Jornal Especial - Vila Socó

Page 1

´

VILA SOCO Santos/ São Paulo - Dezembro de 2016

Caso Vila Socó está parado e Comissão da Verdade adia planos com a CIDH

Como ocorreu tecnicamente o incêncio segundo a Petrobras 25

Sobreviventes contam como foram aqueles dias

5

Drama dos parentes em busca de seus direitos

16

Depoimento do prefeito da época 23 Hoje, a história poderia ser diferente

12


Dezembro/2016

Especial Vila Socó

A história do fatídico dia que marca o Brasil até hoje Pedro Daher

E

Antes Sob as palafitas, passara os dutos da Petrobras que recebia o combustível da refinaria de Capuava, construídos em 1955, à céu aberto. No dia 24 de fevereiro de 1984, os moradores do local começaram a se queixar do forte cheiro de gasolina que emanava do mangue. Os responsáveis pelos oleodutos, foram acionados para vistoriar a vila. Após a vistoria, entenderam que seria apenas mais um cheiro que saia dessas águas e, portanto, tranquilizaram os moradores e deixaram o local convencidos de que era um cheiro normal por onde passa um duto de gasolina, conforme reportagens da época. Mais tarde, segundo sobreviventes, alguns moradores presumiram que o cheiro vinha de um vazamento nos dutos. Preocupados foram avisar aos vizinhos. Alguns saíram de casa,

Durante Foi o que aconteceu. Um fósforo ou curto circuito em fio elétrico pôs fogo à mistura de água com combustível que rapidamente provocou a explosão do oleoduto e tudo ardeu em chamas. Cubatão, não só vivenciou um dos maiores incêndios, como marcou o País e a vida dos sobreviventes que afirmam o desaparecimento

de todos os outros moradores, os bombeiros e a polícia chegaram arrombando a porta. O cano explodiu por dentro e tomou conta dos barros, o que possibilitou a ação agressiva das autoridades, cuja chegada rápida permitiu que a avó de Maria conseguisse escapar. Mesmo assim, muitos não tiveram essa chance. De acordo com os números oficiais, a tragédia deixou 93 mortos e quatro mil feridos. Depois Hoje, Maria continua morando em Cubatão, próximo de onde ocorreu a tragédia e afirma que as cenas que viu jamais serão esquecidas, “certas imagens machucam tanto quanto uma dor física, tanto para quem viveu o acidente de perto,

quanto para quem o acompanhou através de notícia de jornal e imagens de arquivo”. O local da tragédia deu lugar à Vila São José, reconstruída e urbanizada com os dutos soterrados. A Petrobras indenizou às vítimas e construiu cerca de 400 novas casas. Outros sobreviventes foram transferidos para a Vila Natal. Em 2011, a Prefeita Marcia Rosa inaugurou na nova vila, a primeira praça da cidadania da cidade, com uma ampla estrutura de lazer atraindo milhares de pessoas anualmente. A vila deixou as palafitas e o nome Socó no passado. Atualmente, o que fica são marcas de um dia fatídico e a certeza de que ninguém quer passar por isso novamente.

Todos ajudavam no resgate às vítimas para tentar minimizar a dor do dia trágico

EXPEDIENTE Edição especial Vila Socó, elaborada pelos alunos do IV semestre do Curso de Jornalismo (FaAC), da Universidade Santa Cecilia. Professores Responsáveis: Prof. Dr. Gerson Moreira Lima (texto) e Prof. Fernando Cláudio Peel (diagramação). Prof. Me. Luiz Nascimento (fotografia) Coordenador do curso: Prof. Dr. Robson Bastos Diretor da FaAC: Prof. Humberto Challoub

2

e morte de mais de 500 pessoas, sendo sua maioria crianças e idosos que tiveram seus corpos carbonizados pela alta intensidade das chamas que atingiu mil graus e chegou a mais de 100 metros de altura. Maria de Fátima Ferreira da Silva, uma das sobreviventes que na época tinha 18 anos de idade, relata que estava dormindo e, como diversas outras pessoas, foi acordada por explosões, daquelas que só havia visto em filmes de ação. Sem fazer ideia do que estava acontecendo abriu sua porta e se deparou com um clarão enorme. Viu muitas pessoas morrendo em sua frente, além de casas pegando fogo em função da explosão do botijão de gás. Na sua casa, e na

REPRODUÇÃO

VILA SOCÓ

ra uma madrugada de sexta-feira, aparentemente igual às outras na favela de palafitas da Vila Socó, em Cubatão, quando tudo se tornou desespero.

outros permaneceram. Pouco antes da meia noite, já eram quase 700 mil litros de gasolina que se alastraram por toda área alagada. Bastava uma faísca para que tudo se transformasse em fogo, consumindo cerca 1.200 barracos da favela e sua população calculada em seis mil habitantes.

Alunos: Alex Eulalio Neves Ilek Alex Ramos Silva Andrei Zacharkow Paternostro Andressa Ariceri Critelli Ferigolli Axel Rodrigues de Arruda Junior Beatriz Hurtado de Mendonça Beatriz Monteiro Martins Beatriz Pereira da Silva Beatriz Rosa Ferreira Bruna Marina Pinheiro da Silva Bruno Altmann Calherani Camilla Jandaia Aloi Lopes Diego Santos Kassai

Eduardo Luiz Correa Eliana Baptista Greco Ilario Fabio Silva Peres Gabriel Chiconi Lins Gabriel Mansano Pupo Gabriela Vanessa Arantes Brino Henrique Guedes da Silva Isabel Franson Soares da Silva Isabela de Morais Ribeiro Isabella Chiaradia Lopes Jhessica Paixão Souza Josiane Alves Rodrigues Kelvyn Henrique de Souza Pedro Larissa Pinto Pedroso Larissa Rodrigues de Arruda Lucas Campos Vieira Marcel Caldeira dos Santos Marcelo Trindade Lopes Marcos Vinicius da Rosa Assunção Mariana Patricia de Souza Silva Mariana Simões e Silva Matheus Antunes Matheus Fogaça da Silva Natalia Lellis Nathalia Cristina Affonso Noelle Isidoro Neves Paloma de Souza Amaral Paola Bossan Bianchini Paulo Fernando Reis dos Santos Pedro Daher Morsch Porto

Pedro Vitor Fernandes Venchiarutti Priscila Pereira Denami Rafael Zacarias de Almeida Raquel Pinheiro de Sousa Renan Petronilio Costa do Espirito Santo Roberto Gomes Mascaro Silvania Maria de Souza Thayna Soares Gomes Vânia Lucia Revheim Cunha Vitoria Aparecida dos Santos Silva Wilker Jose Damasceno de Lima Editores: Isabella Chiaradia Lopes Beatriz Monteiro Martins Renan Petronilio Costa do Espirito


Dezembro/2016

Especial Vila Socó

OAB responde suspeitas sobre Vila Socó e ‘Operação Abafa’ Fábio Peres e Mariana Patrícia

A

tragédia de Cubatão deixou dúvidas e questões sem respostas durante 30 anos. Por essa razão, o presidente da OAB de Cubatão em 2014, Luiz Moreira, junto com os advogados André Simões e Dojival Viera iniciaram gestões para incluir o caso do incêndio da Vila Socó na pauta da Comissão da Verdade, uma força-tarefa que envolveu a Câmara dos Vereadores de Cubatão, o Ministério Público e a OAB da cidade. Tudo para, enfim, solucionar questões que deixaram duvidas do real encerramento do fato. No ano de 2014, na bancada da Comissão da Verdade foram realizadas cinco audiências, onde tornaram público um dossiê que mantinha fatos nunca divulgados que estavam guardados a “sete chaves”, em virtude da Operação Abafa. Segundo Luiz Moreira, o Regime Militar efetuou a denominada operação com o intuito de diminuir o tamanho e abrangência da tragédia ocorrida e especialmente ocultar as responsabilidades penais e civis. De acordo com Dojival Viera, advogado e vereador de Cubatão

na época, com os 22 volumes do processo criminal desarquivados pela Comissão da Verdade, em 2014, foi possível constatar os números oficiais divulgados naquele período. A Comissão apurou o real número de vítimas atinentes ao incêndio sobre o qual supera cinco vezes mais o número oficial divulgado como 93 mortes, sendo o real, relativo a mais de 500 mortes. A conclusão tem base no depoimento de testemunhas que participaram do sepultamento e declararam haver de três a quatro corpos em cada caixão, além da análise de documentos médicos e da escola que atendia o bairro. “Nos dias posteriores à tragédia só apareceram 60 crianças na escola, das 300 que estavam matriculadas”, afirma o advogado. Outra informação contraposta é a quantidade de combustível vazado no mangue que foi divulgado como 700 mil litros. Entretanto, de acordo com as declarações do engenheiro da Petrobras Sérgio Moreira e de um operário integrante do PAM (Plano de Ajuda Mútua), “as conclusões oficiais estão totalmente distorcidas da veracidade do ocorrido, a quantidade ultrapassou a casa dos dois milhões de litros de

gasolina, considerando o tamanho e diâmetro da tubulação que realiza o transporte do produto”, esclarece Sérgio. Segundo, o ex-presidente Luiz Moreira, o caso é emblemático e o país só tirará lições do episódio com essa reabertura, para que sejam apontadas responsabilidades e se preserve a memória e a verdade. Mesmo assim, a Comissão ainda terá que trabalhar muito no caso com relação a impunidade no âmbito penal, sobre a existência ou não de indenizações e o direito à esta, sobre o qual ainda não foi solucionada. Mas que é o próximo passo do caso, conforme o relato de Moreira. Para que isso aconteça a Comissão deve levar o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), e denunciar o Estado brasileiro por violações aos direitos humanos e acobertamento dos responsáveis envolvidos. Operação Abafa A tragédia que aconteceu durante o último ano do governo do General João Batista Figueiredo, ainda é discutida e levanta suspeitas a respeito de uma “Operação Abafa”. Advogados e ex-presidente da Subseção da OAB, integraram a Comissão durante o pro-

cesso de reabertura do caso em 2014. O objetivo era impedir que os 22 volumes das peças desse inquérito, que estava arquivado, fossem queimados. Além disso, o caso levado a Comissão da Verdade, foi inserida na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, pois para os membros da Comissão, o fato precisa ser contextualizado. Hoje, todo o inquérito encontra-se digitalizado. Com o país regido pelo governo militar, na época, Cubatão era considerada área de segurança nacional por sediar o principal parque industrial do Brasil e da América Latina. Assim, essas áreas, especialmente as que possuíam refinarias de petróleo, eram consideradas estratégicas pelos militares. Com isso, não era eleitos prefeitos, e sim interventores nomeados pelo governo militar. Cubatão ficou nessa situação durante 17 anos. Para Dojival, é fundamental entender o que aconteceu na Vila Socó, por isso o episódio foi nomeado como “Operação Abafa da Ditatura”.“Ao regime militar não interessava, obviamente, assumir a dimensão da tragédia que ele, indiretamente, provocou”. Segundo o advogado, a Refinaria Presidente Bernades

não fazia a manutenção das tubulações que ficavam embaixo das palafitas. No dia do acidente, moradores relatam que o vazamento dessas tubulações que transportam gasolina começou cedo, por volta das 11h30. Para ele, das 11h30 até a meia-noite, quando começou o incêndio, nenhuma providência foi tomada para evitar a tragédia. “São quase 12 horas de omissão, onde nada foi feito”, lamenta. O ex-vereador declara que a Petrobras não indenizou devidamente as vítimas e pagou valores irrisórios a título de indenização. “Não se reembolsaram famílias de crianças mortas identificadas, e as que foram identificadas não foram indenizadas porque crianças até 12 anos não eram consideradas força produtiva, portanto não valiam nada”, afirma Dojival. O objetivo da “Operação Abafa”, por parte do regime, era minimizar o número de vítimas fatais e o custo das indenizações, além de diminuir o impacto internacional daquela tragédia, diante da crise do petróleo que acontecia no ano anterior ao acidente, acrescenta. A Petrobras foi procurada no dia 18 de outubro de 2016, mas a empresa não respondeu a respeito.

COMISSÃO DA VERDADE

2014

A impresa questiona os números oficiais de mortes Marcel Caldeira

C

onsiderado um dos maiores incêndio da história do país, o drama de Vila Socó recebeu cobertura midiática em escala nacional. Preencheu as páginas dos jornais e blocos inteiros de TV e rádio na época, no entanto, o número de vítimas sempre foi contestado, já que era final da ditadura militar e

o regime tratou o caso como assunto de segurança nacional, minimizando suas proporções. O ex-jornalista da Globo, Eros José Alonso, atuou na cobertura do incêndio e relata, “Fiz as pauta de TV e acompanhei tudo. Lembro-me do que todos diziam sobre os desaparecidos. Falavam em 400 e o que foi divulgado não se tratava nem de metade desse

número. Nosso repórter trouxe uma garrafa retorcida do local, segundo os analistas só com mais de 400 graus C, uma garrafa poderia ficar com aquela ficou”. O jornalista diz ainda que alguns especialistas afirmaram no dia seguinte que o calor havia chegado a um grau de cremar o corpo, transformando-o em cinzas ou em pequenos pedações de ossos.

Para Alonso, esse fato foi marcante em sua carreira profissional e se diz angustiado ao se lembrar que mesmo com dúvidas, todas as redações importantes divulgaram informações que pareciam estar distante da realidade. Em 2014, repórter Rodrigo Hidalgo, foi o responsável por elaborar matérias sobre os 30 anos da tragédia de Vila Socó, a chamada “Ver-

dade Apagada”. Ele contestou o número oficial de mortes e apresentou detalhes apurados e checados pela Comissão da Verdade para que a população pudesse ter uma real dimensão do que realmente ocorreu no dia que diversos sobreviventes e profissionais, involuntariamente, guardam em suas memorias. Mais detalhes sobre a cobertura na página 17.

3


Especial Vila Socó

Dezembro/2016

COMISSÃO DA VERDADE

2016

4

Após dois anos, Comissão adia planos de investigação REPRODUÇÃO

Paulo Santos

E

m vista às mudanças feitas na Auditoria da Comissão da Verdade, a investigação do caso Vila Socó, hoje permanece paralisada. O caso que em 2014 conquistou diversas vitórias como o desarquivamento de documentos que trouxeram uma verdade mais próxima da dimensão do acidente, atualmente, sua busca não recebe suporte para a continuidade das averiguações do processo. Dojival Viera, que liderava a auditoria, afirma que muitos dos vereadores que estavam na época não estão mais. Outra mudança, foi na presidência da OAB de Cubatão, que agora pertence a André Mohamad Izzi. Os dois responsáveis têm conversado para que a comissão volte e relatam que com a

CV não consegue levar as investigações de Vila Socó adianta por mudanças

mudança dos vereadores deste ano para o próximo a probabilidade que a investigação volte se torna real. Vale lembrar que a referida Comissão vinha há dois anos fazendo diligências e procurando testemunhas para formar um quadro mais fiel ao ocorrido e que assim que julgassem ter informações suficientes pretendiam levar à Corte Interame-

ricana de Direitos Humanos. Isto ainda é uma vontade significativa para a Comissão, mas que por ora não obtém informações de quando isso virá a acontecer. O atual coordenador desses trabalhos, Mychajlo Halajko, diz que a empreitada é complexa, pois há muitos documentos a serem analisas, além de muitos outros que foram des-

truídos. Por esse motivo, a investigação consiste em fazer uma conexão entre documentos disponíveis e a declaração de testemunhas do evento. “Desarquivamos 22 volumes do processo relativo ao incêndio e ouvimos mais de 50 testemunhas, inclusive o presidente da Petrobras da época do desastre. Chegamos à infeliz conclusão de que houve sim um

abafamento do caso com o intuído de ocultar as responsabilidades penais e civis”, completa o coordenador. Na Auditoria Pública da Comissão também foi ouvido o repórter da TV Globo, Antônio Calos Ferreira, que cobriu a tragédia, e afirmou o fato de que Cubatão estava sob ditadura militar e fez com que a transparência no caso se tornasse muito menos. Outra testemunha procurada foi José Oswaldo Passarelli, que era interventor da ditadura em Cubatão. Contudo, a Comissão não conseguiu ouvi-lo, mas relatou que ele justificou a ausência na seção e ficou de ser ouvido outro dia, porém isso não aconteceu. Passarelli, no entanto, foi procurado pela nossa reportagem e deu um depoimento sobre a época. Detalhes na página 23.

AMBAS REPRODUÇÃO DA CV

COMISSÃO DA VERDADE Em busca de justiça aos direitos humanos e esclarecimentos sociais, a Comissão da Verdade é o nome da comissão que investiga as graves violações de direitos humanos cometidas entre 1946 à 1988, época da ditadura militar. Ela foi criada pela Lei 12528 em 2011 e instituída em 16 de maio de 2012, com a finalidade de dar voz a ações silenciadas pelo regime. Dessa forma, os trabalhos são divididos em três grandes subcomissões: Pesquisa (dividida em grupos de trabalho temáticos), Relações com a Sociedade e a Comunicação.


Especial Vila Socó

Dezembro/2016

ARCEVO PESSOAL

Vitória Aparecida

M

Já aposentado, Nilberto que vive com imagens do dia trágido desde criança, hoje está mais forte

de considerada trágica: Cubatão, cidade próxima à sua terra natal, estava em chamas. Uma tubulação havia pegado fogo e precisavam imediatamente do caminhão misto de combate a incêndio, que armazenava água, espuma e pó químico, e com o qual ele trabalhava. Atropelando a hierarquia necessária para a tomada de decisões, pediu a Augusto que acionasse dois companheiros de trabalho, que buscariam o caminhão em Santo André e passariam em São Bernardo, no caminho para o incêndio em Vila Socó. Pouco mais de uma hora depois do telefonema, o veículo, que transportava

uma tonelada de pó químico, 500 litros de água e 400 kg de líquido gerador de espuma, estava a postos junto às equipes de socorro enviadas por outras empresas do polo. Não preci-

lhe marcaria para sempre. Carvão foi só o que restou do local, quando resíduos de combustível do trecho entre duas tubulações começaram a queimar. O aumento da maré espalhou

“Corpos em sacos pretos eram enfileirados na rua” sou ser usado. Bombeiros e policiais militares passavam de um lado para o outro com corpos ensacados nos braços, enfileirando-os no chão. A atuação do profissional de segurança não pôde acontecer, pois nada e mais ninguém poderia ser ali salvo. Carcaças dos animais tostados representam a lembrança do fato que

o produto e quando o fogo se alastrou, lambeu a vida de quem ali vivia e a marca de qualquer existência naquele local. Os profissionais de emergência fizeram o que podiam: nada. A maratona de 13 horas durou até à tarde do dia seguinte. O caminhão subiu a Serra com a carga intacta, mas ainda mais pesado. Um

constrangimento silencioso tomou conta dos três passageiros durante o caminho. Em casa, a família o esperava para saber mais detalhes da tragédia, além daqueles transmitidos pela televisão. Tiveram que esperar de Nilberto. O que aconteceu nas últimas horas da vida do patriarca jamais seria conhecido por completo. As chamas que fizeram carvão da Vila Socó uniram forças às águas que levaram pedras a destruir o Morro do Marapé 28 anos antes. Ao invés de combater um ao outro, os elementos se somaram: fizeram da pedra ainda mais pedra e a dureza ainda mais trágica.

