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O corpo do cervo encantado à procura de um território teatral inominável Luis Alonso-Aude

crítica em movimento: \Teatros peculiares na mão dupla com Cuba e Brasil

verdade, da força da realidade, e não há espaço para a utopia em nenhuma daquelas malas, ou quadros, ou cartas, nem sequer para uma nova utopia, porque chega um momento em que até os sonhos são levados à ruína. Em Departures e Arrivals, o corpo de Mariela Brito não tem mais espasmos visíveis. Eles foram condensados, diluídos com o tempo e convertidos, como se tivessem se transformado pelo cansaço, em ações um tanto líquidas, fluidas, concretizando e patenteando a mais pura realidade, sem chavões

nem assembleias.

Ainda assim, com tudo aparentemente à mostra, não é tudo que se diz, não se expressa tudo como em um panfleto. A arte não vive desse lugar depositário de informações como os jornais. Jornais, documentários, novelas e até a própria memória servem para fazer a arte se distanciar da realidade, porque a própria realidade não lhe é suficiente. Por muito perto que a obra de arte esteja dessa realidade, sempre haverá uma linha tênue que a afaste da realidade, pois é aí que se constrói a ponte da qual aquele cervo encantado vigia seus caçadores e cria um território inominável para a sua salvação. É nessa cisão, nessa clivagem, que se produz a reflexão, durante o ato imediato da ação e depois da morte do ato do teatro.

.:. Este texto é de exclusiva responsabilidade de seus autores e não reflete necessariamente a opinião do Itaú Cultural.

O corpo do cervo encantado à procura de um território teatral inominável

Referências

BRIONES, Hector; POVOAS, Cacilda (org.). Trânsitos na cena latino-americana contemporânea. Salvador: Edufba, 2008.

DUBATTI, Jorge. Filosofía del teatro I: convivio, experiencia, subjetividade. Buenos Aires: Atuel, 2007.

ECHEVERRIA, Esteban Borrero. El ciervo encantado. Havana: Editora Cuba, 1937.

EL CIERVO Encantado. Nelda Castillo e Mariela Brito. Hemispheric Institute, Cidade do México, 14 jun. 2019. Disponível em: https://hemisphericinstitute.org/es/encuentro2019-interviews/item/2876-el-ciervo-encantado.html. Acesso em: 28 set. 2020.

EL CIERVO Encantado. Un espacio de indagación artística desde la Cuba actual. Disponível em: http://elciervoencantado.blogspot.com/. Acesso em: 28 set. 2020.

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Processos artísticos com crianças: teatros peculiares e de mãos dadas entre Cuba e Brasil Luvel García Leyva¹

1. Pedagogo, crítico e pesquisador teatral. É doutor em ciências sobre arte (história, teoria e crítica do teatro) pela Universidade das Artes, em Cuba, e doutor e mestre em artes cênicas (pedagogia do teatro) pela Universidade de São Paulo (USP). Autor de livros e estudos sobre processos artísticos com crianças, palestrou em instituições de diferentes países, como México, Hong Kong, Coreia do Sul, Colômbia, Guatemala e Estados Unidos. Atua em torno dos seguintes temas: infância latino-americana e cena contemporânea; processos artísticos com crianças em contextos vulneráveis e experiência sensível e subjetividade infantil.

2. Neste trabalho, reutilizo fragmentos de meu livro El Viaje del Colibrí: Re-Construyendo una Pedagogía Arteducativa con y desde los/as Niños/as (2010) e de minha tese de doutorado, Cenários Infantis Latino-Americanos: ApontaI Foi nos primeiros dias de junho.2 O Sol estava no signo de gêmeos e a Lua em libra. Os protestos haviam transformado as ruas brasileiras em cenários políticos. Começavam as Manifestações dos 20 Centavos. Mercúrio tornava tudo mais crítico; Urano, mais fantasioso; Vênus trazia uma escassa felicidade; Marte fazia reinar a ambição e a discórdia. Na casa do ascendente, subia a Cabra, tornando tudo mais obstinado e cheio de exageros. Netuno entrava na décima casa, andando entre o milagre e a simulação. Foi Saturno, em oposição a escorpião, que definitivamente me impôs um destino arriscado e desconcertante: chegar ao Brasil, vindo de Cuba, em meio às mais gigantescas manifestações vistas neste país.

Eu havia deixado para trás o aeroporto e seguia em direção à casa de Margarita,3 a atriz e amiga colombiana que morava havia algum tempo no Brasil e integrava o grupo Paideia, com quem eu ficaria durante todo o tempo que durasse o processo artístico com crianças que estava a ponto de começar. Anos antes de sua vinda para o país, trabalhamos juntos em Cuba com crianças do bairro La Timba, no projeto do Teatro Nacional chamado Zunzún, com o qual apresentamos a performance lúdica El Rey Mesa Redonda. Estava pensando em todas essas coisas enquanto imagens impactantes atravessavam a janela do táxi e se apropriavam de minhas pupilas. Luzes, sirenes de carros, trânsito enfurecido, pessoas revoltadas nas ruas enfrentando a polícia ou absortas em seus celulares, convergências luminosas e estridentes que me anunciavam, definitivamente, um destino arriscado e

desconcertante.

II Não dava para acreditar. Sete tiragens de tarô e todas tinham o mesmo resultado. A carta da Estrela anunciava a Margarita a chegada de um guia que a levaria a um universo de realizações. A imagem de uma mulher nua vertendo a água de dois jarrões no curso de um rio simbolizava os sentimentos presos, a tristeza e o vazio sendo despejados na corrente. Mostrava o medo, o desespero e a desilusão dando lugar à esperança e aos sentimentos renovados.

Todas as tardes, Margarita lia seu destino antes de tomar banho, mas hoje, diferentemente dos outros dias, sentia um desespero, “sei lá por que”, que transformava os guizos em seus braços e tornozelos em um desarmonioso mar de badaladas. Ela já havia consultado o tarô, suas cartas ciganas, os horóscopos lunares, os espíritos protetores, inclusive os búzios de seu eleguá [uma das deidades da religião iorubá], que recebeu em Cuba, na ocasião em que abandonou o festival de teatro para o qual viajara com o seu antigo grupo colombiano – quando nos encontramos pela primeira vez – e se iniciou na religião iorubá junto com uma multidão de negros másculos e suados que alimentavam suas orgásticas fantasias esquerdistas caribenhas de “socializar seus meios de produção”. Porque, afinal, pensava ela, qual é a função política de uma atriz engajada se não essa? Seu sonho de revolucionária destemida era dizer àqueles machos viris anti-imperialistas: “Companheiros, aqui entre as minhas pernas está a terra, venham e façam a reforma agrária”. Mas hoje, na véspera da minha chegada à sua casa, todas as suas consultas anunciaram morte e ressurreição. Então, quando pela sétima vez saiu a bendita Estrela do tarô, Margarita não pôde deixar de se preocupar.

