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Literatura e gênero literário

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O grande segredo

O grande segredo

do então recente vencedor do prêmio Nobel, dando uma ideia a Beatriz: por que não registrar as memórias da professora sobre o mundo que formou o grande escritor e demonstrou sua vocação para o fazer literário? A professora concordou, sob a condição de que os relatos fossem publicados somente após a sua morte.

As duas mulheres passaram então a marcar encontros regulares. A professora contava as experiências, a jornalista as registrava. Mas não avançou com a história. Anos depois, mexendo em seus arquivos, encontrou as transcrições desses encontros e foi pesquisar sobre Rosa. Ao descobrir que ela havia falecido, decidiu honrar sua memória com a publicação dos relatos, demonstrando que o final de sua vida não precisaria significar o final de sua história.

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Assim nasceu esta obra que, ao romancear a história de Rosa Fergusson, visa trazer ao leitor uma narrativa agradável sobre uma personagem que existiu de verdade, mostrando também o mundo em que Gabriel García Márquez cresceu e que certamente o inspirou na criação de suas obras, já que as famílias da professora e do aluno eram vizinhas na pacata cidade de Aracataca.

Literatura e gênero literário

Uma das manifestações artísticas do ser humano, a literatura é chamada de arte das palavras, pois representa comunicação, linguagem e criatividade em prosa e verso. Por intermédio da literatura, a realidade é recriada de modo artístico com o

objetivo de proporcionar maior expressividade, subjetividade e sentimentos ao texto.

“O texto repercute em nós na medida em que revele emoções profundas, coincidentes com as que em nós se abriguem como seres sociais”, conceitua Domício Proença Filho, em seu livro A linguagem literária.

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Mas nem todo texto possui linguagem literária. Uma reportagem, por exemplo, pode contar uma história que provoca reações e reflexões no público. Ela usa, porém, linguagem jornalística e seu conteúdo se limita aos fatos apurados pelo repórter. Ou seja, a função do texto é informativa e não literária.

“O que faz de um texto literatura é o tratamento que a ele se dá”, explicam Cinara Ferreira Pavani e Maria Luíza Bonorino Machado, em seu livro Criatividade, atividades de criação literária. 2 “Uma mesma frase pode expressar o que suas palavras indicam, literalmente, ou ir além, sugerindo significados que exigem um ato interpretativo por parte do leitor.”

Assim, justifica-se a classificação de A professora e o Nobel: Gabriel García Márquez como obra literária, já que recria uma realidade, com lirismo e subjetividade, como é possível notar logo no início da obra, na página 14:

Já haviam dito mil vezes à Rosa que ela era a mulher mais linda do povoado. Aracataca era o nome real dessa população vizinha ao mar do Caribe, com telhados de zinco que

1 São Paulo: Ática, 2007. pp. 7-8. 2 Porto Alegre: UFRGS Editora, 2003, p. 15.

brilhavam debaixo de infinitos céus azuis e que soavam como tambores quando apareciam as chuvas descomunais.

Como existem vários tipos de produções literárias, os especialistas decidiram agrupá-las de acordo com suas características em comum. São os chamados gêneros literários. Entre eles estão biografia, autobiografia, poema, romance, novela, história em quadrinhos, entre outros. Ou seja, um fato pode ser contado de formas diferentes, dependendo do gênero que se utiliza para contá-lo.

