Jornal N.º 92

Page 15

jornal do STAL

MAIO 2009

Um livro, um autor ✓ António Marques

Uma palavra de amor, mas também um grito de indignação de alguém que, sendo portador de esperança, entendia que a miséria e o humanismo se podem revelar através da poética.

ESTEIROS

de Soeiro Pereira Gomes

E

m 14 de Abril de 1909 nasci em Gestaçô, freguesia do concelho de Baião, Joaquim Soeiro Pereira Gomes, filho de pequenos agricultores. Numa terra de cultura celta, aninhada no sopé de um monte, espreitando o Marão lá longe, cresceu com os garotos do seu tempo e foi caldeando a sua infância num ambiente rural onde a natureza em todo o seu esplendor impõe a sua força telúrica. Na Escola Agrícola de Bencanta, junto a Coimbra e a dois passos do rio Mondego, fez-se homem e estudou as ciências da Agricultura tendo embarcado para Angola com o curso de Regente Agrícola. Mas a experiência em terras africanas foi de pouca dura, um ano depois fixa-se em Alhandra e vai trabalhar para os escritórios da Fábrica de Cimentos do Tejo. Nas margens do grande rio, Alhandra de origem árabe, vila de pescadores e camponeses até ao princípio do século XX, industrializa-se e é o terreno propício para a afirmação do jovem escritor, permitindo-lhe formar a sua visão neo-realista e começar a publicar os seus textos desde 1939 no semanário O Diabo. É importante recordar que o neo-realismo português foi em primeiro lugar uma forma de literatura de verdadeira resistência ao regime fascista, guiada pela visão marxista da história e do futuro, caldeada na luta de classes.

Um livro obrigatório Em 1941 publica Esteiros, com ilustração de Álvaro Cunhal com quem teve uma intensa cumplicidade cultural e política. Obra maior dedicada «aos filhos dos homens que nunca foram meninos», livro obrigatório nas estantes dos portugueses, fonte onde foram beber gerações de homens e mulheres. Neste romance assistimos ao desenrolar de um cordão de vida representada por um povo explorado, onde corre um grupo de crianças que rejeitam a moral bafienta da época e respondem à violência da sociedade com um abraço de solidariedade. Poucos autores abordaram o capitalismo industrial como Soeiro Pereira

Gomes o retratou neste romance, cuja acção nos prende e nos desperta para a realidade da exploração dos operários fabris, nos comunica o roubo da meninice e da infância dos pequenos trabalhadores engolidos por uma vida de miséria. Soeiro Pereira Gomes tem o condão de criar ambientes de atmosfera rara, onde a dor e o sofrimento dão as mãos à alegria e à esperança, na linha directa do naturalismo francês de Zola, dos russos Gladkov e Górki e, por que não, de Jorge Amado. Esteiros mostra-nos as classes sociais bem caracterizadas, as suas reacções económicas, a violência da acção, a miséria para muitos, a abastança para uns poucos. O mundo é composto de interacções mas o homem é quem produz, por isso a boca de um dos miúdos revela-nos a quem pertencem os bens, simbolizados nos tijolos, «dono é a gente que os fazemos». Sempre junto da classe mais desfavorecida, contra a arbitrariedade e o esmagar das pequenas e médias empresas pelo capitalismo, caracterizado na grande fábrica, cega e desumana, Esteiros, onde nos confrontamos com uma verdadeira dialéctica, é um livro escrito também pelas gentes de Alhandra, pelos operários, pela esperança colectiva, pelo pulsar da vida.

Farol do amanhã Para muitos de nós, então jovens estudantes, foi um farol que nos mostrou o caminho de um amanhã percorrido por gente que luta, que se opõe, que recusa o lugar comum, que trabalha e que vencerá por força da sua solidariedade e persistência. Esteiros é também o mundo do Gineto ou do Gaitinhas, meninos que das fendas do Tejo – esses pequenos canais que, por se chamarem esteiros, deram o nome ao romance – colhiam a argila que transformavam em telhas e tijolos, numa actividade cuja violência ultrapassava as raias do imaginável e fazia a vida do dia a dia daquelas crianças sofridas do Telhal Grande. A obra termina com um grito de esperança no futuro, quando os miúdos partem em busca do pai: «E quando o encontrar, virá então dar liberdade ao Gineto e mandar para a escola aquela malta dos telhais – moços

A primeira edição de Esteiros, em 1941, foi enriquecida com ilustrações de Álvaro Cunhal

que parecem homens e nunca foram meninos.» Aliás o Gineto, que nunca fora criança, seria na realidade o famoso Baptista Pereira, mais tarde excelente nadador, que percorreu o Tejo e os seus 35 quilómetros de Alhandra até Lisboa em cinco horas, foi o grande campeão que bateu o recorde do estreito de Gibraltar e do Canal da Mancha e suplantou o desafio da longa distância na Europa, com 26 horas de natação em que percorreu mais de 166 quilómetros. Este Gineto dos esteiros terá nascido para o desporto na piscina que Soeiro Pereira Gomes ajudou a construir nas suas actividades de dinamização social e cultural para os filhos dos operários, onde se incluíam aulas de ginástica, bibliotecas e intervenções em colectividades e associações de todo o tipo.

Escritor militante Esteiros, um dos meus livros preferidos, é justamente considerado como porventura a melhor obra literária es-

15 crita nos anos 40 e foi o único publicado durante a curta vida do seu autor. Para além de Esteiros, Soeiro Pereira Gomes escreveu ainda Engrenagem, dedicada aos trabalhadores sem trabalho, escrito durante os anos de clandestinidade e publicado em 1951, depois da sua morte, e ainda Contos Vermelhos, Última Carta e Refúgio Perdido, obras póstumas. Foi um homem de convicções inabaláveis e por isso sofreu as agruras do fascismo. Em Alhandra, era visitado pelos grandes vultos culturais da época e fez um círculo de amigos onde figuravam nomes como Alves Redol, Álvaro Cunhal, Dias Lourenço. Aderiu ao Partido Comunista ainda nos anos 30 integrando a célula da empresa e o comité local de Alhandra. Pelas suas qualidades e competências, participou com êxito no trabalho clandestino de acção cultural levado a efeito pelo partido em todo o Ribatejo, cuja organização regional viria a dirigir, como membro do Comité Central eleito no IV Congresso. Teve um papel muito importante na reorganização do Partido na década de 40. Participou activamente na famosa greve de 8 e 9 de Maio de 1944, momento grande da luta operária em Portugal. Participou na formação e organização do MUNAF e do MUD. Em 1945 Soeiro Pereira Gomes entra na clandestinidade para não mais regressar. Aí viveu com o estoicismo e o sofrimento dos homens que nada temem e tudo desafiam. Perdeu tudo menos a dignidade, a coragem e a esperança em dias melhores. Viveu em moinhos erguidos pelos montes ou em casas recatadas como em Salir do Porto, Caldas da Rainha, onde, em fins de 1947, Álvaro Cunhal, antes da partida para a União Soviética, o foi encontrar já minado pela doença que lhe atacou os pulmões. Cunhal quis despedir-se do amigo e camarada que nunca mais reviu. Nem a mulher, Manuela Câncio Reis, jovem compositora inserida nos meios do teatro amador, sabia do seu paradeiro. Mas isso não impediu a PIDE de invadir a modesta casa de Alhandra, levando pela calada da noite aquela frágil e doente mulher para um hospital prisão. Soeiro Pereira Gomes, trabalhador dos Cimentos Tejo, propriedade das poderosas famílias Sommer Champalimaud, foi enorme exemplo de luta pela liberdade e de empenho em defesa dos direitos dos trabalhadores, das populações em geral e sobretudo dos fracos e desprotegidos. Soeiro Pereira Gomes é sem duvida o maior exemplo do Escritor Militante.


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.