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Entrevista | Carla Madeira
ENTREVISTA
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A cidade parece estar a voltar ao registo anterior à pandemia. O turismo regressou, o dinamismo económico também, bem como os constrangimentos no trânsito, os problemas com a recolha do lixo, etc. Como está a Junta de Freguesia a gerir este regresso ao “normal”?
O período da pandemia foi, de facto, extremamente difícil e desgastante para a cidade e para as autarquias. Aqui, as atividades económicas, muito dependentes do turismo, pararam, a restauração fechou, os empresários tiveram dificuldades em sobreviver, fomos todos mandados para casa, mas na Junta de Freguesia houve pessoas que trabalharam muito, ainda mais do que antes. Foi preciso acorrer às pessoas idosas, ajudar a combater a solidão, cuidar, levar comida e medicamentos a casa de muitas pessoas que não tinham outra forma de os obter. Fomos uma família para os nossos fregueses e eu gostava muito que a cidade nunca esquecesse. Eu já agradeci muito aos trabalhadores e não vou esquecer o trabalho que todos, também os eleitos, aqui fizemos. Na Misericórdia e em todas as freguesias da cidade e na Câmara Municipal. A Câmara e as Juntas uniram-se para proteger a cidade e as pessoas com uma determinação singular. “Lisboa Protege” era o mote e foi mesmo isso que fizemos. Agora, nesta fase, já estamos vacinados e muito mais protegidos do vírus, mas no início não era assim e nós não deixámos de fazer nada que fosse preciso.
Que lições podemos tirar da pandemia para melhorar o funcionamento da cidade?
Houve consequências boas da pandemia, que já estão esquecidas, como a acalmia do ruído. Os moradores não querem um silêncio sepulcral e nunca foram contra o comércio, mas é precisa uma coexistência pacífica entre moradores e comerciantes. Houve silêncio, não havia atividade noturna, não havia lixo, … Agora, estamos a voltar ao passado com problemas novos. Já não há limitações, os negócios estão todos a retomar e a cidade está cheia de visitantes. Os moradores sabem que morar no Bairro Alto ou no Cais do Sodré não é igual a morar no campo, mas não significa que os moradores não tenham direito ao descanso. Por isso, começámos outra vez a lembrar a importância de cumprir os regulamentos.
As esplanadas que foram autorizadas e outras mudanças no espaço público mantém-se?
Nas fases dos desconfinamentos, foi muito importante tomar medidas para apoiar os comerciantes, como autorizar esplanadas que compensavam as limitações na lotação das salas de refeições. Criou-se a ideia de que isto seria para sempre e alguns dos comerciantes e visitantes acham que ainda podem estar na rua, como antes. Nesse aspeto, podemos dizer que estamos piores do que antes porque os níveis de ruído agravaram-se. Houve situações de abuso e total desrespeito pelos moradores, que foram várias vezes notícia nos meios de comunicação social. Portanto, agora que os estabelecimentos já não têm limitações, algumas esplanadas estão a ser retiradas. É preciso relembrar que foi uma medida provisória e fazer cumprir o regulamento municipal para disciplinar o uso do espaço público. Temos apelado à Câmara e à Polícia Municipal que façam cumprir o regulamento, sobretudo nos estabelecimentos com música, que têm que voltar a estar de porta fechada a partir das 23h. O aumento dos resíduos produzidos também já se verifica. Sim, já há acumulação de lixo em alguns locais, falham muitos circuitos de recolha, o que aumenta o trabalho das Juntas e os nossos recursos financeiros são limitados.
Mas as Juntas de Freguesia recebem uma parte da taxa turística para compensar os efeitos da pressão adicional dos turistas nos serviços e infraestruturas, uma receita importante para garantir a limpeza do centro histórico.
Sim, mas desde o início do mandato, em outubro, que ainda não foram transferidas essas verbas da taxa turística para as Juntas melhorarem a higiene urbana. No caso da Misericórdia, são 477 mil euros que estão em dívida. Temos usado orçamento próprio, a nossa almofada financeira conseguida com a boa gestão dos ultimos anos. Neste momento, quero acreditar que esse problema se resolva ainda este mês porque vamos ter as Festas e é preciso manter a cidade limpa.
Depois de longos meses à espera de autorização legal, o sistema de videovigilância no Miradouro de Santa Catarina começou a funcionar em fevereiro. Foi o primeiro de uma longa lista a implementar na cidade. Como está a correr? Melhorou a segurança?
Ainda as câmaras não estavam em funcionamento e já havia aumentado o sentimento de segurança porque a sua instalação bastou para afastar dali alguns comportamentos desviantes e diminuir a concentração de pessoas naquele espaço. Agora, é preciso que se faça o mesmo na Bica e no Cais do Sodré. Todos os passos que demos naquela intervenção foram significativos para melhorar a qualidade de vida e o sentimentode segurança de quem lá trabalha, mora ou apenas visita. A decisão difícil de fechar o miradouro no período da noite mudou logo radicalmente a utilização do espaço público. De tal forma que nunca mais tivemos queixas. Era a zona da freguesia de onde provinha a maioria das queixas, onde havia mais moradores desesperados com o ruído, com a insalubridade e a falta de segurança e, neste momento, não há qualquer registo. Foi uma intervenção muito bem-sucedida.
