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O coronel perde uma batalha
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O coronel perde uma batalha
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Oamor de Luisa e Gabriel Eligio foi um sinal de alerta para os pais de Rosa e uma preocupação para os Márquez. Na tentativa de exorcizar sua filha do romance com o telegrafista, o coronel fez de tudo o que estava à sua altura: falou sobre as dificuldades da vida, explicou que quando em uma casa começa a faltar o dinheiro o amor se extingue da mesma forma que uma flor fica murcha por falta de água e, por último, quando viu que nada funcionava em seu teimoso coração, decidiu que a distância seria o melhor antídoto contra esses amores e enviou Luisa a uma chácara localizada a vários dias de distância do povoado. Tinha que tirar o telegrafista da cabeça dela se quisesse vê-la casada com um médico, um advogado ou um engenheiro e nada melhor do que a distância para esfriar os corações. “O que os olhos não veem o coração não sente”, pensou, seguro de ter tomado uma boa decisão ao separar os jovens apaixonados. Não imaginava que lutar contra o sentimento que os unia era como desconhecer a imensidão do mar que se estendia a quatro horas do povoado.
O coronel resistia em se dar por vencido, mas, enfurecido, via que o poderoso amor de sua filha era mais difícil de vencer do que os inimigos contra os quais combateu com sangue e fogo na Guerra dos Mil Dias. “Ganhou um novo filho”, a mãe de Rosa disse um dia ao bravo guerreiro. Não muito convencido dos benefícios que poderia agregar esse “filho” que o destino queria lhe impor, o coronel limpou a garganta e depois de uma breve pigarreada, expressou que tinha algo para resolver, colocou seu chapéu e saiu à rua.
Toda a vizinhança acompanhava essa batalha desigual entre o poderoso coronel com a jovenzinha apaixonada. Mas Luisa estava decidida a conseguir o apoio de personalidades de respeito que demonstravam ao coronel o quanto estava equivocado ao se opor ao amor do jovem casal. De fato, até conseguiu a mediação das altas hierarquias eclesiásticas por intermédio do monsenhor Pedro Espejo, que havia chegado a exercer o sacerdócio em Roma, com o cargo de secretário particular do papa. — Se continuarmos dizendo não, é possível que vá falar até com o Papa — dona Tranquilina comentou com a mãe de Rosa em uma tarde.
O sonho de um grande casamento nunca se concretizou nem para o coronel e dona Tranquilina, e muito menos para suas amizades que esperavam a ocasião como um evento memorável no povoado. Devido à oposição familiar, Luisa e Gabriel Eligio acabaram se casando em Santa Marta sem a presença de seus pais e se mudaram para Riohacha. Pouco tempo depois Rosa ficou sabendo por dona Tranquilina que Luisa
estava esperando seu primogênito. Além da dor de não tê-la ao seu lado, agora ficariam preocupados com sua saúde, e acabaram lhe escrevendo pedindo que retornasse à casa para acompanhá-la no parto e ajudá-la com os primeiros cuidados daquele que seria seu primeiro neto.
Antecipando o retorno de sua filha, o coronel decidiu ampliar sua casa para acomodar a jovem família. Com esse propósito encarregou dessa tarefa um pedreiro que se orgulhava de seus bons serviços com o título de “mestre de obras”. O homem apareceu com um ajudante e depois de tomar as medidas do quintal se dedicou a traçar um retângulo marcando-o com uma corda presa por quatro estacas fincadas em cada canto.
Era primo distante de Mauricio Babilônia e no dia seguinte voltou com seu ajudante, um homem com uma fisionomia inesquecível. Forte, apesar de magricela, usava sempre calça jeans e camiseta, chapéu de aba larga e um sorriso de dentadura incompleta iluminada por um dente de ouro. Empurrava um carrinho de mão com muito entusiasmo enquanto enchia o quintal com areia, tábuas de madeira e telhas de zinco. Logo todos na casa já sentiam sua presença pelo seu hábito de caminhar com sua pesada carga assobiando alegremente um tema musical irreconhecível.