Lembranças de uma tragédia Bruna Marina

A

enfermeira Márcia Rosana, que na época era apenas uma criança de 13 anos. Lembra muito bem do fato ter ocorrido no meio da noite e que conseguia ver o fogo de sua casa. “A gente acordou com as pessoas gritando e falando que tudo estava pegando fogo. Muita gente morreu dentro da geladeira para se proteger, outras pulavam na maré que ainda existia”. A enfermeira tinha a avó e os primos que moravam no local do acidente e eles vieram correndo para sua casa.

O bairro ficou em estado de calamidade pública, porque metade das casas foi queimada. As pessoas que ficaram desalojadas foram para o centro esportivo. A população se mobilizou para ajudar quem não tinha nada, com alimentos, roupas e produtos de higiene. Depois do abrigo no centro esportivo, às famílias que tinham parentes foram para a casa deles, e para quem não tinha, depois de um tempo, a prefeitura municipal arrumou alojamento. Após o drama, as autoridades aterraram o lugar onde foram construídas as casas

REPRODUÇÃO DA INTERNET

Contam como foi o acidente e depois dele

anhã de 1º de março de 1956. Após uma forte chuva, vêm abaixo 40 moradias na encosta do morro do Marapé, com deslizamentos de terra e pedras. O santista Nilberto Oliveira tinha 12 anos e viu o desastre tirar a vida de 22 conhecidos. A casa em que vivia não foi destruída, mas o entulho daquelas pedras viria a endurecer algo dentro de si. Quando serviu a Polícia Militar do Estado de São Paulo, em 1967, essa dureza aumentou. Quatro meses depois de dar baixa como sargento, recomeçou a carreira profissional em outro setor, o petroquímico. Ingressou na empresa União, subsidiária da Petrobras em Santo André, que pertencia à Petroquisa, onde ficaria por 18 anos. Além do emprego, lá obteve formação técnica de Segurança Industrial. O que não esperava era o toque do telefone na madrugada do dia 24 de fevereiro de 1984. Do outro lado da linha estava o engenheiro Augusto Fernandes, coordenador de turno da subsidiária da Petrobras. Como de praxe, a ligação que interrompeu o sono trazia uma notícia ruim, mais tar-

SOBREVIVENTES

Água + carvão = a dureza

Destruição no bairro, um dia após o incêndio

novas. O enterro das pessoas que morreram. Foi em funeral coletivo, em razão do alto número de vítimas. Em alguns casos, só

sobraram ossos e foi necessária a perícia para reconhecimento. Nos dias que se seguiram Márcia, ficou sem ir a escola por causa da movimentação

na cidade, mas ainda assim ajudou os que precisavam dentro do abrigo, junto com sua família. Ao relembrar do acidente: “Foi uma grande tragédia”.

5


Especial Vila Socó

Dezembro/2016

De porta em porta, o garoto acordou seus vizinhos para salvar vidas BEATRIZ ROSA

SOBREVIVENTES

Humberto mostra o local onde sua casa era encontrada antes da tragédia

6

Beatriz R. Ferreira

H

umberto Ferreira, 50 anos, morava com seus pais e seus seis irmãos em uma casa na Vila Socó. Na época do incêndio era então, um jovem de 17 anos, estudante do colégio João Ramalho. Assim como todo adolescente, gostava de ficar na rua até tarde. Na noite da tragédia, o rapaz estava na pizzaria com os amigos, quando escutou a primeira explosão.

Preocupado, deixou o lugar para voltar a sua casa. Durante o trajeto, Humberto encontrou uma mulher suja de gasolina que dizia “Explodiu. Explodiu tudo!”. Desesperado com a situação saiu pelas ruas batendo na porta de vizinhos para alertá-los: “Vamos, Vamos, sai que o negócio está feio”. Ele lembra que uma de suas vizinhas chegou a atendê-lo, mas voltou a dormir. Ela morreu das explosões naquele local.

Ao chegar em casa, acordou sua família. Saíram da residência sem conseguir levar nada, apenas a roupa do corpo. Correram o mais rápido que conseguiram para a pista. Humberto conta que sua casa foi uma das últimas a ser devastada pelo fogo. Humberto e sua família foram levados para o Centro Esportivo da cidade, onde ficaram por três dias dormindo nas escadas. Em seguida, foram transferidos para um alojamento ofe-

recido pela empresa Constran. Moraram no local por quase dois meses, sobrevivendo de doações. Ele comenta que o prefeito da época, José Osvaldo Passarelli, deu todo o apoio e que por meio de contatos, conseguiu muitas contribuições. Quando a Petrobras contabilizou o número de pessoas que deveriam ser indenizadas, Humberto e sua família receberam a quantia de 50 mil cruzeiros, moeda da época. Segundo ele, o dinheiro

foi o suficiente para comprar uma casa no Bairro da Vila Natal, onde morou com sua família por mais alguns anos. Aos 22 anos, Humberto Ferreira se casou com Rosecleide da Costa. O casal continua morando na Vila Natal, com seus dois filhos Diego e Larissa, próximo à casa onde ele reconstruiu sua vida. Seus filhos conhecem a história por meio de um vídeo que o pai tem guardado e que mostra como foi a tragédia.

como Naide, atualmente com 40 anos. Ela conta que o trauma após a tragédia a acompanha até hoje. “A vila acordou com um enorme barulho, ninguém entendia o que estava acontecendo. Corri para fora de casa e parecia que o fogo ia engolir a vila inteira. As labaredas engoliam tudo a 100 metros de mim e a cada segundo só aumentavam. Eu só conseguia procurar pelos meus primos”, recorda a sobrevivente. Naquele momen-

to, as pessoas que moravam no local do acidente foram retiradas da área. Com muita rapidez, o corpo de bombeiros chegou ao lugar adotando as medidas necessárias para conter o fogo. Muitos moradores que estavam próximos ao incêndio acolheram os vizinhos que precisavam de ajuda. Para Naide, o pior momento foi no dia seguinte ao acidente. “Quando apagaram o fogo e voltamos para casa, fomos até o local que pegou fogo. “Pra

mim, a parte mais difícil foi ver o que restou das casas e dos corpos no chão, que pareciam carvões queimados” Mesmo uma criança, Naide tinha noção do que havia acontecido pois muitos amigos que brincavam com ela morreram ou desapareceram. A Prefeitura de Cubatão e a Petrobras deram todo o auxílio material, entretanto não ajudaram psicologicamente os moradores. “Quatro dias depois, eu vi uma cena muito chocante. Lembro com

detalhes até hoje. Foi quando cheguei no cemitério e vi muitos caixões de bebê com os corpos, pois não restaram corpos inteiros depois do incêndio”, recorda a mulher que carrega esses traumas ao longo de sua vida. Durante o desabafo de Naide, passa um caminhão do Corpo de Bombeiros com a sirene ligada. O pavor fica estampado em seu rosto. Anos se passaram e os medos e traumas aindafazem parte da vida de Naide.

O cheiro que virou catástrofe

Beatriz Hurtado

E

ra uma noite como outra qualquer, com as pessoas dormindo após um longo dia de serviço cansativo. De repente a grande catástrofe ocorreu. “Todos os dias sentíamos um cheiro de combustível, só que nesse dia o cheiro estava muito forte” lembra a menina, na época, com oito anos. A garota se tornou uma mulher, Jucinaide Valdivino da Silva Santos, conhecida


Dezembro/2016

Especial Vila Socó

Claudilete foi uma das sobreviventes em Vila Socó e lembra até os dias de hoje como foi a noite da tragédia com detalhes

Ela sonhou que o incêndio iria acontecer Vânia Revheim

B

em jovem, tinha 15 anos de idade na época que aconteceu a tragédia na Vila Socó (atual Vila São José). Estava grávida e faltavam somente 15 dias para o nascimento do seu filho. Claudilete Augusta Leite conta que na época até teve um sonho antes com o lugar pegando fogo. Exatamente na noite do dia 24 de fevereiro de 1984, dentro

de casa, Claudilete sentiu um cheiro bem forte de fogo e decidiu olhar pela janela. Foi quando viu o fogo consumindo os barracos lá fora. Saiu rapidamente correndo de casa, mas acabou caindo, por causa de uma valeta na saída da frente da casa. Por sorte, uma pessoa de fora a ajudou, dando-lhe a mão e assim conseguiu se levantar. Claudilete foi uma sobrevivente dentre

tantos vizinhos que morreram. Mas enquanto saía do local, uma cena marcou sua memória. Lembra-se de ter visto sua amiga Maria, grávida, sendo consumida pelo fogo e pessoas com o tecido da pele desaparecendo. Maria acabou morrendo junto com a criança. Claudilete não esquece da cena: o fogo estourando o ventre da amiga e a criança sendo expulsa pela barriga. No dia seguinte,

quando voltou para sua casa, que fora consumida pelo incêndio, acabou vendo ao redor pessoas mortas dentro de geladeiras e caixas d’água. Muitas famílias que vieram do Nordeste na época decidiram deixar o local. Claudilete, que era apenas uma menina adolescente na época, conta nunca mais ter visto a família de Maria, não tendo a menor ideia do que aconteceu

SOBREVIVENTES

VÂNIA REVHEIM

com eles. Claudilete conta ter sido, como outras pessoas, indenizada pela Petrobras. Lembra ainda ter engravidado 15 dias depois do acidente. Seu filho que nasceu cianótico, por falta de oxigênio. Hoje, ele tem 32 anos, trabalha na prefeitura de Cubatão e esbanja muita saúde, relata com grande alívio Claudilete, segurança patrimonial da Sociedade de Melhoramentos da Vila São José.

A sorte salvou Josenildo, mas o fogo não poupou o sobrinho Raquel Pinheiro

P

assava das quatro da madrugada do dia 24 de fevereiro de 1984, quando Josenildo Pereira dos Santos, com 32 anos de idade, se levantou para trabalhar. Olhou pela janela, havia um pouco de neblina, um cheiro estranho e muito forte no ar que não conseguia decifrar. Procurou a roupa às pressas, pois precisava terminar uma reforma em uma loja no centro de Santos e o proprietário queria o serviço pronto naquele dia. Trabalhou até tarde da noite. Foi

o que salvou sua vida. Josenildo, hoje com 64 anos, veio de Pernambuco e morava há dois anos em um barraco da Vila Socó quando ocorreu o sinistro. Segundo ele, muitos tinham vindo de outras cidades e estados em busca de oportunidade para tentar uma vida melhor. Ele admite que o incidente levou vida, sonho e esperança, deixando traumas profundos nas pessoas que tiveram a infelicidade de estar no local nesse dia fatídico. Em sua casa, vivia Bagunça, sua cachorra, e seu sobrinho

Toninho, filho de sua irmã mais velha, que veio de Cabrobó, Pernambuco. O garoto estudava de noite e chegava tarde em casa. Na hora do incêndio, os dois estavam dormindo. “Não adianta buscar explicações ou o que iniciou a tragédia. Na verdade, todos faziam parte dos excluídos da sociedade. Pessoas que se sujeitam a morar em área de risco por não ter o apoio dos governantes, que são obrigados pela Constituição, a tratar as pessoas com dignidade, dar condições de moradia, saúde e educação”, desa-

bafa. Tarde da noite, já passava das 22h, quando Josenildo retornou ao bairro. Saltou do ônibus e, enquanto caminhava, surpreendia-se com o enorme clarão. Em estado de choque, não sabia o que pensar. Lembra ter visto o fogo aumentar em minutos, as labaredas altas e as pessoas gritando. Correu pelos acessos de madeira em cima da água e começou a chamar as pessoas. Nesse momento, o fogo avançava muito rápido, afirma. “O fogo era voraz, as chamas seguiam

em direção ao céu numa altura que nunca vi antes. Parecia o dia do juízo final. Fico imaginando o sofrimento das pessoas que tentaram escapar. Éramos só nós e Deus, não havia como chegar no meu barraco”. O coração de Josenildo permanece apertado até hoje, quando lembra de seu sobrinho. “Cheguei a ir na escola onde estudava e fui informado que nesse dia ele havia saído mais cedo. Estava com dor de dente, só isso que sei sobre Toninho. Só restou a lembrança”.

7


Dezembro/2016

Especial Vila Socó

Os sonhos de quem viveu na Vila Socó

Isabel Franson

Q

SOBREVIVENTES

ual é meu maior sonho? Ah... Acabar com o tráfico aqui. Se resolvesse isso... Acho que já seria bom, né?”, conta Edinaldo, mais conhecido como Dinho da Vila São José. Ele tinha sete anos quando o bairro onde nasceu e se criou, em Cubatão, foi consumido em chamas. Edinaldo representa hoje a legião dos sobreviventes da fatalidade. Perguntado sobre os sonhos, para ele, para os filhos e para o bairro, diz não querer muito. Apenas que ele

8

Gabriel Chiconi

F

azia frio em Cubatão naquela manhã. Os moradores da Vila São José estavam entrincheirados em suas casas, vendo tevê, fazendo as tarefas de casa ou dormindo. Os poucos que passavam pelas ruas e bares vestiam moletons pesados e calças. Chovia de leve, e algumas mulheres levavam guarda-chuvas. Não se via crianças nas ruas. O dia estava calmo. As casas de tijolos à vista, algumas construções inacabadas, um puxadinho aqui e ali. Uma descida de ladeira com

e todos os moradores de bem tenham a tranquilidade de andar na rua sem ter de lidar frequentemente com o tráfico. Esse é todo o luxo que ele deseja. Na verdade, parece que a ex-Vila Socó, atual Vila São José, é um local esquecido. Parado no tempo. Nas cinzas de 34 anos atrás. Flávio José da Silva, 41 anos, é soldador. Era muito pequeno na época, mas lembra de um clarão causado pelas chamas. “Era noite, mas o céu estava amarelo como o sol. Dava para escutar o zumbido do fogo”. Para ele,

a prioridade da Vila é uma escola de curso profissionalizante. “Esse seria o verdadeiro caminho para reverter a situação que a gente vive. Poder dar um futuro. Meu sonho é um futuro melhor para todos nós”. Andando pelo bairro, é possível perceber que essas pessoas não precisam de bens materiais para ser feliz. Querem condições para ir e vir. Ruas asfaltadas, mato baixo, correção das enchentes. Nada disso, afinal, é exigir muito. Se eles tem sonhos, cabe a quem realiza-los? Prefeitura? Petrobras?

Enquanto a resposta endo, sendo eles mesnão vem, os mora- mos os patrocinadores dores da Vila vão viv- das próprias vontades.

carros estacionados, em sua maioria sujos, apresentava uma visão de parte do que foi construído sobre as cinzas de outra Vila. Enquanto isso, o sol era forte em São Paulo. A campanha eleitoral tinha terminado naquela semana, pela primeira vez sem segundo turno. A professora Izabela Matos comemorava a derrota do prefeito Fernando Haddad, mas não parecia conhecer o eleito. “Eu dirijo pra lá e pra cá o tempo todo,” explica a cubatense. “Cinquenta por hora na Marginal é muito pouco. Irrita,” diz, referindo-se à redução

do limite de velocidade nas Marginais na capital paulista, sancionada durante a administração de Haddad. Uma das maiores promessas de João Doria, prefeito a partir de 2017, é a de retomar a antiga velocidade de 70km/h na pista local e de 90km/h na pista expressa. “Eu trabalho lá na ZN,” continuou, “são 22 quilômetros todo dia pra dar aula”. Izabela, que prefere ser chamada de Iza, fica entre duas e três horas no trânsito todo dia. Para sua sorte, tem dois turnos na mesma escola, e seu filho, Marcelo, de 9 anos, estuda ali mesmo.

Iza tem 37 anos e é divorciada. Ela morava na Vila Socó quando o terrível acidente aconteceu em 1984, mas não estava em casa. A pequena Iza, de apenas 5 anos à época, estava na casa da tia, em São Paulo. “Eu lembro das notícias na TV, mas não sei se eu vi no mesmo dia. Só sei que eu nunca mais voltei. Fiquei com a tia Lene.” Após o incêndio, tudo que Iza tinha foi destruído — inclusive sua família. Ela permaneceu na capital, e teve que usar roupas emprestadas do seu primo por quase um ano. “Não tínhamos muito di-

ISABEL FRANSON

Flávio e Edinaldo sonham com uma Vila melhor

A desertora

Moradores acusados de estocar gasolina Silvania Souza

I

números são os questionamentos envolvendo o incêndio de Vila Socó. Muitos culpam a Petrobras, que assumiu oficialmente a responsabilidade. Mas há quem diga que a empresa não é a única culpada nessa história e que alguns moradores teriam participação no incêndio. Eles teriam desviado gasolina dos oleodutos da refinaria para consumo e venda, já que a vila estava situada às margens da Rodovia Anchieta. Nas ruas onde foi a Vila Socó, hoje Vila São José, essa história de gasolina armazenada no barracos é

bem conhecida. Renato dos Santos, 62 anos, confirma escutar até hoje a história sobre moradores que retiravam gasolina dos dutos. O senhor nordestino, que mora no bairro desde antes do incêndio e perdeu seu barraco na tragédia, afirma que, apesar de escutar essas “conversas”, não pode confirmá-las, pois, nunca viu, qualquer vizinho praticando tais atos.” Não posso falar o que não vi.” Como seu Renato, outros moradores, evitam confirmações sobre o caso. O constrangimento é claro, quando se fala sobre o assunto.

Jivaldo Souza Nascimento, de 52 anos, que na época do ocorrido tinha 19, diz sempre ter escutado boatos de que moradores guardavam gasolina em casa, mas não pode afirmar com certeza, pois nunca viu nada; apenas escutou boatos sobre a história. Ao contrário de Renato e Jivaldo, existem moradores que afirmam com convicção que o desvio de gasolina existiu e que todos sabiam, mas que as pessoas tem medo comentar o caso. Um exemplo é o caminhoneiro Davi da Silva, de 38 anos, sobrevivente do incêndio. Segundo ele, era

nheiro em Cubatão, não tínhamos muito dinheiro em São Paulo. Mudou pouco, mas eu tive que viver de favor boa parte da minha infância,” diz. Hoje, Iza tem casa própria, fruto de seu trabalho junto com o ex-marido, que é advogado. Mora com o filho na Zona Sul de São Paulo, em Santo Amaro. “Subi muito na vida, gosto de pensar que comecei do zero,” comenta. “Mas eu sei que nem todo mundo teve essa sorte. A maioria das pessoas morreu queimada, e quem não morreu, continuou pobre. Perdi o contato de todo mundo.” REPRODUÇÃO DA INTERNET

Sobreviventes do incêndio choram por mortos

comum algumas pessoas da Vila Soco retirarem gasolina do oleoduto da Refinaria Presidente Bernardes. Essas pessoas chegaram a perfurar as instalações para retirar o líquido. Essa prática acontecia há algum

tempo e não foi algo praticado apenas nas vésperas do incêndio.” Tinha gente fazendo a casa de posto de gasolina”, garante Davi. Para o caminhoneiro, Vila Socó era uma tragédia anunciada. E os riscos conhecidos por todos.


Especial Vila Socó

Eliana Greco

S

ábado. Carnaval. Verão apesar da chuva. Tudo para ser uma noite linda em Cubatão. Meu plantão na Telesp - Telecomunicação de São Paulo S/A acabara de encerrar. Eu era telefonista no posto a 3km da Vila Socó. Faltavam poucos minutos para às 23h30. Peguei o ônibus para meu bairro, Jardim Casqueiro, que passava em frente à Vila Socó. Estava sentada do lado direito, como era de praxe, quando visualizei as palafitas mergulhadas na água da maré, que naquele dia estava cheia. Mesmo nesse horário, a Vila Socó ainda estava movimentada, afinal, era grande o número de moradores naquele local. Até hoje não sei se foi intuição, premonição, mas, quando olhei em direção aos barracos, colados um ao lado do outro, e às pontes de madeira, interligadas como ruas, pensei: “como alguém pode viver assim? Será que o governo poderia fazer algo para impedir isso? É desumano”. Para mim, era comum esse trajeto, mas nessa noite especificamente algo no ar parecia diferente. Meu olhar buscava detalhes, como se fosse a última vez a ter contato com aquela triste paisagem. Morava com os meus avôs e minha mãe e só fiquei sabendo no

Dezembro/2016

dia seguinte que a Vila Socó havia praticamente chegado ao fim. Mas foi na hora de trabalhar ( entrava às 12 h do domingo) é que me dei conta da dimensão da tragédia que envolveu a nossa cidade. Apesar de o motorista do ônibus avisar o novo trajeto, pela Via Anchieta, devido ao incêndio, foi possível acompanhar o drama Meus olhos buscavam “algo” que já não estava mais lá. “A vila sumiu”, caí na realidade. Poucas palafitas ainda erguidas, fumaça, cheiro forte da tragédia no ar. Chorei. Era o que me restava. Esse dia e os outros, durante meses, foram difíceis de esquecer. A maior parte dos moradores da vila, recordo-me bem, era formada por nordestinos atraídos pelas possibilidades de trabalho no complexo industrial de Cubatão. Estavam ali para ganhar a vida, literalmente falando. Sentimento de impotência, saudades, foi tudo que escutei por muitos dias. Nos telefonemas feitos de Cubatão para cidades do Nordeste e região, nos quais eram narrados detalhes do incêndio para parentes e amigos. A fila aos domingos costumava ser grande na Telesp. Naquele domingo especificamente, “claro!”, foi bem maior. As ligações na época eram completadas pelas telefonistas de Santos. Eu, então, chamava um a um

pelos nomes na fila. Era comum o choro, até mesmo os gritos de desespero. “Mãe, eles morreram todos, a casa derreteu, não encontramos os corpos, não tem mais nada lá... “ Araripe, Juazeiro, Carpina, Teresina, Cajueiro, Brejo Santo, uma ligação em seguida da outra. Ao ouvir histórias, me dei conta do êxodo prestes a ocorrer: todos prometiam voltar para suas cidades de origem, com medo, desapontados, descrentes com as autoridades locais. “Disseram para a gente que as oportunidades de trabalho e a vida eram bem melhores aqui”, mas... Até hoje, fica no ar o que realmente aconteceu. Restaram as explicações frias das autoridades e os relatos tristes dos moradores sobreviventes. O que os meus olhos viram e o que eu ouvi nem fotos, nem a TV, puderam mostrar, afinal eu estava lá.

Meus olhos buscavam “algo” que já não estava mais lá. A Vila Socó sumiu, caí na realidade.

Dias antes do incêncio em Cubatão

Na Telesp onde foram atendidas as ligações dos parentes, onde atendi um a um

Exemplar jornalístico da época, produzido pelo jornal de Santos, onde cobriram cada detalhe da trágedia e hoje permanece no setor de pesquisa

Hoje faço jornalismo e não trabalho mais na empresa, no entanto, ela continua ligada


Dezembro/2016

Especial Vila Socó

Ex-funcionários do João Ramalho relembram tragédia

CONSEQUÊNCIAS

psicológicas e físicas do incèndio

MARIANA SIMÕES

10

Fachada da UME João Ramalho, atualmente, na nova Vila São José. Não foi possível encontrar fotos da época do incêndio

Mariana simões e Nathália Affonso

D

esolação, tristeza e medo, combinados com solidariedade, cooperação e ternura. Esses eram os sentimentos que os funcionários do colégio João Ramalho vivenciaram após a tragédia da Vila Socó, em Cubatão. Por conta da comoção geral, que é lembrada até hoje, o diretor e coordenadores pedagógicos elaboraram planos de orientação aos alunos e familiares, juntamente com um acompanhamento psicológico, para minimizar os traumas do incêndio e tentar amenizar essas marcas dolorosas. A professora Clarice Zannin, 67 anos, recorda que uma psicóloga e uma orientadora educacional ouviam os alunos que precisassem de um atendimento mais aprofundado, quando as educadoras encontrassem um problema maior em alguém da turma. Além dos alunos, muitos funcionários ficaram marcados por estarem presentes no dia fatídico. A dor do inspetor de alunos no ano da tragédia, Airton Batista dos Santos, 51 anos, ilustra a de quem morava na Vila e sobre-

viveu. Sua família foi uma das pioneiras na formação da Vila Socó. Como era morador do bairro, ele também tem marcado os minutos anteriores ao incêndio, quando um policial percorria as palafitas próximas ao vazamento de combustível, pedindo para que as pessoas abandonassem suas casas, na tentativa de sobrevivência. Ele perdeu muitos amigos e nunca esquecerá dos momentos de terror vividos pelo fogo. “Estava em casa no exato momento do incêndio. Peguei meus dois irmãos mais novos, um em cada braço, e saÍ correndo desesperadamente em direção ao Bairro Vila Nova”, relembra. Outra marca que o desastre deixou foi a cena de um homem e sua mulher, ambos mortos no ocorrido. “Me lembro de um colega, cuja esposa, dias antes, tinha ganhado bebê de cesariana. Após o incêndio, passei no local onde ambos moravam e vi seus corpos juntos, carbonizados, na palafita. Acredito que ele teve dificuldade por sua esposa estar operada, com problemas para se locomover”, conta. A professora Denise da Silva Martins da Quinta, 54 anos, diz

que o momento que a marcou no incêndio ocorreu dentro do Centro Esportivo de Cubatão, que serviu por duas semanas de abrigo para as famílias afetadas pelo fogo. “No primeiro dia que trabalhei no Centro Esportivo, um pai com um bebê no colo procurava por sua mulher que, na hora do incêndio, estava correndo atrás dele”, relata a professora, que não conseguiu saber o resultado deste drama familiar. Tristeza Os dias seguintes na escola trazem traumas por um motivo diferente para a professora Lucia Aparecida Migliorini Correia, 68 anos, que lecionava na primeira série. A perda de dois alunos foi o que mais a marcou sobre a tragédia. Ela conta que a morte de Nelson e Aidê “foi muito triste. Até hoje recordo com muita clareza. Senti muito, pois sempre tive grande carinho e amor pelas crianças”. Airton conta que o clima após o retorno das aulas era muito pesado. Todos ficaram transtornados com o que tinha acontecido dias antes. O incêndio mexeu com a parte emocional dos moradores, fun-

cionários da escola e alunos. Por isso, essa tristeza precisou ser trabalhada cuidadosamente pelos educadores. O luto da tragédia era levado para as salas de aula. Lucia comenta que seus alunos conversavam sobre o ocorrido “com muita tristeza, num tom de grande mágoa e sofrimento”, principalmente pela lembrança permanente dos dois colegas que haviam falecido no incêndio. Lucia também guarda lembranças tristes do incêndio. “O sofrimento das pessoas foi muito grande. Todos os que aqui viviam nessa época foram atingidos de uma forma ou de outra”, lamenta. A rotina escolar Apesar da angústia trazida por suas próprias memórias, os funcionários precisavam ser fortes para ajudar seus alunos. Durante as aulas, as professoras tentavam distrair as crianças de tamanha tristeza, sendo solidárias, cooperantes e ternas.Denise lembra que as atividades escolares seguintes ao incêndio foram mais leves e recreativas, uma espécie de reencontro e recomeço, para tentar acalmar e deixar as crianças menos assus-

tadas, desoladas e triste com o ocorrido. Atuamente, a Vila está totalmente revitalizada. Crianças brincam pelas ruas, algumas delas sem ter a mínima ideia do que aconteceu. Para que elas nunca presenciem o sofrimento vivido pelos antigos moradores, a Escola Municipal D. Pedro I, outra intituição de ensino do bairro, procura instruir os alunos, do quinto ao nono ano, sobre como proceder em caso de um novo incêndio, quais são as possíveis causas, como eviatar que isso aconteça e se certifica que os alunos saibam os números de telefone necessários para algum tipo de emergência. Bruna Gonçalves, estudante do sétimo ano, diz que acha a iniciativa importante. “Minha avó e meu pai estavam aqui quando o incêndio aconteceu. Eles perderam a casa, mas mesmo assim quiseram voltar e me criar aqui. A gente não quer que isso aconteça de novo, então a escola falar pra gente como evitar tudo isso, é muito bom”. No entanto, a garota não acha que isso é suficiente. Ela conta que os bombeiros só aparecem na escola uma vez ao ano.


Dezembro/2016

Especial Vila Socó

Thayná Soares

A

recuperação de um trauma é cercada de desafios. A resposta da Petrobrás ao acidente na Vila Socó foi indenizar os sobreviventes do incêndio. Porém, nem mesmo a grande imprensa chegou a tocar no lado psicológico do ocorrido. Segundo a psicóloga Greicy Savoy, do Espaço Compartilhar, em Santos (SP), o acompanhamento feito por profissionais da área teria de começar logo após o acontecimento, já que adiar o tratamento pode resultar em graves distúrbios futuros, como a ansiedade generalizada e a depressão. “Daí vem o medo de tudo, a síndrome do pânico, exatamente por ter sido

um evento que aconteceu do nada. A pessoa vive pensando que a qualquer momento isso possa acontecer novamente”, explica. Outras consequências comuns são fobias que se desenvolvem ao longo dos anos, como a claustrofobia e o medo de altura. Andar de avião, por exemplo, se torna um desafio para a vítima por ser um ambiente fechado e sem meios de evacuação, enquanto não passa de algo comum na vida de outras pessoas. Além disso, acarreta-se o TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo), que serve como “escapatória” para que a pessoa não fique remoendo os acontecimentos traumáticos, distraindo-se com rituais repetitivos como arrumar a casa ou até

mesmo tomar banho constantemente. Greicy fala também que o pessimismo é a mais comum das sequelas que afetam a mente: “O indivíduo vai fugir de situações novas por achar que vai dar tudo errado”. O simples evento de bater o carro ou de sofrer um assalto se torna algo extremamente desconfortável para um indivíduo ansioso e/ou com problemas de pânico. O aconselhável é fazer sempre um acompanhamento logo após um grande trauma. Assim, evita-se correr o risco de adquirir outras desordens mentais. Crianças não tratadas podem se tornar adultos inseguros, com síndromes do pânico, TOC e ansiedade, variando apenas de acordo com a “vul-

mental” dar depoimentos, nem participar de curtas entrevistas sobre o incidente. “Talvez por falta Tratamento Segundo Greicy, o de tratamento ou por tratamento ideal para alta sensibilidade ao vítimas de incêndio vasculhar lembranças”, passa por se traba- diz Greicy. “Remoer é lhar as habilidades reviver, coisa que nem emocionais (resiliên- todos têm condições cia, capacidade de psicológicas de fazer”. passar por situações Pessoas que foram difíceis e continuar a melhor trabalhadas a vida). Conversas so- esse respeito falam bre o ocorrido que ele com mais naturalidade. não deve ser consideMas a psicóloga deirado como regra (não xa claro sempre haver é sempre que coisas tempo para o trataruins vão acontecer), mento. Segundo ela, também são funda- qualquer demora na mentais. Ensina-se procura por um método também a saber o que especializado não exé viável de medo é o clui seus benefícios. “A que é fruto da ima- dificuldade em ser proginação, completa a priamente tratado não psicóloga. aumenta com o passar Mesmo depois de to- dos anos, mas as expedos esses anos, alguns riências vividas com a moradores e ex-mo- presença de tais desorradores da Vila Socó dens podem acarretar ainda não conseguem em novos problemas”. nerabilidade de cada um.

Riscos e sequelas da exposição à fumaça Diego Kassai

E

m grandes incêndios, como o da tragédia na Vila Socó, é comum as pessoas relacionarem as mortes com queimaduras ou ferimentos causados pelo fogo. Contudo, a maior parte dos óbitos acontece devido à inalação da fumaça que as chamas causam. Acidentes como o de Cubatão, por exemplo, em que há o vazamento de diversas substâncias e produtos químicos, misturados com a fumaça, podem causar estragos ainda maiores para o organismo da pessoa que é ex-

posta a isso. Segundo o médico Pedro Pinheiro, que administra o site ‘MD. Saúde’, cerca de 80% dos óbitos em incêndios são causadas pela inalação de vapores e produtos químicos. A fumaça pode causar morte de três formas: pelo dano causado às vias respiratórias devido ao calor do ar respirado, asfixia devido à falta de oxigênio e danos à árvore pulmonar causadas pelas substâncias químicas inaladas. São poucos os casos de vítimas de incêndio que sofreram algum tipo de sequela (no que se diz respei-

CONSEQUÊNCIAS

Trabalhar traumas deve ser prioridade após vivenciar acidentes

REPRODUÇÃO

Fumaça tóxica incêndios pode causar sérios danos ao sistema respiratório

to à exposição de fumaça) a longo prazo, desde que o socorro e tratamento tenham ocorrido com rapidez. Contudo, danos às cordas vocais ou dificuldades respiratórias são comuns durantes os primeiros dias após esse tipo de acidente. Pessoas que não recebem tratamento adequado correm o risco de apresentar proble-

mas sérios, como hipoxemia (insuficiência de oxigênio no sangue), que por sua vez podem causar problemas neurológicos graves. Vanderlei Machado, morador da Vila Socó, conta que alguns de seus parentes apresentaram algumas dificuldades nos primeiros dias após o incêndio. “Meu tio ficou sem voz durante uns três dias,

e minha tia não conseguiu respirar por um bom tempo. Foi assustador”, conta. Vanderlei, que ainda reside na Vila, não perdeu parentes no acidente, mas guarda péssimas lembranças do ocorrido. Durante a reportagem, não foram encontradas pessoas que tiveram sequelas graves por conta do incêndio.

Em caso de acidentes, contate o Corpo de Bombeiros

DISQUE 193

11


Especial Vila Socó

Dezembro/2016

“Hoje seria possível salvar mais vidas”, diz bombeiro psicológicas e físicas do incèndio

Larissa Arruda

N

a época, cerca de 200 bombeiros de Santos comandados pelo ex-tenente-coronel Nilauril Pereira da Silva, lutaram desesperadamente para minimizar a tragédia de Vila Socó e, conseguiram em parte. Isolaram um trecho do núcleo residencial e impediram que a destruição fosse total. Mesmo assim,

o que aconteceu é apontado como o maior incêndio do país. A operação de socorro envolveu equipe de bombeiros de toda a Baixada, Santo André, São Bernardo do Campo e São Paulo, além de ambulâncias, polícias civil, Militar e Rodoviária, incluindo soldados do antigo 2º Batalhão de Caçadores. Anos após o incêndio, muitas per-

guntas ainda são feitas, como caso ocorresse um incêndio nos dias de hoje a equipe de bombeiros estaria bem mais preparada. Se o que faltou na época, ainda falta hoje, e se fosse possível contornar a situação, o número de mortos seria menor. O Cabo Sandro Pereira, do Corpo de Bombeiros, contou que enquanto não chegou ao local, não tinha ideia da dimensão do in-

cêndio, e que viu muita tristeza naquele dia em Vila Socó. “Os moradores nos procuravam para irmos até os barracos, e quando chegávamos até lá, encontrávamos mulheres, crianças, bebês, todos carbonizados. Foi muito triste”, lembra. Segundo ele, a equipe de bombeiros não estava tão capacitada quanto nos dias de hoje. Por mais que o comando e a ação du-

rante a tragédia tenha sido eficaz, as máquinas e os equipamentos atuais são tecnológicos e rápidos. Para ele, seria possível salvar mais vidas, mesmo sabendo que todos fizeram o seu melhor naquela noite. “Acredito que nos faltou uma maior preparação, pois não sabíamos o quão grande era o incêndio e o que nos aguardava na Vila Socó”, conclui

Incêndio tornou dutos mais seguros

CONSEQUÊNCIAS

HENRIQUE GUEDES

12

Placa indicando onde passam as tubulações das indústrias, na Vila São José, em Cubatão

Isabela Ribeiro e Henrique Guedes

A

tubulação da Refinaria Presidente Bernardes, pertencente à Petrobras, passava em região alagadiça, em frente à vila constituída por palafitas. Na noite do dia 24, um operador alinhou inadequadamente e iniciou a transferência de gasolina para uma tubulação (falha operacional) que se encontrava fechada, gerando sob pressão e ruptura, jorrando-se cerca de 700 mil litros de gasolina pelo mangue. Com a movimentação das marés, o produto inflamável espalhou-se pela região alagada e cerca de duas horas após o vazamento, aconteceu a ignição seguida de incêndio. O fogo se alastrou por toda a área alagadiça su-

perficialmente coberta pela gasolina, incendiando as palafitas. Segundo o site Campo Grande, um dos jornais da época publicaram que segundo testemunhas, houve excesso de burocracia dos funcionários quando denunciaram o vazamento. Eles contaram que, ao tomar conhecimento dos fatos, a refinaria acionou primeiro o engenheiro para fazer a avaliação, cabendo a ele definir a necessidade de chamar o Corpo de Bombeiros. A refinaria assumiu a responsabilidade do acidente, mas afirmou que, quando instaladas as tubulações, não havia moradia no local, de acordo com relatos encontrados nas matérias da época. Desde então, o papel da Inspeção de equipamentos passou a ser mais importante e exigente.

