HYDRO BRASIL
Quem tem medo do PL 11 247/2018?
Contratação de 4.900 MW de PCHs é a chance de retomada de investimentos no setor que permanece estagnado
Ano 2 Março 2024 nº 5
Copel prepara UHE Foz do Areia para leilão de reserva de capacidade
PCH Bela Vista
CARTA AOS LEITORES
OAcordo de Paris de 2015 comprometeu o mundo a tentar manter o aquecimento global desde que os níveis pré-industriais aumentem bem abaixo dos 2°C – idealmente perto de 1,5°C – para minimizar os impactos devastadores das alterações climáticas. No entanto, esse limite foi violado pela primeira vez em um aumento médio anual da temperatura apresentado em 2023.
De acordo com o programa Copernicus da União Europeia, que utiliza satélites para monitorar o clima, durante todo o período de 12 meses, de fevereiro de 2023 a janei-
HYDRO BRASIL
Circulação trimestral
Número 5 - Ano 2 Março de 2024
Conselho Editorial
Valmor Alves
Ademar Cury
Mário Luiz Menel da Cunha
Ricardo Pigatto
Edvaldo Santana
Alessandra Torres
Publisher: Milton Wells
Planejamento Gráfico
Luís Gustavo Van Ondheusden
Revisão
Press Revisão
Fotos
Divulgação
Impressão
Gráfica Capital Ltda.
Produção
Editora Matita Perê Ltda. ME
Travessa Jundiaí, 2200/608
Porto Alegre
90250-270
Solicite a revista em PDF pelo e-mail mwells.hydrobrasil@gmail.com
ro de 2024, as temperaturas globais foram 1,52°C acima dos níveis pré-industriais.
Além disso, janeiro de 2024 foi o mês mais quente já registrado, segundo o Copernicus. A temperatura média do ar na superfície era de 13,14°C durante esse mês, 0,70°C acima da média de janeiro de 1991-2020, e 0,12°C acima da temperatura do janeiro mais quente anterior, em 2020.
Esse recorde indesejado reforça a necessidade de os governos adotarem medidas mais rápidas e eficazes para aumentar a resiliência contra os impactos das alterações climáticas.
Trata-se de um alerta de que o
4-5 ARTIGO
Mário Menel e Daniel Pina - Uma agenda positiva para a transição energética brasileira
6 ARTIGO
Luiz Antonio ValbusaEquilibrando a energia: explorando as vantagens das PCHs e CGHs em contraste com fontes Intermitentes
mundo precisa de maior preparação para condições climáticas extremas e de maior conhecimento do impacto em nossas comunidades. No caso do Brasil, urge maior investimento na segurança sistêmica e geração renovável que implica reconhecer ainda o papel vital das hidrelétricas. Com Uma agenda positiva para a transição energética brasileira, a Hydro Brasil inicia uma série de artigos no sentido de contribuir para que o país continue avançando e faça a parte que lhe cabe no combate às mudanças climáticas.
Milton Wells | Publisher mwells.hydrobrasil@gmail.com
8-9 HIDRELÉTRICAS
Copel está preparada para participar do Leilão de Reserva de Capacidade com UHE Foz do Areia
PL 11247/2018, aprovado pela Câmara, pode revitalizar o setor de PCHs, que perdeu competitividade nos mercados livre e regulado
14 ARTIGO
Elena Landau – Eletrobras privada
16-17 MEIO AMBIENTE
País precisa evoluir na capacidade de fazer previsões de cheias extraordinárias e de agir para reduzir o impacto de inundações
18 NORMAS
A ABNT reúne os maiores expertises para modernizar critérios de barragens de hidrelétricas
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Uma agenda positiva para a transição energética brasileira
Mário Menel (*)
Daniel Pina (**)
O Brasil é destaque globalmente na transição energética. Segundo dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o país finalizou o ano de 2023 com mais de 83% da capacidade instalada de geração por usinas renováveis, enquanto o índice mundial foi de aproximadamente 20%. De acordo com os dados do ONS, o Fator de Emissão de CO2 pela geração de energia elétrica no Sistema Interligado Nacional do Brasil foi de 0,039 tCO2/MWh, mais de sete vezes menor que a média das nações europeias. O país também é um dos líderes mundiais na produção de biocombustíveis, com a produção de etanol e biodiesel.
O governo federal tem exercido papel notável ao fortalecer a liderança do Brasil no cenário energético mundial. São importantes as iniciativas governamentais para desenvolver novas tecnologias de energia sustentável, tais como o Programa Nacional de Hidrogênio (PNH2), voltado para o desenvolvimento da cadeia de hidrogênio no país, e o Programa Combustível do Futuro, o qual engloba diversas ações, incluindo o estímulo ao Combustível Sustentável de Aviação (SAF) e ao Diesel Verde.
Além dessas medidas, o governo lançou, também, no dia 25 de janeiro, a Agenda Transversal Ambiental, instrumento de planejamento orçamentário de quatro anos, estabelecido por meio de lei que define as diretrizes, os objetivos e as metas da administração pública federal presentes no Plano Plurianual (PPA). A ação
engloba sete compromissos ligados à área ambiental, entre eles a gestão e conservação dos recursos hídricos e o enfrentamento da emergência climática.
A adoção de políticas públicas desempenha papel crucial na viabilização da transição energética. A experiência internacional vem mostrando como os países têm apostado em políticas bilionárias de incentivos (Reduction Inflaction Act, nos Estados Unidos, e o Green Deal Industrial Plan, na União Europeia), entre várias outras medidas. O Brasil, por sua vez, sem a mesma capacidade financeira desses países, necessita ser diligente, devendo apresentar diretrizes claras sobre seus objetivos, custos associados e critérios de alocação de recursos. A ausência de planejamento pode resultar em investimentos ineficientes e sobrecustos, em especial, para os consumidores de energia elétrica.
O Brasil obteve êxito ao ampliar e diversificar a participação de fontes renováveis na matriz elétrica. Ganham destaque iniciativas como leilões de energia por fonte, o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia (Proinfa), descontos na tarifa e a execução de
um sistema de compensação para geração distribuída fotovoltaica. No entanto, atualmente, o país enfrenta desafios para efetivar a redução estrutural desses subsídios, cujos impactos financeiros persistem, afetando os consumidores de energia elétrica e prejudicando, assim, a competitividade econômica brasileira. Essa mesma preocupação é pertinente e relevante ao lidar com novas tecnologias associadas à transição energética, como eólicas offshore, hidrogênio de baixo carbono, etanol de segunda geração e outros combustíveis renováveis.