No livro Viver para contar, Gabriel García Márquez relembra seus anos de infância e juventude. O autor escolheu o gênero autobiografia para mostrar o período em que se funda o imaginário residente nas narrativas e nos romances que ele já havia publicado. Mas aqui entra um ponto interessante: nossas lembranças de infância nem sempre são precisas; elas podem ser vagas, confusas ou mesmo ingenuamente inventadas. Segundo pesquisadores, cerca de quatro em cada dez pessoas inventam suas primeiras lembranças e isso ocorre porque nosso cérebro não desenvolve a capacidade de armazenar memórias autobiográficas, pelo menos não até completarmos dois anos de idade.3 É claro que é saboroso saber as lembranças de um autor magistral e que com certeza influenciaram na criação de suas histórias, mas obter uma outra descrição de tais recordações por meio dos relatos de outra pessoa trazem uma

3 GRIFFITHS, S. “Podemos confiar nas primeiras recordações da infância?”, BBC News Brasil. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/vertfut-48701541>. Acesso em: 30 nov. 2020.

nova luz a tais questões, apresentando um interesse renovado em seu conteúdo. Pois é justamente isso que acontece em A professora e o Nobel: Gabriel García Márquez.

Nesta obra, optou-se por utilizar o formato de uma biografia, gênero que surgiu no período renascentista como resultado do crescimento da valorização individual em detrimento do papel das pessoas no âmbito coletivo, e que foi ganhando maior projeção ao longo dos séculos. No século XIX, foi definido pelo lexicógrafo Émile Littré como “uma espécie de história que tem por objeto a vida de uma única pessoa”.4

Analisando mais detidamente o gênero biografia, diz-se que ela:

é um ramo da literatura que se dedica à descrição ou narração da vida de alguém que se notabilizou de alguma forma. Em sentido restrito, reporta-se a toda a extensão da vida do biografado, pretendendo não somente recontar os eventos que a compõem, mas também recriar a imagem dele como é/era/foi. Inclui necessariamente o nome do biografado, a data do seu nascimento, a sua naturalidade, filiação, habilitações literárias, profissões desempenhadas, circunstâncias em que escreveu as suas obras e respectivo enquadramento literário, apreciação crítica dos seus escritos e prêmios recebidos. O biógrafo faz uso praticamente de todo tipo de materiais que tenha ao seu dispor para realizar a biografia de alguém: as próprias obras do biografado (especialmente cartas e diários), documentos oficiais, memórias de contemporâneos, recordações de testemunhas

4 LITTRÉ, E. apud PRIORE, M. “Biografia: quando o indivíduo encontra a história”. Topoi, v. 10, n. 19, p. 7.

vivas, conhecimento pessoal, outros livros sobre o biografado, fotografias e pinturas.5

No caso de A professora e o Nobel: Gabriel García Márquez, os substratos usados por Beatriz Parga foram a primeira entrevista que Rosa Fergusson lhe concedeu, e depois a série de conversas que ambas tiveram. Uma vez transcritas, essas conversas deram origem a este livro.

Durante a obra, a autora nos informa detalhes sobre a personalidade da biografada, além de informações sobre sua formação profissional, suas reflexões e sentimentos, como frequentemente é feito em relatos biográficos e autobiográficos.

O professor e historiador inglês Peter Burke, da Universidade de Cambridge, explana mais sobre as características que acompanham a biografia desde a sua gênese:

Existem paralelos entre o estilo da biografia renascentista e o estilo da ficção do período. […] Como nos livros de chistes e nas novelas, há uma abundância de anedotas nas biografias escritas nessa época, e seu objetivo era revelar dados sobre a personalidade dos biografados. […] Essas anedotas são frequentemente dramáticas na forma e incluem muitos diálogos em discurso direto.6

5 ROSADO, S. “Biografia”, E-dicionário de termos literários. Disponível em: <https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/biografia/>. Acesso em: 19 nov. 2020. 6 BURKE, P. “A invenção da biografia e o individualismo renascentista”, Estudos históricos, v. 10, n. 19, pp. 83-98. Disponível em: <http:// bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2038/1177>. Acesso em: 22 dez. 2020.

Mostraremos a seguir alguns exemplos que justificam a classificação do livro neste gênero. Nas páginas 29 e 30, por exemplo, a narrativa recria a natureza apaixonada e determinada da professora:

Em ocasiões, quando Rosa trabalhava até tarde preparando o material didático, indispensavelmente encontrava o apoio solidário de alguma mulher da vizinhança que batia na porta da sala de aula com um copo de limonada ou uma xícara de café.