Se a Petrobras tivesse adotado, desde 1984, tecnologia então disponível no exterior, vazamentos de dutos seguidos de incêndios como o ocorrido na Vila Socó, em Cubatão, dificilmente aconteceriam. A conclusão é de técnicos da Petrobras, como foi veiculado na imprensa na época, com apoio do Centro de Pesquisas e Desenvolvimento Leopoldo Américo Miguez de Mello (Cenpes). Para a maioria dos analistas da empresa, como Alfredo Motta Vidal, o incêndio da vila foi um marco. “Se exigiu rever toda a segurança de dutos antigos, como o que passava pelo local, que estava corroído e por isso se rompeu pela pressão do bombeamento do combustível”. No aspecto de segurança, o episódio da Vila Socó repre-

sentou o início de uma “mudança cultural” na forma de operar os dutos no País. Começou pela criação de um Centro de Controle Operacional, no Rio de Janeiro, segundo o engenheiro Marcelino Guedes Gomes, gerente de Novos Negócios da Transpetro (empresa de transporte do sistema Petrobras). “Após o acidente, começamos a automatizar os nossos dutos”, afirma. Antes do incêndio, o procedimento de controle nas tubulações envolvia basicamente dois operadores, posicionados em cada uma das pontas do duto, que se revezavam constantemente e se comunicavam por telefone para trocar informações operacionais. “O sistema é simples. Se o tivéssemos naquela época, poderíamos ter tido uma intervenção mais

rápida”, diz Guedes. Centralizado no Rio de Janeiro, o sistema atual é capaz, segundo ele, de detectar vazamentos em tubulações da Petrobras em qualquer ponto de rede do país. Em 2014, 30 anos depois, uma Comissão da Verdade da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB de Cubatão) quis levar o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos, tentando responsabilizar o Estado pelo abafamento do caso e por acobertar o número de mortos. Segundo Dojival Vieira, que era vereador de cubatão quando aconteceu o incêndio, a catástrofe aconteceu por diversos fatores, mas o acobertamento das informações tinha como objetivo reduzir o impacto da tragédia sobre a Petrobrás, de acordo com a Agência Brasil.


Dezembro/2016

Especial Vila Socó

Andressa Aricieri

O

quando andava na rua, assim como Itália. Com a pele renovada, não ficaram muitas marcas físicas de onde se queimou, mas lembra “como se fosse ontem”. A dermatologista Juliana Fonte explica que as pessoas que sofrem queima-

duras podem ter limitações no seu dia a dia por causa da extensão da ferida e o quanto venha a comprometer a sua mobilidade. “Podem ser necessários antibióticos, se o local infeccionar, analgésicos para dor e enxerto, no caso

de a pessoa ter perdido aquela pele”. A Vila Socó já mudou de nome para Vila São José e alguns sobreviventes nem moram mais no local. Eles querem esquecer tudo o que aconteceu, mas têm de conviver com memórias que nunca se apagarão. Andressa Aricieri

Marcas do acidente acompanham as vítimas até os dias de hoje

Hoje, os médicos estão mais preparados, diz Dr. Ambrósio

Alex Ilek

P

assado mais de 30 anos, médico conta sobre incêndio da Vila Socó “Nós atendemos às vítimas que foram levadas até a Santa Casa de Santos. Muita confusão e tumulto“. Ele conta ter sido

difícil manter o controle emocional por conta de toda a situação. “Eram muitas pessoas feridas, algumas que chegaram a falecer no local, mas somos treinados para qualquer incidente e encaramos com relativa normalidade.” Já comparando

épocas, D’Ambrosio admite que a tecnologia avançou em uma velocidade notável nos últimos 30 anos, e a área médica se desenvolveu junto com esse processo. Novos equipamentos, novas formas de cura, novos remédios. Tudo isso, segundo ele, vai

encaminhando para menos erros e mais excelência nos tratamentos. Se o acidente ocorresse hoje, os médicos, com o auxílio da tecnologia estariam mais preparados para o tratamento de cura. A Santa Casa conta atualmente com duas câmaras hiber-

báricas e disponibilidade para atender 16 pacientes (dividindo-se entre homens, mulheres e crianças). “É evidente que a tecnologia avançou, se a tragédia ocorresse hoje, estaríamos mais preparados, somos mais experientes” Explicou D’Ambrosio

como foi naquela noite e na sequência

s sobreviventes hoje vivem com marcas psicológicas e físicas. Itália de Melo é alguém que mora com o passado, por mais que o queira esquecer. “Eu caí e quebrei a minha mão esquerda, enquanto meu braço direito pegava fogo”. Ela conta que usou blusa de malha por três meses e as pessoas passavam olhando de um “jeito estranho”. Ela se sentia envergonhada por ter que sair na rua “daquele modo” Fez fisioterapia para ajudar a recuperar os movimentos da mão que atrofiou e duas cirurgias nos dedos que colaram uns nos outros. Atualmente, com 80 anos, tem muitas marcas físicas das queimaduras e não se incomoda mais como que as outras

pessoas pensam. Está sempre andando por São Paulo, cidade que mora atualmente. Pedro Vitor, outro sobrevivente, conta que toda a pele de seu peito caiu, levando um pedaço da do rosto. Também sentiu muitos olhares estranhos

QUEIMADOS

Sobreviventes ainda moram com o passado

REPRODUÇÃO

Falando um pouco sobre aquela noite, o médico tem dúvidas, sobre se algo mais poderia ter sido feito. “Não sei se poderíamos ter salvado mais vidas, talvez sim. Mas sei que dei o meu melhor. Acabo nos envolvendo emocionalmente, principalmente ao ver uma mãe, um pai, chorando, como ocorreu naquela noite. Imagens de pessoas feridas e de toda a turbulência da noite”.

A Câmara Hiberbárica, entre outras inúmeras indicações, é usada nos tratamentos de queimaduras térmicas e elétricas

¹Preparador de corpos para velórios: arruma cabelo, corrige a coloração da pele, disfarça machucados, reconstrói

13


Dezembro/2016

Especial Vila Socó

Nem sempre com o tempo se aprende

Isabella Chiaradia

QUEIMADOS

N

14

em sempre “com o tempo a gente aprende”. Cubatão não cuidou dos próprios feridos na tragédia da Vila Socó e, depois de 32 anos, ainda não pode cuidar da sua população. De acordo com o Ministério da Saúde, o único hospital em toda a Baixada Santista que recebe habilitação de alta complexidade no tratamento para cirurgia plástica especializada em atender queimados é a Irmandade da Santa Casa de Santos. A Santa Casa de Santos foi, e ainda é, o centro de referência no tratamento para cirurgia plástica na Baixada Santista. Entretanto, o Dr. Sylvio Corrêa, chefe da ala de queimados e cirurgião plástico que atuou no atendimento às vítimas da tragédia em 1984, afirma que nessa época existiam mais condições e recursos para atender aos feridos do que se tem hoje, pois antes, a ala era mantida pela Petrobras. Para o médico, hoje em dia, o Setor de Queimados jamais poderia atender a tantos pacientes respectivamente. O cenário deixa claro haver insuficiência no número de resguardo e especialização em queimaduras, já que apenas um hospital em toda região é capaz de socorrer vítimas queimadas em estado gra-

víssimo. No Brasil, onde prevalece a fonte energética com inflamáveis, os acidentes ocorrem quase todos os anos, provocando tragédias. Portanto, “os hospitais devem ter um plano emergencial para atuar nesse tipo de desastre, pois receberão inúmeros acidentados simultaneamente”, alerta o médico. No entanto, não só os hospitais que precisam estar atentos. Mas também as autoridades públicas como a Defesa Civil e a Prefeitura das regiões, que devem agir em conjunto para o bem social. Contudo, quando questionadas sobre a existência de um plano de ação, em virtude dos desastres de grandes proporções, as autoridades não quiseram se manifestar. Mesmo assim, “ainda hoje ocorrem muitos casos de acidentes em outras cidades cujas as vítimas são trazidas para a Santa Casa de Santos. O caso mais recente foi do vazamento de gás no Guarujá, noticiado como ‘fumaça tóxica’, no qual as vítimas vieram para o nosso hospital, por conta do suporte oferecido”, segundo Agrício Ferreira Júnior, assistente administrativo da Diretoria clínica da Santa Casa. Na época, segundo Carlos Pimentel, editor do jornal Novo Milênio, outros hospitais ajudaram na mobilização das

vítimas com ferimentos leves; algumas foram até mesmo medicadas no próprio local. Os hospitais Oswaldo Cruz em Cubatão, Santa Casa de Cubatão e Beneficência Portuguesa em Santos chegaram a receber feridos, porém, todos aqueles que apresentavam estado grave eram transferidos imediatamente para a Santa Casa de Santos. Mortes e relatos O chefe do Instituto Médico Legal (IML), Carlos Affonso Novaes de Figueiredo, já falecido, chegou ao local da tragédia, com toda a sua equipe, por volta das 5h30 da manhã do dia 25, com o objetivo de liberar mais rapidamente os corpos calcinados para sepultamento. Nesse momento, eram 64 corpos, em sua maioria mulheres, sendo sete considerados reconhecíveis, conforme os registros da ata médica feita pelos legistas que operaram na análise dos corpos e resgatada pela Comissão da Verdade (leia matéria na página 3) No mesmo documento, destaca-se que, em virtude da elevada dimensão atingida pelo incêndio, a maioria dos cadáveres encontrados estava totalmente carbonizados, tornando impossível uma identificação com absoluta certeza. No laudo do IML, há

informações colhidas pelos legistas, junto ao forno crematório de Vila Alpina, em São Paulo, que para incineração total utilizam-se três minutos a 800 graus centigrados; a seguir, a temperatura é elevada para mil graus, durante 30 segundos, quando toda a matéria orgânica é reduzida a cinzas. A temperatura do incêndio na Vila Socó ultrapassou mil graus, em tempo mais prolongado ainda. A ata do IML destaca também que não havia qualquer corpo localizado de criança com menos de presumíveis sete anos de idade. Conforme o médico Sylvio Corrêa, a matéria das crianças por serem mais frageis e menores são queimadas mais facilmente. O médico ainda garante que a maioria dos feridos estava em estado gravíssimo, com queimaduras de 3°grau em até 100% do corpo (50% já representam grande perigo de vida). A tragédia resultou em um número muito maior de mortos que de feridos. Correa disse ainda, que chegaram cerca de 40 pacientes, sendo aproximadamente 18 os que foram submetidos a cirurgia, e três desses não sobreviveram. O tratamento foi feito com o revestimento de 20 metros de pele sintética doado pela empresa Lamedid, conforme o médico e a atual responsável técni-

ca da empresa, Luciana Lanzillo. Nos relatórios legistas, relata-se mais de 100 pessoas com queimaduras leves, que teriam passado pelo Pronto-Socorro Central de Cubatão, atendidas e depois dispensadas, sem registro. Em estado grave ou gravíssimo, nas primeiras horas do dia 25 de fevereiro, foram internadas na Santa Casa de Santos 27 vítimas, das quais dez faleceram. Atualmente, nos inúmeros, corredores da Santa Casa de Santos, há poucas lembrança do caso. As exceções ficam por conta da memória de Sylvio Corrêa, que se recorda do tumulto, causado pelo um grande número de curiosos que teve de ser afastados do Setor de Queimados, e do porteiro, José Barreto, que trabalha no local há 41 anos. Ele define toda a situação com uma só palavra: desespero. Boa parte dos que trabalham no hospital, não sabem e nem nunca ouviram falar do fato. Inclusive, na Diretoria Clinica não há mais dados desse histórico momento. O motivo para não haver informações e documentos seria o descarte de históricos que ocorre de 20 em 20 anos pela Diretoria. Um descarte como se o drama vivido na Vila Socó não pudesse se repetir no futuro.

Assistente social lembra de bebê no berço com a mamadeira na mão. Carbonizados Paola Bossan

M

ilhares de pessoas ficaram desabrigadas após o incêndio. O socorro prestado pela assistência social da Prefeitura foi imediato, e o trabalho realizado em conjunto com as equipes de resgate foi essencial para que as vítimas tivessem um local seguro para ir após a tragédia. A avaliação é da assistente social Edileusa Borel Dias Moreira, contratada pela Prefeitura Municipal de Cubatão como estagiária para fazer parte da equipe de auxílio às vítimas. “Eu me lembro dos corpos sendo

retirados carbonizados. Foi um choque muito grande, pois era meu primeiro trabalho. Foi muito marcante. Seria marcante para qualquer um. Chegar ali e ver aqueles corpos, impossíveis de serem identificados, parecendo troncos de árvores de tão pequenos”. O trabalho da assistência social começou com o direcionamento das vítimas. As que tinham para onde ir foram enviadas para a casa de parentes; as que não tinham, para abrigos temporários como o Centro Esportivo de Cubatão e a ala dos solteiros da Vila Light, pertencente à EMAE (Empresa Me-

tropolitana de Águas e Energia – antiga Eletropaulo). De acordo com Edileusa, foram recebidas muitas doações e ajuda de voluntários, e as equipes de atendimento eram formadas conforme as necessidades surgiam. Uma equipe ficou responsável por receber as doações e outra por fazer a triagem do que era recebido, para que tudo pudesse ser distribuído de acordo com a necessidade de cada abrigo. Durante os primeiros dias, até que tudo fosse organizado, as vítimas recebiam marmitex no horário das refeições. Depois, foram montadas

cozinhas nos abrigos e as doações de alimentos eram levadas até lá, para que as refeições pudessem ser preparadas. Os desabrigados permaneceram por um longo tempo nos abrigos, alguns por mais de um ano, e o acompanhamento da assistência social continuou, só terminando quando a última vítima recebeu uma nova casa, construída pela Petrobrás em parceria com o Governo do Estado. “O incêndio assustou a todos, porque foi nos dutos, e caso ele não tivesse sido contido, poderia ter explodido a cidade inteira. Eu cheguei a ver crianças carbonizadas

dentro do berço, uma inclusive com a mamadeira na mão... É uma situação que não se resolve nunca, são marcas – queimaduras – eternas”, lembra Edileusa. Atualmente, Cubatão tem um plano de emergência elaborado pela Defesa Civil em conjunto com a Prefeitura, que abrange desastres químicos e naturais. “Cubatão é uma área propensa a certos acidentes por causa da quantidade de indústrias e da Serra do Mar”, explica Edileusa. Simulações são feitas periodicamente para que possam ser testadas rotas alternativas para possíveis acidentes.


Dezembro/2016

Especial Vila Socó

Gabriel Pupo

O

tratamento de pacientes com queimaduras torna-se difícil por depender da do estado em que a vítima se encontra. Queimaduras causadas pelo sol, por exemplo, geralmente podem ser tratadas em casa. Já as lesões mais críticas necessitam de assistência médica imediata. Em incêndios graves, como o que ocorreu em Vila Socó, o tratamento se agrava por envolver vítimas de se-

gundo e terceiro graus. Naquela época não havia um tratamento específico que atendesse a pacientes com queimaduras. Atualmente, pessoas com esse tipo de lesão podem recorrer à Medicina Hiperbárica. As câmaras hiperbáricas disponíveis em Santos nos hospitais Irmandade da Santa Casa da Misericórdia e Sociedade Portuguesa de Beneficência, e também na Clínica Medicina Hiperbárica, além de servir para o tratamento de diversas

lesões, auxiliam pessoas que sofreram algum tipo de queimadura. Durante o procedimento, também chamado de oxigênioterapia hiperbárica (OHB), ocorre um aumento de 10 a 20 vezes na quantidade de oxigênio dissolvido nos tecidos, facilitando assim a cicatrização do ferimento. Para o médico Luiz Alberto Vieira Santos Junior, 62 anos, responsável pela Clínica Hiperbárica, a medicina hiperbárica funciona como um complemento para o tratamento

de queimaduras. “O método que utilizamos aqui na clínica serve como um complemento no tratamento médico, o paciente não pode interromper o uso de medicamentos, por exemplo.” Outra técnica utilizada para tratar os diversos tipos de lesões causadas por queimaduras é a carboxiterapia; o procedimento acontece com o uso do gás carbônico medicinal injetado na pele, estimulando efeitos fisiológicos e aumentando o fluxo sanguíneo, o que me-

lhora na cicatrização. De acordo com a fisioterapeuta Vanessa Fernandes (31), a carboxiterapia é um tratamento com diversos características na área da estética, e que também colabora para o tratamento de queimaduras. “A maior procura é para gordura localizada, mas a eficácia com queimadura é excelente. A carboxiterapia é uma técnica na qual se utiliza o gás no tecido transcutâneo, havendo melhora na qualidade da cicatriz, elasticidade e irregularidade da pele.

QUEIMADOS

Tecnologia ajuda no tratamento de queimados

Maior risco de morte não são as chamas, segundo bióloga Natália Lellis

C

ompreender que um dia a morte baterá na porta de todos coloca as pessoas em pé de igualdade e limite. Mas quando a causa é produto do fogo, como um incêndio, é comum a pergunta: será que existe a pior maneira para morrer? Não há um consenso entre profissionais da saúde, como, biólogos, legistas, ou até donos de funerárias, sobre qual a maneira menos desejável de deixar essa vida. Entretanto, há algumas pesquisas na internet, e até reportagem com ‘rankings’ sobre as mortes mais dolorosas. Em todas elas, morrer queimado recebe a maior pontuação. As queimaduras são responsáveis pela morte direta ou indireta de mais de 300 mil pessoas no mundo, e no Brasil, em média, 2,5 mil pessoas, anualmente, morrem queimadas. Ironicamente, em um incêndio, o maior risco de morte, não são as chamas, e sim os gases tóxicos. Segundo um estudo norueguês, de 1996, foi constatado que, de 286 vítimas mortais de incêndios, 75% morreram de envenenamento por monóxido de carbono, ou seja, a fumaça.

Epiderme

ILUSTRAÇÃO DE NATÁLIA LELLIS

A pele é o maior orgão no organisno humano, representando mais de 16% de seu peso.

A pele é repartido em três profundas camadas epiderme, derme e a hipoderme. As chamas as eliminam em menos de uma hora quase 20% desse tecido.

Derme hipoderme

osso

>> 75% das vítima de incêndios morrem intoxicadas pelo gás monóxido de carbono. Esse mesmo gás era usado na época da segunda guerra mundial para matar os judeus nos campos de de concentração, por isso ele é muito conhecido como o gás silencioso. Nesse caso a morte é rápida, e pode acontecer em até 3 minutos em apenas tres repirações no máximo.

Dependendo da concentração de monóxido de carbono, as sensações podem ser desde tonturas, dores de cabeça, até a perda de consciência. Estudos apontam que 40% das vítimas fatais em incêndios perdem seus sentidos antes mesmo de acordar do pesadelo. Desmaiando ou não, o processo de deterioração para quem fica sob o fogo é o mesmo. De acordo com a bióloga, Amanda Lima, a fumaça é somente porta de entrada para algo pior.“O gás tóxico é sim um fator que mais mata, por asfixia, até quem não está necessariamente dentro do incêndio. Mas devemos considerar que a morte pelo fogo é causada

*70% do corpo humano é composto por água, enquanto as células possuem quase 100% de sua estrutura,aquosa o que facilicia a corrosão pelo fogo, já que a água evapora a partir de cem graus celsius.

também pela necrose da pele, e outros fatores que vêm com esse fator. A dor não pode ser calculada”, afirma, Amanda. Segundo a bióloga, as chamas atingem primeiro os pelos corporais, como cabelos, sobrancelhas. Depois, atingem as vias aéreas e, então as camadas de tecido vão sendo corroídas pelo fogo, trazendo uma sensação intensa de dor. “Quando o fogo atinge a última camada da pele, no caso a hipoderme, e segue corroendo os tecidos, chamamos de necrose cutânea, ou seja, quase todo o tecido celular é morto. Após esse estágio, o fogo passa pelas camadas de gordura, os vasos sanguíneos, músculos e, o pior, pelo sistema

nervoso, que agrava ainda mais a sensação de dor por causa da inflamação da pele”, enfatiza a bióloga. Amanda explica que enquanto o corpo vai perdendo líquido para o meio externo, por conta das altas temperaturas, o organismo luta até o último momento para se ‘hidratar’ e manter tudo em ordem. Mesmo com todos esses instintos naturais para a vida prevalecer, a morte é certa. “As células possuem 90% de sua composição em água, mesmo os ossos. Assim, a parte do organismo onde mais se concentra água do corpo, o cérebro, envia líquido dele mesmo para os demais órgãos para compensar as células mortas. Esse proces-

A segunda possivel morte é o líquido no pulmão que acumula devido ao ressecamento das células. O grande herói e responsável por isso é o cérebro!

so inclui o pulmão, que começa a reter esse líquido, e a falta de oxigênio no corpo leva a pessoa ao óbito”, explica Amanda. Após atingir todos os tecidos do corpo, restam os ossos. Até esse estágio, a pessoa definitivamente já morreu, e sentiu muita dor, de acordo com a bióloga. Para um corpo de um adulto médio virar cinzas, o tempo é de duas até seis horas; já para uma criança, o processe de deterioração se dá em até três horas. Isso explica o fato de que em torno de mais de 400 pessoas, incluindo as crianças, tenham desaparecido, sem vestígio, na tragédia da Vila Socó. Os bombeiros levaram mais de 12 horas para debelar o fogo.

15


Dezembro/2016

Especial Vila Socó

Como provar a morte na ausência do corpo LUCAS CAMPOS

Lucas campos

INUMAÇÃO

Legislação e sepultamento, drama dos parentes

R

16

elatórios analisados pela Comissão da Verdade sobre o incêndio da Vila Socó demostram que o número de mortos foi muito superior ao registrado. Segundo o site da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, o Ministério Público concluiu que 508 pessoas morreram no incêndio. Levando em conta que nem todas as mortes foram devidamente reconhecidas e registradas, como fica a vida jurídica dos familiares que não encontraram o corpo dessas vítimas? A advogada Patrícia Albuquerque Graccho Simões, OAB/SP 226.714, explica que, nesses casos, os sucessores das vítimas devem procurar regularizar a situação, promovendo o assento do óbito no Registro Público. A Lei de Registros Públicos, Lei nº 6.015/73, em seu artigo 89, deixa claro, segundo a advogada, que “o juiz pode justificar a morte de quem desapareceu em naufrágio, inundação, incêndio, terremoto ou qualquer outra catástrofe. Para isso, deve exigir que se prove a presença da pessoa desaparecida no local do desastre e que não seja possível encontrar o cadáver. Essas são hipóteses suficientes para o assento do óbito em Registro Público”.

O oficial federal da Justiça do Trabalho, Marcelo Cramer Esteves, explica que a divisão de bens segue a Lei Civil (Código Civil). Caso o falecido não tenha deixado testamento, “primeiro herdam descendentes (filhos, netos, bisnetos), depois ascendentes (pais, avós, bisavós), depois cônjuge e, por fim, colaterais (irmãos, tios, sobrinhos)”. No caso da Vila Socó,

ele explica que as pessoas, por serem muito humildes, provavelmente não tinham bens a partilhar. O principal problema geralmente surge na grande demora para a concessão de pensão da Previdência Social (INSS) aos herdeiros, filhos menores e cônjuges dos desaparecidos. Patrícia esclarece, ainda, que para se atestar um óbito há dois institutos jurídicos

diferentes: um para mortes sem cadáver e outro sem testemunha do fato. O primeiro é chamado de morte presumida, ou seja, há a probabilidade do óbito e não a certeza. Já a segunda é chamada de justificação do óbito, quando há a certeza da morte e não uma mera probabilidade. O instituto da morte presumida “é o caso da tragédia da Vila Socó, em Cubatão, bem como

de demais desastres, como naufrágio, inundação, entre outros. Por exemplo, a justificação dos óbitos das pessoas cujos cadáveres não foram identificados e, comprovadamente, estavam a bordo do avião da TAM, que caiu em 2007, no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo”, comenta Patrícia. O jurista Luiz Flávio Gomes explica, em seu artigo de um curso preparatório do Jusbrasil, que declarar a morte presumida exige intervenção do Ministério Público para solicitar uma declaração mediante comprovação idônea de que a pessoa estava no local do desastre. Quanto à questão das indenizações em tragédias como, por exemplo, o caso do avião da Air France, Marcelo explica que “os familiares movem ações contra a companhia aérea para buscar indenização em virtude de sua eventual responsabilidade pelo acidente. É importante que os familiares provem que o desaparecido estava no local para obterem algum tipo de indenização”. Já no caso de incêndios, a responsabilidade das mortes entra em crime culposo ou doloso. Na Vila Socó, a culpa recai sobre a Petrobras, que era a responsável pelos dutos que vazaram.

Somos todos um só Pedro Vitor

A

pesar de completar 32 anos, o incêndio ocorrido na Vila Socó guarda espaço na memória dos moradores mais antigos de Cubatão, bem como muitas histórias no mínimo “diferentes”. Uma dessas histórias é o polêmico sepultamento coletivo dos restos mortais das vítimas, ocorrido no cemitério da cidade. O coveiro José Darci Barbosa, de 54 anos, que trabalha no cemitério de Cubatão há 28 anos, confirma a história. De acordo com seu relato, 80% da exumação da tragédia foram feitos por ele mesmo e sua equipe. Barbosa lembra ter sido comum encontrar de quatro a cinco corpos em um

mesmo caixão, todos muito reduzidos e carbonizados. Barbosa declara não saber o porquê do sepultamento coletivo ter sido realizado, porém, segundo ele, nunca qualquer familiar das vítimas foi no cemitério atrás de seus parentes. A administradora e ex-coveira do cemitério Helena Pena, de 59 anos, confirma a versão do colega de trabalho e acrescenta que, segundo relatos de funcionários mais antigos, os corpos chegavam como “pedaços de carvão”, irreconhecíveis. Eram então colocados em um mesmo caixão e depois sepultados coletivamente. O pintor Luis de Souza, 67 anos, é mais um que conheceu a história. Segundo ele, os corpos chegavam realmen-

te todos juntos no cemitério, aparentando ser plásticos queimados, enterrados juntos para mais tarde serem engavetados. O sepultamento coletivo ocorrido com as vítimas do incêndio da Vila São José é uma prática incomum em qualquer cemitério, ainda mais se tratando de quatro, cinco pessoas por caixão. Conforme, o juiz e professor Guilherme de Macedo Soares, quando se trabalha em uma situação de catástrofe, medidas que não seriam tomadas normalmente acabam ocorrendo para solucionar problemas urgentes. O professor afirmque o correto seria o poder público prever que situações como aquela podem acontecer e criar medidas preventivas a fim de

evitar, por exemplo, o sepultamento coletivo e atender as vítimas da melhor maneira possível. Ainda segundo o juiz, caso algum parente quisesse ter os restos mortais de seus familiares enterrados separadamente, precisaria entrar com um pedido judicial e provar que aquela parte de corpo realmente pertenceu a algum parente, o que, para ele, seria trabalhoso e custoso perante a quantidade de vítimas da tragédia e as suas condições. Soares encerra dizendo que seria possível algum familiar que se sentisse prejudicado processar o cemitério, porém, as chances de êxito seriam muito remotas, tendo-se em vista as condições em que tais medidas foram adotadas.


Dezembro/2016

Especial Vila Socó

Mariana Patrícia

P

ARQUIVO//AGÊNCIA O GLOBO

Jornalistas negam qualquer tipo de restrição durante cobertura

te o acidente. “Entrevistamos todo mundo, de Shigeaki Ueki que era presidente da Petrobras ao governador Franco Montoro, além de todas as autoridades que estiveram lá. Não tivemos problema algum em trabalhar, apesar de ser ditadu-

ra”, afirma. Segundo Bongiovanni, não houve qualquer restrição e ainda não existe nenhum tipo de limitação para fazer matérias sobre a tragédia. O fotojornalista conta que depois do incêndio, o uso do nome original, Vila São José, seria

símbolo de renascimento, e não foi feito no sentido de abafar algo. “Não foi uma forma de sacanear. Se teve essa ideia malévola, naquela época, parte das pessoas que fizeram isso. Para nós significa renascimento”, finaliza.

Ex-repórter da Globo relata como foi cobrir o incêndio Andrei Paternostro nalismo é com veículos e jornalistas sensacioaz mais de 32 nalistas. Este não é o anos, mas o de- meu caso e nem o da sastre que abalou TV Globo”, declarou a Vila Socó ainda está Nascimento. O repórter marcado na história e teve uma visão diferenna vida de muitas pes- te das consequências soas. Além de sobre- do desastre, já que viventes, bombeiros e sobrevoou o local de autoridades, o incêndio helicóptero e transmipermanece na memó- tiu imagens áreas aos ria dos profissionais de telespectadores. “Veíjornalismo que cobri- culo que se preocupa ram o acontecimento. em avisar o repórter Carlos Nascimento, 61 para não ser sensaanos, foi um dos jorna- cionalista, das duas listas da Rede Globo uma: ou o veículo ou o que reportaram o fato. jornalista - ou os dois As imagens e informa- - não são confiáveis.”, ções divulgadas eram continuou Nascimento. fortes e mostraram as Em uma entreviscondições em que vi- ta para um documenviam os moradores tário produzido pela do local. Desta for- “4.2 Produtora”, publima, surge a questão cado no YouTube em de como transmitir um abril de 2014, Carlos acidente destas pro- Nascimento relata que porções sem esbarrar o cenário encontrano sensacionalismo. do na Vila Socó deve Em entrevista reali- assemelhar-se ao de zada por e-mail, Car- um local que passou los Nascimento falou por uma guerra. “Nunsobre este ponto e se ca cobri uma guerra, mostrou avesso ao as- mas imagino que seja sunto. “Não houve um algo bastante parecido cuidado especial na com um lugar que foi cobertura. Sensacio- bombardeado. Lembro

REPRODUÇÃO DO YOUTUBE

F

A cobertura da imprensa na época

ara alguns jornalistas que cobriram o acidente, não houve censura e nem abafamento durante a cobertura. Mesmo que haja dúvida sobre o número de mortos na época do acidente, só foram publicadas informações oficiais nas matérias, segundo Manuel Alves Fernandes, mais conhecido como “Maneco”, repórter da sucursal da A Tribuna, em Cubatão. Ele afirma que não houve nenhum tipo de censura, nem por parte da Petrobras, e nem pelo regime militar da época. “Os laudos eram liberados para imprensa pela polícia, Ministério Público, e por técnicos que fizeram a pesquisa. A Petrobras informava, e não escondeu nada na época, que eu saiba”, afirma Maneco. O jornalista explica que ainda hoje

o assunto não morreu. Com o passar dos anos, foram feitas matérias para relembrar o incêndio – Em 1994, 2004 e quando o acidente completou 30 anos em 2014. A assessora de imprensa, e na época repórter da sucursal do Jornal do Estado de S. Paulo, Elaine Saboya, relembra matérias feitas antes do incêndio. “Não havia censura à imprensa. Antes do incêndio, escrevi muitas denúncias sobre as tubulações, e as autoridades não faziam nada. Foi uma tragédia anunciada”, lamenta Saboya. Para a assessora, a mídia não está vendida a ponto de não publicar alguns assuntos. Acredita, na verdade, que alguns deles não são tão publicados, pois não têm “um gancho”. O fotojornalista Luigi Bongiovanni foi chefe de reportagem pela A Tribuna duran-

JORNALISTAS

Jornalistas discordam sobre abafamento

Jornalista pela TV Globo e sobrevoou a Vila Socó logo após o incêndio

assim, de um campo, uma mistura de lama, resto de casas e tudo enegrecido; esse foi o cenário que eu via”, lembra o repórter. Sobre o fato de as imagens veiculadas denunciarem as condições em que os moradores da Vila Socó viviam, Nascimento garante que em nenhum momento os profissionais expuseram estas pessoas. “A imprensa denunciou uma situação que poderia

ter sido evitada se as autoridades tivessem tomado providências”, afirma Nascimento. Ainda na entrevista realizada, Nascimento abordou o fato de na cobertura de algum acidente, crime ou desastre o jornalista deve seguir com o trabalho ou procurar ajudar alguém que precise. Segundo ele, essa é uma decisão pessoal. “Haverá quem deixe o jornalismo de lado se achar que pode salvar

uma ou mais vidas. Mas também existirá quem não cogite esta hipótese. Confesso que não sei dizer quem está certo ou errado”. O repórter Carlos Nascimento atualmente é âncora do telejornal noturno do SBT, emissora em que trabalha há dez anos. O jornalista anteriormente atuou na TV Bandeirantes e na Rede Globo. Teve uma breve passagem pela TV Cultura, logo após sair da Globo.

17


Especial Vila Socó

Dezembro/2016

A Visão do Repórter

Rafael Almeida

A

té hoje, as imagens de dor e sofrimento, ainda relutam na cabeça da jornalista Katia Giulietti, hoje, secretária de Comunicação da Prefeitura de Praia Grande, ela trabalhou no jornal A Tribuna durante 14 anos (de 1978 a 1992). Na época, encarregada de cobrir a tragédia na Vila Socó. Com muita cautela e emoção, a experiente jornalista, lembra com

detalhes como foi convocada para a cobertura, “Era por volta de 7h30 quando, recebi um recado para comparecer ao local, de forma urgente. Quando cheguei não houve nenhum tipo de aconselhamento de como me portar”, lembra. Katia conta que todos do jornal estavam cobrindo o incêndio, desde repórteres e fotógrafos, até diagramadores. “Acho que para o jornalismo brasileiro, a tragédia

ficou marcada como a primeira grande cobertura em equipe”. Emocionada, a jornalista relata sua cobertura “Eu e meus colegas, não tínhamos noção da dimensão das coisas. Lembro de andar um tempo depois, sobre o local onde, então, ficavam as casas, e reparei que os pedaços de carvão que eu pisava, eram na verdade, restos de corpos humanos, queimados e carbonizados”. Quan-

to aos outros jornalistas, contaram ter visto tocos de carvão que, ao olhar mais de perto, pareciam corpos de mães abraçados aos seus filhos. Alguns repórteres, ao abrir algumas geladeiras que o fogo não destruiu, encontravam pessoas falecidas. A cobertura da tragédia durou algumas semanas. No primeiro dia, segundo Kátia, todos do jornal trabalharam por cerca de 12 horas seguidas,

“chegava ao jornal de manhã, e saia apenas a noite. Creio que trabalhei, por volta, de 15 horas”. Já nos dias seguintes as coberturas foram menores, relatava apenas o dia a dia. “É difícil descrever em palavras, o que foi visto aquela noite. É algo chocante. São eventos que ficam marcados na vida de um jornalista. Marcou muito aquele odor de carne queimada. Naquele dia, ninguém, conseguiu dormir”, finaliza Kátia.

