11 minute read

Um universo extraordinário

I F3f

Um universo extraordinário

Advertisement

Omundo parecia retumbar como se uma manada de elefantes se aproximasse fazendo a terra tremer debaixo das botinhas do menino e dos enormes sapatos lustrados do seu avô, um velho alto com uma boina xadrez e seu terno de linho branco. — Papalelo, já está vindo... A terra está se mexendo! Olhe os meus pés! Consegue sentir também? — exclamou o menino. — Sim, Gabito, estou sentindo... Mas vou sentir mais se desta vez não vier o que espero há tanto tempo — respondeu o ancião olhando ao longe, onde o gigante de metal já antecipava a sua aproximação em meio a uma fumarola espessa e cinza.

O menino, de cinco anos, saía diariamente com o avô para esperar o ruidoso gigante que sempre chegava carregado de surpresas, mas que nunca trazia o que tanto o venerável ancião esperava. Mas, no momento menos aguardado, chegaria pelo correio sua tão sonhada aposentadoria de veterano da Guerra dos Mil Dias.

Por fim o trem apareceu, imenso, colossal, envolto em uma espessa cortina de fumaça. À medida que foi se aproximando, todos os espaços ficaram impregnados pelo penetrante cheiro de óleo queimado. Bufava como um touro furioso antes de fazer sua presença ser notada com um potente apito. Minutos depois se deteve com um estridente chiado metálico antes de surgir pelas portas uma multidão colorida que parecia desorientada e ansiosa para explorar o novo mundo. — Mais forasteiros... Ninguém os convidou, mas continuam chegando — queixou-se o idoso visivelmente incomodado.

O menino, por outro lado, parecia fascinado observando a variedade de personagens que desciam dos vagões: executivos americanos com ternos de linho branco impecáveis, aventureiros europeus em busca de fortuna, ciganos barulhentos vestidos com roupas coloridas, além de uma permanente caravana de comerciantes turcos com sua preciosa carga de finíssimas sedas, tecidos de linho bordados e objetos exóticos. — Que viagem longa, papai. Pensei que nunca chegaríamos... Não sei porque escolheu vir para este lugar tão longe — protestou uma jovem norte-americana de cabelo ruivo que vestia uma roupa demasiadamente pesada para o clima quente. — Não reclame, minha filha. Aqui pelo menos tem trabalho e dinheiro. Em meio à crise econômica que se aproxima no mundo, antes de sair de Nova Iorque, soube do fechamento de outro banco — explicou o homem, um norte-americano robusto, de bigode grosso e chapéu panamá. Tinha uma presença imponente, com seu terno de abotoamento duplo e gravata.

No peito sobressaía a corrente do seu relógio de bolso e, sobre o olho direito, levava um monóculo com armação de ouro.

Atrás do norte-americano desceram vários europeus com cara de cansaço. — Logo se sentirão em casa — interveio um turco com cara de conhecedor da região. — Além do mais, essa distância se converteu no melhor aliado dos meus negócios. Aqui eu vendo desde louças inglesas até camisas das Filipinas e perfumes franceses. Não se preocupem, vão se sentir muito bem por aqui, e logo vocês também serão meus clientes — previu, com um sorriso de boas-vindas.

O avô e seu neto permaneciam parados, de um lado da estação, observando com curiosidade os passageiros do trem. De repente, o menino parece ter vislumbrado algo especial. — Papalelo, olhe. Ali vem o carteiro — disse com uma seriedade pouco comum para um menino da sua idade. — Tem algo para mim? — perguntou o velho.

O homem verificou a correspondência que levava nas mãos. Eram mais de cinquenta envelopes, de tamanhos e cores diferentes. Algumas com aroma de rosas, outras escritas com letras irregulares. O carteiro sabia que não era o que o idoso esperava, e sua resposta foi a de sempre. — Sinto muito, coronel. Não tenho nada para o senhor.

O menino havia pressentido essa resposta a caminho da estação, quando pararam na frente da janela da mulher mais bonita que havia visto em sua vida. Ela se chamava Rosa, morava no quarteirão da frente da casa de seus avós e, na segunda-feira seguinte, seria a sua professora. Além de ser bela, a

jovem vizinha visitava com frequência suas tias e, durante as tardes, parecia desafiar os fantasmas quando lhe contava contos. Todo dia, a caminho da estação, Gabito, o neto mais adorado do coronel, olhava furtivamente à janela esperando ver a jovem que se parecia com as princesas dos contos que suas tias lhe contavam.