E, realmente, não era para menos. O primeiro sinal de sua aflição chegou através de uma estridente bomba de efeito moral lançada pela PM bem na frente de sua casa, que arrebentou em mil pedaços os vasos espirituais que havia no altar de seu quarto. O estrondo foi tão grande que o impacto a remeteu aos dias em que Medellín [cidade colombiana] era ensanguentada pelas bombas dos narcotraficantes, pegando-a de surpresa em meio a um ensaio, desdobrando-se em sua solidão com seus personagens, movida pelo lento e prazeroso fluxo que a cannabis e o vinho tinto lhe proporcionavam, desfrutando eroticamente dos sutis raminhos de camélias vermelhas encaixados entre seus dois gigantes seios que endureciam a cada trago. Lá estava ela, como uma completa heroína romântica, ou melhor, como uma cortesã parisiense, uma Marie Duplessis [cortesã francesa do século XIX] disposta a morrer por amor entre as balas dos narcotraficantes, lembrando a galeria de assassinos famosos de Cortázar [escritor argentino] ou os libidinosos impulsos que Jack, o Estripador, consumava por meio da muti-

mentos sobre Processos Cênicos Emergentes da Ação Cultural (2020), desenvolvida na Universidade de São Paulo com o apoio da Fapesp (Processo no 2016/11789-2). Assim como neles, aqui me interessa repensar o lugar da teoria para analisar propostas artísticas com crianças e suas peculiares conexões entre Cuba e Brasil, elaborando um conjunto heterogêneo de saberes como produção de um olhar metafórico. Nesse sentido, proponho uma reflexão que articula textos analíticos acadêmicos, crônica conjuntural e relatos autoficcionais, por meio de recursos literários como narradores/personagens e estratégias de intertextualidade. Com essa narrativa, que ocorre entre 2010 e 2013, analisarei as peculiaridades estéticas de uma experiência artística com crianças no Brasil, colocando-a em diálogo com aspectos pontuais de outra experiência cubana, ambas se desenvolvendo de mãos dadas em minha trajetória como crítico e pesquisador teatral nos últimos anos de minha vida profissional. Refiro-me à Cia. Paideia de Teatro, de São Paulo, e ao Projeto Interdisciplinar Zunzún, do Teatro Nacional de Cuba.

3. Destaco que as histórias associadas a esse personagem são fictícias e não expressam nenhum vínculo real com a Cia. Paideia de Teatro.

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4. Ver: https:// www.youtube.com/ watch?v=TXgmbK95cpU. Acesso em: 26 set. 2020.

5. Embora situemos temporariamente a história entre os anos 2010 e 2013, na realidade, esse processo com crianças foi desenvolvido pela Cia. Paideia entre março e julho de 2017, em um primeiro período, e entre agosto e novembro de 2017, em um segundo período. As oficinas

que originaram o espetáculo Histórias que o Vento Traz se concentraram fundamentalmente naqueles primeiros meses e eram integradas por 25 crianças, com idade entre 7 e 9 anos, de origem humilde, alunos da Emef Carlos de Andrade Rizzini. Esse processo, que acompanhamos integralmente, foi concebido com encontros semanais de uma hora cada um. lação da genitália das mulheres vitimizadas da vida londrina, a mesma pulsão que a havia tornado uma especialista em desvirginar jovenzinhos com um ardor efêmero na alma estremecida. Alexandre Dumas já havia dito: “O primeiro amor, por amor; o segundo, por despeito; o terceiro, por costume”. E também Guillermo Buitrago, em “Espera que me muera”,⁴ abalado pelos vaivéns do amor e da morte que soavam tão bem naquele vallenato. “Si quieres querer a otro, espera a que yo me muera, después de mis nueve noches, puedes querer a cualquiera” [“Se você quiser amar outro, espere que eu morra, depois de minhas nove noites, você pode amar qualquer um”]. De fato, para Margarita, o que significava a vida diante da intransponível ausência do amor? E, nesse esquecimento de si mesma ao qual havia chegado, sentia que pouco lhe importava se ela fosse a próxima baixa, vítima da paixão extraviada de uma bala perdida. Mas não foi um projétil, como Margarita romanticamente sonhava, que atingiu a porta naquele 12 de junho de 2013, e sim eu: Ignacio del Castillo, seu cubaníssimo amigo, que vinha para acompanhar o processo criativo com crianças de Santo Amaro [bairro da Zona Sul de São Paulo] que originaria o espetáculo Histórias que o Vento Traz.⁵

III Havia passado uma semana desde a minha chegada e tudo já estava pronto para começar. Fui ao palco principal da Cia. Paideia, onde Amauri [o diretor], Margarita e o restante dos atores já estavam me esperando, junto com as crianças e sua professora da escola. Rapidamente reconheci, na disposição espacial da equipe, a ideia de teatro aberto de que Margarita tanto tinha me falado na noite anterior. Eles queriam construir um espetáculo levando em consideração as opiniões e as críticas das crianças espectadoras. Pretendiam desenvolver um processo pedagógico e artístico que reunisse um conjunto de elementos (textuais, visuais, sonoros) organizados a partir de dispositivos do teatro épico e que explorasse a concepção narrativa de Walter Benjamin (1994). Havia uma forte preocupação da equipe artística com relação à desvalorização da memória e à substituição da experiência pela informação e pela vivência, impostas às crianças como projeto político de dominação (CORREA, 2017).

“A memória” – explicava-me insistentemente Margarita enquanto acendia os incensos em sua casa – “foi capturada pelos núcleos de poder e realocada nas suposições do logos. Se é por meio da palavra que falamos da memória,

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esta pode ser apagada ou manipulada para consagrar o esquecimento. Por isso a narrativa é tão importante em um processo artístico como esse!” – insistia. “Ela estabelece uma ponte temporal com a memória, abrindo seus significados a interpretações congruentes em diferentes épocas”, afirmava enfaticamente após um longo trago em seu cigarro Marlboro.