Soldados por trás das lentes

JORNALISTAS

JOSIANE RODRIGUES

18

Corpos pelo caminho, calor intenso, odor forte e choro dos sobreviventes. Jornalistas relembram dificuldades na cobertura josiane rodrigues

P

isando em cadáveres pelo caminho, vendo corpos pela metade e outros, ainda, em chamas. Sem noção exata da tragédia devido à nevoa da fumaça e à escuridão da noite que encobriam o cenário de horror, muitos profissionais foram chamados para registrar os instantes intermináveis, que, quem viveu, certamente, não necessita de fotos para recordar. Carlos Nogueira, hoje com 59 anos, que trabalhava na Folha da Manhã, estava numa festa em sua própria casa, quando soube da ocorrência pelo telefone. Passou no jornal, pegou os equipamentos e chegou à Vila por volta das 3h da manhã. Ele recorda ter ficado assustado. Os barracos haviam sumido e apenas alguns caibros (que serviam como estrutura) queimavam.

Muita gente chorava, outros procuravam os familiares. As cenas dos corpos espalhados e os gemidos de dor dos sobreviventes são as maiores e mais tristes lembranças para Nogueira. “É uma coisa Wque não sai da minha cabeça. Até hoje, quando passo por perto, lembro-me da tragédia.” As fotos feitas por ele foram publicadas em diversos veículos, como Jornal da Tarde, O Globo do Rio, entre outros, sendo uma delas usada na capa inteira do Jornal O Globo. Segundo Carlos, na época, não havia censura e tudo que se fotografava era publicado mesmo que chocasse. Por isso, existem tantas imagens impactantes, como a do fotógrafo do Jornal A Tribuna Walter Mello, que retrata um bombeiro carregando um corpo no colo. Hoje em dia não fazem mais esse tipo de registro, por se correr

o risco de processo, além de desrespeitar as normas éticas. Entre salvar uma vida ou fotografar o desespero, Nogueira afirma deixar a foto em segundo plano. “Quando não posso mudar o cenário salvando alguém, prefiro não pensar e faço meu trabalho, senão entro em desespero junto.” Se for possível registrar e auxiliar ao mesmo tempo, ele faz, e se coloca sempre no lugar do outro, como se fosse alguém da família. Para evitar o sensacionalismo, é essencial filtrar os cliques. Mas essa seleção cabe aos editores, eles decidem o que é melhor para o jornal e o que não vá chocar os leitores. A obrigação do fotógrafo é registrar tudo o que vê. O primeiro choque é sempre do próprio profissional, afirma Nogueira. Naquela madrugada de Carnaval, o telefone também tocou

e acordou Luigi Bongiovanni, hoje com 66 anos, que na época era chefe de reportagem do Jornal A Tribuna. Clóvis Galvão, secretário de redação foi quem deu a notícia. Luigi convocou os demais colegas, e apesar de não ser de costume, o chefe de reportagem ir até o local, devido às proporções do acidente, ele também seguiu para a Vila. Dividiram-se em duas equipes. Uma foi pela Rodovia Anchieta e outra pela Rodovia Bandeirantes, pois sabiam que o incêndio ocorria no meio das duas vias. Por ser à noite, a visibilidade era praticamente nula. Os fotógrafos ficaram isolados, até os bombeiros combaterem o fogo. “A primeira fase é sempre a da imagem. Os fotógrafos que se queimam, se machucam, estão sempre no “front da batalha”, e nós ficamos na re-

taguarda vendo o que foi apurado”, explica Bongiovanni. Na cobertura do incêndio, cada repórter ficou responsável por entrevistar uma fonte e acompanhar um local: hospitais, bombeiros, Instituto Médico Legal e autoridades do governo da época. Somente quando amanheceu é que se enxergou a real extensão do incêndio. Pessoas corriam para a área do mangue em busca de poças de água e se jogavam de tão quente que estava. “É como se eu revivesse aquele dia, parece que sinto novamente o cheiro dos cadáveres, algo horrível”, recorda Luigi. Hoje, ele atua como fotógrafo do Jornal A Tribuna e ressalta a rotina inconstante do profissional da área, que, de manhã cobre o velório de uma criança, à tarde um incêndio e à noite uma coluna social, cercado de amigos e champanhe.


Dezembro/2016

Especial Vila Socó

alex ramos

S

Gilberto Mendes (em pé) com o amigo José Eduardo Martins

também do Percutindo, conta de suas conversas sobre o tema. “O Gilberto era um cara especial, desses poucos que conseguem tirar algo bonito de uma tragédia”. Ramos também lembra que a veia política de seu

amigo influenciava diretamente suas composições. “Ele acreditava no socialismo à sua maneira, mas odiava ditaduras. Odiava o regime militar!”. A canção “Vila Socó Meu Amor” é parte do DVD “A Odisséia Musi-

cal de Gilberto Mendes” e retrata as ideias e a obra musical do maior compositor brasileiro da música erudita de vanguarda. Além disso, o incêndio também foi retratado em poesias e curtas-metragens. REPRODUÇÃO

O compositor santista Gilberto Mendes criou a composição em menos de 15 minutos após saber do acidente pelo rádio

MARCAS QUE A TRAGÉDIA TROUXE CULTURALMENTE

ão raras as pessoas que conseguem transformar desgraças em obras de arte. O compositor santista Gilberto Mendes foi uma delas. Tudo começou quando a Vila Socó ardeu em fogo. O fato comoveu o Brasil e não passou impune pela mente e mãos do músico que escreveu a canção “Vila Socó Meu Amor”. Na época, o maestro do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da USP, Celso Delneri, havia feito um pedido de música a Gilberto Mendes para o coral feminino do qual era regente. Delneri falou da inspiração para o compositor “ele me contou que precisava fazer alguma coisa em memória dos mortos por aquela verdadeira bomba de Hiroshima que foi a ex-

plosão da Vila Socó”. A letra veio de uma versão do cineasta Alain Resnais no filme “Hiroshima Mon Mour” - Hiroshima Meu Amor. O músico do Grupo Percutindo Mundos, Márcio Barreto, também amigo do compositor, relembra como a tragédia da Vila Socó comoveu o amigo. “Vimos um texto cuja chamada dizia que os moradores da favela haviam vivido como bichos e morrido como bichos. Isso o inspirou, com certeza”. A composição derivada da tragédia não demorou mais do que 15 minutos para ficar pronta “Não devemos esquecer os nossos irmãos da Vila Socó, transformados em cinzas, lixo em pó”, destacava um dos refrões, lembra Barreto. Outro amigo do santista, Fernando Ramos, saxofonista profissional,

ARQUIVO PESSOAL

CULTURA

“Vila Socó Meu Amor” uma homenagem em melodia

19


Dezembro/2016

Especial Vila Socó

Ariel fez da tragédia uma poesia REPRODUÇÃO DO GOOGLE

Marcelo Lopes

O

autor Marcelo Ariel, que vive em Cubatão, pertence à chamada Geração 90. Ele escreveu, na publicação de poemas em forma de livro na década seguinte, “Me Enterrem com a minha AR 15”, lançado em 2007 pela editora Dulcineia Catadora, numa edição artesanal, e o “Tratado dos Anjos Afogados”, que saiu em 2008, pela Letra Selvagem. Nessas obras, o poeta descreve o duro cotidiano de chacinas, favelas incendiadas e desastres como o conhecido episódio de Vila Socó. No poema “Vila Socó Libertada”, o autor escreve: “(depois do fogo) / no outro dia / (sem poesia) / as crianças (sub-hordas) / procuram no meio do

Capa da obra que retrata o acidente em Cubatão

desterror / botijões de gás / para vender”. Em outra composição, intitulada “O Soco na Névoa”, Marcelo Ariel utiliza técnicas de closes, cortes e montagens da linguagem narrativa do

cinema. Escreve: “No jardim esquizocênico, / Nas balas perdidas, / No perfume / das granadas / explodindo no bar / das Parcas: / Num Eclipse-invertido / seguido de uma chu-

va fina por dentro / do olhar / da criança recém-esquecida / nesse bar-iceberg para o ‘Bateau Ivre’ no sangue / dos amantes-kamikazes” (versos publicados no livro “Tratado dos Anjos Afogados”). Questionado pelo motivo no qual decidiu escrever o “Tratado dos Anjos Afogados”, Marcelo explica que a decisão de escrever surgiu das enormes demandas de um ponto de convergência entre interioridade e exterioridade que ele considerava ser chamado “Tragédia Coletiva”. “A atualidade e história do Brasil estão repletas destes pontos de convergência. O que costura estes pontos e construiu a ‘sociedade’ que temos, ou melhor, o arremedo de sociedade que temos aqui se chama escravidão. A demanda maior é a

luta contra a escravidão e a insurreição. Escrever um livro como este foi um ato de insurreição” relata o escritor. Marcelo, ao longo de vinte anos, considerou que poderia até chamar este processo de “literatura como luto” e também como pesquisa de uma interioridade transparente de códigos e zonas de guerra social, que é um termo que se desdobra no livro em tensão entre a metafísica, que move os processos de construção de metáforas, e as unidades de tragédias sociais. Para Ariel, a escrita nasce da experiência de quem vive em um imaginário perverso. Ser escritor em um cenário como foi o da Vila Socó significou tomar partido do heroico e do sublime, fazer da tragédia uma poesia.

Documentário relembra tragédia na Vila Socó REPRODUÇÃO

CULTURA

Camilla Aloi

20

M

ais de três décadas se passaram e o que de fato aconteceu naquela noite de 24 de fevereiro de 1984 ainda é um mistério, apesar das explicações técnicas das autoridades. O que se sabe é que quem viveu aquele pesadelo jamais o esquecerá. O incêndio que destruiu a antiga Vila Socó, em Cubatão, está em chamas na memória de cada um, mas pouco se ouve falar. Segundo o cineasta Diego Moura, que vive há 23 anos no bairro, uma das maiores tragédias já vistas no Brasil estava sendo esquecida. Ele não viveu o drama, mas sempre escutava relatos de vizinhos e amigos que sofreram naquela data. Foi então, quando cursava a faculdade de Cinema e Audiovisual na Universidade Unimonte, em Santos, que decidiu produzir um documentário para o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) sobre a catástrofe. O objetivo era resgatar essa

Cerca de 200 pessoas assistiram ao filme no Cine Roxy do Parque Anilinas, em Cubatão

história que marcou o país. “Muitos jovens também desconheciam uma das maiores tragédias da história. Minha ideia era contar os fatos para estes jovens”, afirma. Dirigido por ele e produzido pelos estudantes Vitor Kertes e Jorge Brasil, o filme “Uma Tragédia Anunciada” tem duração de 15 minutos e foi lançado no ano de 2014, quando o acidente completou 30 anos. Com a trilha sonora de ‘Vila Socó, Meu Amor” do compositor Gilberto Mendes, o documentário apresenta relatos de pessoas que viven-

ciaram aquelas horas de incêndio. Diego destaca a história de um jovem que na época tinha sete anos e relembra os momentos difíceis que viveu. “Esse relato nos marcou bastante. O jovem contou que estudava no único colégio do bairro. A sala de aula era lotada e, de um dia para o outro, estava vazia. Essa imagem está na mente dele até hoje. Uma enorme tristeza”, conta. Mesmo considerada uma das maiores tragédias da história, Diego afirma que há pessoas que tentam tirar algo positivo desse drama. “No

filme, há um relato de um rapaz dizendo que hoje o bairro é todo urbanizado. Tem sistema de esgoto, sistema de energia. Na época do incêndio, era palafita, mangue, tudo muito precário. Há pessoas que acham que se não houvesse acontecido a tragédia, talvez, o bairro estaria da mesma maneira como há 30 anos”, explica. Durante três meses, os estudantes voltaram no tempo e trouxeram à tona as chamas daquele fogo que jamais se apagará da história do País. O documentário foi exibido no cinema e em uma

praça pública da cidade. Participou ainda de vários festivais. De acordo com Diego, muitas pessoas se emocionaram, se identificaram e o agradeceram por retomar essa história. “Foi uma realização pra mim, porque eu nasci e cresci aqui no bairro. Pude conhecer a fundo a história e mostrei a realidade do meu bairro para todos. Tivemos um feedback muito positivo. Foi muito gratificante”, completa. Quem quiser conferir o filme, pode encontrá-lo disponível no YouTube como “Uma Tragédia Anunciada”.


Especial Vila Socó

Dezembro/2016

Priscila Denami

REPRODUÇÃO ALLAN NOBREGA

P

assados 30 anos desde o acidente, o povo lembra de Vila Socó. Em fevereiro 2014, membros da comunidade realizaram uma leitura dos nomes das vítimas do desastre e estudantes da UME Mato Grosso apresentaram poesias ao episódio e outra leitura de relatos jornalísticos da época. O evento aconteceu em frente à Praça da Cidadania, na atual Vila São José. A atividade fez parte da programação oficial realizada pela Prefeitura de Cubatão e Sociedade de Melhoramento do bairro. A prefeita Marcia Rosa destacou que foi nas cinzas de Vila Socó que nasceu

O monumento na noite de inauguração

o conceito de sustentabilidade. “Celebramos a vida, o maior bem que nós temos”. Em seguida, a prefeita conta que ao mostrar cenas do dra-

ma que viveram em 1984, muitos que não eram familiarizados com o assunto ficaram chocados com as imagens intensas do desastre. A reunião com

o povo fez lembrar também que na época não havia uma legislação ambiental mais rígida, a partir da qual se pudessem cobrar responsabilidades em

casos assim. Após o encerramento da celebração, foi inaugurada na rotatória de acesso à Vila São José uma escultura em homenagem a cidade e às vítimas do incêndio, criado pelo artista cubatense Giovanni Nazareth. O monumento é composto por duas asas feitas de ferro e vergalhões de construção. A obra celebra a reconstrução da Cidade após a tragédia e a união de toda a comunidade para que tal acontecimento não se repita. Outra homenagem realizada foi a dos católicos da Igreja São Francisco de Assis, que construíram uma capela próxima ao antigo cruzeiro, que está localizado na área próxima ao incêndio.

CULTURA

O drama que não pode ser esquecido

Cubatenses planejam novo documentário de Vila Socó REPRODUÇÃO INTERNET

Homenagem aos 30 anos de tragédia da Vila Socó a qual Allan Nobrega participou na produção

Gabriela Brino

D

ificilmente um fato deixa de ter novas informações com o tempo. Esse foi um dos pensamentos que fez com que Allan Nobrega, diretor de Imprensa da Prefeitura de Cubatão e Leandro Ordenes, jornalista da empresa FSB, tivessem o interesse de trabalhar pautas para colocar em práticas novas ideias para re-

alizar outro documentário sobre Vila Socó. O fato que motivou os jornalistas foi a reabertura das investigações que a Comissão da Verdade pôs em prática nos 30 anos de tragédia, com revelações e testemunhas que conferem os dados e se aproximam da realidade daquele fatídico ano de 1984. Eles relembram o dano que o fogo causou destruindo vidas, sonhos e histórias.

Paralelo a isso, “nos sentimos cumprindo o dever de nossa profissão por poder contar as novas informações que obtivemos”, diz Leandro. Allan complementa com outro pensamento, “devemos pensar também na nova geração, para que eles possam ter um pouco mais de noção do quanto o progresso industrial não pode ignorar o fator humano e o meio ambien-

te. Além de mostrar a eles o que a irresponsabilidade pode acabar causando”. Para os cubatenses, Vila Socó foi fundamental para o renascimento de Cubatão. “Depois daquela madrugada, os conceitos de ecologia e justiça social começaram a fazer parte das nossas vidas. Nossa cidade descobriu e ensinou ao mundo o quão poderosa é uma sociedade quando se

une por uma causa em comum”, afirma, Allan. Dessa maneira, eles pretendem gerar uma grande visibilidade do projeto para que possa renovar as esperanças de quem ainda luta por seus direitos e justiça. Os participantes do projeto estão animados. Enfatizam que ainda estão concretizando suas pesquisas de linguagem, mas afirmam que a ideia já está em pauta.

21


Dezembro/2016

Especial Vila Socó

Geração só quer apagar o fogo da discriminação

MARCOS ROSA

Marcos Rosa

Crianças usufruem da praça urbanizada na comunidade São José

terror que seus antepassados sofreram. Em meio ao bate-papo informal, Diney de Souza argumenta: "Posso afirmar com certeza que a maioria das crianças e adolescentes moradores da Vila não sabem o que ocorreu há 32 anos. Minha filha também não. O pai que vivenciou o momento de terror ainda não sabe como e quando vai contar o passa-

forma diferente: “Não sinto que o trauma da minha mãe, de ter vivido o incêndio, tenha afetado minha criação. Pretendo contar a história da Vila para meu filho, assim que ele ficar mais velho, ”argumenta Suelen ao voltar para o caminho de casa acompanhada do seu filho e sobrinho, após busca-los na UME Mato Grosso, mais conhecida como “parquinho”

MARCOS ROSA

Vila Socó, só quer apagar a discriminção

A

contagem de mortes é incerta. Talvez seja impossível descobrir o número correto de mortos, mas é certo afirmar que algo não morreu naquela madrugada: a “Alma da Vila Socó”. A nova geração quer ser lembrada, não só apenas pelo incêndio. Um sobrevivente dessa nova geração, Diney de Souza criança, de nove anos na tragédia, hoje é pai na espera do momento certo de revelar os acontecimentos de três décadas passadas a sua única filha, com sete anos. Enquanto Diney comenta alguns dos momentos angustiantes que viveu, sua filha brinca de pega-pega à volta, em uma rua asfaltada ao lado de sua casa, erguida com tijolos, em uma comunidade urbanizada. Essa é

HOJE

Playground localizado na entrada da comunidade

a nova realidade da Vila São José, uma nova geração que em sua maioria, segundo Diney, não conhece os momentos de

pela comunidade. Mas, na escola, o acidente de Vila Socó não é lembrado. A escola UME João Ramalho, trinta anos

jogam “gol caixote” com uma bola encardida sobre o chão que um dia virou fogo. Isso, no entanto, não significa que todas as crianças do bairro desconhecem que ali ocorreu uma tragédia. Gabriel Henrique, de 11 anos, ficou sabendo pela sua avó toda a história da vila. No acidente, perdeu o bisavô, que nunca chegou a conhecer. Gustavo Dias,13, lembrou do evento de homenagem às vítimas de 30 anos do incêndio(em 2014), para mostrar o lançamento do documentário feito por um morador da comunidade. “Eu vi no telão.” A alma da Vila Socó continua viva, apesar de que alguns pareçam querer descartá la. Mas, se depender dessa geração, a única coisa que se quer ver apagada é o fogo, ou seja, a discriminação que ainda envolve aquele pedaço de terra que ardeu em Cubatão.