O velho observava a curiosidade do menino, mas nunca disse nada. Preferia se concentrar na narração das histórias sobre o seu glorioso passado na guerra, na qual lhe deram o posto de coronel por sua valentia. Em silêncio, o menino escutava atentamente enquanto desenhava em sua mente as imagens desse herói que era o seu avô. Todas as manhãs, antes do meio-dia, o velho e o menino saíam para caminhar juntos. Há muito tempo que cobriam suas cabeças com boinas xadrezes, que combinavam instantes antes de seu passeio matutino. Algumas pessoas no povoado se perguntavam aonde se dirigiam toda manhã. Somente o menino e o velho sabiam: a tão sonhada aposentadoria do velho chegaria um dia. O sol começava a se colocar a pino, quando, ao olhar para o trem, o menino viu algo que lhe deixou fascinado. — Papalelo, olhe... Os ciganos! Os ciganos voltaram! — exclamou com emoção. — Já estou vendo, Gabito. Mas fale mais baixo — disse o velho, olhando com desconfiança para um grupo de acrobatas, trapezistas, contorcionistas, bonequeiros e palhaços que desciam do trem com grande fanfarra. Gabito sorria ao ver com curiosidade um idoso magrelo que puxava com uma corda um

tigre velho e desdentado; outros homens exibiam dois macacos e um bezerro com duas cabeças. — Veja, Papalelo, olhe aquilo! — Gabito, não vamos perder mais tempo... Lembre-se que havia me dito que hoje era um dia muito importante — disse o coronel, fazendo um ar de cumplicidade com o seu neto ao piscar o único olho que enxergava detrás das grossas lentes escuras que usava.

Gabito parece ter voltado à realidade. — Sim, Papalelo, vamos. Hoje é um dia muito importante! Está ficando tarde, vamos ver a minha professora!

Rosa Fergusson se debruçou na janela de sua casa, sobre a avenida principal de Aracataca. Instantes depois, suas duas irmãs, Isabel e Altagracia, se uniram a ela para ver os recém-chegados passarem. De certa forma, as três jovens costumavam espantar a monotonia com o descobrimento de novos rostos entre os forasteiros que chegavam todos os dias de trem. — Que barbaridade! Continua chegando gente no trem. Logo não vai caber nem um alfinete neste povoado — disse Isabel com voz de preocupada e apressando suas irmãs para sair e cumprir um grande compromisso na praça principal.

Eram tempos de crise econômica mundial e, enquanto faltava trabalho em todas as partes, em contrapartida, nessa população perdida no mapa o dinheiro abundava com a bonança dos cultivos e exportação de banana da United Fruit Company,

empresa norte-americana que havia chegado à região no início do século XX, transformando o modesto povoado em uma população poderosa.

Já haviam dito mil vezes à Rosa que ela era a mulher mais linda do povoado. Aracataca era o nome real dessa população vizinha ao mar do Caribe, com telhados de zinco que brilhavam debaixo de infinitos céus azuis e que soavam como tambores quando apareciam as chuvas descomunais. Esse era um lugar fantástico em que à noite os espíritos despertavam e sob a luz da lua desfilavam as sombras das bruxas e fantasmas que pareciam ganhar vida própria com o vaivém das cadeiras de balanço, onde os habitantes do povoado se sentavam para compartilhar com seus vizinhos histórias de aparições do além, duendes e seres arrepiantes. Mas enquanto a professora desfrutava das histórias extraordinárias que cobriam a noite com um manto de mistério, esses fantasmas impediam Gabito de conciliar o sono quando tentava se acomodar em sua velha cama de madeira rangente.

O povo ficava envolto em um manto de silêncio até a chegada do sol, quando todos despertavam com o canto dos galos e o aroma de café recém-coado. Aracataca voltava a ganhar vida e parecia regressar à normalidade até que, antes do meio-dia, começava a trepidar a terra e no meio de um estrondoso estampido, como em um passe de mágica, surgia a enorme locomotiva bufando sobre os trilhos do trem.

Rosa tinha visto esse povoado crescer, e conhecia a maioria dos seus habitantes. Bonita e popular em toda a região, transbordava felicidade; seu cabelo castanho caía em ondas

sobre as costas e sua figura esbelta se realçava em um vestido de seda branco que ela mesma havia confeccionado com a ajuda de sua mãe e suas duas irmãs. Todas estavam usando o melhor que tinham em seus armários e até estreando saltos-altos. Vestidas como para uma grande ocasião, a mãe e suas três filhas pareciam modelos de um cartão-postal parisiense quando, pouco após o meio-dia, saíram à rua acompanhadas pelo pai, Dom Pedro Fergusson Christoffel, e seu irmão Manuel, um adolescente sério e tranquilo trajando terno e gravata, tal como exigia a importância do momento.