À medida que os dias se passavam, cada membro da família parecia se sentir exasperado pelo ritmo lento que avançava a construção, apesar de a contínua vigilância da menina Francisca, que não escondia ao empreiteiro sua preocupação com a demora. “No ritmo que vão, a criança estará caminhando quando
vocês terminarem o trabalho”, dizia. Nos dias de chuva não apareciam na obra, argumentando que era impossível trabalhar com o mal tempo devido ao perigo de que poderia cair um raio sobre eles. Nos dias de sol, o problema era que havia pegado um resfriado e o calor iria aumentar ainda mais a febre. Ausentou-se por uns dois dias por causa da ressaca, depois de ter bebido grande parte do dinheiro que lhe haviam antecipado pela obra. Finalmente, apesar de os contratempos, as chuvas e as interrupções, a tão aguardada ampliação ficou pronta com o último acabamento no quarto de Luisa, consertando umas goteiras no telhado e com as paredes pintadas de branco, dando uma aparência de frescor.
O retorno de Luisa foi um grande acontecimento na família Márquez. Toda a vizinhança, que acompanhara o processo de construção, passou a inspecionar a nova edícula da casa e o jardim de rosas que a menina Francisca plantara com a ajuda dos índios guayú, justamente diante da janela onde nasceria o tão esperado herdeiro.
Havia rosas brancas, rosadas e amarelas, que depois se tornariam as preferidas do escritor, mas definitivamente o clima de Aracataca não prestava para o cultivo dessas flores, cujo plantio é mais apropriado nas regiões frias.
A menina Francisca regava diariamente os talos espinhosos do roseiral. Mas as flores somente começaram a brotar como por passe de mágica depois de uma das barulhentas chegadas dos ciganos ao povoado. “Coloque uma destas pastilhas a cinco centímetros de cada planta que queira ver florescer”, dizia o homem com um lenço amarrado na cabeça, que falava com
uma solenidade de quem havia descoberto a varinha mágica para dar cor e fragrância à murcha paisagem. De maneira incrível, suas palavras se cumpriram.
Alguns anos mais tarde alguém conseguiu que o cigano revelasse o grande segredo: o caro comprimido proveniente de terras longínquas era na realidade aspirina, que na época se tratava de uma das mais recentes descobertas da medicina para aliviar a dor, mas que também fazia maravilhas como florescer algumas plantas como roseirais, jasmins, azaleias e buganvílias.
No entanto, apesar de o empenho da menina Francisca em demonstrar que seus cuidados no jardim seriam capazes de desafiar as leis da natureza, estava travando uma batalha desigual entre seu otimismo e a esmagadora realidade de cultivar rosas nesse canto quente tropical. Cada botão que brotava e cada flor eram motivos de uma celebração entusiasmada por parte de todo o núcleo familiar. Eram admiráveis a determinação e as horas de trabalho investidas para conseguir esses fragrantes milagres. Até que pareceu se dar conta da difícil batalha que era manter seu jardim e a inutilidade de seus esforços com as roseiras, que uma tarde regressou com ar triunfante trazendo nas mãos um pequeno jasmim.
O novo arbusto demorou a crescer, mas à medida que se passavam os dias se mostrava forte e saudável ao mesmo tempo em que de seus ramos iam brotando umas folhinhas brilhantes de um verde profundo e sem a languidez que mostravam as roseiras nas horas próximas ao meio-dia. Não demorou muito e a fragrância do jasmim coroou os esforços de Francisca e as
perfumadas flores brancas substituíram as delicadas rosas que em ocasiões especiais adornavam o centro da mesa da sala de jantar.
Antes do retorno de Luisa, o coronel havia prometido que trataria bem seu genro; no entanto, ele somente regressaria vários meses depois do nascimento da criança. Com sua chegada, as coisas pareciam funcionar bem entre o pai e o avô do novo herdeiro, em meio a uma cortesia que destoava muito de uma calorosa relação familiar. Na realidade, à medida que passava o tempo, tornava-se mais evidente a decidida resistência do sogro. O jovem telegrafista pretendia não se deixar levar pela relutância que o coronel demonstrava. Gabriel Eligio era um homem supremamente educado, e ninguém jamais escutou uma reação sua com a forma que seu sogro o tratava, que com frequência parecia ignorar sua presença.
Sogro e genro conviviam na mesma casa, sob um clima que mais se assemelhava a uma guerra fria por parte do coronel. Sentindo-se culpado de não poder oferecer à sua esposa os títulos profissionais que seus pais desejavam, Gabriel Eligio tratava de manter uma distância cautelosa do grande patriarca da família Márquez. Esse comportamento, mais que uma represália, era motivado pelo respeito que tinha para com o patriarca. Com uma paciência infinita, o recém-chegado tratava de ignorar os maus disfarçados descasos que ocasionalmente recebia de seu sogro. Qualquer um diria que o coronel estava empenhado em pôr à prova a resistência do homem que havia roubado seus sonhos de um futuro melhor para sua filha.