Sobre às vítimas, Cubatão evita falar da tragédia nos dias de hoje Jhessica Paixão

M

22

do, mas afirma que não irá ser esquecido. Suelen de Lima(31), que ainda não era nascida no dia do acidente, e pensa de

depois, com novos diretores e professores, não menciona o incêndio, afirma Paula Lopes, assistente de Direção do colégio. "Três anos atrás, uma professora, que não se encontra mais no estabelecimento, fez um trabalho de bate-papo com os alunos. Pais e avós relataram suas histórias e levaram imagens". Paula trabalha há seis anos na escola e essa foi a única vez que viu o assunto ser abordado, em uma iniciativa própria da professora. Na praça da agora Vila São José, onde se encontra o monumento que eterniza o acidente, há um espaço de playground, com quadras de futebol de campo e areia, pista de skate, academia ao ar livre e brinquedos de madeira. A arquitetura, apesar do monumento, parece enterrar a história do que já foi a vila um dia. Cinco crianças de 10 a 13 anos são a prova disso: elas

ais de 30 anos se passaram desde o incêndio, e as lembranças daquela madrugada continuam vivas para quem sobreviveu à tragédia. Por outro lado, os moradores mais jovens da cidade afastam-se dessa realidade. “Nunca ouvi falar. Tenho 23 anos e nunca ouvi essa

história”, afirma Janaína Silva, moradora de Cubatão. “Acho que algo dessa proporção deveria ser mais comentado. Foi muito sério para ser deixado de lado”, completa. Para o estudante de Engenharia Química, Juan Carlos Oliveira, de 19 anos, a população se esquiva do assunto para evitar o sofrimento. “Não sei direito o que

aconteceu, meus pais falam pouco sobre, mas acredito que seja assim porque foi muito traumático”. O sobrevivente Manoel Siqueira acredita que a tragédia da Vila Socó foi tão marcante que a população evita falar do assunto. “É muito doloroso lembrar do horror e das perdas. Tocar nessa ferida é muito difícil”. Segundo ele,

muitos sobreviventes precisaram de acompanhamento psicológico e desenvolveram diversos transtornos após a tragédia, como a síndrome do pânico. “Acho que a população percebeu que não falar tanto desse assunto seria um sinal de respeito. Já faz tempo, mas muita gente ainda não se recuperou do trauma”, afirma Siqueira.

Além disso, ele acredita que é importante que os jovens saibam do ocorrido, pois é uma parte inesquecível da história de Cubatão. “Meus filhos são jovens e sabem sobre a Vila Socó, mas sei que muitos amigos deles, não. Demorei anos para contar a eles, e até hoje vejo que algumas famílias preferem mesmo evitar o assunto”, completa.


Especial Vila Socó

Dezembro/2016

Axel Junior

O

exparlamentar José Osvaldo Passarelli, 76 anos, era o prefeito de Cubatão, no incêndio, na Vila Socó. De acordo com Passarelli, o Governo do Estado de São Paulo, mediante a verba da empresa, edificou moradias para os desabrigados. Conforme o chefe do Executivo na época, a Prefeitura aterrou ruas e construiu calçadas

no bairro que veio a se chamar Vila São José. A reurbanização da comunidade foi concluída em seu segundo mandato. Entretanto, algumas vítimas mudaram de cidade. “Com medo da situação vivida, com medo da poluição”, comentou o ex-prefeito. Em 2014, o Estado de São Paulo somou o maior numero de incêndios no país, noticiados pela imprensa, totalizando 266 ocorrências,

AXEL JUNIOR

segundo o Instituto Sprinkler Brasil. De acordo com Passarelli, após o acidente, a Petrobras passou a fazer canos submersos controlados por um sistema computadorizado. Conforme a técnica em Meio Ambiente Bruna Francine, 19 anos, os jovens da cidade não temem novos incêndios. De acordo com ela, as escolas instruem os alunos a evitarem acidentes. “A situação no bairro Passarelli é vizinho do bairro há cinco décadas é outra”, finaliza.

Com parque, aposentado dá esperanças para a nova geração BEATRIZ PEREIRA

Beatriz Pereira

A

tubulação da Petrobras, que antes ficava exposta, agora está aterrada. O amplo gramado em volta da área deu lugar aos balancês, gangorras e à tirolesa, planejados pelo aposentado Manoel Pereira da Silva, morador antigo da Vila Socó. O sofrimento, a dor e as perdas deixaram marcas profundas no local, e foi pensando num modo de superá-las que Silva, com a ajuda de amigos e outros moradores, construíu o parque infantil da Vila Socó. O aposentado juntou investimentos e esforços da comunidade para fazer do pedaço um lugar de

RECONSTRUÇÃO

Parque representa a esperança da nova geração

Manoel cuida da manutenção diária do parque, preservando o resultado de seu trabalho árduo

lembranças amargas em um lugar para criar momentos mais doces. A carência de lazer da comunidade e a falta de amparo da prefeitura impulsionaram a ideia. “Se formos esperar nunca

vamos desenvolver nada na vida”, afirma o aposentado. Entretanto, é inevitável não relembrar o dia do incêndio. O odor dos corpos queimando e a fumaça ardente nos olhos. SilBEATRIZ PEREIRA

Todos aproveitam o espaço que Manoel cultiva com orgulho

va não teve sua casa perdida nas chamas, porém, isso não diminui a sensação devastadora da tragédia. “Aquela fumaça e toda a correria da rua me acordaram. Por alguns segundos sentia ser na minha casa. Tudo só me traz lembranças ruins”. Ele recorda ter ajudado os bombeiros a recolher os corpos ou o pouco que restou deles. As imagens fortes permanecem claras na mente. “Não gosto de lembrar, pois foi um dia muito cruel para todos nós”. O bairro se reconstruiu durante os anos, as famílias se realocaram, as tubulações foram aterradas e a infraestrutura melhorou em comparação à época do incêndio, porém ainda há muito para progredir. O líder comunitário, Edilson Silverio, re-

afirma a carência de apoio da prefeitura e justifica as ações da população local como importantes para o progresso da Vila e a reestruturação da comunidade. Como exemplo, cita a horta da comunidade, também iniciativa do aposentado a área ao lado do parque, inutilizada, deu origem a uma pequena, mas diversificada, plantação cuidada pelo próprio idealizador do parquinho. “As crianças vêm e me perguntam o que é cada planta e como se faz o plantio. E cada morador tem a liberdade de pegar o que quiser”, relata. São gestos como esse que demonstram a luta e união de uma comunidade reerguida dos escombros e cinzas e, hoje, regada pela esperança da nova geração.

23


Especial Vila Socó

Dezembro/2016

De Vale da Morte para Vale da Vida

Matheus Antunes

RECONSTRUÇÃO

D

24

e certo modo, soa inconveniente dizer que uma tragédia poderia deixar algum tipo de legado positivo, mas aparentemente contribuiu para que a cidade de Cubatão se reestruturasse e começasse a entender a política de Meio Ambiente. Na época do acidente, não havia conscientização por parte do governo e muito menos dos moradores. O município, na realidade, era apenas um grande polo industrial e que abrigava sede de grandes empresas, como a Cosipa (atual Usiminas) e a Refinaria Presidente Bernardes, grande responsável pelo acidente. O grande volume poluente emitidos pela Refinaria chamava atenção pelo tamanho do prejuízo que causava a cidade. Esses poluentes eram emitidos pelo ar e também nos rios, um deles que cortava a comunidade da Vila Socó. Esse cenário levou a cidade de Cubatão a receber o infeliz apelido de “Vale da Morte”. Com certeza o feriado do Carnaval de 1984 foi o mais triste da história dos cubatenses, pois essa data traz consigo a lembran-

ça de uma das maiores tragédias ocorridas na Baixada Santista. No sábado, véspera da festa popular, ocorreu o incêndio da Vila Socó. A tragédia acontece por conta do grande vazamento de gasolina em um dos oleodutos da Petrobras que passavam no meio da comunidade, aproximadamente 700 mil litros de combustível vazaram e invadiram a favela. A Vila Socó ficava situada às margens do km 53 da Via Anchieta e ela foi surgindo de modo irresponsável, afinal, os moradores que ali construíram suas casas não tinham ideia de que estavam pisando em um terreno altamente inflamável. Os habitantes não foram informados do perigo, demonstrando a irresponsabilidade dos governantes da época. Estima-se que até seis mil pessoas tiveram seus barracos queimados pelas fortes labaredas de fogo. O número de vítimas do acidente ainda continua incerto, fontes oficiais apontavam 93 mortos. Porém, após uma Comissão da Verdade realizada em 2014, que buscava esclarecer alguns fatos que não foram abordados com o devido cuidado na época, recalculou-se e hoje o

REPRODUÇÃO GOOGLE

A cidade de Cubatão totalmente polida, considerada vale da morte

número de vítimas fatais se aproxima de 500 pessoas. Além do incêndio da Vila Socó, outro fato chamou a atenção dos governantes do Estado e da cidade de Cubatão: o grande número de crianças com anencefalia. Infelizmente, isso ocorria pela falta de responsabilidade e conscientização das grandes indústrias. José Osvaldo Passarelli Junior, filho de Osvaldo Passarelli, prefeito da cidade na época, nega que houvesse negligencia do governo; “Os tempos eram

outros, não recebíamos apoio. Nem do governo estadual e nem do federal. Na gestão do meu pai, a prefeitura não foi negligente, pelo contrário, fez o possível para melhorar a situação. A tragédia da Vila Socó foi uma fatalidade.”. Passarelli Junior tem razão no que diz, o apoio do governo estadual só apoia a cidade em meados de 1985, lançando um plano por intermédio da Cetesb para revitalização ambiental da cidade, esse projeto recebeu apoio da ONU. Quatro anos após a MATHEUS ANTUNES

Arco na entrada de Cubatão reproduz e demonstra atual momento vivido pela população

implantação de esse plano de revitalização, a cidade de Cubatão conseguiu se adequar e abandonar o estado crítico que se encontrava. Por exemplo, o retorno do guará-vermelho aos rios da cidade, inclusive o animal é considerado símbolo da reestruturação ambiental. Após a sucessão de fatores positivos, Cubatão foi convidada a participar da ECO92, evento organizado pela ONU e que reunia exemplos de cidades com consciência ambiental, Cubatão foi considerada referência nesse âmbito. “Além da participação na ECO92, a Agenda 21 é um dos grandes marcos da cidade, nos ajudou muito. E depois ainda recebemos o título de “Cidade Simbolo da Recuperação Ambiental, foi de muito bom grado. Desde então, só temos evoluído na questão do Meio Ambiente”, ressaltou Cleiton Jordão, secretário do Meio Ambiente da cidade de Cubatão. O secretário cheio de orgulho ainda enfatiza, “Cubatão hoje é conhecida como ‘Vale da Vida’, temos muita honra em ter esse apelido”, e é o que diz um grande letreiro de boas-vindas na entrada da cidade, confirmando assim o surgimento de uma nova Cubatão.


Dezembro/2016

Especial Vila Socó

Paloma Amaral

N

a época do acidente, a gasolina era armazenada em um tanque na Refinaria e transferida, por meio de uma tubulação, para um reservatório semelhante na área do Porto. As operações realizadas na refinação e na faixa da via eram de responsabilidade da Petrobras e as manobras feitas dentro do terminal portuário eram compromisso da Companhia Docas de Santos, afirma o engenheiro metalúrgico e professor mestre, Nestor de Carvalho. Hoje, aposentado da Petrobras, mas trabalhando na época como engenheiro de inspeção, garante que a falha operante ocorrida na baía expôs o duto a uma pressão acima do comum. O fato, as-

sociado a pontos de deterioração presentes nesse duto, ocasionou o vazamento do produto inflamável, que em pouco tempo, se espalhou sobre as águas do mangue. Uma fagulha provocou o incêndio, que teve consequências agravadas por causa das palafitas de madeira que compunham a Vila Socó, em Cubatão. Atualmente, segundo o professor o processo de transferência tem uma série de elementos de proteção, como instrumentos de controle, que garantem um risco menor para operações parecidas. Ele diz ainda que a utilização de dutos para transportar petróleo e derivados é usada em todo o mundo por ser mais segura e de menor custo. “Existe um acompanhamento on-

-line, operado da sala de controle da Refinaria, sem a necessidade da presença física do operador, no local de todas as etapas de saída do produto do tanque de origem até os limites da Refinaria. Todo esse processo é acompanhado e fiscalizado periodicamente por pessoas com especialização e treinamento, que usam técnicas modernas para avaliar interna e externamente toda a extensão da tubulação”. Para evitar vandalismo e obter maior garantia, o professor Nestor explica que a tubulação é enterrada e averiguada mediante instrumentos que permitem avaliar toda a amplitude. Externamente, à vista de quem passa, há uma sinalização proibindo qualquer tipo de atividade

ou construção. A Petrobras faz controle de supervisão nesses locais a fim de averiguar se a sinalização é respeitada, evitando qualquer tipo de acidente, diz o professor. Questionado em relação às probabilidades de uma nova tragédia ocorrer, o professor fala que a possibilidade de um vazamento não pode ser descartada, mas a empresa tem atuado fortemente na operação e manutenção das tubulações subterrâneas. Acrescenta que entidades do Polo de Cubatão e órgãos governamentais formaram uma equipe permanente e capacitada para tratar qualquer fato de emergência na Baixada Santista. E conclui: “o risco de uma eventualidade similar é muito baixo; caso ela ocorra, as consequên-

cias serão menores”. Os prazos de inspeção nesses locais por onde passam os dutos, segundo Nestor de Carvalho, dependem de vários fatores da Norma Regulamentadora 13 (NR13), emitida pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). As empresas que não cumprirem com os procedimentos terão os serviços suspensos. Em relação à Petrobras, o professor afirma que ela sofre auditoria anualmente para a verificação de pontos como documentação, prazos, métodos e relatórios de vistoria; instrumentos de controle, qualificação de funcionários etc. Só no caso de aprovação total, a empresa tem garantida a produção de todas as atividades com baixo risco em dutos e instalações.

INDÚSTRIAS

Especialista esclarece detalhes do acidente em Vila Socó

MARCEL CALDEIRA

Local onde passam os dutos da Petrobras na Vila Socó, em Cubatão, hoje, que transfere a gasolina para o Porto de Santos

Paraíso verde transformado em cinza Kelvyn Henrique

L

ocalizada a 40 km de São Paulo, Cubatão sempre foi um ponto estratégico para o meio comercial e logístico do país. Sua proximidade com o porto de Santos, o maior da América Latina, contribuía para que ali fosse iniciado o maior centro industrial paulista, mas isso logo gerou um problema. Pela cidade ser uma área verde rica em mata atlântica, não demorou muito para que o meio ambiente fosse contaminado pelas construções e a poluição gerada. Esse processo começou na década de 50, com a industrialização acelerada no País, durante o

governo de Juscelino Kubitschek, e na década de 1960 quando, Cubatão já contava com 18 indústrias, incluindo refinaria, siderúrgica, de fertilizantes e de produtos químicos. Em 15 anos, cerca de 60 km² de Mata Atlântica já haviam sofrido degradação, deixando uma clareira que podia ser vista por quem descia a Serra do Mar. Apesar dos problemas ambientais que isso gerava, Cubatão representava 2% da exportação do país e uma das cinco cidades que mais arrecadavam impostos no Estado. A industrialização aconteceu antes da Lei de Controle de Poluição do Estado de São Paulo entrar em vigor, em 1976. Segundo a

Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental de São Paulo (Cetesb), já na década de 80, 30 mil toneladas de poluentes eram lançados por mês no ar da cidade. O Estado resolveu interferir quando os danos à saúde da população se tornaram alarmantes. Entre outubro de 1981 a abril de 1982, cerca de 1.800 crianças nasceram em Cubatão. Dessas, 37 mortas, enquanto outras apresentaram problemas neurológicos e anencefalia. Medidas tomadas A partir de 1983, foi elaborado um plano de controle ambiental pela Cetesb, a pedido do governo do Estado. O plano de contro-

le ambiental foi feito com medições constantes das emissões de poluentes no ar e da despoluição dos rios, além de avaliações trimestrais dos resultados adquiridos e a divulgação na imprensa. Em 1989, foi implantado o projeto de reflorestamento das encostas da Serra do Mar. Para isso, foi utilizada a “chuva de sementes” de várias espécies de plantas. As sementes e esporos possuíam tamanho e peso extremamente pequenos. Então, para viabilizar a semeadura, foram usados “pallets” de material gelatinoso, que facilitariam o plantio em grandes áreas. Segundo a professora Luciane Kawa, especialista em meio am-

biente e tecnologia em gestão ambiental, afirma seu artigo, a semeadura com “pallets” surgiu num cenário onde não se via a recuperação da Serra do Mar e como uma alternativa criativa. Tratava-se de um modelo natural, com um significado simbólico. Em 1980, foi concedido o valor de 80% de melhoria da qualidade do ar de Cubatão e a recuperação do rio Cubatão trouxe de volta os peixes e até o guará-vermelho, pássaro típico da região. Com as mudanças obtidas, em 1992, durante a Eco-92, Cubatão foi apontada pela ONU como símbolo de recuperação ambiental, tendo 98% do nível de poluentes controlados.

