CLB Clarice Lispector

Page 200

do asas entre a busca utópica da condição humana (“nunca atingiremos em nós o ser humano”) e a busca não menos utópica da condição animal (“desistir de nossa animalidade é um sacrifício”17). Na ficção de Clarice Lispector, o parasitismo recíproco – da vida animal pela vida humana, e vice-versa – serve de belvedere lírico-dramático, de onde narradores e personagens olham, observam a eles e ao(s) outro(s), intuem, fantasiam, falam e refletem sobre o mundo, os seres e as coisas, sendo por isso difícil, e talvez desnecessário, diferenciá-los. Aparentemente os mil e um pontos de vista que as vozes dos narradores e as falas dos personagens enunciam (eu me enxergo animal, eles me enxergam animal, eu enxergo o animal, o animal se enxerga, o animal me enxerga etc.) expressam situações conflitantes. Todo drama, aliás, é feito de conflito. No entanto, uma análise mais apurada de material tão efervescente e inédito na literatura brasileira revelará que, se as tramas não são nem podem ser coincidentes, os pólos simétricos de oposição se encaixam com certa graça e dramaticidade, contribuindo para o encanto da narrativa. Como na obra do argentino Jorge Luis Borges, os caminhos do texto ficcional clariciano se bifurcam. Todavia, os seus narradores e personagens são unos nos jogos de cumplicidade, semelhantes ao ser humano que, ao se bifurcar em cima dum cavalo, transforma a si e a ele em centauro. No Manual de zoología fantástica, Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero refletem sobre o centauro: “[...] o verossímil é conjeturar que o centauro foi uma imagem deliberada e não uma confusão ignorante”.18 O parasitismo recíproco aparece sob várias roupagens retóricas no texto clariciano. As mais constantes são a comparação e a metáfora. Do conto “Devaneio e embriaguez duma rapariga”19 tome-se o exemplo de comparação: “Sua carne alva estava doce como a de uma lagosta, as pernas duma lagosta viva a se mexer devagar no ar”. Do conto “A procura de uma dignidade”20, tome-se o exemplo de metáfora na passagem em que a mulher se põe de quatro no chão: “Quem sabe, a Sra. Xavier estivesse cansada de ser um ente humano. Estava sendo uma cadela de quatro. Sem nobreza nenhuma. Perdida a altivez última”. Não é diferente o recurso retórico que fecha o conto de onde foi extraído o exemplo acima de comparação: “Então a grosseria explodiu-lhe em súbito amor; cadela, disse a rir” (“Devaneio e embriaguez...”, p. 28). Há, entretanto, uma comparação e/ou metáfora privilegiada no universo ficcional de Clarice – a do cavalo.21 Dada de empréstimo à moça, vimos que

198


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.