Enquanto eu pensava em silêncio sobre a minha conversa com ela na noite anterior, Amauri tentava explicar às crianças, com uma certa magia, os objetivos e aspirações do trabalho. Nesse momento, as crianças já ocupavam as poltronas do teatro, um pouco inquietas, querendo saber o que ia acontecer. Todos ficamos surpresos quando, de repente, a professora interrompeu Amauri e, com voz de comando, fez com que as crianças cantassem com ela uma canção que estavam preparando havia dias “para os artistas do teatro”. Era uma dessas cujo ritmo envolvia bater palmas e os pés no chão. A professora fazia as crianças gritar bem alto. Era uma demonstração de seus “dotes artístico-pedagógicos”, esmagados pela força da professora, que se movimentava no palco como se fosse uma domadora de leões. Finalmente, Amauri disse algumas poucas palavras: “Prestem atenção. Temos uma surpresa para vocês. Esta é a história de ‘O Melhor Filho’ ”.

IV Todos posicionados em círculo. O ritmo de salsa esquenta os salões do Teatro Nacional de Cuba. Margarita propõe ações. Pais e filhos as repetem. Em seguida, o grupo se divide em dois, um de frente para o outro: o de crianças e o de adultos. As crianças dão alguns passos para a frente imitando uma ave e dizem: “Quando a galinha grita! Quando a galinha grita!”. Os adultos as observam e, então, tentam imitá-las, mas são desengonçados. Seus corpos não alcançam a graça das crianças, que se divertem vendo-os. Surgem outros animais, e os desafios para os pais são ainda maiores. No entanto, eles não desistem. Querem viver essa experiência de ver e fazer junto com seus filhos.

Uma dezena de exercícios semelhantes a esse foram me mostrando que Margarita era um desses seres que vêm ao mundo para mudar as coisas. Naquela época, em meados de 2010, ela já havia decidido ficar alguns meses ilegalmente em Cuba, sob o risco de ser multada ou deportada pelo Ministério do Interior. Queria conhecer a ilha profunda, aquela que está longe do conforto dos hotéis e da propaganda do governo, e se recusava termi-

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6. Embora situemos temporalmente a história entre os anos de 2010 e 2013, esse processo de trabalho, desenvolvido com crianças cubanas que viviam expostas a condições de vulnerabilidade social, ocorreu realmente entre janeiro e abril de 2007. Apesar das diferenças contextuais, metodológicas e de abordagem artística entre essa experiência e a da Cia. Paideia, as conexões entre as duas continuam chamando minha atenção. Trata-se de processos que, de alguma forma, envolvem uma investigação sobre as condições de existência do outro (neste caso, da criança). São investigações em torno da alteridade e das manifestações de exclusão social, que trazem consigo implicações diretas nas estratégias de criação dos grupos e nos dispositivos pedagógicos do ensino de teatro para as crianças. nantemente a pagar os trâmites para a prorrogação de sua permanência. Assim que nos conhecemos, ela se ofereceu como voluntária para trabalhar com as crianças do projeto Zunzún.⁶ Quando ela chegava, explorávamos alternativas artísticas por meio do conto “Un Paseo por la Tierra de los Anamitas” (2004), de José Martí. Porém, sua presença fez com que o processo tomasse outros rumos. Rapidamente, apareceu Paulo Freire e seus princípios pedagógicos, fazendo com que as ideias e as ações das crianças, por mais inverossímeis que parecessem, fossem levadas em consideração e incluídas no processo artístico. Não se partiria mais de uma obra escrita por um adulto para ser executada pelas crianças, mas seriam as problemáticas que afetavam suas vidas, previamente identificadas por elas, que serviriam de leitmotiv para o processo criativo. O diálogo foi proposto intencionalmente como um exercício político. O objetivo não era formar a criança artisticamente, mas criar as condições para a ampliação de seu ser estético na formação de comunidades solidárias, cooperativas e transformadoras. As soluções para as diversas situações estéticas e lúdicas que ocorriam na oficina deviam partir dos achados individuais e coletivos do grupo, descobrindo novas perspectivas de vida com a criança na convivência e na ação participativa da comunidade.

V Dois meses após a minha chegada ao Brasil, o processo criativo com crianças na Cia. Paideia se delineava conforme a tríade memória, experiência e narrativa. O material textual selecionado incluía textos de Fernando Pessoa (1946) e quatro histórias antigas com uma marcante sabedoria popular (“Um Homem Infeliz”, “Um Pobre e um Rei”, “O Olho do Elefante” e “O Melhor Filho”). Esse material, por um lado, servia de base pedagógica para as oficinas com as crianças, propiciando experiências coletivas de valorização da memória; por outro, funcionava como material dramatúrgico para o espetáculo Histórias que o Vento Traz.

Dessa forma, todo o tecido cênico da obra, particularmente esse processo escritural, ia sendo enriquecido pelos desenhos das crianças sobre os personagens das histórias, por suas interpretações do texto, pelos jogos e pelas dramatizações realizadas, mas principalmente pelas observações que elas faziam a partir de improvisações apresentadas pelos atores semanalmente durante as sessões da oficina, que propiciavam variações significativas na concepção da encenação.

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Um dia, a equipe artística havia se preparado para apresentar às crianças a história “O Olho do Elefante”. Quando elas chegaram, os atores já estavam no palco e rapidamente começaram a fazer sons de animais da selva: leões, girafas, antílopes, pássaros, elefantes. As crianças adoraram ver Rogério se fazendo de elefante com a mangueira da máquina de lavar, principalmente quando seu olho caiu no rio e ele se esforçou para encontrá-lo sem sucesso – o que estimulou, na solidão de espectador das crianças, pequenos gestos, movimentos faciais, como se elas mesmas fossem os animais que estavam na cena. Ao terminar a apresentação, os atores decidiram ouvir a opinião das crianças.

David (menino): “Eu gostei da parte em que vocês faziam o som dos pássaros”. Um menino quis tocar na mangueira cinza com a qual Rogério fez a tromba do elefante. Maria Carla (menina): “O que é uma meia-tigela?”. (Refere-se a uma expressão dita pelo elefante.) Rogério: “É um elefante meio tonto”. Igor (menino): “Eu não entendi por que o olho do elefante caiu”. Amauri explica que o elefante saiu correndo para brigar com seus colegas e estava ventando muito, por isso o olho caiu. Menino: “A minha mãe diz que o olho tem uma cordinha que segue até o cérebro. Se ele seguir essa cordinha, pode encontrar o olho”.

Esse último e insólito comentário gerou um enriquecimento do trabalho cênico da história, a partir do uso de cordas, tecidos, redes e formas de deslocamento que a tornaram uma das cenas mais esplendorosas do espetáculo. Assim, ao final de quatro meses de trabalho, havia um espetáculo construído a partir do olhar das crianças e um processo lúdico performativo que se erigia como um território de experiência coletiva e de valorização da memória (GARCÍA LEYVA, 2020).

VI

Em uma terra distante, além do infinito, havia um reino chamado O Mundo Santo, onde vivia um rei muito mau chamado Távola Redonda (GARCÍA LEYVA, 2010).

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7. Arepa é uma massa de pão feita com farinha de milho, prato típico das culinárias populares e tradicionais da Venezuela, da Colômbia e do Panamá.

8. O areíto, ou areyto, era uma palavra da língua taíno adotada pelos colonizadores espanhóis para descrever um tipo de música e dança religiosa executada por esse povo do Caribe. O areíto era um ato cerimonial que se acreditava narrar e honrar os atos heroicos de ancestrais, chefes, deuses e cemís de Taíno. Assim começava a história construída pelas crianças do projeto Zunzún, cujos conceitos centrais seriam a verdade e a mentira. Margarita e eu havíamos conseguido, junto com elas, tecer um processo de autodiagnóstico participativo com diferentes dispositivos estéticos (objetos sonoros, tela iluminada e figuras animadas planas, entre outros), configurando-se uma ação representacional que, longe de uma interpretação de personagens, permitia que as crianças fizessem uma performance lúdica do seu próprio eu.

Fazia duas semanas que vínhamos ensaiando intensamente com as crianças, pois estávamos a ponto de compartilhar o trabalho com a comunidade, e nossos corpos estavam exaustos. Então, quando nos deixaram sozinhos, ao terminar a sessão de hoje, ela não pôde deixar de acender um cigarro.

“Quer um Marlboro?” – disse-me com toda a delicadeza que o sotaque paisa lhe permitia, enquanto se sentava perto das minhas pernas esticadas no chão. “Obrigado. Você quer um dos meus? Não costumo fumar, mas este Camel me chamou atenção.” E os dois começamos a fumar nossos cigarros em silêncio, olhando-nos com toda a magnitude que o momento permitia, enquanto um leve cheiro de saco de estopa molhado e de arepa montañera⁷ inundava o espaço. Olhares fixos, desafiadores, apenas o silêncio nos acompanhava, mentes abertas para o universo.

O tabaco cubano, recordou Margarita, levanta as sombras e a vertigem da alma, um areíto⁸ que se aloja no cérebro, uma feitiçaria fruto de hábitos pagãos e diabólicos.

Não era o império dos signos, como afirmava Roland Barthes, pensei, mas o dos sentidos mais sublimes, desordem das paixões que relativiza os limites do corpo, cúmulo de anos acumulados. E um longo trago invadiu meus pulmões.

O instinto de um cruzamento contaminado pela fumaça nos atraiu um para o outro, deixando os nossos lábios expostos ao sensível contato com os pescoços, tenra textura de carne trêmula que denunciava os rápidos e irreprimíveis batimentos do coração. Impulso com temperança, gozo viril irreprimível que transbordava, desejos amordaçados que eram liberados.

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Rapidamente, os bicos de seus gigantescos seios começaram a se esfregar em cada centímetro da minha pele com total desenvoltura. Nesse momento, nenhuma das nossas roupas nos acompanhava, o que inconscientemente nos levou a assumir a posição da flor de lótus, sentados em cavalgada no meio daquele palco com uma luz tênue e amarelada no alto, um de frente para o outro, como Sada e Kichizo Ishida em um hotel em Tóquio dos anos 1930, experimentando, com toda a lentidão que a intensidade permitia, os limites de nossa autocomplacência (OSHIMA, 1976).

“Ai... Eu adoro... Ahhh, Kichizo...”, ela sussurrava enquanto seu delicado gozo me derrubava de costas no chão. “Kichizo, sinto que estou flutuando. Fique dentro. Não saia de mim” – e uma suave mordida se apossava do meu peito esquerdo, enquanto de sua boca exalava um gemido demorado e trêmulo, que subia do mais íntimo do seu corpo, comprimindo o membro mais duro da família, que estava eternamente grato por ser submetido até sua total liquidação.

Nem Margarita nem eu tínhamos conseguido esquecer, nesses três anos, os mínimos detalhes daquela trama fantasiosa em que fomos seduzidos um dia antes da estreia em Cuba. Então, estando aqui no Brasil, ensimesmados novamente em meio à fumaça dos nossos cigarros e prestes a fazer outra estreia, não conseguimos evitar as voltas que o destino dá.

“Você quer um Marlboro?”, disse-me. “Obrigado. Você quer um dos meus? Não costumo fumar, mas este Camel me chamou atenção”, disse-lhe sorrindo.

VII Quando chegou o dia da estreia, todos na Cia. Paideia nos sentíamos extremamente inquietos. Quando o espectador chegava à sala, ouvia sons de vento. Uma luz tênue atravessava obliquamente o palco, como reminiscência do amanhecer. Era o ponto de partida para a entrada dos narradores. O vento aumentava sua potência, mas eles continuavam se movendo lentamente. No início, eram sombras, que depois iam sendo descobertas diante do olhar curioso das crianças, através de panos de seda, tecidos, cestos, bolsas de couro e outros acessórios de cor ocre, amarela, bege e laranja, lembrando-nos daquelas antigas rapsódias recitando poemas de povoado em povoado. Eram figuras que se apresentavam não como personagens de teatro, mas como alguém próximo com quem você compartilharia uma experiência de vida. Era assim que os atores, especialmente Margarita, con-

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duziam todo o espetáculo, com um equilibrado nível interpretativo e vocal, apoiando-se na ampla escala de registros sonoros e musicais da obra, dando mostras de sua versatilidade artística.

Em termos gerais, fui percebendo, nesse processo da Cia. Paideia, arquiteturas complexas de ações artísticas, pedagógicas e éticas que se entrecruzavam como atos de uma alta dimensão cultural e que buscavam certa restauração simbólica com as crianças. Na dimensão microtransformadora desse processo, destacaram-se as mutações pessoais e coletivas, espaços conviviais de experiências, trocas, proximidade e experimentação conjunta entre crianças e adultos, em cujo centro se erigiu a narrativa como mediadora estética e como campo de recuperação da memória. Aqui, a linguagem – entendida como representatividade de algo inteligível – adquiriu sentido na medida em que as estratégias de convivência influenciaram o tipo de experiência vivida pelas crianças, suplantando o poder do logos. Para isso, a dimensão performativa do jogo contribuiu como elemento essencial do ensino do teatro, e a música como elemento facilitador do processo formativo.