Nesse contexto, é imperativo que o governo elabore um plano estratégico para impulsionar o financiamento de projetos voltados ao desenvolvimento sustentável. Um passo inicial nessa direção foi estabelecido com a proposta do Plano de Aceleração da Transição Energética (PATEN), atualmente em discussão no Congresso Nacional. Esse projeto de lei busca a criação de linhas de crédito, incentivos fiscais e outras medidas que estimulem o progresso de tecnologias sustentáveis, sem impor ônus aos consumidores de energia elétrica. A busca por esse equilíbrio é fundamental não apenas para
ARTIGO | 4 Hydro Brasil
Mário Menel
Daniel Pina
garantir a sustentabilidade financeira do setor energético, mas também para preservar a competitividade da economia nacional, evitando impactos adversos de longo prazo nas contas de energia dos cidadãos brasileiros.
Do ponto de vista da segurança energética, o aumento progressivo da participação das fontes renováveis na matriz elétrica brasileira traz consigo desafios significativos, especialmente devido à natureza intermitente dessas fontes. Esse cenário se reflete na redução da estabilidade do sistema em momentos críticos, sobretudo quando ocorre uma acentuada redução na geração, acompanhada por elevados patamares de carga.
Uma abordagem eficaz para mitigar esse problema envolve o uso estratégico do armazenamento de energia, seja por meio de baterias ou hidrelétricas reversíveis, capazes de armazenar o excedente de geração e fornecê-lo à rede durante períodos de escassez. Entretanto, é importante observar que o modelo comercial atual não é totalmente adequado para viabilizar o uso eficiente de baterias para esse propósito.
Outra medida relevante diz respeito à diversificação da matriz energética. Isso inclui o crescimento da carteira de fontes renováveis intermitentes complementares, como eólica e solar, além da instalação de fontes de geração controlável, como hidrelétricas e termelétricas de baixa emissão de carbono, como biomassa. A diversificação de fontes de geração de energia, ao promover o efeito portfólio, desempenha um papel fundamental em mitigar os riscos associados às flutuações do suprimento energético, contribuindo para a segurança energética do Sistema Interligado Nacional.
Além disso, a adoção de tarifas dinâmicas, programas de resposta à demanda e outros incentivos para redução do consumo du-
rante os períodos de pico podem contribuir significativamente para enfrentar o desafio do crescimento de fontes intermitentes na matriz elétrica brasileira. Essas estratégias combinadas são indispensáveis para garantir uma transição energética bem-sucedida, sem comprometer a segurança e a confiabilidade do sistema elétrico nacional.
No contexto brasileiro, conciliar segurança sistêmica e geração renovável implica reconhecer ainda o papel vital das hidrelétricas. Atualmente, as hidrelétricas desempenham uma função decisiva ao acompanhar a curva de carga, pois sua flexibilidade operacional permite uma resposta rápida às variações de oferta e demanda, garantindo assim a estabilidade do sistema elétrico e a confiabilidade no suprimento de energia. No entanto, as complexidades associadas a esse tipo de fonte têm desestimulado investimentos, resultando na perda de um importante aliado para a segurança sistêmica e a transição energética.
A dificuldade no processo de licenciamento ambiental para novos projetos de hidrelétricas representa um obstáculo significativo para os investidores do setor. O aumento das exigências ambientais resulta em procedimentos demorados e complexos e acaba por aprofundar a incerteza quanto à viabilidade econômica e operacional desses empreendimentos.
É relevante observar que o aumento do deslocamento da geração proveniente de fontes hidrelétricas, devido à inflexibilidade associada ao crescimento de fontes renováveis não despacháveis e à contratação compulsória de termelétricas inflexíveis, aliado ao aumento progressivo de restrições nas faixas de operação para reservatórios contribuem para a redução do despacho hidrelétrico e, consequentemente, do fluxo de caixa esperado pelo
A ausência de planejamento pode resultar em investimentos ineficientes e sobrecustos, em especial, para os consumidores de energia elétrica.
empreendedor.
Por fim, destaca-se a ausência de um modelo comercial que remunere, de maneira adequada, os serviços ancilares prestados pelas usinas hidrelétricas em prol da estabilidade e qualidade do fornecimento de energia no Sistema Interligado Nacional (SIN). Isso resulta na falta de incentivos para investimentos em melhorias e modernização dessas usinas.
Apesar de ocupar uma posição destacada na transição energética global, o Brasil enfrenta a necessidade iminente de superar os desafios existentes, visando estabelecer um setor energético mais resiliente e sustentável. Nesse contexto, torna-se crucial que o país adote uma agenda positiva para enfrentar obstáculos, como o financiamento de projetos de energia sustentável, a valorização do papel das hidrelétricas e a garantia do suprimento em meio ao aumento das fontes de geração não despacháveis, sem que isso implique aumento de custos para os consumidores de energia elétrica brasileiros. Ao desenvolver políticas públicas e medidas regulatórias claras e assertivas, o Brasil tem a oportunidade de trilhar com sucesso o caminho de protagonista na economia verde mundial.
(*) Presidente da Associação Brasileira dos Investidores em Autoprodução de Energia (Abiape)
(**) Economista
| 5 Março de 2024
Equilibrando a Energia: explorando as vantagens das PCHs e CGHs em contraste com fontes intermitentes
Luiz Antonio Valbusa (*)
O debate em torno das fontes de energia renovável tem se intensificado devido à busca por alternativas mais sustentáveis e eficientes para suprir as necessidades energéticas globais e para atender à transição energética. Dentro desse cenário, as Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) e as Centrais Geradoras Hidrelétricas (CGHs) emergem como opções promissoras, apresentando diversas vantagens significativas quando comparadas às energias eólica e solar, notadamente em relação à sua confiabilidade e capacidade de fornecimento contínuo de energia.
Embora as energias solar e eólica sejam consideradas limpas, a construção de grandes parques eólicos e áreas extensas de painéis solares pode ter impactos significativos no meio ambiente. Por outro lado, as PCHs e CGHs geralmente têm um impacto ambiental menor, principalmente quando comparadas a grandes hidrelétricas, pois ocupam áreas menores e não necessitam da formação de grandes reservatórios.