Mais de uma vez, no entanto, era surpreendida ao escutar de novo alguém que dizia: — Professora, não trabalhe tanto; você se esforça demais. Aqui as crianças quase nem precisam de estudo. Não há muita coisa que este lugar lhes pode oferecer. Lembre-se que essas crianças nunca serão doutores.

Esses comentários soavam como uma chibatada para a professora. Como era possível que as próprias mães de seus alunos não depositassem fé no futuro de seus filhos? Indispensavelmente, essas palavras se convertiam em um desafio.

Toda vez, a resposta de Rosa era sempre a mesma. — Meus alunos podem conseguir na vida o que eles pretenderem ser. Da minha sala de aula poderão sair não somente doutores, senão o melhor, até um prêmio Nobel.

A historiadora e antropóloga brasileira Lilia Moritz Schwarcz, por sua vez, diz sobre a biografia:

Valeria quem sabe trocar a noção de biografia pelo conceito de trajetória: trajetória de relações — do indivíduo em

relação ao grupo em seus diversos campos sociais, como pretende [o sociólogo francês Pierre] Bourdieu —, mas também trajetória de geração, como mostra Schorske em seu trabalho sobre Viena no final do século7 .

Nas páginas 43 e 55, ficamos sabendo como ela se torna professora e monta a escola Montessori da cidade, que tanto influenciou seu aluno mais famoso:

A ideia de ser professora não se tratava de um simples capricho. Era um desejo que cultivava desde antes de começar a estudar na Normal de Senhoritas de Santa Marta, onde se destacou como a melhor aluna do quadro discente. […]

Eram épocas em que se podia estudar o bacharelado e o magistério ao mesmo tempo. Rosa, que era a mais jovem da sua classe, havia escolhido o caminho difícil de dedicar mais horas ao estudo com o propósito de obter dois diplomas: o de bacharela e o seu certificado como professora. […]

Rosa não tinha vergonha em afirmar que sua ambição consistia em “ser a melhor professora do mundo”. No final, conseguiu seu objetivo graças ao diretor da Secretaria de Educação, um homem muito sério que visitou o povoado em uma tarde providencial. Vencendo seus temores de falar com estranhos, Rosa se aproximou para dizer a ele que Aracataca não tinha uma Montessori, mas, se houvesse uma nomeação, ela estava disposta a organizá-la e se

7 SCHWARCZ, L. M. Biografia como gênero e problema. Disponível em: <https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/rhs/article/view/ 1577/1083> Acesso em: 17 nov. 2020.

empenhar como diretora e professora. O alto funcionário ficou tão impressionado pela determinação da jovem que, poucos dias depois, Rosa receberia uma carta com o selo do governo, anunciando a desejada nomeação.

E mais adiante, nas páginas 158, 160 e 161, nos conta sobre a mudança de cidade e profissão, além de comentar sobre seus filhos e a perda do esposo:

Deixando para trás sua profissão de professora e se despedindo de sua família com um adeus que não sabia que seria por muitos anos, Rosa deixou Aracataca. […]

Pablo Acuña abriu seu próprio escritório de advocacia, colocando Rosa para cuidar do escritório, que se tornou sua mão direita e uma companheira indispensável. Havia sido sempre uma mulher organizada, esperta e detalhista, qualidades que foram suas aliadas para ajudar a impulsionar a carreira do jovem advogado. Além disso, à medida que os filhos foram chegando, a professora se propôs a dar a educação de qualidade que ela podia lhes oferecer. […] Era a mãe e a esposa perfeita. Estava decidida de que seu matrimônio durasse até a eternidade, mas o destino lhe impôs uma dura prova com a súbita morte de seu esposo como consequência de um infarto cardíaco. […]

Essa foi uma etapa muito difícil de sua vida, sentindo-se muitas vezes incapaz de enfrentar sozinha o desafio de sustentar sua família. […]

Da máquina de escrever à máquina de costura, Rosa trabalhava dia e noite para pagar as contas. Não havia tempo para se sentir cansada em meio a essa responsabilidade de conseguir o dinheiro para colocar na mesa o pão familiar,

além de se ocupar dos problemas e necessidades de seus sete filhos.

Pode-se perceber também que a autora aplicou uma característica essencial da biografia moderna — analisar não somente a vida do biografado, mas seu contexto histórico e suas relações com a sociedade em que vive. Nas páginas 45 e 55, descreve-se a mentalidade da época:

Ela veio ao mundo em uma época caracterizada pela austeridade nos costumes. Havia livros proibidos, amizades proibidas, temas de conversa proibidos, vestimentas proibidas, lugares proibidos e até pensamentos proibidos. As regras eram muito severas sobre a forma de se apresentar em público, e ainda mais na igreja: as mulheres não podiam entrar com vestidos sem mangas, nada de decotes e as saias tinham que chegar doze centímetros acima do tornozelo, o que já era um grande avanço levando em conta que em épocas anteriores um calcanhar descoberto era considerado atrevimento e podia despertar nos homens paixões proibidas. As calças largas em uma mulher eram motivo de escândalo porque esse vestuário era considerado masculino. […]

Era difícil descrever sua alegria ao ver seus esforços coroados com um posto no magistério, carreira que naquela época se encontrava entre as muito poucas profissões aceitáveis para uma “mulher decente”, como as pessoas daquele período costumavam dizer em tom severo.

E na página 177, conhecemos a mentalidade à frente de seu tempo da biografada:

Quando lhe perguntavam por que preferia ser chamada de Rosa Fergusson e não Rosa Fergusson de Acuña, como a maioria das mulheres casadas de sua geração, ela tinha uma resposta de acordo com suas ideias progressistas:

“Porque sou e sempre fui Rosa Fergusson. Este é o meu nome desde que nasci. Nenhum ser humano deve pertencer a ninguém, porque isso vai contra a liberdade da pessoa, contra o indivíduo. Uma mulher ou um homem nasce com um nome e em uma família e, ao se casar, tudo isso que tinha atrás não desaparece para mudar o seu sobrenome por outro. Os homens, por exemplo, não o fazem. Além disso, ao ser ‘de’ e, se pensa como eu, quando perdi meu esposo, isso significaria que ao perder o seu parceiro já não pertence a ninguém”, dizia.

A trajetória de Rosa Fergusson é relatada em minúcias ao longo de toda a obra, que aborda os caminhos que ela percorreu desde a sua infância, passando pela juventude como professora, o amadurecimento ao se casar, tornar-se viúva e se perceber na condição em que precisaria criar sete filhos sozinha. A obra também expressa o desejo sincero da professora, ao final de sua vida, de encontrar um segundo companheiro, assim como sua decepção após um encontro frustrado, como se vê nas páginas 185-186 e 189:

— Então, se ficar sabendo de algum norte-americano da minha idade que queira se casar, poderia me apresentar? Há muitos anos que estou viúva, criei todos os meus filhos

e, embora minhas filhas ainda dependam de mim, sinto muita falta de um companheiro — disse, demonstrando que na sua idade ainda se pode sonhar com o amor. […] — Os homens perdoam tudo em uma mulher, menos o passar dos anos — disse com certa tristeza.

Portanto, ao contar a história de Rosa Fergusson, a jornalista Beatriz Parga brinda o leitor não só com a biografia de uma mulher fascinante, mas também com o mundo que inspirou o gênio da literatura mundial Gabriel García Márquez. Com isso, ela traz ao conhecimento do leitor não apenas os desdobramentos dessa bela e frutífera relação acadêmica, mas também nos convida à reflexão sobre as trajetórias com que nos deparamos cotidianamente — na vida e na literatura.

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