Mais do que uma forma de fazer teatro, de incorporar as crianças à dimensão poética como sujeitos, de construir uma prática perfurando os sistemas de representação e manifestação política, que apostam no esquecimento, nas vivências e nas informações como capital simbólico, o processo que envolveu o espetáculo Histórias que o Vento Traz questionou a noção de teatro infantil e sua abrangência como dispositivo de subjetivação nas crianças, revelando outras relações do ensino teatral entre adultos e crianças, propondo novas formas de habitabilidade no mundo e colocando o teatro como um horizonte orientado para a esfera das interações humanas e seu contexto cultural.

VIII Enquanto me preparava para retornar a Cuba, senti a necessidade de continuar estudando experiências como essas na América Latina. Ocorreu-me que Margarita e eu poderíamos passar as últimas horas juntos pensando nisso, sonhando com as nossas vidas, passeando de bote em algum lago da cidade. Em menos tempo do que imaginei, já estávamos saboreando um bom vinho acariciados pelo profundo silêncio que emanava das águas. Eu estava sentado a bombordo remando e Margarita estava no banco de trás, na popa, segurando o leme. Foi aí que percebi a peculiaridade entre as duas experiências teatrais que haviam unido as nossas vidas. Estava na forma

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como ela e eu víamos e nos relacionávamos com o teatro, entendendo-o como uma construção simbólica, orientada para a conquista da autonomia e da ressignificação do mundo das crianças.

Foi aí também que surgiu a ideia de retornar, de fazer um doutorado em São Paulo, de vir com Iván, meu filhinho, e de aventurar-nos em grupos e comunidades periféricas dessa região. Continuava lá o céu nítido, o horizonte de outubro sem uma única nuvem e toda, toda uma vida pela frente diante desse magnético e enigmático lugar da cidade, de onde sairia o impulso que ocuparia a minha vida nos próximos meses e que terminaria com esta metafórica mensagem em português:

São Paulo, 12 de dezembro de 2013 Prezado Ignácio, Seu projeto de doutorado foi aprovado. Envio comunicação oficial da CPG. O curso na USP começa em março de 2014. Espero encontrá-lo em breve. Um grande abraço e MUITA MERDA!⁹

9. “Merda!” é uma interjeição utilizada por atores e pessoas envolvidas na parte técnica de uma peça teatral, na coxia ou no palco, minutos antes da abertura da cortina, com o intuito de exprimir desejo de boa sorte na apresentação.

.:. Este texto é de exclusiva responsabilidade de seus autores e não reflete necessariamente a opinião do Itaú Cultural.

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Referências

BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BUITRAGO, Guillermo. Espera que me muera. Disponível em: https://www.youtu be.com/watch?v=TXgmbK95cpU. Acesso em: 26 set. 2020.

CORREA, Gabriel Caio. A ideia de narrativa de Walter Benjamin e seus desdobramentos. Revista Lampejo, Fortaleza, v. 6, n. 2, 2017.

GARCÍA LEYVA, Luvel. El viaje del colibrí. Re-construyendo una pedagogía arteducativa con y desde los/as niños/as. La Habana: Editorial Caminos, 2010.

GARCÍA LEYVA, Luvel. Escenarios infantiles latinoamericanos: teatralidades y performatividades emergentes de la acción cultural. 2020. Tese (Doutorado em Artes) – Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020.

MARTÍ, José. Un paseo por la tierra de los anamitas. In: MARTÍ, José. La edad de oro. La Habana: Editorial Gente Nueva, 2004.

OSHIMA, Nagisa (dir.). El imperio de los sentidos, 1976.

PESSOA, Fernando. O guardador de rebanhos. Lisboa: Ática, 1946.

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Endereços na internet

No emaranhado de algoritmos que se tornou a vida dos mortais neste planeta, achamos por bem reunir endereços na internet voltados para a prática da crítica nas áreas de circo, dança, teatro e demais variantes que instauram presença.

A relação a seguir inclui fontes de pesquisa e consulta seminais para a produção de análise. São blogs, sites, revistas eletrônicas e portais que realimentam quem faz e quem frui artes cênicas (considerando-se que toda lista pressupõe lacunas).

Individuais, coletivas ou institucionais, as iniciativas evidenciam uma alentada rede de espaços imbuída de registrar e pensar parte considerável das criações vindas a público em diferentes regiões do Brasil e, inclusive, no exterior. Um inventário provisório à maneira de bússola.

