CLB Clarice Lispector

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O pedido de ajuda veio perfeitamente a calhar. Por aqueles dias tinha decidido apresentar uma página feminina que seria assinada por Ilka Soares, atriz lindíssima que gozava de grande sucesso na época. Mas, para isso, precisava de um ghost-writer. Então, melhor ainda, teria uma escritora fenomenal por trás de um ícone de geração. ‘Só para mulheres’ deu muito certo. Fiquei, confesso, surpreendido com a facilidade da ficcionista em se aproximar do público feminino do tablóide popular. A página foi muito bem recebida pelos leitores. Sua produção era extraordinária. Ela mandava para a redação as colunas diagramadas e ilustradas. Prontas. Montava tudo em casa, com recortes de revistas femininas internacionais, como a Vogue e a Elle, e nos entregava tudo perfeitamente editado, fechado, sem nada a tirar ou pôr. Com o tempo – e uma ajuda topográfica – a colunista de fachada e a verdadeira ficaram amigas. Ambas moravam no Leme e se encontravam para discutir questões a serem abordadas pela página, algo que, até onde eu sei, nunca fora sugerido pela redação. Esse zelo e toda a dedicação de Clarice ao trabalho me fizeram acreditar desde sempre que ela cultivava algum gosto discreto pela colaboração no jornal, embora se tratasse de uma necessidade. Ela continuou com a página até o fechamento do tablóide, em março de 1961. Em 1967, estava desenvolvendo o novo projeto do Jornal do Brasil, quando recebi nova ligação de Otto. O ‘texto’ era o mesmo: ‘Dines, Clarice está com dificuldades’. Estávamos então criando o ‘Caderno B’ aos sábados – naquela época, o jornal não circulava às segundas; a seção de cultura saía de terça a sexta e não havia ainda um cronista para a página 2. A autora trouxe para o JB um leitor mais exigente, um dos objetivos das mudanças que implementamos. Nos dois momentos em que trabalhamos juntos, ela teve sempre total autonomia sobre as atividades que exerceu. A verdade é que nunca editei Clarice Lispector – nenhum colunista era de fato ‘editado’ no Jornal do Brasil. Uma vez ela mandou para o JB uma crônica sem uma abertura de parágrafo. Assim foi publicada. Clarice era reservada. Ia pouco à redação, preferia tratar por telefone. Pensava que era involuntariamente discreta por causa do acidente que deformou parte de seu corpo. Era uma pessoa muito bonita. Com o tempo, ela acostumou-se às marcas da queimadura, mas em mim ficou a impressão que viveu sempre se protegendo daquelas cicatrizes. Nunca consegui saber se o seu modo esquivo em lidar era anterior ou se nasceu com o incêndio em seu colchão. Enfim, Clarice era tudo menos óbvia. Ela era secreta. A autora não permitiu que eu a visitasse quando da sua internação para tratamento do câncer que a levou. Uma das últimas vezes que a vi, foi por um feliz acaso, em um vôo para o Recife. Eu ia a um congresso, ela, visitar uma tia. Estava contente feito uma menina. ‘Vou me encher de comida judaica’, gabava-se. Contou-se certa vez que uma das últimas coisas que pediu no hospital foi, aliás, um vidro de pepino azedo.

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