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Entre realidades e mitos

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Entre realidades e mitos

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Acasa de Rosa ficava localizada na quadra da frente, em sentido diagonal, dos avós de Gabito, dona Tranquilina Iguarán e seu esposo, o coronel Nicolás Márquez, um homem com uma aparência severa forjada no tempo que passou lutando na Guerra dos Mil Dias. No povoado o consideravam um herói e diziam que havia perdido o olho direito em uma dessas batalhas.

Apesar de a amizade existente em alguma época entre o coronel Márquez e dom Pedro Fergusson, não costumavam se reunir. Rosa suspeitava que, por estarem em lados opostos sobre a presença da empresa norte-americana, e não compartilhar do mesmo ponto de vista quanto aos eventos que culminaram no conflito entre a United Fruit Company e os trabalhadores, optaram por manter uma relação cordial mas distanciada.

O coronel era casado desde tempos imemoráveis com dona Tranquilina, essa avó cheia de imaginação que relatava contos de bruxas e assombrações com a mesma seriedade de um

professor de história. Sem se importar com a inverossimilhança, todos terminavam garantindo que eram verdadeiros. — Sabiam que ontem à noite uma bruxa pousou no teto da minha casa? — dizia dona Tranquilina, no meio da conversa. — Como é possível, comadre? — perguntava uma voz entre os atentos ouvintes. — Conte-nos como era a bruxa — expressava Gabito, com curiosidade.

Então dona Tranquilina começava a descrever uma mulher cujo rosto não tinha conseguido identificar na escuridão, mas usava sapatilhas pretas e uma vassoura, e sob a luz da lua parecia um ser sobrenatural. — Ficou um bom tempo sem se mexer, flutuando sobre o teto e de um momento para o outro desapareceu — dizia com voz muito segura.

Essas palavras lhe davam vida a uma nova história que começava analisando o motivo que havia levado o ser sobrenatural a voar sobre o povoado e a mensagem que queria transmitir ao pousar desafiadora no teto da casa.

Nem os mais céticos se atreviam a duvidar da seriedade de suas palavras. Então, começava uma dissertação sobre fantasmas e seres fantásticos que os adultos reforçavam enquanto os adolescentes e as crianças indagavam com receio da escuridão, sentindo medo inclusive de suas próprias sombras. Esses casos se prolongavam até altas horas da noite, mas colocavam as crianças para dormir mais cedo. Sem protestar, Gabito ia para o seu quarto enquanto na sonolência rondavam

as imagens das conversas da avó e dos mortos em batalhas do coronel.

Às vezes, o nervosismo dos ouvintes chegava à sua expressão máxima quando de repente se escutava o barulho causado por um coco, que, ao se desprender do coqueiro, caía sobre algum telhado de zinco nas proximidades. Então, todos se benziam apressadamente esperando que o sinal da cruz sobre seus peitos lhes ajudasse a espantar os maus espíritos.

A professora se lembrava de dona Tranquilina como sendo uma mulher com muito carisma e ingênua. Acreditava em todos os tipos de superstições. Se uma borboleta cinza entrava na casa, era presságio de doença; se a borboleta era preta, iria ocorrer uma morte; se chegava um besouro, era sinal de uma visita inesperada; se um galo cantava várias vezes durante a noite, era agouro de más notícias. Por causa disso, na vizinhança todo mundo começava a sentir aversão por um galo desorientado que cantava a qualquer hora da noite, até que para prevenir contra a má sorte seus donos acabavam colocando-no na panela para fazer uma canja.

O que se falava em voz baixa era sobre os feitiços de uma bruxa que havia se mudado para Aracataca buscando novos clientes entre o crescente fluxo de gente. A princípio, ninguém conhecia a recém-chegada. Mas, em se tratando de um povoado pequeno, não demorou muito para que todos, embora jamais tivessem trocado uma palavra com ela, soubessem de suas supostas feitiçarias.