Agora Crítica Teatral | www.agoracriticateatral.com.br (Porto Alegre) Alzira Revista – Teatro & Memória | www.alzirarevista.wordpress.com (São Paulo) Antro Positivo | www.antropositivo.com.br (São Paulo) Aplauso Brasil | www.aplausobrasil.com.br (São Paulo) Artezblai – el Periódico de las Artes Escénicas | www.artezblai.com (Bilbao) Bacante | www.bacante.com.br (São Paulo) Blog da Cena | www.blogdacena.wordpress.com (Belo Horizonte) Blog do Arcanjo | www.blogdoarcanjo.com (São Paulo) Bocas Malditas | www.bocasmalditas.com.br (Curitiba) Cacilda | www.cacilda.blogfolha.uol.com.br (São Paulo) Caixa de Pont[o] – Jornal Brasileiro de Teatro | caixadeponto.wixsite.com/site (Florianópolis) Cena Aberta | www.cenaaberta.com.br (São Paulo) Circonteúdo – o Portal da Diversidade Circense | www.circonteudo.com (São Paulo) Conectedance | www.conectedance.com.br (São Paulo) Crítica Teatral | www.criticateatralbr.com (Rio de Janeiro) Da Quarta Parede | www.daquartaparede.com (São Paulo) Daniel Schenker | www.danielschenker.wordpress.com (Rio de Janeiro) DocumentaCena – Plataforma de Crítica | www.documentacena.com.br (diferentes cidades) Enciclopédia Itaú Cultural | enciclopedia.itaucultural.org.br (São Paulo) Farofa Crítica | www.farofacritica.com.br (Natal) Farsa Mag | www.farsamag.com.ar (Buenos Aires) Filé de Críticas | filedecriticas.blogspot.com (Maceió) Folias Teatrais – Letras, Cenas, Imagens e Carioquices | foliasteatrais.com.br (Rio de Janeiro) Horizonte da Cena | www.horizontedacena.com (Belo Horizonte) Ida Vicenzia – Crítica de Teatro e Cinema | idavicenzia.blogspot.com (Rio de Janeiro) Idança.net | www.idanca.net (São Paulo) Ilusões na Sala Escura | www.ilusoesnasalaescura.wordpress.com (São Paulo) Karpa | www.calstatela.edu/al/karpa (revista eletrônica latino-americana editada em Los Angeles) Lionel Fischer | lionel-fischer.blogspot.com (Rio de Janeiro) Macksen Luiz | macksenluiz.blogspot.com (Rio de Janeiro) Nacht Kritik | www.nachtkritik.de (Berlim) Notícias Teatrales | www.noticiasteatrales.es (Madri) O Teatro como Ele É | www.oteatrocomoelee.wordpress.com (Belém) Observatório do Teatro | www.observatoriodoteatro.uol.com.br (São Paulo) Observatório dos Festivais | www.festivais.com.br (Belo Horizonte) Palco Paulistano | palcopaulistano.blogspot.com (São Paulo) Panis & Circus | www.panisecircus.com.br (São Paulo) Parágrafo Cerrado | www.paragrafocerrado.46graus.com/ (Cuiabá) Pecinha É a Vovozinha! | www.pecinhaeavovozinha.com.br (São Paulo) Primeiro Sinal | primeirosinal.com.br/ (Belo Horizonte) Qorpo Qrítico | www.ufrgs.br/qorpoqritico (Porto Alegre) Quarta Parede | www.4parede.com (Recife) Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais | www.questaodecritica.com.br (Rio de Janeiro) Revista Barril | www.revistabarril.com (Salvador) Ruína Acesa | ruinaacesa.com.br (São Paulo) Satisfeita, Yolanda? | www.satisfeitayolanda.com.br (Recife) Teatro para Alguém | www.teatroparaalguem.com.br (São Paulo) Teatrojornal – Leituras de Cena | www.teatrojornal.com.br (São Paulo) Tribuna do Cretino | www.tribunadocretino.com.br (Belém) Tudo, Menos uma Crítica | www.medium.com/@fernandopivotto (São Paulo) Válvula de Escape | www.escapeteatro.blogspot.com (Porto Alegre) Vendo Teatro – uma Plataforma para Falar sobre Teatro em Pernambuco | www.vendoteatro.com (Recife)

crítica em movimento: \Teatros peculiares na mão dupla com Cuba e Brasil

Ficha técnica

NÚCLEO DE ARTES CÊNICAS

Gerência

Galiana Brasil

Coordenação Carlos Gomes

Produção Felipe Sales

Cocuradoria Valmir Santos

NÚCLEO ENCICLOPÉDIA

Gerência

Tânia Rodrigues

Coordenação Glaucy Tudda

Produção

Karine Arruda NÚCLEO DE COMUNICAÇÃO E RELACIONAMENTO

Gerência

Ana de Fátima Sousa

Coordenação Carlos Costa

Edição

Ana Luiza Aguiar (terceirizada), Milena Buarque e Valmir Santos (cocurador)

Produção editorial

Pamela Rocha Camargo e Victória Pimentel

Design

Estúdio Lumine (terceirizado)

Supervisão de revisão

Polyana Lima

Revisão do português

Karina Hambra e Rachel Reis (terceirizadas)

Tradução para o espanhol

Atelier das Palavras Tradução Interpretação Ltda. (terceirizado)

Revisão do espanhol

Atelier das Palavras Tradução Interpretação Ltda. (terceirizado)

crítica em movimento: crítica em movimento: \Teatros peculiares en la doble vía con Cuba y Brasil \Teatros peculiares en la doble vía con Cuba y Brasil

Transformaciones de la práctica y del pensar crítico Valmir Santos1

1. Periodista, crítico y cocurador de Crítica em Movimento. Creador y editor del sitio web Teatrojornal - Leituras de Cena desde 2010. Es doctorando en artes escénicas de la Universidad de São Paulo (USP), donde también realizó una maestría en esa misma asignatura. La fortuna crítica de una obra corresponde al campo de pensamiento que instituyó cuando se hizo pública a través de edición, grabación, filmación, escultura, pintura, presentación e interpretación. Los ocho cuadernos diseñados especialmente para la cuarta jornada Crítica em Movimento tienen el objetivo de invertir un poco esta expectativa, al articular 24 textos justo en el ámbito del hacer crítico. Son visiones heterogéneas de en qué consiste y cómo se despliega en creaciones en circo, danza y teatro, con variantes para intervención y performance. Sabemos cuánto las circunstancias históricas, sociopolíticas y culturales involucran a practicantes y participantes, artistas, investigadores y, por supuesto, espectadores-lectores.

Realizado anualmente por Itaú Cultural, desde 2017, el ciclo de debates aborda la recepción de las artes de la escena y el diálogo imprescindible entre público, creadores y críticos. En 2021, en este contexto difícil de la pandemia, el estímulo al pensamiento supera la imposibilidad del encuentro presencial por medio de la circulación de contenidos reflexivos en texto y podcast.

Además de ampliar el acceso, se busca perpetuar las discusiones de las tres ediciones anteriores, que abordaron la práctica de la crítica a la luz de problemas del oficio e incluyeron la presentación de espectáculos. Entre los temas tratados se encuentran la precarización del trabajo en el ámbito del periódico impreso y la búsqueda de la sostenibilidad como contrapunto al mero diletantismo; el constante avance del análisis en Internet, con el deseo de reinventar el estilo; y la adopción de nuevos procedimientos e ideas en consonancia con los estudios universitarios y la inquietud de la escena brasileña contemporánea. También se abordaron las realidades sociales de sujetos marginados y anclados en la dramaturgia de Plínio Marcos, así como una selección latinoamericana y caribeña de obras y reflexiones de representantes de Argentina, Chile y Cuba.

Ante el insólito escenario del año anterior, marcado por el brote global del nuevo coronavirus, una de las alternativas fue desarrollar una publicación en línea, con ocho itinerarios de escritos realizados por 25 personas del universo de las artes de la escena.

Cada volumen reúne tres análisis estimulados por los siguientes temas: 1) El papel de la crítica teatral en Brasil - del periódico impreso a la plataforma digital; 2) La brecha entre la crítica y el circo; 3) Estados de la crítica de danza; 4) Espacios digitales dedicados a las artes escénicas; 5) La dificultad de la crítica de coprotagonizar con el teatro callejero; 6) La escena militante en el contexto contemporáneo; 7) Teatros peculiares en la doble vía con Cuba y Brasil; y 8) Panorama del teatro latinoamericano visto desde el puente.