Nunca, no entanto, o coronel conseguiu que seu genro desse uma única amostra de inconformidade ou ressentimento. A paciência de Gabriel Eligio parecia quase infinita, não somente por causa de seu caráter nobre como também porque estava convencido de que o tempo cura tudo, além de ao longo da vida ter podido se dar conta de que todo homem muda com o passar dos anos e com a chegada dos netos.
Não estava totalmente equivocado. Desde o seu nascimento, o pequeno Gabriel se tornou o centro da atenção de toda a família e da vizinhança. Tal como havia antecipado Gabriel Eligio, o coronel ficou vidrado em seu neto. No entanto, seu ressentimento com o genro não parecia dar trégua. Gabito era apenas um bebê quando seus pais decidiram deixá-lo com seus avós, que estavam muito entregues a ele e, por sua vez, o neto estava muito apegado a eles. Por parte do avô, o menino aprendeu a dar os primeiros passos. Saíam pela rua caminhando; o idoso lentamente e o menino com seus passinhos curtos, esforçando-se para se manter de pé.
Vale destacar que em um clima tão quente como o de Aracataca, Rosa nunca viu o coronel sair à rua sem o seu paletó. Todos os dias, antes que o menino chegasse à idade escolar, a bela jovem via passar o avô com seu neto muito cedo. Perguntava-se quem iam visitar tão cedo. Pela tarde os via passar de novo. O avô falava devagar e o menino escutava atentamente as histórias que o coronel contava. — Lá vai dom Nicolás com seu presente — dizia dom Pedro ao ver o coronel passar com Gabito. Era nítido o orgulho que sentia o velho guerreiro ao caminhar ao lado de seu neto.
Às vezes a professora ia visitar suas vizinhas levando como desculpa algum doce preparado em sua casa. A menina Francisca, de forma recíproca, convidava Rosa para que a acompanhasse até o quintal pegar goiabas doces e ácidas com a ajuda de uma vara comprida que sempre fica apoiada em uma árvore ou em um canto da casa. Rosa recordava que esse quintal era muito grande e tinha um aroma característico de frutas tropicais, que incluíam mangas e graviolas. Inclusive houve uma época em que até tinham várias cabras, das quais saíam o prato principal quando chegavam muitos visitantes na casa do coronel.
A menina Francisca e Rosa se divertiam colhendo goiabas no quintal, que na época era muito bem cuidado. Algumas frutas eram consumidas ali mesmo, e guardavam o resto para fazer sucos depois de passar a polpa em uma peneira.
As ruas estavam sempre cobertas de poeira, como todos os móveis e o que havia dentro das casas. Por isso, apesar do calor, ninguém saía às ruas de sandálias, porque os pés acabavam ficando cheios de poeira. As mulheres usavam calçados fechados sem meias, enquanto os homens usavam sapatos de cadarço com meias, mais por costume do que por comodidade. No entanto, não havia maneira de convencer um homem a usar sandálias na rua.
Pegavam o caminho de volta à casa ao meio-dia para um recesso sagrado, o do horário do almoço no povoado, de duas horas e meia e divididas entre uma hora de almoço e um breve cochilo ou a possibilidade de um banho curto para se refrescar. Nos arredores se escutava o som da campainha para anunciar
a saída dos estudantes e as ruas começavam a encher de vozes infantis e alegria das crianças seguindo o caminho de casa para o almoço.
Às duas da tarde a professora saía de novo de sua casa até a escola. Os pequenos estudantes de Rosa chegavam cheios de entusiasmo antecipando com alegria as leituras que a professora preparara para as últimas aulas do dia. Com frequência os contos ficavam inconclusos e a trama se prolongava por vários dias, aumentando a expectativa dos pequenos estudantes, fascinados com as narrativas e até antecipando na imaginação o que ocorreria na leitura do dia seguinte.
Como uma Sherazade que se entrega à vida ao contar suas histórias, a professora se empenhava tanto em suas leituras que era natural que as crianças ficassem sentadas quietinhas ouvindo-a, encantadas.