Logo já havia se tornado o ser mais repudiado da localidade. Os homens a olhavam com um misto de zombaria e medo,

as mulheres a evitavam e, quando a viam caminhando na mesma rua, passavam para a outra calçada para não toparem com ela. As crianças a olhavam aterrorizadas depois de ter ouvido em suas casas as ameaças de como essa mulher tenebrosa devorava crianças que não comiam sua sopa, ou os transformava em sapos se contassem mentiras. Por outro lado, outras crianças que se achavam valentes a atiravam pedras enquanto gritavam: “Bruxa, bruxa, bruxa!”.

Como a maioria dos habitantes do povoado, Rosa se sentia incomodada com a sua presença. De fato, em alguma ocasião em que a professora e Gabito caminhavam até a escola e a encontraram, a professora passou silenciosa ao seu lado. Depois disse ao menino que evitava sempre “brincar” com o desconhecido. Gabito não respondeu, mas parecia ter entendido a que se referia. No final das contas, sua avó costumava falar de defuntos que flutuavam pelos quartos da casa e que, se ele se comportasse mal, viriam para castigá-lo. — Gabi, de todas as formas, não há porque ter medo dos mortos. Deve-se ter medo dos vivos, esses sim podem causar danos — dizia Rosa enquanto caminhavam à escola.

Algumas vezes, quando Rosa ficava na escola até tarde, surpreendia-se ao ver que Alicia, a mãe de Manolito, caminhava furtivamente pelas ruas menos transitadas do povoado. Até que um dia não teve dúvida de que saíra da casa da bruxa.

“O que ela foi buscar?”, perguntou-se Rosa.

Tempos depois ficou sabendo. Casada e com quatro filhos, ocorreu à pobre mulher que a recém-chegada poderia lhe ajudar a resgatar seu marido dos braços de uma adolescente

negra por quem estava perdidamente apaixonado e para quem comprava os melhores vestidos e bijuterias que os ciganos e os comerciantes turcos traziam ao povoado.

Atormentada pelos ciúmes, um dia foi procurar a bruxa. Bateu timidamente na porta quando já era noite, protegendo-se nas sombras para que ninguém a visse. A feiticeira a recebeu, uma mulher de tez amarelada, olhos de gato e cabelos muito negros, que, sem fazer pergunta alguma, fez com que a acompanhasse até um quartinho em que havia somente uma pequena mesa de madeira sem tinta, um ventilador enferrujado e duas cadeiras forradas com pele de vaca, bastante desgastadas. As paredes estavam cobertas com imagens de santos e palavras escritas em um idioma estranho. Pegou uma pequena toalha de seda com figuras astrais e em cima colocou uns naipes muito gastos. “Separe um monte”, disse-lhe. Hesitante, a mulher separou um grupo de cartas que a bruxa recolheu cuidadosamente para embaralhar.

Depois foi colocando lentamente sobre a mesa. Ao fazê-lo, mostrava-se muito preocupada. — Seu homem está enfeitiçado — disse-lhe. — Vejo outra mulher que o deixa louco porque tem bruxaria no meio.

Alicia pareceu confirmar suas suspeitas de que havia algo fora do normal nesses amores. O coração batia apressadamente, sentindo que a angústia ia subindo até a boca como uma besta assustadora que subia por sua garganta, decidida a asfixiá-la. Apavorada, sentia sua língua tão seca que grudava na boca.

No entanto, a bruxa a tranquilizou.

— Posso desfazer esse feitiço — disse-lhe acrescentando que para fazê-lo precisaria de uma mecha de cabelo e uma fotografia do marido.

Alicia tinha ouvido falar que quando se consultam os bruxos e videntes, às vezes algumas coisas se cumprem, mas aquilo que se realmente busca acaba perdendo. No entanto, decidiu desafiar os conselhos de uma prima que se opunha à busca de ajuda por meios sobrenaturais e, empenhada a resgatar seu marido do perigoso caminho dos amores proibidos, dias depois regressou à casa da bruxa com uma mecha que conseguira cortar do seu infiel consorte, argumentando que tinha umas pontas desiguais de cabelo sobre a nuca. Levou também uma fotografia recente, tal como a feiticeira havia pedido.

Nessa noite, ao voltar para casa, encontrou seu marido na porta. Estava de saída. — Por onde andava? — ele perguntou.

Um pouco envergonhada, Alicia respondeu que havia ido por alguns minutos à igreja. Ele pareceu ter acreditado, e, sem pedir muitas explicações, seguiu seu caminho indicando que ia cobrar um dinheiro que lhe deviam.

Enquanto a empregada lavava os pratos do jantar, Alicia foi colocar seus filhos para dormir. Mais tarde passou creme de amêndoas por todo o corpo para suavizar a pele, penteou-se fazendo uma longa trança e se perfumou com uma colônia francesa que havia comprado dos ciganos. Com a expectativa de uma noiva que espera o seu namorado, antecipava satisfazer seu marido, que voltaria em pouco tempo. Entretanto, o jantar ficou sobre o fogão. Suado e sem se barbear, ele voltou

somente na manhã seguinte com a roupa exalando um perfume penetrante de um patchouli barato com essência de jasmim que ela já reconhecia.

Duas semanas depois, voltou a procurar a bruxa. — Meu marido não melhora. Agora se ausenta mais do que antes — disse-lhe.

A bruxa pediu então que trouxesse algumas unhas, algo que não foi tão fácil de conseguir. Por fim, depois de bajular seu marido e lhe cortar as unhas fazendo-o acreditar que enquanto faziam amor ele a havia arranhado as costas, chegou até a feiticeira com seu troféu. — Agora vai ver como seu homem vai mudar — disse-lhe a bruxa, enquanto a mulher lhe entregava um pequeno maço de dinheiro.

No entanto, as semanas foram passando e não se notava nenhuma mudança. Em vez disso, seu marido passava mais noites fora do que em casa.

Alicia visitou a bruxa de novo, desta vez de dia, cruzando com Rosa em um sábado, bem cedo. — Acordou cedo esta manhã — disse Rosa. — Ah, sim. Tenho que ir comprar farinha de milho para fazer as arepas do café da manhã — respondeu Alicia com uma pontinha de insegurança na voz.

Rosa, que havia cruzado na rua com Alicia em duas ocasiões anteriores, deu-se conta de que estava mentindo.

“Por onde andava? Que mistério é esse?”, Rosa se perguntava.

No desespero de seguir com sua busca, Alicia parecia já não mais se importar que pudessem a ver entrando na casa da

feiticeira ou que alguém contasse a fofoca ao padre Angarita. Pensando em conseguir que o feitiço fosse mais eficaz, levou em sua bolsa uma fotografia maior que a anterior. — Minha vida, vamos ter que fazer algo mais forte. Mas não sei por que seu marido tem um rosto que me parece conhecido — disse a bruxa, enquanto franzia a testa e forçava seus olhos míopes, tentando ver com clareza a imagem que Alicia a entregara.

Sentaram no pequeno quartinho, a bruxa escutando e a cliente chorando. Estava contando das longas noites com o leito vazio e o travesseiro banhado em lágrimas quando escutou uma voz feminina chamando a feiticeira diante da porta. — Vida minha, espere um momento — disse, saindo para abrir a porta.

Eram quase imperceptíveis os sussurros trocados entre a bruxa e a recém-chegada. Para passar o tempo, Alicia decidiu dar uma volta pelo quartinho. Curiosa, aproximou-se de um canto quase escondido por uma cortina; atrás havia várias fotografias. Então, iluminada por uma vela, acreditou ver o rosto de seu marido. Aproximou-se, e, ao pegar a foto nas mãos, deu-se conta de que era ele, muito sorridente, no que parecia ser uma celebração, por estar vestindo sua roupa favorita. As margens do papel estavam recortadas, possivelmente para excluir outras pessoas que estavam ao seu lado. — O que a foto do meu marido está fazendo aqui? — perguntou Alicia surpreendida ao mesmo tempo em que a feiticeira voltava à pequena saleta.

— Esse é o seu marido? Não pode ser! — disse a bruxa. E logo acrescentou: — Agora entendo porque seu rosto me parecia familiar.