Faltavam poucos minutos para o acontecimento que colocara todos os habitantes do povoado em alvoroço, movendo-se rapidamente para assistir à cerimônia de coroação da Rainha do Carnaval. Em questão de minutos a praça principal foi ficando repleta de homens, mulheres e crianças que iam rodeando o palanque onde já se encontrava o prefeito, um homem alto e delgado, de bigodes retos, cabelo engomado e sobrancelhas angulares, que saudava à direita e à esquerda com sua habilidade de político experiente. O suor escorria pelas testas dos presentes apesar da abundância de sombrinhas de várias cores nas mãos das damas, dando ao cenário um aspecto pitoresco. No meio de todo esse mar humano que celebrava a sua rainha, várias crianças teimavam em se aproximar da “senhorita Rosa”, que muito em breve estrearia como sua professora. Não podiam faltar as figuras mais notáveis da localidade; entre eles se destacavam o coronel Nicolás Márquez e sua esposa, dona Tranquilina Iguarán, com as tias Elvira, Sara e Francisca, que segurava na mão do pequeno Gabito, um menino de postura

tranquila e olhar inocente que extravasava de orgulho ao ver a Rosa atraindo a atenção de todo o povoado.

Rosa conhecera Gabito logo após o seu nascimento, em uma de suas férias, quando estudava na Escola Normal de Santa Marta.

Em uma tarde de muito calor, a jovem havia saído à rua procurando a refrescante sombra da amendoeira que crescia em frente à sua casa e ficou sabendo do parto de Luisa, a filha mais velha do coronel. Feliz com o acontecimento, Rosa foi felicitar a jovem mãe. Sempre dizia que, desde o primeiro momento, o bebê havia lhe causado um impacto profundo. E com o passar dos anos o impacto seria mútuo.

A multidão aplaudiu com entusiasmo enquanto se ouviam vivas à “Rosa, Rosa, Rosa!”, antes de se desencadear um estrondoso concerto de acordeões, reco-recos e clarinetes, acompanhados pelo rufar dos tambores da banda local. O prefeito pegou a coroa que descansava sobre uma mesa coberta com uma toalha branquíssima, e com grande solenidade a colocou cerimoniosamente sobre a cabeça da bela jovem, que sorriu majestosa, transformada no centro de todos os olhares. — Boa tarde, senhoras e senhores. Todos vocês, habitantes deste povoado progressista, me conhecem. Sou Florido Pérez, prefeito de Aracataca. O único prefeito que esse povo carrega ao longo das últimas duas décadas. Hoje estou com vocês para uma grande celebração: a coroação da Rainha do Carnaval. Nossa belíssima representante das mulheres mais belas desta região, Rosa Fergusson, é um orgulho para todos e hoje a coroamos pela segunda vez como soberana desta

grande ocasião que tanto disfrutamos. Viva Rosa Fergusson! Viva o Carnaval!

O público celebrou a notícia com entusiasmo. Os aplausos pareciam não ter fim. Então a rainha fez um leve gesto com a mão. — Como representante da beleza da mulher desta região, agradeço esta coroa com um misto de humildade e orgulho. É uma enorme honra. Mas, além disso, quero aproveitar esta oportunidade para convidá-los a levar seus filhos ao colégio Montessori de Aracataca, que estará abrindo suas portas na próxima segunda-feira. Crianças, não faltem. Espero ver todos na sala de aula, já que vou ser sua professora — disse com emoção. — Além de ser nossa rainha, Rosa é a professora mais linda do mundo — interrompeu o prefeito.

De novo eclodiram os aplausos e o público começou a cantar um tema musical da moda marcando o início da festa. A uma curta distância, muito próximo ao palanque, dona Rosa enxugava o suor com um lenço enquanto, repleta de orgulho, observava a cena. As irmãs da jovem debutante se aproximavam para abraçar a nova Rainha do Carnaval.

A banda seguia tocando enquanto o céu começava a se cobrir com um manto cinza, espesso como fumaça. “Vai chover”, previu o prefeito. Sem se desanimar, o povo começou a gritar em coro: “Deixa chover, deixa chover, que agora vamos dançar, que caia mais chuva para poder aproveitaaar”. Gotas grossas não esperaram, caindo travessamente sobre os presentes, que não se mexeram de onde estavam. Felizes e molhados, todos

continuaram dançando por horas até que a roupa secou sobre os corpos festeiros, que somente interrompiam a festa para beber rum branco e limonada; ou para comer torresmos e arepas que algumas vendedoras traziam em bandejas e que os participantes devoraram até a madrugada.

De estatura mediana, postura reta e um sorriso capaz de fazer brotar uma flor no deserto, a Rainha do Carnaval transmitia uma grande confiança em si mesma. Sabia que a coroa que levava sobre sua cabeça significava uma grande responsabilidade como representante da beleza e das virtudes das mulheres da região. Por ser a segunda vez que a coroavam, conhecia os deveres da sua posse, então distribuiu sorrisos, foi carinhosa com as crianças e os idosos, manteve à distância o cortejo dos galãs que a pretendiam e de novo repetiu a proeza de dançar até gastar a sola dos sapatos.

This article is from: