversando com minha mãe e ela me olhava com olhos de quem já sabia tudo"

"agora eu acho que começou a chover um pouco. as vezes eu me arrependo tanto, as vezes eu acho que faço tão pouca coisa por eles e eles fizeram tantas coisas por mim. eu queria tanto ser um bom filho, queria tanto não dar nenhum desgosto pra eles. eu queria tanto também ser feliz. eu queria tanto ter alguém comigo e namorar e..."

(eu persigo o rapaz do filme, procuro tirá lo do vídeo e pegá lo pra mim.)

"as vezes eu acho uns carinhas que eu fico apaixonado aí eu acho que eles são o lugar que eu tô procurando, mas eles são uma paisagem linda no meu caminho. os carinhas são como as paisagens bonitas que eu vejo."

"eu me sinto completamente livre pra fazer qualquer coisa. hoje de manhã eu acordei e fiquei pensando que queria encontrar alguém novo, sabe?"

"tô sentindo até contente de falar com você, com o gravador."

"... foi uma sensação que fazia tempo que eu não sentia, sabe?"

"eu não faço coisas impessoais, faço pra quem eu amo mesmo. parece uma regra fazer uma coisa impessoal, faço porque eu quero. se não fico sem fazer."

III (leonilson depois)

"eu tive um sonho que a gente tava voando no meio de nuvens, no meio de uma tempestade. a gente via que a coisa tava preta, mas não sentia nada dentro do avião. tentávamos aterrissar numa cidade."

"... eu não tenho medo."

"... eu não sei qual é a minha identidade."

"... eu acho que eu tava chorando por um acúmulo de coisas."

"eu não entendo o porquê que a gente gosta, mas acho que a gente tem que gostar, esse é um sentido da vida. é uma das coisas que a gente tem que fazer na vida da gente. gostar."

"eu não sei como é que a minha vida vai ser, né?"

"eu acho que vou viver bastante."

"eu tô sentindo um vazio. um vazio assim, eu não tenho nenhuma direção, tô sem nenhuma direção pra correr. é horrível, eu simplesmente não sei o que fazer. vazio."

"... a gente não sabe quanto tempo vai durar."

"outro dia eu tive um sonho, estava numa cidade submarina que tem tudo, mas cê não pode escapar dela, cê tem que ficar lá. eu nem lutava, isso que é estranho. tudo agora relaciono com os fatos trágicos da minha vida. as vezes tenho medo."

"... mas agora eu comecei a pensar positivamente. eu devo grande parte nisso ao amor que tenho a mim mesmo, pelos meus pais, meus irmãos, meus sobrinhos, pelos meus amigos, por uma coisa que acredito que eu tenho que fazer aqui na Terra. Hoje é um dia bem feliz pra mim."

"eu não tenho medo de morrer, mas tenho medo de sofrer, mas a tristeza da familia, a desgraça é pior."

"eu não vou deixar coisa negativa tomar conta de mim não, vai pro inferno!"

"a medicina não pode ajudar. agora os trabalhos são tudo o que eu tenho mesmo, é a minha autobiografia, eles são meu diário. uma tela não é muito diferente de uma manhã minha."

"mais uma noite confusa, o tempo não passa..."

"agora a alucinação começou pelo lado esquerdo, as espirais paradinhas, se movimentando para o fundo. do lado direito tem minha cabeça no travesseiro."

"eu era energia voando, um céu azul... peguei o gravador pra gravar e eu viajando... era como se eu fosse um monte de energia circulando no meio do céu..."

Sobre a faixa: Ela foi escrita e produzida em 9/11. Morte de Gal, fiquei mexido. Vi “A Paixão de JL.” e fiquei mais sensível, pois me vi muito no Leo. Durante a produção do “The Lone Incident” eu ganhei essa fita do Roberto Carlos, passei ela pro computador mas não usei ela durante a produção da trilogia de discos. Reservei ela pra base dessa música. A letra é parte eu, parte Leonilson.

13. “Ígneo” VERMELHO

“Cogito”

“eu sou como eu sou pronome pessoal intransferível do homem que iniciei na medida do (im)possível eu sou como eu sou agora sem grandes segredos dantes sem novos secretos dentes nesta hora eu sou como eu sou presente desferrolhado indecente feito um pedaço de mim eu sou como eu sou vidente e vivo tranqüilamente todas as horas do fim.”