En este séptimo cuaderno se puede seguir una prospección entre tierras nacionales y extranjeras sobre los «Teatros peculiares en la doble vía con Cuba y Brasil», realizada por personas familiarizadas con la creación, producción, investigación, crítica y pedagogía en Cuba y Brasil. Dos de ellas nacieron en la isla y actualmente trabajan y estudian en Bahía y São Paulo. Viviendo en Bogotá, Colombia, la actriz e investigadora teatral brasileña Camila Ladeira Scudeler lanzó una mirada testimonial a uno de los conjuntos artísticos icónicos de América Latina, el Grupo Teatro Escambray (GTE), de Cuba, con 52 años de trabajo ininterrumpido. Con sede en la zona montañosa denominada Escambray, en el pueblo La Macagua, el GTE tiene en su extenso currículo más de 90 montajes. Y fue tema de la tesis de doctorado de Camila, Cartografía Diacrónica del Grupo Teatro Escambray (Cuba), defendida en 2018 en la Escuela de Comunicaciones y Artes de la Universidad de São Paulo (ECA/USP).

La autora también entrelazó fragmentos de su diario personal escrito en los viajes triangulares entre el interior de Cuba, la capital de Colombia y la capital de São Paulo. En el siguiente fragmento de su texto, elaborado por invitación de los curadores, ella se centró en la genealogía del GTE: «En noviembre del marcado año de 1968, nueve años después del triunfo de la Revolución Cubana, se inició esa “aventura” de 12 artistas de teatro que salieron de la capital en busca de un nuevo público, de nuevos temas, un nuevo rumbo para su proceso artístico y revolucionario, en el sentido más amplio de la palabra. En el mismo año en que se estrenó la película Memorias del Subdesarrollo, de Tomás Gutiérrez Alea (1928-1996), el protagonista Sergio Corrieri, junto con su madre, Gilda Hernández, y otros diez expe-

crítica em movimento: \Teatros peculiares en la doble vía con Cuba y Brasil

rimentados y reconocidos actores y directores de La Habana iniciaron el camino hacia el interior. Artistas de teatro que abandonaron la capital del país para desarrollar un proyecto artístico acorde con los cambios estructurales que experimentaba Cuba».

El director de teatro, productor e investigador Luis Alonso-Aude miró hacia su país de origen a partir del grupo El Ciervo Encantado, fundado en La Habana en 1996 por la directora y profesora Nelda Castillo, junto a estudiantes del Instituto Superior de Arte. El nombre proviene de la fuerza poética del cuento «El Ciervo Encantado», en el que el autor cubano independentista Esteban Borrero Echeverría (1849-1906) muestra la persecución de un animal que, al estar encantado, se escapaba de convertirse en presa de los cazadores. Naturalizado brasileño y radicado en Salvador, Alonso-Aude correlacionó tres creaciones recientes del colectivo analizado: Triunfadela (2015), Departures (2017) y Arrivals (2018), todas representadas por Mariela Brito e incluidas en la programación del Festival Internacional Latinoamericano de Teatro de Bahía (FilteBahia), creado y realizado por el grupo Oco Teatro Laboratório desde 2008, del que forma parte el autor.

«Este territorio al que me refiero es un espacio en el que se entrecruzan diversos géneros, teatro, performance, happenings, instalaciones, producciones multimedia y todas las vertientes que puedan surgir relacionadas con el documental y las historias ocultas. Cuentan con más de 60 producciones, incluyendo todos estos campos contaminados, diversas publicaciones y una profunda experiencia pedagógica», contextualizó Alonso-Aude acerca de El Ciervo Encantado, anclado por la colaboración artística de Nelda y Mariela.

Al deducir que el público de Bahia no habría quedado «muy contento» ante la performance de Triunfadela, el director examinó: «De hecho, ese espectáculo va en contra de los estereotipos no solo del oficio mismo, sino de la imagen y la visión que se tiene de Cuba como una isla de utopía y resistencia. Que sea o no, ya es otra discusión, pero que la utopía de cada país debe ser vivida por el mismo país, sin tomar otras experiencias como banderas que fortalezcan y hagan perdurar los sistemas paralizados, de esto estoy seguro. Y Triunfadela revela, de manera dura, verdades que no se pueden solapar, pues el tiempo las desmiembra y hace su carnicería. La utopía cubana quizás no haya servido para caminar, como diría Eduardo Galeano citando a Fernando Birri. Ella se ha posicionado como un paradigma paralizador, más allá de la economía, del propio cuerpo cubano. Formó parte, durante largos 60 años, de la colusión de un Próspero shakesperiano visto aquí como una gran maquinaria que, en su magia, creó ilusiones y alucinaciones, fomentó ideales amalgamados con el propio cuerpo ciudadano, en un país rodeado de agua por todas partes, y así ha agarrado un poder que parece más que eterno».

En un texto publicado en español y portugués, el pedagogo, crítico de teatro e investigador cubano Luvel García Leyva esculpió de la realidad el relieve ficcional de una narrativa que transcurre entre 2010 y 2013 y que analiza las peculiaridades estéticas de una experiencia artística con niños brasileños, poniéndola en diálogo con aspectos específicos de otra experiencia cubana. Ambas van de la mano en su trayectoria como investigador teatral en los últimos años, entre la Cia. Paideia de Teatro, en São Paulo, y el proyecto Zunzún, del Teatro Nacional de Cuba. El autor demostró talento literario al intercalar voces imaginarias, como la de la actriz y pedagoga colombiana Margarita, y reales, como la del director y cofundador de la Cia. Paideia, Amauri Falseti, recordándonos que, en medio de las acciones artísticas y socioculturales, existen brechas para los encuentros afectivos, ya que el arte no está apartado de la vida.

«Más que un modo de hacer teatro, de incorporar a los niños a la dimensión poética como sujetos, de construir una práctica perforando los sistemas de representación y manifestación política, que apuestan por el olvido, las vivencias y las informaciones como capital simbólico, el proceso que implicó el espectáculo Histórias que o Vento Traz cuestionó la noción de teatro infantil y su alcance como dispositivo de subjetivación en los niños, revelando otras relaciones de la enseñanza teatral entre adultos y niños, proponiendo nuevas formas de habitabilidad en el mundo y ubicando al teatro como un horizonte orientado hacia la esfera de las interacciones humanas y su contexto cultural», constató Leyva.