E como está a evoluir o Alojamento Local (AL)? A Assembleia Municipal aprovou recentemente a suspensão de novas licenças em mais dez freguesias de Lisboa, alargando uma medida que já estava em vigor há 4 anos no centro histórico da cidade, como é o caso da Misericórdia. A medida, de iniciativa do PS e aprovada por toda a oposição, mereceu fortes críticas do presidente da Câmara, que votou contra e a considerou um ataque ao “empreendedorismo” na cidade. Qual é a posição da Junta? Concorda que é preciso regular o Alojamento Local para proteger o direito à habitação?
Sem dúvida. A nossa freguesia foi incluída logo nas primeiras restrições e notou-se de imediato uma travagem na dinâmica de saída de moradores. Notou-se logo nos cadernos eleitorais. Continuamos a perder população porque a habitação não deixa de ser cara e porque há processos de arrendamento inacessíveis, mas nada ao ritmo vertiginoso do que acontecia quando não havia restrições ao Alojamento Local. A pressão dos senhorios para despejar os inquilinos diminuiu bastante e as casas já não se vendem de um dia para outro. O que está a acontecer é um crescimento do AL nas zonas à volta das áreas condicionadas, o que prova que, se não houver limitações, a cidade será cada vez mais só para turistas. Está mais do que testado em Lisboa que tem que haver imposição legal para se verificar um equilíbrio entre a cidade turística e a cidade que consegue manter os seus habitantes. Quando a regulação do mercado não se faz por ela, é necessária a regulamentação municipal para fixar limites.
Ainda na área da habitação, no mandato passado, foi apresentado um projeto para reabilitar alguns edifícios no Bairro Alto, a antiga sede da Capital e do Diário de Notícias, para fazer habitação acessível para jovens. Que importância tem esse projeto para a freguesia e emque fase se encontra?
Não tenho informação sobre os edifícios do Bairro Alto que foram reservados ao Programa Renda Acessível, mas espero que tenha continuidade. Era um bom projeto, foi aprovado em reunião de Câmara e espero que avance rapidamente. Trata-se de um grande quarteirão situado numa boa zona do Bairro e para onde estavam previstas cerca de 48 habitações de renda acessível. Portanto, são quase 50 novas famílias que poderão vir viver para o Bairro Alto.
Iniciou há oito meses o seu terceiro, e último, mandato como presidente da Junta de Freguesia. Que prioridades definiu e que “sonho” gostaria mesmo de concretizar até 2025? Há algo imaterial para o qual trabalho desde que fui eleita pela primeira vez, que é a melhoria da qualidade de vida dos meus fregueses.
Ao dia de hoje, não duvido que vou deixar uma freguesia melhor do que a recebi. Sempre desejei que, além de ser um território visto por muitos como uma boa zona para se divertir, a Misericórdia fosse também reconhecida como uma freguesia onde é muito bom viver, com muita qualidade de vida. Ficou provado, no Miradouro de Santa Catarina, que é possível encontrar o equilíbrio entre visitantes e moradores e é isso que queremos em todo o território. Basta cumprir os regulamentos, nomeadamente o do ruído. O segundo sonho é reverter o ciclo demográfico, a saída de população, e para isso é muito importante o Programa Renda Acessível. Gostava também de ver iniciada a obra da nova escola, aqui no Passos Manuel. Temos as crianças em duas escolas básicas com recreios muito pequenos e, depois, temos uma secundária com um recreio enorme. Gostaria de ter ali um polo educacional que sirva todos, as crianças e os jovens. Também é prioritário continuar a requalificar o espaço público. A reabilitação feita na Bica tem que ser considerada também para o Bairro Alto. Há um projeto já apreciado em reunião de Câmara, que espero seja executado. Ainda não entrou em discussão pública, mas espero que não demore, porque o Bairro Alto merece ser requalificado, como foi a Bica. Depois, nesta zona, é imprescindível cuidar do rico património histórico que aqui temos. Há obras que nunca estarão ao alcance da Junta de Freguesia, mas o que está tem sido feito, como é o caso da reabilitação das bicas e chafarizes. Estão quase todos reabilitados e não duvido que vou conseguir até ao final do mandato. Neste momento, a maior obra de reabilitação que temos em curso é a do Conservatório. É muito importante manter este equipamento na freguesia, dá muita vida ao Bairro durante o dia. Em suma, a qualidade de vida dos moradores e a preservação do património sempre foram os meus principais objetivos, salvaguardando tudo o que é de mais genuíno e identitário na freguesia, até a vida noturna.