Aos sábados, como em todos os colégios e escolas do país naquela época, havia aulas pela manhã. E, seguindo o modelo dos países europeus mais avançados, não davam lição de casa para o final de semana. No final das contas, como os adultos, os estudantes também necessitavam ter um descanso para refrescar a mente e o espírito. Rosa nunca entendia a mentalidade dos professores que sobrecarregavam seus alunos com tarefas para os dias que supostamente deveriam ser de repouso e lazer familiar.
As pessoas do povoado tinham vários costumes, quase tão sagrados como ir à igreja aos domingos. Um desses hábitos tinha a ver com o preparo das reuniões noturnas. Na realidade, pouco antes do início desses bate-papos amigáveis,
na vizinhança já começavam a regar a rua com água. Quase sempre essa tarefa correspondia aos empregados, mas era frequente que qualquer membro da família o fizesse. A estratégia era eficaz para combater a poeira, essa nuvem quase invisível que estava presente em todas as partes, cobria as mesas, as panelas nas cozinhas, os livros nas estantes, os espelhos, as fotografias familiares, as escovas de dente e até as folhas das plantas do jardim. Com a poeira assentada, um dos primeiros a sair para se refrescar debaixo das amendoeiras diante de sua casa era dom Nicolás. Quando Rosa saía, sempre o encontrava sentado em sua cadeira de balanço, onde parecia absorto nos seus pensamentos, com o olhar perdido no horizonte. Outras vezes conversava com seu neto, que parecia escutá-lo com devoção. Dona Tranquilina quase sempre era a última a sair de casa, depois que terminava de assar os biscoitos e as guloseimas que preparava com grande maestria.
Depois de um tempo, o coronel saía de novo para caminhar, quase sempre acompanhado de seu neto. Era então quando dona Tranquilina passava a ser o foco de toda a atenção com suas histórias de bruxas e seus casos. A audiência continuava crescendo com Wenefrida, irmã do coronel; a menina Francisca e outros ocupantes da casa dos Márquez, incluindo a tia Sara e a prima Elvira, além de alguns visitantes que chegavam para passar a noite e tinham suas redes penduradas no corredor. Essas reuniões eram quase uma tradição inesquecível em que participavam outras amizades e parentes da vizinhança, incluindo Rosa, sua mãe e suas irmãs. Em qualquer dia da semana era fácil contar entre dez e doze pessoas diante do portão de dona
Tranquilina. Ali permaneciam até a hora de ir dormir, com exceção dos finais de semana, que era quando jogavam loteria.
As noites eram frescas e uma suave brisa refrescava as paredes das casas ainda quentes. Ninguém ia dormir muito cedo devido ao esfriamento das estruturas que levava algum tempo. Depois todo mundo se recolhia em seus quartos para descansar, até que algum ruído sobre o telhado despertava a vizinhança sem que aparentemente ninguém desse importância. Sempre alguém gritava: “Quem está aí?”. Então, uma voz ao longe do outro lado do quintal respondia “Eeeu”, revelando incômodo pela intrusão. Além dos insaciáveis pernilongos que apareciam na temporada de chuvas, ninguém ousava interromper o sono a menos que se tratasse de um motivo sério, como se levantar de noite para usar o penico ou tentar calar com um grito um ocasional latido de um cachorro ou o miado romântico dos gatos.
Às cinco da manhã começa o canto dos galos. Canta um galo aqui e outro ali contesta. Era muito lindo escutá-los e esse som que ocorre somente no campo servia de despertador para a maioria das pessoas do povoado. A madrugada se inundava com o cheiro do café. Já cedo assim havia muita gente a caminho do trabalho na United Fruit Company. Aqueles que ficavam em casa começavam a varrer os portões e limpar as teias de aranha dos tetos com grandes escovas feitas de folhas de caruru.
No meio de Aracataca passava um pequeno riacho. Era fundo e todos iam lá se refrescar. As crianças eram as melhores nadadoras, e se atiravam de cabeça, ou tapando o nariz, provocando risos entre seus amigos e irmãos. Para as mulheres
não havia trajes de banho; o que usavam na época era uma espécie de maiô, parecido com um vestido de algodão que cobria o corpo todo até um pouco acima dos tornozelos. Dessa forma, nadar era muito difícil para as mulheres totalmente embrulhadas nessa pesada roupagem molhada que dificultava qualquer movimento. Além disso, o protocolo local incluía que as mulheres solteiras tivessem sempre de ir acompanhadas por algum familiar ou de uma das empregadas da casa.
Aos domingos, assistir à missa era obrigatório e se ausentar dessa celebração religiosa era motivo de comentários na vizinhança e de um contundente convite ao confessionário do padre Angarita. Rosa pensava que o mais lógico seria ir à missa às seis da manhã porque fazia menos calor. Nessa hora, não tinha muita conversa porque a missa era mais curta. Em contrapartida, a missa das oito da manhã — a que ela costumava ir – era muito longa. No entanto, essa era a missa a que todo o povoado assistia. As mulheres chegavam com suas melhores roupas e leques nas mãos. Os homens usavam terno e gravata, colocando o melhor que tinham para causar uma boa impressão. Tanto o coronel quanto dom Pedro estavam sempre presentes, cada qual sentado ao lado de sua respectiva família. Os rapazes iam olhar as garotas, e as garotas os seus galãs. De certa forma, além de rogar a Deus, as pessoas iam à igreja para se socializar e conhecer os visitantes que chegavam para ver seus parentes e amigos. Em algumas ocasiões, Gabito servia de coroinha e precisava ver o orgulho que despertava em dona Tranquilina e na menina
Francisca, que não tiravam os olhos dele durante toda a missa. Qualquer um dizia que entravam até em transe.
Nessa época as missas eram realizadas em sua totalidade em latim, como era de costume em todas as igrejas, e as pessoas respondiam automaticamente na língua eclesiástica, sem compreender o seu significado. Rosa não era exceção e somente entendia as partes da liturgia que eram ditas em espanhol, que eram a epístola, o evangelho e o sermão, que para o horário das oito horas da manhã se prolongava por demasiado tempo e que culminava com as repreensões do padre Angarita. Ali era onde se reencontrava com os amigos, parentes e vizinhos. Os homens frequentavam a igreja e o coronel era muito generoso com suas contribuições para as celebrações de algumas festas religiosas.
O veterano combatente não costumava falar de suas batalhas. Pelo contrário, costumava se sentar para ouvir com muito interesse os casos de dona Tranquilina e as histórias dos visitantes sobre as lendas de seres extraordinários.
Uma das lendas mais populares era a de “La Mojana”, uma personagem real que viveu séculos atrás. Ninguém se lembrava do verdadeiro nome daquela que supostamente foi uma bela mulher de origem nobre e cabelos ondulados de cor cobre que viveu em Cartagena nos tempos de vice-reis, escravos trazidos de Angola, indígenas libertos e nobres espanhóis radicados no Novo Mundo. Havia se casado com um homem cruel e tirano, que, durante um ataque de ciúmes ao ver que ela dedicava demasiado tempo cuidando de seu filho, matou-a. Ao ouvir o grito da mãe ao morrer, o menino, que estava
sentado à beira do poço de água, caiu no fundo e se afogou. Durante anos as pessoas se lembravam do sepultamento no qual o caixão da mãe foi velado ao lado de seu filho em meio ao choro e à consternação dos vizinhos e desconhecidos que sentiram a tragédia como se fosse própria. Depois do enterro duplo muitos começaram a vê-la, convertida em um fantasma, com seu vestido branco e os olhos vermelhos de tanto chorar. Sempre trazia na mão um pente para arrumar seus cabelos, encaracolados e brilhantes como os raios solares de um entardecer. Logo se converteria no terror das mães de toda a costa colombiana, onde sua lenda se espalhou devido a sempre estar procurando crianças para que fossem acompanhar a alma de seu filho. Com esse propósito, diziam que rondava os poços causando a morte de muitas crianças que escorregavam ao ver sua beleza refletida nas águas na profundidade.
Gabito havia escutado muitas vezes a advertência, quando se aproximava do poço de água que havia na sua casa. — Não se aproxime do poço, que “La Mojana” vai aparecer para você — diziam a ele.
Eram as mesmas palavras que repetiam as mães e os parentes em todos os lares, como uma advertência para que as crianças deixassem de rondar os poços que, naqueles tempos, existiam em muitas casas.
A empregada de Rosa garantia que tinha visto “La Mojana” quando era pequena, recordando que no momento do encontro com a bela mulher sentiu uma tontura, e com muita sorte caiu na parte exterior do poço. Tirando o susto, apenas machucou os joelhos.