“Ígneo” "histórias do cinema

com alguns s alguns ss trinta e nove quarenta quarenta e um traição do rádio mas o cinema mantém sua palavra porque a morte de Siegfried e M ao grande ditador e Lubitsch os filmes vinham sendo feitos não é mesmo quarenta quarenta e um ainda que fatalmente arranhado um simples retângulo de trinta e cinco milímetros salva a honra de todo o real quarenta e um quarenta e dois e se as pobres das imagens seguem pungentes sem raiva e sem ódio como os golpes do açogueiro é porque o cinema está aí

o cinema mudo com seu humilde e formidável poder de transfiguração quarenta e dois quarenta e três quarenta e quatro o que mergulha no escuro é a reverberação do que o silêncio submerge o que o silêncio submerge prolonga na luz o que mergulha no escuro imagens e sons como desconhecidos que se esbarram no meio do caminho e não conseguem mais se separar prova disso é que as massas adoram o mito e o cinema se dirige as massas mas se o mito começa em Fantômas ele termina em Cristo

o que é que as multidões ouviam nas pregações de são Bernardo algo diferente do que ele dizia talvez, provavelmente mas como é que se pode ignorar o que compreendemos no instante em que essa voz desconhecida se crava nas profundezas do nosso coração aí está a lição dos noticiários e atualidades do nascimento de uma nação da esperança da Roma cidade aberta o cinematógrafo jamais quis fazer um acontecimento mas sim uma visão porque a tela não é mesmo é igual ao pano branco da veste do samaritano aquilo que vão captar as câmeras portáteis inventadas por Arnold e Richter para poderem ficar à altura dos pesadelos e dos sonhos não será apresentado sobre uma tela mas sobre um sudário

e se a morte de Puig e de Negus a morte do capitão (de Boïldieu) a morte do coelhinho passaram despercebidas é porque a vida jamais devolveu aos filmes o que tinha roubado deles e porque esquecer se do extermínio faz parte do extermínio há quase cinquenta anos que no breu o povo das salas escuras incendeia o imaginário para aquecer o real agora o real se vinga e reivindica lágrimas de verdade e sangue de verdade mas de Viena a Madri de Siodmak a Capra a Paris a Los Angeles e Moscou de Renoir a Malraux e Dovjenko

os grandes cineastas da ficção foram incapazes de manter sob controle a vingança que tinham encenado mais de vinte vezes

histórias do cinema histórias sem palavra histórias da escuridão.” janela do impossível.

Sobre a faixa: originalmente essa faixa só seria o trecho do poema-ensaio do Godard mesmo, a ideia de colocar o “Cogito” veio quase de última hora. Eupretendia colocar “Canção que Morre no Ar” (linda, inclusive)no começo do curta metragem que iria produzir esse ano, mas não coloquei, pois o curta foi engavetado, então como a maioria das ideias que tive pro filme foram pra essa mixtape, quis colocá la também como um tributo a Gal e o poema como um tributo à Torquato. Gal morreu no aniversário de Torquato. Isso pra mim foi muito forte.

14.

“Perigo, Eu” VERMELHO

hoje eu não vou morrer vai descer tudo pro chão tudo o que havia em mim escorrendo em distorção sangue, voz e carne viva etéreo e sentimental vou sentindo o meu corpo em uma força magistral todo mundo vai sentir todo mundo vai saber e se você não respeitar

a força vai contra você eu não quero aqui estar quando a vida for ao chão eu vivo para construir e pela destruição. pedras e pontes são pedras e pontes e ideias vísceras, vozes são flores, vazios platéias. "o novo não me choca mais" quero a fonte do poder quero chuva pra criar quero a sede do viver quero o fogo do sentido o amor material quero o fim pelo começo e que se foda o final quero a perda do controle quero a força do domínio quero o luxo do declínio quero o lixo do fascínio quero o que não posso ter tudo o que existe em mim é uma força de querer que o sonho não tenha fim. pedras e pontes

são pedras e pontes e ideias vísceras, vozes são flores, vazios, platéias. Sobre a faixa: A base dela é a música "Fear of Pop", do Kiko Dinucci e a introdução é "Quem te Come?", também do Kiko. Letra autoral. Não foi fácil pôr voz nela.

15. “Corpóreo” VERMELHO

"seria eu tão parabólica? magnética? ou esses homens são um zeitgeist do momento?" (ressignificarei o nojo para um novo sentimento.) a linguagem está quebrando quem poderia remodelar? tantas formas, tantas máscaras que no museu hão de ficar. sou moderna sendo punk sinto o ciúme, sou o romance que se apega profundamente sem saber se tenho lugar. os que deitam comigo são a pista do livro que a minha mente instiga lascívia, pois, sinto a vênus caída na cama fria, como o pedaço de argila que constrói a agonia desse sexo enigma.