De um momento para o outro havia descoberto que o homem de óculos estava sob o mesmo feitiço da esposa e da concubina. — Ele pertence mais a você, que é a esposa e a mãe de seus filhos — disse a bruxa. — Não se preocupe que eu vou consertar isso.

Uma semana depois, Alicia dormia com seu marido na cama de casal quando um grito a acordou assustada. Era seu marido, que delirava desesperado enquanto dava voltas na cama. O lençol estava encharcado de suor e sua testa ardia em febre. O médico pensou que podia ser uma meningite. Mas a febre baixou e ele continuou delirando. Via fantasmas e monstros. Finalmente, o diagnóstico do médico foi como uma sentença de morte: — Está louco, irremediavelmente louco.

Alheio ao que se passava ao seu redor, o homem parecia espantar uns fantasmas imaginários enquanto gritava alterado: — Afastem-se de mim, não se aproximem de mim. Que caras tão horríveis! Vão embora, me deixem em paz — suplicava.

A United Fruit Company, onde ele trabalhava, buscou os melhores doutores em problemas da mente. Dias mais tarde chegaram uns enfermeiros que o levaram amarrado para o manicômio de Bogotá.

Desolada, Alicia agora teria que enfrentar o mundo sozinha, com seus quatro filhos pequenos. Não lhe restou outra opção

senão se mudar com seus filhos para Barranquilla, onde vivia sua família.

Depois de desocupar a casa, enquanto estava de saída para pegar o trem com sua família, sua prima a olhou com compaixão. — Eu lhe disse, quando vai pedir aos videntes que mudem seu destino, há um castigo divino. Aquilo que tanto se deseja no final é o que perde. Está vendo, seu marido não pertence a mais ninguém — disse desolada.

O tão falado incidente fez com que a bruxa fosse embora do povoado. Pelo menos, ninguém mais a viu. Alguns diziam que se tornou invisível quando foi descoberta, temendo que alguém decidisse queimar sua casa enquanto dormia. Mas outros garantiam que se encontrava em algum canto da região, voando de noite sobre os telhados para assustar as pessoas. — Zape! — dizia dona Tranquilina quando alguém queria saber sobre feitiçarias. Esse assunto era um tabu e não se tocava nele de forma algum devido a uma sentença bíblica que afirmava que aqueles que se consultam com videntes serão desenterrados do paraíso no dia da ressurreição dos mortos. Por isso, até tocar nesse tema era proibido.

Dona Tranquilina garantia que depois da morte os espíritos continuavam rondando o mundo dos vivos. Por isso, quando alguém morria, oravam para que sua alma não voltasse para incomodar. Mais de uma vez, ao sentir um leve cheiro de enxofre, que certamente chegava trazido pelos ventos ao passar pelas águas termais nas proximidades do povoado, dava para escutá-la dizer alarmada: “Esse é o demônio se aproximando”. Então mandava trazer uma garrafa que tinha guardada e regava água

benta pela casa ao mesmo tempo em que todos faziam o sinal da cruz e ela ordenava ao espírito que fosse embora do povoado. Era assim como terminava a tertúlia e em meio a um ambiente de pavor e mistério, todos iam dormir. Ao se despedir e se dirigir aos seus aposentos, cada um olhava com um receio dissimulado pelos cantos escuros de suas casas, embora raras vezes os adultos chegassem a admitir seus temores.

Essas reuniões entretinham todos e contribuíam para estreitar os vínculos entre todos na vizinhança. O interesse que despertavam os fenômenos paranormais não conhecia barreiras entre gerações e todos podiam participar sem diferença de idade; as crianças e os jovens fazendo todo o tipo de perguntas, e os adultos contando suas experiências e aparições arrepiantes com uma firmeza de quem vivenciou muito e presenciou visões sobrenaturais. O certo é que até os céticos participavam com algum comentário que, ao invés de dissipar as dúvidas, parecia confirmar a existência de um mundo invisível e a necessidade da oração para não serem apanhados pelo tormento dos espíritos.

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