Uma das principais vantagens das PCHs e CGHs sobre as fontes intermitentes é a sua capacidade de geração estável e contínua de energia. Enquanto a produção de energia eólica depende da intensidade do vento, e a solar é afetada pela variação da radiação solar ao longo do dia e das condições climáticas, as hidrelétricas podem fornecer eletricidade de forma consistente, independentemente das condições meteorológicas.
As PCHs e CGHs podem atuar como reservatórios de energia,
possibilitando o armazenamento para momentos de alta demanda. Essa capacidade de regular a oferta de energia conforme a necessidade torna as hidrelétricas uma opção mais flexível e confiável, algo que é impossível para as fontes solar e eólica, que dependem muito da disponibilidade imediata das condições climáticas.
As Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) e as Centrais Geradoras Hidrelétricas (CGHs) devem ter uma remuneração diferenciada pelos serviços que prestam ao sistema, os chamados serviços ancilares, necessários para garantir que o sistema elétrico funcione de forma adequada.
Embora os custos iniciais de construção de uma PCH ou CGH possam ser relativamente elevados, sua vida útil prolongada e menor necessidade de manutenção comparativamente às turbinas eólicas ou painéis solares resultam em uma relação custo-benefício mais favorável a longo prazo. Além disso, os custos de operação e manutenção das hidrelétricas tendem a ser mais previsíveis, contribuindo para uma estabilidade nos custos de produção de energia. Isso sem falar que as Pequenas Centrais Hidrelétricas têm a menor pegada de carbono entre as renováveis.
Segundo a Associação Brasileira de Geração de Energia Limpa (Abragel), apesar das intermitentes oferecerem preço baixo nos certames, essas fontes não representam o menor custo para o consumidor final. Isso porque a expansão das fontes eólica e solar implica despesas adicionais nos sistemas de transmissão e no acionamento de
usinas térmicas para compensar a intermitência.
Em resumo, as Pequenas Centrais Hidrelétricas e as Centrais Geradoras Hidrelétricas apresentam vantagens significativas, especialmente em termos de confiabilidade, continuidade na geração de energia, menor impacto ambiental, capacidade de armazenamento e contribuição para a estabilidade da rede elétrica. Embora todas as fontes de energia renovável desempenhem um papel crucial na transição para um sistema energético mais sustentável, as PCHs e CGHs se destacam como uma opção valiosa e robusta para atender às demandas crescentes de energia de maneira eficiente e confiável.
(*) Engenheiro mecânico e sóciodiretor da empresa SEMI Industrial Ltda., fabricante de turbinas e equipamentos para PCHs e CGHs, estabelecida em São José dos Pinhais/PR. Também é investidor em pequenas centrais hidrelétricas no estado do Mato Grosso.
| 6 Hydro Brasil ARTIGO
Luiz Antonio Valbusa
41 anos
Copel está preparada para participar do Leilão de Reserva de Capacidade com UHE Foz do Areia
Com a renovação das concessões de suas três grandes UHEs – Foz do Areia, Segredo e Salto Caxias – por mais 30 anos, a Copel está preparada para o Leilão de Reserva de Capacidade, que estava previsto para o ano passado e deve ser realizado neste ano. “Estamos aguardando a Portaria com as diretrizes do Ministério de Minas e Energia a fim de confirmar nossa participação por meio da UHE Foz do Areia”, disse à Hydro Brasil o diretor de Geração e Transmissão da Copel, Moacir Carlos Bertol.
Construída em 1977, a UHE Foz do Areia é a maior usina da Copel. Possui uma capacidade de 1.676 MW de potência e está localizada no rio Iguaçu, distante 5 km da jusante da foz do rio Areia e aproximadamente 350 km de Curitiba, no município de Pinhão. A obra foi iniciada em 1975, tendo a barragem sido concluída em 1979 e a usina, em 1980. Quando de seu planejamento, ela foi projetada para 2.500 MW. Todavia, somente quatro máquinas foram instaladas, o que deixou espaços para a
instalação de mais duas, de 436 MW, cada uma, as quais habilitarão a Copel para o Leilão.
“A parte civil está pronta e o licenciamento ambiental é simplificado, faltando a parte mecânica”, explicou Bertol, adiantando que a conexão para a rede básica já admite o acréscimo de potência. “Acreditamos que o Leilão de Reserva de Capacidade, que incluirá hidrelétricas novas, deve ser confirmado para este ano pelo MME, porque o sistema eletroenergético precisa de suporte de tensão para as usinas
| 8 Hydro Brasil HIDRELÉTRICAS
UHE Foz do Areia, a maior usina da Copel, opera com 1.676 MW de potência e fica localizada no rio Iguaçu
intermitentes não despacháveis”, acrescentou.
A Copel, segundo Bertol, também tem preparado pré-contratos com fornecedores para poder garantir as duas máquinas. “Os contratos ainda não foram assinados, mas os fornecedores estão cientes de nossas intenções de investimento.”
Quanto aos prazos de conclusão das obras, o executivo afirma que a Copel tem plenas condições de atender aos termos do leilão, tanto no caso de um certame A-5, com início de suprimento em janeiro 2029, ou no A-6 em janeiro de 2030. “Com a estrutura que a Copel dispõe, podemos completar as obras em torno de três anos e meio a quatro anos”, assegurou.
Para o próximo leilão, que poderá ocorrer em 2025, a companhia tem possibilidade de participar com a UHE Segredo, a qual se localiza logo abaixo da UHE Foz do Areia na cascata do rio Iguaçu, onde será necessária uma obra civil abaixo da caixa de força, o que também permitirá a instalação de mais duas máquinas de 450 MW.
Com um total de 6,7 MW de potência instalada por meio de hidrelétricas, o planejamento da Copel reservou somente as UHEs Foz do Areia e Segredo para participações em Leilões de Reserva de Capacidade. Apenas para o Leilão de Reserva de Capacidade deste ano, o executivo imagina a contratação entre 3 e 4 GW para fornecimento a partir de 2027.
A UHE Segredo foi inaugurada em 1992, quando começou a operar, tendo como marco fundamental o primeiro Relatório de Impacto Ambiental (Rima) no Brasil para uma usina hidrelétrica, elaborado e aprovado em 1987. Isso fez da Copel um mo-
delo para as demais concessionárias de energia no Brasil com relação à preservação do meio ambiente. Praticamente toda sua construção transcorreu entre 1987 e 1991.
A uma pergunta sobre as perspectivas da fonte hídrica no planejamento do MME, devido ao avanço das intermitentes na matriz elétrica, Bertol afirmou que não existe dúvida quanto à necessidade de garantir o equilíbrio entre a oferta e demanda no Ministério. “Passei oito anos na Secretaria de Planejamento do Ministério de Minas e Energia e em todos os estudos da EPE, aprovados pelo MME, é muito forte a consciência de garantir a segurança energética na operação, e para ter essa segurança, se precisa de fontes que geram potência. Sabemos das dificuldades das hidrelétricas, dado que os melhores aproveitamentos já estão em operação, mas ainda existem projetos bons que podem ser implantados”, garantiu. “Então, o governo vai precisar ter condições de superar a resistência por parte das organizações ambientais e incluir as hidrelétricas nos Leilões de Reserva de Capacidade, na medida em que no leilão anterior de Reserva de Capacidade só entrou termelétrica. É necessário que as hidrelétricas participem desses leilões.”
Além dos investimentos na ampliação das UHEs Foz do Areia e Segredo, a Copel também avalia seu portfólio de 11 PCHs e CGHs. Conforme Bertol, foram iniciados estudos para o desinvestimento de algumas dessas unidades consideradas de custo operacional elevado. “Para uma melhor aderência do custo com o porte de operação, vamos colocar à venda algumas dessas usinas”, disse Bertol, explicando que o comprador irá conseguir
torná-las “bem mais rentáveis”. Apesar de se desfazer de algumas dessas unidades, a Copel continuará investindo em PCHs. “Os estudos do inventário do rio Chopin e afluentes revelaram grande potencial e a Copel poderá vir a investir em outras dessas usinas”, informou.
Perto de concluir o período de seis meses como uma corporação, cujo processo encerrou-se em 14 de agosto do ano passado, a Copel tem a meta de passar a ser uma empresa 100% renovável, o que ainda não foi possível devido à existência de um residual de geração de carvão. “Hoje, somos 99,8% renovável, com participação majoritária de hidrelétricas, mas logo nossa matriz elétrica será totalmente renovável”, assinalou Bertol. Até 2030, a empresa pretende investir na geração de 2 GW de potência, dos quais 1,7 GW de hidrelétricas e em mais 2 mil km de linhas de transmissão e distribuição.
| 9 Março de 2024
Bertol: “Sistema eletroenergético precisa de aporte de tensão para as intermitentes não despacháveis”
Região da Amazônia tem enorme potencial de geração de créditos com a floresta em pé, o que pode alavancar o desenvolvimento socioambiental
Projeto aprovado na Câmara de leilões onerosos limita tempo de adaptação da indústria
Em 2022, o valor negociado no mercado global de créditos de carbono foi de US$ 978,56 bilhões, com uma tendência de atingir US$ 2,68 trilhões até 2028, com um CAGR (cálculo da taxa composta de crescimento anual) de 18,23% durante o período de previsão de 2023-2028, segundo dados da Researche and Markets. Todavia, no Brasil, esse sistema não é bem compreendido e ainda há muita confusão sobre o tema, conforme o presidente do Fórum de Meio Ambiente e Sustentabilidade do
Setor Elétrico (FMASE), Marcelo Moraes.
De acordo com Moraes, parlamentares envolvidos no debate no Congresso Nacional, inclusive uma parte do governo brasileiro, entendem que o país pode ser um grande exportador de créditos de carbono, por ter boa parte do seu território com cobertura vegetal. Entretanto, “não compreendem a complexidade do tema e o custo de tal processo para a indústria brasileira”.
A previsão, segundo o PL 2148/2015 aprovado pela Câma-
ra Federal em dezembro e que ainda depende de aprovação no Senado, é de que o mercado esteja operando, já com sistema de leilões onerosos em cinco anos. E isso, conforme Moraes, causa uma grande preocupação à indústria nacional, pois não é tempo suficiente para se trabalhar as curvas de aprendizado de cada setor.
Mercado europeu
Ele cita como exemplo o mercado europeu, que levou 18 anos de experiência para alcançar a
| 10 Hydro Brasil CRÉDITOS DE CARBONO
CIAT
NEIL PALMER/
maturidade atual. “Desde o seu início em 2005, as emissões da União Europeia diminuíram 37,5% e o preço tem se mantido estável desde 2021. Contudo, até 2022 ainda estava atuando com boa parte de free allowances”, assinala.
O setor de aviação, assim como a construção civil e o transporte marítimo, conforme o titular da FMASE, irão fazer parte do ETS (Sistemas de Comércio de Emissões). Com isso, a previsão é de que somente em 2034 encerrem-se os leilões gratuitos de permissões na União Europeia (UE), justamente para não onerar os setores produtivos que irão adentrar ao Sistema, pondera Moraes.
Ele também chama atenção sobre a precificação de carbono e relata que, em recente intercâmbio sobre as políticas de descarbonização da UE, os representantes da Agência Ambiental Alemã (UBA, na sigla em alemão), em conversa com a delegação brasileira, ressaltaram que a aceitação social em relação a essa questão é um dos desafios centrais da política climática.
A orientação da UBA é de que, antes de publicar qualquer regulamentação, deve haver muita consulta e conversa com os setores envolvidos, para evitar a judicialização. Mesmo assim, no início do mercado alemão, houve cerca de 8.000 processos, a maioria relacionada ao número de permissões. “Por isso é tão importante que o Senado revise as regras de implantação do Sistema de Comércio de Emissões do PL 2148/2015, concedendo um prazo maior para a operação dos leilões onerosos das cotas de emissão e fl exibilização das multas e sanções”, agrega o presidente da FMASE.
Burocracia
Conforme o texto do PL 2148/2015, aprovado na Câmara dos Deputados, a natureza jurídica dos créditos será de títulos mobiliários, o que traz uma burocracia e encarece o título, pois depende de registro e escrituras em instituições financeiras. A tributação também é objeto de grande preocupação para indústria brasileira, pois, mesmo com a reforma tributária, o Imposto de Renda será integral, sem qualquer previsão de incentivo para os agentes regulados.
Em se tratando de preços, segundo Moraes, o ETS hoje é avaliado em entre 80 e 90 eur/ tCO2, enquanto o preço mercado voluntário não alcança US$ 3/ tCO2, isso em se tratando de créditos florestais, que são os mais valorizados. A oferta de créditos de carbono no mercado voluntário brasileiro ainda é muito baixa: o país emite atualmente menos de 1% do seu potencial anual. A expectativa é que esse mercado voluntário cresça com a existência de mercado regulado, podendo movimentar US$ 1,5 bilhão até 2030, só no Brasil.
Certificadores
De acordo com o texto aprovado na Câmara dos Deputados, con-
Marcelo Moraes: “Tempo de adaptação ao processo da indústria é mais demorado”
forme Moraes, haverá certificadores de projetos ou programas de crédito de carbono, os quais observarão a aplicação das metodologias, dispondo de critérios de monitoramento, relato e verificação (MRV). O órgão supervisor do Sistema Brasileiro do Comércio de Emissões (SBCE) fará o credenciamento e o descredenciamento de metodologias de geração de Certificado de Redução ou Remoção Verificada de Emissões (CRVE).
“Assim, possivelmente haverá um novo mercado de certificadoras nacionais, pois a integralidade do título depende da observação desses inúmeros critérios e orientações para mensuração, relato e verificação de emissões de atividades (MRV)”, complementa.
| 11 Março de 2024
PL 11247/2018 pode revitalizar o setor de PCHs, que perdeu competitividade nos mercados livre e regulado
Uma economia anual de R$ 4,3 bilhões para os consumidores, além de um potencial de investimento de R$ 60 bilhões distribuídos em diversos municípios do país. É dessa forma que a Abragel (Associação Brasileira de Geração de Energia Limpa) avalia a contratação de 4.900 MW de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) de até 50 MW, no Sul, Centro-Oeste e Sudeste. A determinação faz parte da redação final do substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei (PL) 11 247-A de 2028 do Senado Federal, que institui, no país, a geração de energia elétrica a partir de empreendimento offshore. Aprovado em 29 de novembro do ano passado, o projeto ainda deverá ser apreciado pelo Senado para a sanção final da Presidência da República.
“Temos esperança na aprovação do PL pelo Senado devido à nossa convicção de que as definições em prol das PCHs trazem enormes benefícios técnicos para o Sistema Elétrico Brasileiro (SEB), ajudam a reduzir a tarifa paga pelos consumidores e promovem desenvolvimento e distribuição de renda no país, através da geração de empregos e redução das desigualdades”, afirma Charles Lenzi, presidente da Abragel.
Daniel Faller, diretor da Hydrofall, de Rio do Sul (SC), afirma que o PL 11247/2018 trouxe mecanismos que corrigem as distorções do planejamento da expansão da oferta de energia da última déca-
Lenzi: “Estima-se que mais de 12 milhões de residências podem ser abastecidas por PCHs de até 50MW”
da, onde a fonte hídrica, especialmente as PCHs, foi esquecida.
Estabilidade
“O mecanismo de contratação previsto terá uma importante contribuição na estabilidade operacional do sistema elétrico, além de fortalecer a indústria nacional e ser mais um passo do Brasil no sentido de cumprir com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)”, acrescenta Faller.
Para Lenzi, o planejamento da expansão de geração de energia elétrica, no país, de forma confiável e com disponibilidade de oferta, necessariamente irá depender da fonte hídrica. Fontes renováveis intermitentes, como a eólica e a solar, segundo ele, não oferecem essa solução de forma isolada. É preciso complementá-las com outras fontes que assegurem
regularidade de suprimento.
“Por isso, é incontornável a importância de um segmento que responde por pouco de mais de 4% da matriz elétrica brasileira, segundo dados da Aneel, mas que nem por isso pode ser desprezado. Estima-se que mais de 12 milhões de residências podem ser abastecidas por PCHs de até 50MW, que totalizam em torno de 1.200 empreendimentos em operação”, enfatiza Lenzi.
Limitação
Mesmo capaz de permitir a retomada do espaço das PCHs no setor elétrico, que ficou limitado devido especialmente ao crescimento da GD no mercado, o projeto é altamente controverso. “O que temos do ponto de vista concreto é um PL que vai em direção oposta ao que o país precisa, impondo uma conta que não tem dimensão”, diz Flávio Roscoe, presidente do Coinfra e da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (FIEMG).” É importante que o Senado enxergue que o projeto não pode ser aprovado com as emendas que só encarecem o custo da energia”, acrescenta.
Reserva de mercado
Sobre as críticas de que o projeto pode criar reserva de mercado, sem falar nos jabutis, como são chamados no jargão político os dispositivos que não têm ligação com o projeto original, Lenzi discorda. Ele considera legítimo que o Congresso Nacional discuta
| 12 Hydro Brasil LEGISLAÇÃO
temas relacionados ao bom andamento do setor elétrico brasileiro. E defende a fonte hídrica como a única que explora potenciais que são bens da União. “Os aproveitamentos hidrelétricos são bens da sociedade brasileira e recebem autorização ou concessão do poder concedente para exploração durante um determinado período, após o qual, esses bens retornam à União e continuam a produzir energia”, destaca.
Já em relação à sobrevivência das PCHs diante de um crescimento constante da GD, caso o PL seja rejeitado, Lenzi afirma que somente com o suporte das hidrelétricas, o Brasil poderá, definitivamente, continuar desempenhando o papel de protagonista na transição global para a energia sustentável.
Faller, mais incisivo, admite
que “haverá uma restrição muito grande à expansão das PCHs nos próximos anos caso o PL não seja aprovado, uma vez que se olharmos apenas para tarifa, sem valorizar os atributos da fonte, esses projetos são menos atrativos no momento”.
Faller: “Rejeição do PL deixará setor com forte restrição no nível de atividades”
Atualmente, as PCHs e CGHs somam juntas 5.560 MW de energia gerada. São 1.046 usinas em operação no país, com a possibilidade de instalação de outras 2.013. A ABRAPCH, com base em relatórios da Agência Nacional de Energia (Aneel), informa que apenas na Região Sul, existem atualmente 407 PCHs e CGHs em operação, com potencial para outros 828 projetos. Já na Região Sudeste há 348 pequenas usinas em operação e a possibilidade de instalação de outras 512. No Centro-Oeste, estão 182 pequenas usinas geradoras de energia, com potencial para outras 561. No Nordeste, estão operando 50 PCHs ou CGHs e 114 locais seriam aptas para instalação. Já na Região Norte, estão em operação 59 usinas, com potencial para outras 108.
Assine a revista que atua em defesa da fonte hídrica
Eletrobras privada
Elena Landau (*)
Para entender a importância da privatização da Eletrobras, é preciso voltar no tempo. Em 1994, o então presidente Fernando Henrique Cardoso incluiu a holding e suas quatro subsidiárias no Programa Nacional de Desestatização (PND). Na ocasião, não havia qualquer restrição legal à perda de controle da União, o que dispensava lei autorizativa específica, bastando o decreto presidencial.
O modelo escolhido para desestatização do setor foi a desverticalização da operação, que era integrada para muitas estatais, e uma modelagem específica para cada segmento.
A ideia era vender as quatro grandes subsidiárias, mas uma a cada vez. Contudo, só a Gerasul foi leiloada em 1998, tornando-se a Tractebel, uma das mais importantes empresas de geração do segmento. O objetivo do governo era criar competição no setor completamente dominado pelo monopólio estatal. A grande resistência mineira e política capitaneada pelo ex-presidente Itamar Franco à venda de Furnas interrompeu o processo.
A Lei nº 10.848/2004, de autoria da então ministra Dilma Rousseff, criou o Novo Modelo do Setor Elétrico, o qual mudou o funcionamento do setor e retirou a Eletrobras e suas subsidiárias do PND. Com isso, qualquer nova decisão de vender a holding ou as suas empresas regionais teria, obrigatoriamente, que obter uma autorização legislativa específica para deixar de ser uma estatal, o que só veio a acontecer
anos mais tarde, no governo Temer, decisão confirmada depois no governo Bolsonaro, com a MP nº 1031/2021.
Com a mudança do modelo, a ideia de competição entre as grandes geradoras, na qual se baseava o modelo de privatização de FHC, é abandonada. A geração passa a responder às declarações de demanda das distribuidoras, através de leilões para empreendimentos de energia nova. Começa a ser a nova forma de buscar a competição. Com o avanço dos leilões, cresce a presença do setor privado no segmento. Ou seja, a Eletrobras permanece estatal, mas compete com grupos privados nos leilões de energia, em uma espécie de privatização na margem. Os grandes investimentos da holding se deram através dos consórcios que venceram as disputas dos projetos estruturantes na Região Amazônica.
A permanência da Eletrobras nas mãos do Estado foi um erro fatal. As tarifas de energia não responderam como o governo esperava à competição nos leilões. O governo Dilma deci-
O governo quer aumentar sua presença no Conselho de Administração, de modo que reflita os 42% de participação que ainda mantém, o que deveria ser objeto de oferta secundária, garantindo mais recursos ao Tesouro.
Para isso, levou a questão ao Supremo Tribunal Federal (STF)
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Elena Landau: “A Eletrobras voltou a ser uma das maiores investidoras no setor. É disso que o país precisa e não de uso político de nosso patrimônio”
diu, então, reduzir os custos de energia de forma artificial, com a desastrosa MP nº 579/2012. Essa medida impôs a recontratação da venda de energia pelo sistema de cotas, a um preço que não cobria os custos operacionais. A queda de receita decorrente coincidiu com a necessidade de aportes nos projetos estruturantes das grandes hidrelétricas e levou a alavancagem de empresa a limites só possíveis por ser o Tesouro o controlador. A relação dívida sobre EBTDA chegou a quase 8 vezes.
Neste período de destruição de valor, a Tractebel, antiga subsidiária, chegou a valer o dobro da holding, cujo valor de mercado despencou para cerca de R$ 10 bilhões. Não havia recursos públicos para recuperar a empresa financeiramente. A capitalização se tornou inevitável. O governo Temer mudou a gestão da empresa, com apoio da Lei das Estatais. A primeira decisão foi vender as estatais de distribuição do Norte e Nordeste, reduzir investimentos e iniciar um forte processo de redução de custos.
A valorização das ações com a mudança da sua administração foi imediata. Mas os problemas estruturais decorrentes da intervenção via MP 579 permaneciam. A descotização das usinas, a entrada de capital privado e a liberação da empresa para participação do mercado livre de energia eram fundamentais para a sobrevivência da empresa.
A injeção de capital, combinada com a baixíssima alavancagem permitiram que a Eletrobras voltasse a investir. Entre a saída de Dilma e a operação de diluição da União, o valor da companhia foi multiplicado por sete, chegando a R$ 70 bilhões. Tudo isso já mostrava o potencial de
A Eletrobras projetou um potencial de investimentos entre R$ 70 bilhões e R$ 80 bilhões até 2027. Deste montante, a companhia possui R$ 17,1 bilhões de investimentos já contratados em geração e transmissão.
A recente incorporação de Furnas é mais um passo importante para trazer mais eficiência na operação da empresa, melhorando a gestão e reduzindo custos administrativos
empresa sob gestão privada.
Apesar de todos os benefícios recebidos pela União através do pagamento de outorga e aporte na CDE, o governo Lula ficou inconformado com a perda de poder político no setor e, especialmente, na empresa.
O governo quer aumentar sua presença no Conselho de Administração, de modo que reflita os 42% de participação que ainda mantém, o que deveria ser objeto de oferta secundária, garantindo mais recursos ao Tesouro. Para isso, levou a questão ao Supremo
Tribunal Federal (STF).
Porém, a limitação do poder de voto é parte da ideia de corporação e contribuiu para o sucesso da operação. Foi utilizada para evitar que um grande ativo, responsável por cerca de um quarto da geração de energia, caísse nas mãos de só um grupo e, assim, optou-se pela pulverização.
A recente incorporação de Furnas é mais um passo importante para trazer mais eficiência na operação da empresa, melhorando a gestão e reduzindo custos administrativos.
A privatização da Eletrobras foi – e ainda é – fundamental para eliminar riscos de que erros crassos – como o da MP 579 – destruam novamente a maior empresa de geração da América Latina. A Eletrobras voltou a ser uma das maiores investidoras no setor. É disso que o país precisa e não de uso político de nosso patrimônio.
(*) Economista e advogada
| 15 Março de 2024
País precisa evoluir na capacidade de fazer previsões de cheias extraordinárias, e de agir para reduzir o impacto de inundações
Em novembro do ano passado, quase dois meses após a passagem de um ciclone, o Vale do Taquari, no Rio Grande do Sul, voltou a ser afetado por temporais e inundações. O nível do rio Taquari subiu 44 cm em apenas uma hora, e isso afetou mais de 71 famílias que perderam suas casas. Nesta entrevista à Hydro Brasil, o professor Walter Collischonn, mestre em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental e doutor em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental (UFRGS), relata as lições que ficaram desse episódio.
Quais as lições que ficaram das inundações do rio Taquari, no RS, em novembro de 2023?
Embora não seja possível determinar se as enchentes de 2023 tenham sido causadas ou intensificadas pelas mudanças climáticas, sua ocorrência é coerente com as projeções de possíveis alterações de vazões máximas devido às mudanças climáticas. Um projeto atualmente em andamento pelo Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) – UFRGS, com dados de modelos climáticos, mostra que as vazões máximas das grandes bacias deverão diminuir em grande parte do Brasil, porém deverão aumentar no sul do Brasil, onde está localizada a bacia do rio Taquari. Então, uma das lições que ficaram é que eventos como as cheias de 2023 poderão se repetir no futuro, assim como ocorrido no passado e, talvez, venham a ter um aumento de frequência ou de magnitude.
Também houve claramente
uma falha em termos de previsões...
Outra lição que ficou é que ainda há necessidade de evoluirmos muito em termos da nossa capacidade de fazer previsões de cheias extraordinárias, e de agir para reduzir o impacto das inundações, através do alerta e medidas preventivas. Não é mais tolerável que os moradores dos vales sejam surpreendidos pela elevação das águas em plena era da informação, em que se compartilham, de forma quase instantânea, observações, relatos, vídeos e fotografias. A informação deveria permitir melhores previsões de nível da água, com maior antecedência, e de forma mais robusta, ou seja, menos sujeita a ficar inoperante por conta da perda de um ou outro equipamento de monitoramento.
A falta de informação é outra deficiência que impede a adoção de medidas cautelares, verdade?
Um aspecto surpreendente, que está relacionado à gestão da informação, e que está presente na ba-
cia do rio Taquari, é que os agentes que realizam a previsão das cheias não contam com a informação coletada pelo monitoramento realizado nos aproveitamentos hidrelétricos distribuídos por toda a bacia hidrográfica. É preciso entender as causas desta má gestão da informação e aprimorá-la, para que os agentes que fazem a previsão de cheias tenham acesso ao maior número possível de dados, e que esses dados tenham alta qualidade. Acredito que podemos evoluir muito aproveitando melhor a informação e os dados existentes. Entretanto, entendo que o monitoramento hidrológico atual deveria ser aumentado na bacia do rio Taquari, especialmente com mais postos pluviométricos automáticos com telemetria. Essa é uma bacia que responde de forma bastante rápida e previsível às chuvas, então um melhor monitoramento das chuvas permitirá também aprimorar as previsões de nível da água nos locais que sofrem com as inundações.
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Inundação deixou mais de 70 famílias sem suas casas
Qual é o papel das hidrelétricas em situações de grandes cheias?
A capacidade das usinas hidrelétricas ou pequenas centrais hidrelétricas em atenuar ou intensificar as cheias depende da capacidade de armazenamento em seus reservatórios. E essa capacidade deve ser avaliada em termos relativos, comparando os volumes físicos dos reservatórios, que dependem de seu comprimento, largura e profundidade, com o volume de água trazido pela cheia natural do rio. No caso das UHEs e PCHs da bacia do rio Taquari/Antas, esta comparação mostra que todas elas têm capacidade extremamente reduzida de atenuar ou intensificar as grandes cheias que ocorrem naturalmente. Então, podemos ter certeza que a operação das barragens não teve influência sobre os níveis máximos da água em locais distantes das usinas, como Lajeado e Roca Sales, por exemplo. Isso já havia sido previamente analisado entre 2014 e 2016, ao longo de um projeto de pesquisa conduzido pela UFRGS.
Isso significa que a operação das barragens não teve influência no nível da água no rio Taquari?
Ao contrário, isso não signifi-
ca que a operação das barragens não possa ter influência sobre as variações do nível da água no rio Taquari. Nos períodos normais, com vazão relativamente baixa, as alterações da vazão que passam através das turbinas da UHE 14 de Julho são suficientes para gerar, diariamente, aumentos e reduções de 2 metros, aproximadamente, no nível da água do rio das Antas a jusante da usina. Essas alterações de vazão tendem a se atenuar, enquanto a água flui para jusante, mas ainda são percebidas como alterações do nível da água em Muçum da ordem de 1 metro, ou até mais. Em Lajeado, as alterações de nível do rio Taquari, devido às alterações de vazão diárias na operação da UHE 14 de Julho, são ainda percebidas como oscilações de 20 cm para mais e para menos. Durante as cheias, a variação de vazão que passa pelas turbinas é menos importante, mas podem ocorrer variações da vazão defluente das usinas pela forma como são operadas as comportas. Várias PCHs da região têm vertedores livres, que não têm comportas. Neste caso, a influência é nula. No entanto, algumas, como a UHE 14 de Julho, contam com dois verte-
dores: um livre e outro controlado por comportas. Neste caso, dependendo da capacidade do vertedor controlado por comportas e dependendo da forma como as comportas são operadas, pode haver uma influência sobre os níveis da cheia em trechos do rio localizados à pouca distância da barragem. Esta influência pode ocorrer tanto sobre as cotas máximas do nível da água, como sobre a velocidade de aumento do nível da água.
No caso das UHEs e PCHs, existem evidências de influência dessas usinas nos eventos climáticos recentes?
A presença das PCHs e UHEs na bacia é uma grande oportunidade, que pode trazer contribuições importantes para que a sociedade da região sofra menos impactos nas novas cheias, que certamente virão. Para isso, entendo que é fundamental que seja aprimorada a forma como a informação disponível nas usinas seja compartilhada com a sociedade da região. Por exemplo, a estimativa da vazão vertida em cada usina em cada hora deveria estar disponível de forma imediata e simples para a Defesa Civil e para a sociedade em geral. Algumas usinas já disponibilizam essa informação, mas não todas. Além disso, as usinas recolhem dados de chuva e vazão ou nível da água em outros pontos da bacia, e essa informação tem sido disponibilizada, mas é muito frequente que, durante as cheias, esses pontos de monitoramento estejam inoperantes, ou operando com leituras inconsistentes. Então, é necessário qualificar a informação que é compartilhada pelas usinas com a sociedade. Finalmente, as empresas que operam UHEs e PCHs na região precisam deixar claro quais são as regras de operação seguidas em cada um dos aproveitamentos durante os eventos extremos.
| 17 Março de 2024
Professor Walter : “É preciso aprimorar a informação das usinas com a sociedade de cada região”
ABNT reúne os maiores expertises para modernizar critérios de barragens de hidrelétricas
Cinco anos depois do rompimento da barragem de Brumadinho, em Minas Gerais, ocorrida em 25 de janeiro de 2019, ainda perduram graves consequências sobre o seu território e os atingidos. De repercussão mundial, o evento trouxe uma nova consciência sobre segurança de barragens no Brasil, o que determinou o aperfeiçoamento da legislação existente que indica a necessidade contínua de qualificação técnica para o envolvimento com barragens.
Em linha com esta obrigatoriedade, a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) vem desenvolvendo um trabalho de modernização dos critérios de projetos existentes, a fim de suprir as necessidades de projetistas fiscalizadores e empreendedores, consultores e todos os demais setores envolvidos em obras de engenharia de barragens.
Criada em outubro de 2021, a Comissão de Estudo Especial sobre Barragens (ABNT/CEE-255) é coordenada por José Marques Filho, engenheiro e professor do Departamento de Construção Civil da Universidade Federal do Paraná. De acordo com ele, o objetivo da Comissão é “acabar com o vácuo existente” no assunto, na medida em que muitos construtores de barragens vêm utilizando normas internacionais, existem regulamentos que precisam de uma revisão, além das inovações tecnológicas surgidas nos últimos anos. Ao lado disso, a Lei nº
Marques: “Segurança de barragens deve ser discutida com coragem”
14.066, de 2020, da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), indica “a necessidade de melhoria contínua e procedimentos seguros” de construção e segurança de barragens. “A ideia é trazer regulamentos antigos para o estado da arte, homogeneizando os critérios no país”, resume.
Especialização
Formada por cerca de 100 integrantes, da elite do setor no Brasil, e sete subgrupos, a Comissão, conforme Marques, atuará no projeto, na execução, no monitoramento, na manutenção, no reparo e na inspeção de barragens e estruturas complementares.
Há dois anos em atividade, o trabalho, segundo Marques, será
concluído no período de três anos. “Temos a intenção de produzir também vários guias de boas práticas que seria a maneira de se fazer a gestão do conhecimento”, adiantou o professor, que é especialista em projetos e reparos de usinas e em segurança de barragens. “Alguns desses guias serão feitos pela própria normatização e outros pelo Comitê Brasileiro de Barragens (CBDB), que também organizará um conjunto de cursos para a melhoria da qualidade técnica e critérios únicos para que todos tenham uma base comum do conhecimento, que possa auxiliar as próximas gerações e o Brasil nesse processo”.
Marques advoga que a segurança de barragens é um assunto que “deve ser discutido com coragem”. Ele cita que os cursos de especialização sobre o tema estão se multiplicando pelo país, enquanto a graduação em Engenharia “nem fala em barragens e cabe ao engenheiro se desenvolver nessa questão”.
“Dada a sua alta relevância, a habilitação à construção e segurança de barragens no Brasil deveria exigir do engenheiro o mesmo tipo de especialização da residência na formação dos médicos”, compara Marques. “Pretendo, sim, defender a criação de um certificado para engenheiros de barragens.”
Ajustes
Com a experiência de 52 anos, em que colaborou em mais de
| 18 Hydro Brasil ARTIGO
uma centena de obras de infraestrutura e recursos hídricos, entre elas Água Vermelha, Itaipu, Xingó, o geólogo Ricardo Abrahão questiona a forma como a estabilidade das barragens está sendo calculada no país, o que implicaria em ajustes a serem definidos por futura norma da ABNT.
“Com todos esses anos de ex-
periência, é possível questionar a forma como a estabilidade das barragens está sendo calculada. Principalmente agora que estão sendo feitas revisões de segurança, as barragens precisam ser recalculadas. Ocorre que, para recalcular, têm sido usadas as cargas do critério de projeto, o que não é real, porque a ava-
liação é sobre o desempenho da estrutura e tem de ser feita com base nas informações da instrumentação”, diz o geólogo. “Uma das formas, no Brasil, seria mudar o critério de projeto ou mudar as recomendações. Caberia à ABNT a responsabilidade de instituir uma nova norma”, sugere Abrahão.
Relatório da ANA mostra que a falta de informações dificulta análise sobre segurança no setor
O RSB (Relatório sobre Barragens) da ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico) de 2022 indicou a existência de 23.977 barragens cadastradas no Sistema Nacional de Informações sobre Segurança de Barragens (SNISB). Dessas, 13.438 (56%) não apresentaram informações suficientes para avaliação quanto ao enquadramento, conforme a Lei nº 12.334, de 2010. As demais barragens cadastradas (10.539) passaram por avaliação, das quais somente 5.665 estão enquadradas à PNSB.
Quanto ao uso principal das
barragens enquadradas na PNSB, 33,5% são para irrigação, 21% para abastecimento humano, 14% para hidrelétrica e 8% destinadas à contenção de rejeitos de mineração. Esses percentuais são semelhantes aos verificados no ano anterior.
Entre as barragens utilizadas para irrigação, 17,3% constam classificadas com DPA (Dano Potencial Associado) alto ou médio, e 6,9% com CRI (Contenção de Resíduos Industriais) alto. Considerando o uso para abastecimento humano, são 59,3% com DPA alto ou médio e 33,7% apresentam CRI
alto; entre as destinadas à mineração, 44,7% possuem classificação com DPA alto ou médio e 5,5%, CRI alto; e quanto à geração de energia, 86,5% contêm DPA alto ou médio e apenas três, CRI alto.
O RSB 2022 identificou 10.171 barragens classificadas quanto ao Dano Potencial Associado, um acréscimo de 7% em relação às 9.451 do RSB 2021. Já no que diz respeito à Categoria de Risco, foram reportadas 9.034 barragens classificadas, o que representa um acréscimo de 8% em comparação com as 8.286 constantes do RSB 2021.
Foram identificadas 122 barragens como as que mais preocupam, com uma redução de 35% em relação às 187 do RSB 2021. Estão distribuídas em 19 estados, com destaque para Pará (35), Minas Gerais (14), Pernambuco (13), Rio Grande do Sul (13) e Espírito Santo (10). Em comparação às informadas em 2021, 57 delas ainda permanecem na lista atual e foram acrescentadas 65 novas barragens, sobretudo pelo incremento nos números da SEMAS/ PA (35 barragens), FEAM/ MG (5), SEMA/RS (7) e AGERH/ES (4). Das 57 reincidentes, 48 (84%) apresentaram algum tipo de dano ou anomalia relatado.
| 19 Março de 2024
Relato da ANA mostra que 86,5% das barragens de hidrelétricas contam Dano Potencial Associado