Sobre a faixa: A base dela é “Jigsaw Youth”, do Bikini Kill. Ela foi a faixa mais incerta de se produzir em todo o disco. Chegar a uma conclusão nela foi complicado. A letra é um poema em cima de uma fala do Bruno (Mendonça) durante uma conversa nossa. Poema-zap. Interlude.

16. “Teenage Lobotomy” VERMELHO

quando nasci derrubei anjos derrubei céus a pedradas convexas e côncavas. o que me força a dizer o que me prende ao som o que me enforca à palavra é uma vontade de explodir esse corpo de mim. em solidão e desgraça beijo o asfalto em um ato de misericórdia pois da vida a glória de ser intérprete de todo o silêncio.

por isso eu quero a glória e a dor da misericórdia e no que nela há história e no que nela já história e por isso matar o ruído pra renascer em melodia por isso a ruína e a alegria da abertura pro morrer de um novo dia e viva a utopia.

Sobre a faixa: A base dela são as músicas “your uniform does not impress me” e “digital hardcore”, do Atari Teenage Riot. A voz está completamente camuflada nessa atmosfera de ruído, como deve ser.

17. “Violeta” VIOLETA

às avessas deitado correndo em bando em bondes

em búzios embora no vão do MAM no tapete vermelho do Odeon no Hotel Nacional última poeira do Palácio Central último preto de Santa Rita último corpo do cais aos rostos, aos restos às rédeas, radares eu procuro você de onde nunca me encontrei.

18. “Not Pancake” VIOLETA

Roteiro romance

Zero, 3 degraus de escada para atravessar a porta, sempre aberta, da biblioteca pública

Na terminologia local, gabinete de leitura REAL Gabinete Português de Leitura.

Cinco passos adentro os BUSTOS DE PEDRA Ramalho Ortigão à direita Eduardo Lemos à esquerda Um pouco mais à frente os BUSTOS ELETRÔNICOS, compondo duas duplas desconcertantes unidas por habitarem o mesmo espaço e antagônicas por pertencerem a tempos distintos.

Vamos anunciar! Vamos anunciar!

De olhos fechados, Márcia X é a TELA. (bustos eletrônicos)

Abre um olho, somente um, como CAMÕES faria

A palavra OLHE pisca.

OLHE*OLHE*OLHE

(método por identificação)

Várias pessoas entram e olham, se curvando um pouco Através dos vidros losan gulares das portas laterais

Como quem olha por um buraco de fechadura São os AMBIENTES VERMELHOS Experimente você também!

A cena é repetida várias vezes sem que se mostre, nunca, o que está do outro lado

A meta, a visão onírica, a "realidade com truques".

(Esta cena é também recons tituída por setas no chão, como manuais de dança de décadas atrás).

Todas as cenas se repetem. Vamos Anunciar! OLHE*OLHE*OLHE

Retina impregnada de vermelho e o espírito de lúcida curiosidade; tomar novo rumo, a NAVE CENTRAL. Tudo a desvendar, mas... Onde depositar o olhar? Na luz que deságua da abõboda, nos livros incontáveis, relevos, adornos, as TVs naquela mesa descomunal logo à frente, a arrumação das mesas, aquela figura, isto sim, ao lado uma FIGURA que monopoliza todos os sentidos... No último degrau da escada mais alta, cabelos cor de rosa escorrendo até o chão. Ela retira cada livro da estante e não o lê. Abre o livro e cheira o, um a um, se deixando tomar pelas sensações ins pi ra do ras, de li ci o sas, nu tri ti vas, re ve la do ras ... que emanam daquelas páginas.

O tempo todo aquele SOM, o que seria? Um falar contínuo, parece surgir dos quatro cantos, vindo da boca dos quatro

guardiães: CAMÕES, CABRAL, MINERVA e VASCO DA GAMA. Um relato imaginário ? A descrição de um planeta distante? Uma viagem fabulosa certamente, elefantes, acontecimentos estranhos, ouro, prata, sol, chuva, armas, flores, deuses, mandarins, salões, música.................................................

HOMEM AO MAR! ..... TCHIBUMM... Este grito rompe repentinamente o transe. Já é possível olhar as TVs que ladeiam a estátua preta. Lá está Camões novamente! Na TV outra “peregrinação”, esta ao interior do corpo “humano.” EVA A BONECA GIGANTE. Coração, estõmago, veias, ouvidos, pulmões enormes, imensos em relação ao outro ser humano que se encontra lá dentro explicando como tudo aquilo funciona.

Olhar as vitrines, escolher uma das mesas para sentar, olhar, ouvir, Estar, .............. Hora de ir embora.

O que seria afinal tudo aquilo ?

O que seria afinal tudo o que não é aquilo ?

Sacolas, castanhas do Pará, canetas, balas, pulseiras de relõgio, todo tipo de quinquilharia... No meio de tantos apelos uma visão estranha, uma construção talvez incomum, original, ou seria melhor dizer logo uma maravilha do outro mundo!

Lá dentro todas as palavras, todos os pensamentos possíveis (?), todo o conhecimento acumulado ao alcance da mão. Um organismo que se alimenta do tempo. R E A L se propõe a ser mais um elemento a participar deste mecanismo. 30 minutos de acontecimentos vivos e televividos.

Ações... ecos... reflexos... correspondências + milagres diários:”

(Márcia X)

Sobre a faixa: A música é um texto da Márcia X sobre uma performance não realizada pela mesma. O título referencia a performance mais conhecida da Márcia (Pancake)

“Eu, Warhol” VIOLETA

Escrevo isso numa terça a noite, 15 de março de 2022. Estou passando uns dias em Itaperuna, fazenda dos meus tios, aqui tem internet. Fraca. Mas tem. Costumo baixar umas coisas na Netflix antes de vir pra assistir quando o tédio bate aqui. Dessa vez, baixei a série do Andy Warhol, produzido pelo Ryan Murphy, a série é baseada nos diários do Andy e tem como tópico principal sua intimidade social e individual. Sou um fã de Warhol como artista e como pessoa, como um pensador de arte, um criador, um ser de personalidade questionável, uma obra de arte ambulante, mas que tinha em si um sentimentalismo que me toca. Eu me vejo em Warhol em alguns momentos, o que me angustia como uma pessoa que também se identifica como artista. As dores e as angústias estão ali, o silêncio indubitável também. Eu não sou Andy Warhol, ninguém no mundo da arte e da cultura pop é Andy Warhol se não o próprio Andy Warhol. Saí da experiência de assistir esses seis episódios ao longo do dia tentando me encontrar no mundo. Na internet, sou apenas um número. Andy Warhol não viveu pra assistir a internet surgir. Fui pra Bahia e talvez tenha me encontrado. Fiquei feliz de não concordar com coisas de Andy vendo essa série, não conseguiria ter um relacionamento íntimo sem contato sexual. Entendo o medo dele de ficar sozinho, adoraria ter conversado com ele por dois minutos. Eu também teria bastante medo de morrer aos poucos, mas também demonstraria afeição. Warhol é um enigma bonito. Fico pensando se conseguirei expor minhas fotografias em algum lugar, ou vender meus livros, ou divulgar minhas músicas ou progredir em suma. Não sirvo pra ser profissional, logo, serei um rótulo bastardo. Ser artista hoje é um estigma, pois o tempo te condiciona e o mercado te pressiona. Tudo o que for pessoal e importante pra você tem o risco de ser malvisto por eles. Há o sistema do ódio, o preconceito, a invisibilidade. Eu acho que todas as pessoas deviam escrever as próprias memórias, pois até anônimos tem mais brilho próprio que as celebridades com brilho posto no corpo. Você vê uma casinha no meio do nada e muitas vezes possui mais significado que um condomínio lotado. Essa coisa de ser artista me agoniza, fico tentando rasgar minha bolha mas simplesmente ela não se rasga. Tento e tento. Quero ir além. Quero estar além. Pensar no futuro me dá um pleno desespero, sempre sou jogado a esses momentos. Onde estou sentado à uma mesa

19.

porcamente posta lidando com alucinações macarrônicas. Envelheço triste, pois o alvorecer sempre é.

20.

“Leonilson” VIOLETA

"e você músico? sua lira seus cabelos o sol: a vontade é se atirar nesta porta trancada pergunto pela luz pergunto por você não poderia eu me afogar ou correr meus olhos nos seus? certamente eu não poderia medir a distância da terra no sol certamente não posso alcançar seus lábios esta não é uma melodia triste esta não é uma melodia mas vejo a distância a projeção de sua sombra no longe, seus olhos a lira seus cabelos."

(josé leonilson)

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