Entre os seres fantásticos, todos davam como certo a existência da “Alma Solitária”, o espírito de uma mulher que negou água a Jesus Cristo a caminho do calvário e foi condenada a vagar pelo mundo até o fim dos tempos. Na mesma linha, não havia pescador que saísse com seus anzóis sem levar um pouco de tabaco e de sal como oferenda ao “Mohán” ou muán, um ser bem peludo e com um cabelo muito longo, que supostamente se apaixonava pelas mulheres quando se banhavam no rio e costumava enroscar as redes dos pescadores que não traziam sua porção de tabaco e sal.
Alguns forasteiros eram bem-recebidos nas reuniões na casa de dona Luisa. O visitante contava suas próprias histórias sobre seres extraordinários de outras regiões colombianas, incluindo “A mulher de uma perna só”, “A chorona”, “A luminosa” e outras mais. Em um ambiente saturado de mistério, os novos interlocutores encontravam um auditório ansioso para escutar seus testemunhos de eventos sobrenaturais que diziam ter presenciado em algum momento de suas vidas e com frequência aterrorizavam todos com a suposta história da aparição de alguma vítima desses pavorosos encontros.
Aracataca, por sua vez, contava com suas próprias lendas. Uma das mais populares tinha a ver com a casa vizinha à do coronel e dona Tranquilina, a do padre Angarita, onde supostamente costumava aparecer um homem sem cabeça. O horripilante espetáculo era suficiente para que os aterrorizados habitantes do povoado evitassem se aproximar da casa do clérigo com a crença muito fundamentada de que a casa era mal-assombrada. No entanto, quase em segredo e somente
a algumas pessoas mais próximas, dona Tranquilina explicava a realidade por trás dessas versões, chegando à conclusão de que o cura de Aracataca, o padre Angarita, era quem supostamente havia inventado e disseminado entre a população o conto da horrível aparição porque, como humano que era, podia ter suas próprias fraquezas e por isso não queria que ninguém se aproximasse de sua casa. Além disso, o temor de se deparar com o assustador fantasma decapitado era suficiente para que ninguém o vigiasse e assim ele poderia desfrutar de certa privacidade para se despir de suas incômodas batinas.
Apesar de não acreditar no mito do decapitado na casa de seu vizinho, a menina Francisca Mejía estava entre os assíduos ouvintes dos contos de espanto, e às vezes contribuía com alguma história de seu próprio repertório. Contava como em alguns quartos da casa dos Márquez habitavam os espíritos dos antepassados da família e estava segura de ter sentido o aroma da colônia de um deles, o cheiro de tabaco de outro, e até os via caminhando de noite, como almas penadas sem poder alcançar o esperado sonho eterno na outra vida.
Entre suas histórias tinha uma que sua avó lhe havia contado, de uma costureira que desperdiçava as linhas ao costurar, e ao morrer teve como penitência recolher todas as linhas que havia gastado ao longo de sua vida. De noite ela podia ser vista percorrendo o povoado com uma vela na mão para iluminar todos os cantos onde poderiam estar os fios. Uma tarefa difícil e longa, porque enquanto não recolhesse cada uma das fibras que havia desperdiçado, não poderia passar para a melhor vida.
A menina Francisca era a madrinha de batismo de Gabito e era a que se encarregava da casa. Era dona de uma grande autoridade na residência dos Márquez e decidia a que hora iriam comer e a que hora que se fazia qualquer coisa. Além disso, tinha um ar de importância, talvez porque na casa de dona Tranquilina, que era muito religiosa, guardavam-se também algumas velas e objetos religiosos, além das toalhas branquíssimas e bordadas à mão que eram usadas no altar da igreja.
Os Márquez eram muito devotos e no dia 2 de fevereiro celebravam com grande pompa a festa da Virgem dos Remédios, padroeira de Riohacha, a cidade que viveram antes de se mudarem para Aracataca. Por sua vez, os habitantes de Riohacha se sentiam muito orgulhosos em contar com a presença, entre seus filhos famosos, do monsenhor Pedro Espejo, que teve o privilégio de ocupar o alto cargo de secretário do papa. A respeitabilidade e sabedoria do sacerdote foram determinantes para que o coronel e dona Tranquilina acabassem aceitando o amor de Gabriel Eligio e Luisa Santiaga (sempre a chamaram de Luisa), depois que o venerado dignitário da igreja enviou-lhes uma carta de Santa Marta, persuadindo para que aceitassem a união entre sua filha e o telegrafista.