25


Especial Vila Socó

Dezembro/2016

Indústrias, as duas faces da moeda

Beatriz Monteiro

BEATRIZ MONTEIRO

INDÚSTRIAS

A

26

Refinaria Presidente Bernardes (RPBC), pertencente à empresa Petrobrás, foi construída em 1955 na cidade de Cubatão, e serve de parque de armazenamento intermediário de produtos para o Estado de São Paulo. É interligada aos terminais da região através do sistema logístico dutoviário, realizando transferência de combustíveis, de acordo com as normas internacionais de segurança, denominados oleodutos, gasodutos ou polidutos. Essas tubulações são enterradas para serem protegidas contra condições climáticas, acidentes e vandalismos. No acidente que marcou a história de Cubatão e do Brasil, o incêndio da Vila Socó, várias hipóteses foram apontadas como causa do desastre, e a principal seria o rompimento dos dutos que transferiam gasolina. A tubulação da Refinaria passava por uma área alagadiça, ocupada, de forma irregular, por cerca de seis mil pessoas, que moravam em casas sobre palafitas. A população corria riscos desde então, e até

Refinaria Presidente Bernardes em funcionamento atualmente

hoje o funcionamento das indústrias gera dúvidas quanto aos perigos que oferecem. O técnico em Segurança do Trabalho Sênior, Salvador Gusmão de Lima Júnior, acredita que o maior incêndio de Cubatão tenha ocorrido por falha na comunicação entre funcionários da RPBC e do terminal da estatal no Porto de Santos, pois a válvula do terminal que iria receber os milhares de litros de gasolina estava totalmente fechada, o que teria causado uma forte pressão no duto, ocasionando no seu rompimento. “Mas a hipótese dos dutos constituídos nos anos 40, e que há anos não obtinham manuten-

ção, também não foi descartada”, acrescentou. O técnico ressalta que os riscos das indústrias na região existem: “Qualquer empresa de extração, produção, armazenamento de produtos químicos inflamáveis ou explosivos, se falharem durante uma operação e não realizarem manutenções preventivas com envolvidos direta e indiretamente, gera o risco de uma tragédia em grande escala”. A prevenção não elimina todos os fatores de perigos, mas controla e reduz a probabilidade dos mesmos. Ainda assim, o risco potencial de acidentes não ocorre com frequência, mas não seria uma situa-

ção rara. “Todo grande incêndio se inicia de um princípio, onde a prevenção falha”, completou Gusmão. A Norma Regulamentar de Segurança e Saúde no Trabalho com Inflamáveis é estabelecida por empresas, com requisitos mínimos contra os fatores de riscos de acidentes provenientes das atividades. Todas as empresas – sejam elas públicas e privadas – devem atender legalmente à risca as legislações exigidas para desenvolverem suas atividades econômicas, assim como determinam as Normas Regulamentares. Sob o ponto de vista de precaução, os acidentes são evitáveis e

O progresso das indústrias

U

m dos maiores polos industriais e petroquímicos da América Latina está localizado na cidade de Cubatão, com o funcionamento de 25 indústrias de grande porte. As empresas possuem a responsabilidade de manter a produtividade e o crescimento econômico da região, em equilíbrio com o meio ambiente. Aldo Ramos Santos, engenheiro químico, professor de Mestrado na Universidade Santa Cecília e ex-funcionário da Petrobrás, afirmou que os riscos sempre vão existir, porém são minimizados hoje em dia. “Com o progresso da engenharia de segurança, com

a construção de novos sistemas protetores e de monitoração, a tecnologia desenvolvida permite reduzir os riscos”. O professor ressaltou a importância das indústrias no desenvolvimento tecnológico do Brasil, dando outro significado ao apelido ‘barril de pólvora’, atribuído a Cubatão por muitos negativamente: “A cidade foi o ‘barril de pólvora’ maravilhoso, que contribuiu grandemente para isso”. Apesar dos perigos, impactos e contras das indústrias, Ramos reitera que não podemos ficar em oposição a elas, pois mantêm nosso padrão de vida, e devemos utilizar seus produtos

passíveis de prevenção. Eles ocorrem por falha humana ou por fatores ambientais, e podem envolver os aspectos tempo, homem, material, maquinaria e equipamento. José Antônio Oliva da Costa Bravo, aposentado da RPBC desde 1988, acredita que a moradia ilegal da Vila Socó foi a principal causa da tragédia, e alega ter conhecimento de boatos de que a população roubava os produtos que eram transferidos pela tubulação. “Sempre vai haver as duas versões do assunto, de quem se prejudicou e da empresa. Mas talvez o problema tenha sido a má localização das casas e os roubos que diziam ocorrer”, comentou Bravo, não descartando a hipótese de falha humana dos responsáveis pelos painéis de controle da tubulação. Sobre os riscos que as indústrias trazem ainda hoje para a região, o aposentado opina que não há preparo nenhum das mesmas contra acidentes, existindo perigo para a população, citando também a falta de organização no combate ao incêndio em 2015 nos tanques da Ultracargo, em Santos. REUTERS

Vista aérea das indústrias na cidade de Cubatão, no litoral de São Paulo

como meio de desenvolvimento humano. O ex funcionário da Petrobrás contou que as tubulações da época do acidente – relocadas em outras posições – ainda são

utilizadas na transferência dos produtos, e contam com a manutenção preventiva, feita planejadamente como precaução, e a manutenção corretiva, feita por necessidade

de reparação. Sobre o incêndio da Vila Socó, o engenheiro opina que não teria sido na mesma proporção, se a população tivesse avisado sobre o vazamento que já ocorria.


Dezembro/2016

Especial Vila Socó

Eduardo Corrêa

E

m várias partes do mundo desastres em refinarias, oleodutos e plataformas de petróleo vêm impulsionando a modernização dos sistemas de distribuição e armazenamento de líquidos inflamáveis. No Brasil, o caso do acidente na Vila Socó em Cubatão, há mais de 30 anos, ficou marcado pela tragédia e rapidez que um erro humano pode causar em apenas uma noite. Re-

centemente, outro acidente, dessa vez em um Terminal da Alemoa em Santos, chamou a atenção sobre os riscos que a operação de distribuição e armazenamento de gasolina e derivados inflamáveis pode causar ao ambiente onde está instalada. Muitas vezes tais operações se tornam uma bomba-relógio à mercê de apenas alguma falha para marcar mais uma tragédia. O engenheiro químico Claudio Neves explica que nos últimos 20 anos novas

tecnologias vieram para trazer mais segurança no processo de distribuição de gasolina e derivados. Ele conta existir uma nova técnica que evita que os oleodutos criem ferrugem, a chamada Proteção Catódica. Através dela, usam-se elétrons que correm por dentro do oleoduto, eliminando as partículas que geram a oxidação do cano – processo que para ele deve ter sido um dos motivos do rompimento do oleoduto na Vila Socó. “O

acidente da Vila Socó ocorreu por um erro na pressão no oleoduto, mas muito disso pode ter sido causado pela oxidação em algumas das juntas do material que compõem o cano”, explica. Já a manutenção de oleodutos é bem mais complexa. Hoje em dia, existem diversas técnicas para essa operação, sendo que o ponto principal na manutenção é a detecção de vazamentos. Neves cita dois métodos que auxiliam na detecção: o primeiro e mais confiá-

vel é um método acústico, que nada mais é do que a instalação de sensores no oleoduto que detectam vazamentos pela energia acústica produzida pelo fluxo do líquido no cano. Já o método infravermelho, é usado para medir a temperatura dentro do oleoduto, e pode cobrir quilômetros de tubulações diariamente. “Os dois métodos são muito utilizados, sendo que o mais confiável é o acústico, por medir um vazamento em tempo real”, conta.

INDÚSTRIAS

Tecnologia diminui chances de novas catástrofes

DIVULGAÇÃO CORPO DE BOMBEIROS DO ESTADO DE SP

Combate ao incêndio nos tanques na Alemoa que duraram cerca de 9 dias, em Santos, no mês abril de 2015

Falhas que levam a acidentes ainda acontecem

E

m abril de 2015, um acidente em um terminal de líquidos em Santos causou incêndio que perdurou por oito dias. O terminal da empresa Ultracargo pegou fogo em um dos tanques que armazenavam combustível, o que causou a mobilização de 200 bombeiros vindos de várias cidades do Estado de São Paulo e a utilização de cerca cinco bilhões de litros de água. Esse foi o segundo incêndio mais demorado do mundo. A empresa Tequimar, operadora do Terminal, foi multada pela Cetesb

REUTERS

em R$ 16 milhões por danos ambientais causados pelo incêndio. A empresa foi autuada por lançar material tóxico no estuário de Santos, em manguezais e em torno do terminal. Os moradores da Alemoa em Santos e no Casqueiro em Cubatão teve o trabalho interrompido por conta da mortalidade de milhares de peixes devido à contaminação da água. Além da multa, a empresa teve que fazer melhorias nos sistemas Visão aérea do Porto de Santos durante os oito dias de incêndio de armazenamento, prevenção e combate de A Ultracargo informou de armazenamento e legislação, regulação e incêndios, o Líquido Ge- que vem fazendo me- que a sua operação se normas técnicas pertirador de Espuma (LGE). lhorias nas condições dá em acordo com a nentes à sua atividade.

27


Dezembro/2016

Especial Vila Socó

Petrobras lidera acidentes petrolíferos

Noelle Neves

O

incêndio da Vila Socó faz parte de uma série de Petrobras. Segundo dados do Ibama enviados à CPI da empresa, entre 2010 a junho de 2014, ocorreram 285 acidentes em plataformas, embarcações e refinarias. Em nota, a Petrobras disse ter ocorrido uma redução de vazamentos desde 2012. Em 1984, por exemplo, ficou marcada a explosão na Plataforma de Enchova(Bacia de Campos), que deixou 37 mortos e 23 feridos. A perfuração de um poço de petróleo provocou uma explosão, seguida de incêndio. Um dos cabos de aço da baleeira se rompeu e o outro ficou preso. A falta de manutenção

foi uma das principais causas do desastre. Já em 2001, a P-36 explodiu e matou 11 integrantes da equipe de emergência. Cinco dias depois do desastre, a plataforma naufragou carregando consigo mil e quinhentas toneladas de óleo. “Podemos imaginar o que acontece quando colocamos óleo em um copo de água, o óleo não se mistura com a água e isto também ocorre no mar, o que também impede a passagem da luz, gerando falta de oxigênio, causando a morte de espécies e interferindo da cadeia alimentar. Com isso, a pesca lucrativa pode cair, o que gera um problema econômico também”, explica Técia Bergamo, geógrafa e professora da Unimes.

Cuidados O técnico de Perfuração de Poços, Bruno Gomes conta que os períodos de embarque nas plataformas duram em torno de 14 dias e que o trabalho envolve muito risco. Em caso de evacuação, todos os trabalhadores devem ir ao ponto de encontro, que varia de acordo com o procedimento da plataforma. Com exceção da equipe de contingencia, que é responsável para fins como combate a incêndio, resgate ao ar e controle de poço. “Como eu não participava de nenhuma equipe de contingência, minha primeira preocupação seria ouvir o alarme e saber para onde poderia me dirigir para o abandono. Minha prioridade é me

salvar”, conta Bruno porções são marcadas para sempre. Não só Causas de Acidentes pelas sequelas físicas As causas dos aciden- que a tragédia causa, tes são em maior parte mas também pelas produto de vazamento lembranças e perdas de gasolina. Na Baixa- tão dolorosas. O peda Santista, em 1984, dreiro Erivaldo Batista o caso da Vila Socó dos Santos tinha 15 marcou a história: “Eu anos quando presenme lembro de ligar a ciou um dos maiores televisão e ver a cober- acidentes envolvendo tura da tragédia”, conta uma refinaria de petróo comerciante Luiz da leo na Baixada SantisFonseca, de 48 anos. ta: o incêndio da Vila O vazamento também Socó, em Cubatão. foi causa do incêndio “Parecia um filme de na Refinaria Reduc, terror. Eu estava dorno Rio de Janeiro. O mindo e acordei com incêndio causou 38 gritos. Era muito fogo. mortes devido a ex- Toda a vez que lemplosão e lançamen- bro, me desestabiliza. to de fragmentos. Eu estava apavorado. Quanto a implantação Demorou dois anos de uma refinaria de pe- para as pessoas contróleo, a empresa tem seguirem reconstruir que seguir a legislação. as vidas, mas nenhum valor pago pela empresa vai tirar a dor de Vitimas As vidas das vítimas de perder um pai ou uma acidentes de tais pro- mãe”, finaliza Erivaldo. NOELLE NEVES

INDÚSTRIAS

Petrobras: Os acidentes 1 Refinaria Reduc(1972)

Causa: danificada por um vazamento e incêndio em válvula de esfera de GLP, com explosão e lançamento de fragmentos. Mortes: 38

Causa: Litros de gasolina vazados de uma das tubulações. Mortes: oficialmente 93, mas moradores afirmam que foram mais de 500.

2 Enchova (1984)

3

Causa: A falta de manutenção adequada e condenação de alguns equipamentos podem ter sido as principais causas do desastre. Mortes: 37 mortes e 23 feridos

P-36 (2001)

Causa: A conclusão foi que o acidente ocorreu devido à “não conformidade quanto a procedimentos operacionais, de manutenção e de projeto” Mortes: 11

4 Refinaria Landulpho Alves (2015)

5

Causa: A explosão supostamente ocorreu quando alguma faísca gerada durante a manutenção entrou em contato com o gás - possivelmente nitrogênio. Mortes: 3 feridos

Petrobras lança plano para garantir maior segurança Renan Costa

A

28

Vila Socó(1984)

pós 32 anos da tragédia da Vila Socó, em Cubatão, a Petrobrás lançou um planejamento que tem como um dos focos a segurança de seus trabalhadores e também das pessoas que moram perto de instalações da empresa. O planejamento terá início no próximo ano e termina em 2021. Investimentos neste pla-

nejamento contabilizam R$ 74,1 bilhões. O valor representa 25% menos do que o projeto anterior. Os valores investidos em segurança somam R$ 51 milhões, enquanto 82% do valor total estão destinados à produção e exploração. A tragédia que ocorreu na Vila Socó faz parte de uma série de acidentes envolvendo a Petrobras. Segundo

José Maria Rangel, diretor da FUP (Federação Única dos Petroleiros), a Petrobrás investe mal em segurança e não há muita fiscalização por parte da ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis). Ainda segundo Rangel, diante do crescimento das atividades da Petrobrás, deve haver também maior fiscalização para que não ocorram tragédias novamente.

“O investimento feito em segurança é insuficiente em relação às necessidades operacionais da empresa. Faltam treinamentos preventivos de segurança nas instalações aos funcionários. Isto fica evidente após os acidentes que ocorreram nos últimos anos”, relata Rangel. Em relação à fiscalização, ele afirma que há instalações que não passam por fiscalização há dois anos.


Dezembro/2016

Especial Vila Socó

Larissa Pedroso

O

s incêndios são mais comuns do que imaginamos. Muitas vezes, um descuido é suficiente para que tudo seja consumido pelo fogo. A prevenção é essencial para evitar grandes transtornos. O profissional aposentado do Corpo de

Bombeiros em São Vicente, Carlos Alberto Pinto, que esteve 37 anos no exercício dá algumas dicas que podem ser úteis para prevenir esse tipo de acidente. Entre elas: guardar sempre em local seguro álcool e combustíveis inflamáveis e ter cuidado com o gás de cozinha, que é um grande aliado do fogo e das explo-

sões. Se a pessoa sentir cheiro de gás no ambiente jamais deve riscar fósforos ou acionar interruptores de luz, abrir portas e janelas para arejar o ambiente e chamar os bombeiros. O bombeiro aposentado orienta ainda para que se preste atenção em pequenas coisas que passam despercebidas no dia EDUARDO MIKAIL

Existem quatro tipos de extintores diferentes, para diversos casos

a dia como sobrecarregar tomadas com diversos adaptadores acoplados a ela, carregar celulares sobre móveis estofados e deixar velas em pratos. Embora você possa pensar que jamais será vítima de um incêndio em casa, é melhor estar preparado e saber o que fazer para evitar entrar em pânico se isso acontecer com você. Se você presenciar um início de incêndio a primeira prioridade deve ser conseguir sair e fazer com que todos que estejam também no local saiam o mais rápido possível. Não há tempo para parar e pegar objetos de valor, quando se trata de um incêndio doméstico, é importante seguir alguns passos: proteger-se da inalação de fumaça, ficar próximo ao chão, agachar ou se rastejar com mãos e joelhos. Carlos afirma que a inalação da fumaça, realmente, leva as pessoas a ficarem desorientadas e pode até mesmo deixar uma pessoa inconsciente. Por isso, ele aconselha que

“Deve-se cobrir o nariz e a boca se tiver que andar por um local cheio de fumaça. Caso suas roupas comecem a pegar fogo, caia no chão e role pra lá e pra cá até que consiga apagar o fogo, vai abafar bem rápido”. Ao conseguir sair do local, ligue imediatamente para a emergência e afaste-se da estrutura. O bombeiro ainda destaca um fato comum que ocorre nos filmes de ficção e que seria perigosíssimo repetir da vida real: entrar de novo em prédios ou casas em chamas. “Na vida real as pessoas quase sempre morrem ao tentar sair novamente, por já estarem sem tanta força”, garante.

SEGURANNÇA

Bombeiro dá dica para segurança dentro de casa

Moradias de madeira Elas possuem um maior risco de incêndio comparado com as casas de alvenaria. É um material de fácil combustão, a madeira corre um risco maior de sofrer não só com incêndio, como também com vendaval, granizo, ciclone e furacão.

Atendimento dos bombeiros leva em média cinco minutos

BRUNO ALTMANN

Bruno Altmann

A

té hoje comenta-se que a Petrobras teria demorado para chegar ao local, do incêndio, o que acarretou uma tragédia de maiores proporções. E qual é o tempo estipulado para o atendimento de ocorrências do tipo? Segundo tenente e ex-bombeiro Carlos José Ribeiro Patusco, que hoje trabalha em uma empresa que presta consultoria na prevenção de incêndios, a rotina de atendimento da corporação de bombeiros é a seguinte: partir de quando uma chamada é cadastrada, checa-se a gravidade da situação para

Em áreas pobre há casas de madeira onde o fogo se alastra mais rápido, portanto, cada minutos de cuidado é importante

saber o que levar ao local, e então, a equipe tem 30 segundos para estar na rua. Caso haja algum atraso, as punições

vão desde advertência verbal a advertência escrita e, prisão dentro do quartel até a perda da farda dependendo da gravi-

dade da situação. Atualmente o tempo de resgate ideal do corpo de bombeiros no mundo é de cinco minutos, mas

com todas as dificuldades de locomoção acaba-se chegando em sete ou oito minutos ao local, explica o ex-bombeiro.

29


Dezembro/2016

Especial Vila Socó

Fevereiro de 1984

Imagens

30

Reprodução Folha Uol


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.