\editorial

Transformaciones de la práctica y del pensar crítico

Los demás escritos presentes en la publicación en línea están firmados por

la actriz Alice Guimarães, del Teatro de los Andes (Bolivia); la actriz y especialista en circo Alice Viveiros de Castro (São Paulo); el director Altemar Di Monteiro, del grupo Nóis de Teatro (Ceará); el artista-investigador y profesor chileno radicado en Fortaleza Héctor Briones (Ceará); la profesora,

crítica em movimento: crítica em movimento: \Teatros peculiares en la doble vía con Cuba y Brasil \Teatros peculiares en la doble vía con Cuba y Brasil

productora y gestora cultural Andrea Hanna (Argentina); el periodista y crítico de danza Carlinhos Santos (Rio Grande do Sul); el artista transdisciplinario y crítico de danza Daniel Fagus Kairoz (São Paulo); el actor y crítico de teatro Diogo Spinelli, del sitio web Farofa Crítica (Rio Grande do Norte); la profesora e investigadora de circo Erminia Silva, en conjunto con el investigador Daniel de Carvalho Lopes, ambos del sitio web Circonteúdo (São Paulo); el actor, director y profesor de teatro Edson Fernando, del sitio web Tribuna do Cretino (Pará); la artista Fátima Pontes, coordinadora ejecutiva de la Escola Pernambucana de Circo (Pernambuco); el actor y director Fernando Cruz, del Teatro Imaginário Maracangalha (Mato Grosso do Sul); la periodista y crítica de teatro Ivana Moura, del blog Satisfeita, Yolanda? (Pernambuco); el actor e investigador teatral Lindolfo Amaral, del grupo Imbuaça (Sergipe); la actuadora e investigadora Marta Haas, de la Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz (Rio Grande do Sul); la actriz y agitadora cultural Nena Inoue (Paraná); la directora y dramaturga Fernanda Júlia Onisajé, del Núcleo Afro-Brasileiro de Teatro de Alagoinhas (Bahia); la periodista y crítica de teatro Pollyanna Diniz, del blog Satisfeita, Yolanda? (Pernambuco); el crítico de teatro y periodista Macksen Luiz (Río de Janeiro), que actuó en el periódico Jornal do Brasil (1982-2010), fue colaborador de O Globo (2014-2018) y creador de un blog de críticas con su nombre (2011); la investigadora de danza, bailarina y profesora Rosa Primo (Ceará); y la artista-investigadora y profesora Walmeri Ribeiro, del proyecto Territórios Sensíveis (Río de Janeiro).

Como se ve y se lee, es una producción textual que pretende ser geográfica e ideológicamente no hegemónica. Se vuelca sobre el hacer crítico, sus potencias y sus dificultades en esta época de la historia de Brasil, en la que las ya insuficientes políticas públicas para las artes y la cultura enfrentan ataques beligerantes.

Escucha activa

En simbiosis con los cuadernos, el podcast Crítica em Movimento convoca al público en general a activar la escucha reflexiva a través de cinco episodios. Cada uno de ellos plantea una pregunta a los invitados. En el primero, Macksen Luiz y la crítica de teatro, investigadora y artista Daniele Avila Small, de Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais, ambos actuantes en Río de Janeiro y de diferentes generaciones, responden

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Transformaciones de la práctica y del pensar crítico

a la pregunta: «¿Cuáles son los enfrentamientos de la práctica de la crítica teatral actuales?». El tema recorre la precarización del trabajo remunerado, la migración del hacer crítico a la Internet y cómo ampliar la conversación con públicos, artistas y gestores culturales, con la mediación del periodista y crítico de teatro que escribe estas líneas.

En el segundo episodio, la investigadora, artista y profesora Lourdes Macena (Ceará) y el actor y director Rogério Tarifa (São Paulo) se dedican al tema: «¿Cómo se relaciona la crítica con la noción de lo popular en las artes escénicas?». Con la mediación del investigador y profesor Diógenes Maciel (Paraíba), se trata de un diálogo sobre la recepción de expresiones culturales que emanan del pueblo, muchas veces en oposición al conocimiento formal, las normas y las ambiciones de los poderes políticos y económicos que están en juego en la sociedad.

«¿Cuál es la percepción de quienes crean acerca del trabajo de la crítica?» - este es el tema del tercer episodio. Para contestarlo, se escuchó a artistas de colectivos escénicos entre los más longevos del país: Tânia Farias, de la Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz (Rio Grande do Sul), fundada en 1978, y el dramaturgo y director Edyr Augusto Proença, del Grupo Cuíra (Pará), formado en 1982. Como mediadora, la investigadora, artista de performance y periodista Maria Fernanda Vomero (São Paulo). Este trío discutirá cómo sus respectivas creaciones son vistas por quienes escriben crítica en sus regiones o fuera de ellas, teniendo en cuenta que las realidades social, política y económica de Brasil presentan contrastes y convergencias.

La investigadora y profesora Walmeri Ribeiro (Río de Janeiro) y el actor Pedro Wagner, del Grupo Magiluth (Pernambuco) discuten «¿Cómo mirar y escuchar desde la escena remota?». La crítica de teatro y periodista Luciana Romagnolli, editora del sitio web Horizonte da Cena (Minas Gerais), media los desafíos del análisis frente a los procedimientos artísticos que emergen en la actualidad y sientan precedentes para una nueva idea de presencia y cuerpo mediado.

Finalmente, en el último episodio se analiza «¿Cuál es el lugar de la resistencia en la formación de la crítica?» desde la mirada de Henrique Saidel (Rio Grande do Sul) y Dodi Leal (Bahia), artistas que manejan la investiga-

crítica em movimento: crítica em movimento: \Teatros peculiares en la doble vía con Cuba y Brasil \Teatros peculiares en la doble vía con Cuba y Brasil

ción, la creación y la docencia en su vida cotidiana. Bajo la mediación de la periodista, crítica de teatro y profesora Julia Guimarães (Minas Gerais), los artistas exploran cómo el estudio y el ejercicio de la crítica pueden abarcar procedimientos de escritura y pensamiento tan expandidos como la palpitante producción contemporánea.

Se puede acceder al programa en el sitio web itaucultural.org.br o reproducirlo en su aplicación de podcast favorita.

Evoé.

.:. Este texto es responsabilidad exclusiva de sus autores y no refleja necesariamente la opinión de Itaú Cultural.

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Transformaciones de la práctica y del pensar crítico