Em agradecimento aos esforços com sua filha, dois anos depois, os Márquez foram os responsáveis por uma campanha para dar o nome do alto prelado a uma rua principal de Aracataca, que era precisamente onde ficavam localizadas as casas dos Márquez e dos Fergusson.
A consagração oficial da rua com o nome do monsenhor Espejo ocorreu precisamente em uma das festas da padroeira
da Virgem dos Remédios, na presença do alto prelado, que viajou de Santa Marta para a celebração. Um ano antes havia nascido o primogênito de Luisa e Gabriel Eligio a quem deram o nome de Gabriel José de la Concordia. Foi um parto difícil e o banharam com água benta para que, segundo as crenças da época, não fosse parar no limbo, o lugar onde chegavam as almas das crianças que morriam sem ser batizadas.
Os Márquez haviam pensado em aproveitar a visita do monsenhor Espejo para formalizar o batizado de Gabito, mas não foi possível porque Gabriel Eligio e Luisa estavam de viagem. Foi assim que a ênfase se concentrou então na consagração da rua. A ocasião foi um grande acontecimento em Aracataca, com a presença de cinquenta visitantes de Riohacha que haviam viajado para acompanhar o sacerdote que era um orgulho regional, além da fama de santo, já que muitos fiéis já o haviam visto se elevar sobre o piso atrás do altar durante a missa. Por esse motivo os paroquianos faziam romaria à igreja, esperando ver o milagre de levitação do sacerdote. — O sacerdote se eleva do piso? — perguntou o cético pai de Rosa.
No entanto, no povoado todos afirmavam que o milagre ocorria com frequência e jamais ninguém se atreveu a por em dúvida esse curioso dom do sacerdote.
Uma grande aglomeração se juntou na ocasião desse ato tão importante, e mais ainda levando em conta a lendária hospitalidade do coronel, anfitrião fixo nos eventos mais transcendentais da localidade. Os Márquez não pouparam nada: mataram dois cabritos e colocaram no quintal umas estacas
sobre brasas para assar as paletas do pequeno animal. Todo esse banquete vinha acompanhado com arroz e rodelas de plátano. Além disso, dona Tranquilina cozinhou um enorme ensopado de bode, que deu para todos os que quiseram repetir. Seguindo um arraigado costume familiar, a menina Francisca havia colhido goiabas do quintal para preparar o cobiçado doce que sabia preparar como ninguém e que serviu acompanhado de bolachas de sal e queijo costeño, típico da costa do Caribe.
Com uma maioria católica, Aracataca, como em toda a costa do país, orgulhava-se de seu pluralismo religioso. Qualquer um podia ter a religião que quisesse, era o lema quando se tocava no tema espiritual com pessoas provenientes de outros lugares. Ali ninguém tinha que defender sua posição religiosa diante de ninguém, já que no povoado todo mundo professava as mesmas crenças. Rosa havia nascido dentro da religião católica apostólica romana, a mesma a que havia se convertido o seu avô Fergusson, anglicano de nascimento, pouco tempo após ter se estabelecido na Colômbia.
Era natural que o padre Angarita fosse um dos personagens mais respeitados, venerados e temidos da região. Suas palavras e opiniões eram consideradas muito importantes e todos sabiam que, se não fosse pela sua autoridade, muitos teriam perdido o temor a Deus em suas vidas. A criação do mundo, o dilúvio, a fé de Abraão e a valentia do rei Davi faziam parte de seus sermões, as parábolas que Jesus havia pregado também faziam parte do seu repertório. O experiente sacerdote, além de liderar seu rebanho, propunha-se a zelar para que os bons
costumes fossem mantidos em Aracataca, uma tarefa que executava com todo o seu empenho de todas as formas.
Rosa se lembrava do sacerdote sentado de costas para a rua, olhando um pequeno espelho que segurava na mão. Assim, dissimulando, vigiava as jovens do povoado e as via saírem do cinema depois de assistirem um filme proibido, ou se observasse uma transgressão ao pudor na forma de se vestir, rapidamente tocava um sininho que sempre tinha em mãos. Toda vez que se escutava esse som metálico, os curiosos saíam para ver quem teria sido o alvo da sonora repreensão. De fato, era habitual que o severo sacerdote fizesse uma alusão do alto do púlpito às “mulheres que sem compostura e sem vergonha alguma que tal dia a tal hora caminhavam por tal rua”. E arrematava seu discurso dizendo: “Não perguntem seus nomes, vocês as conhecem e elas mesmas entendem”.
Esse zelo do padre Angarita em defender o pudor era sentido com uma severidade especial quando uma mulher se aproximava para receber a eucaristia. Nessas ocasiões, o sacerdote parava por uns segundos que pareciam intermináveis diante da mulher que, de joelhos, segundo os rituais da época, esperava para receber a hóstia. Nos pequenos olhos do cura brilhava então uma maliciosa mistura de repreensão, ironia e desprezo, e depois passavam de baixo para cima deixando envergonhada a magoada “pecadora” segundo os rigorosos códigos do sacerdote.
Talvez por esse motivo muitos garantiam que sobre o púlpito pareciam sair raios e faíscas de fogo quando o sacerdote atacava aqueles que violavam as normas da decência.
“Não deve apenas ser senhora, como também parecê-la”, dizia o sacerdote se referindo à necessidade de manter as aparências em cada aspecto da vida. Esse era o motivo pelo qual as mulheres jamais caminhavam sozinhas ou com seus filhos pelo setor dedicado aos prazeres da carne, ou “o antro do pecado e da perdição”, segundo a descrição do padre Angarita em seus sermões.
Além de vigiar as mulheres que entravam no cinema com vestidos pouco decentes, o padre Angarita estava sempre checando se alguém entrou para ver um dos filmes que estavam na sua lista negra, sob pena de excomunhão a qualquer momento. Talvez por isso não era de se estranhar que, quando na missa dominical chegava o momento da eucaristia, muitos poucos se aproximavam para recebê-la; afinal de contas todos se sentiam culpados por algum pecadinho, desde um pensamento inapropriado até ter assistido, um dos filmes proibidos pelo cura, entre eles se encontravam alguns clássicos do cinema mudo de Charlie Chaplin, como Carlitos se diverte e Senhorita Carlitos, já que assistir no cinema um casal se beijando na boca era motivo de escândalo.
Segundo Rosa, o padre Angarita era um sacerdote muito rigoroso e severo. É possível que como forma de vingança à sua intransigência e seus longos sermões dona Tranquilina tenha dito que a lenda do decapitado fosse invenção do sacerdote “porque talvez não fosse tão santo assim”. O certo é que alguns se perguntavam como era possível que, existindo esse fantasma no seu quintal, o padre Angarita continuava compartilhando sua casa com a estranha aparição.
De qualquer forma, sua tática dava bom resultado. Ninguém, incluindo Rosa, jamais tentou verificar a versão que quase todo o povo dava como verdadeira.
Era proibido que os jovens e as crianças entrassem no cemitério, mas de todas as maneiras e com a cumplicidade de suas empregadas inventavam alguma forma de ir lá matar a curiosidade, pelo simples gosto ao proibido. Os adultos achavam que era melhor manter as crianças e os jovens longe do campo-santo, a menos que se tratasse do enterro de um familiar próximo. Rosa não compreendia o motivo dessa proibição, que atribuía mais a uma preocupação para evitar que a baderna das crianças interrompesse a paz dos defuntos na sua última morada. Por outro lado, nas noites, não havia quem se atrevesse a chegar perto do cemitério. Em um lugar onde desde a infância todos seus habitantes estavam acostumados a ouvir histórias sobre almas e assombrações, era natural que todos tivessem um temor reverencial pelas vinganças que aqueles seres do além-túmulo pudessem fazer contra os vivos. — Nunca se ouviu dizer que um morto pode matar um vivo, nem sequer de susto — dizia Rosa.
Os mitos, o imaginário, o mistério e a ficção pareciam se reunir em uma extraordinária antologia oral de lendas. O passado era adornado com acontecimentos e detalhes extraordinários que cada um aumentava à sua maneira. Segundo Rosa, um dos eventos fora de proporção foi a tão falada greve na zona bananeira, em que várias matérias jornalísticas posteriores atribuíram o trágico saldo de três mil mortos, mas que,
segundo vários trabalhadores da empresa, a contagem não chegou nem a trinta. — Cada um ia contando a história à sua maneira e, a cada nova versão, acrescentavam mais mortos, até que a contagem das vítimas chegou a vários milhares sem que jamais houvesse uma cifra oficial digna de crédito — garantia a professora.
Como consequência desse escândalo, a United Fruit Company içou suas velas e partiu.