CLB - Ferreira Gullar

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Em poesia certamente não, mas em termos de prosa, o sr. tem alguma rotina quando está escrevendo, por exemplo, um ensaio?

CADERNOS:

que não é só a história de D. Pedro, do golpe de 64, é a história de alguém que estava em casa e ouviu o avião passar. CADERNOS:

Ao longo dos últimos 50 anos, sua poesia passou pela luta contra o formalismo da geração de 45, pelos movimentos concreto e neoconcreto, por uma dicção de matiz popular e politicamente engajada e até pelo verso lírico-coloquial de extração moder nista. Por trás dessa apa rente dispersão, seu percurso inquieto configurou, no entanto, um programa sempre coerente de procura da poesia e da expressão que, a cada momento, melhor lhe desse forma. A esta altura de sua carreira, tendo-se afirmado como um dos mais importantes poetas brasileiros de sua geração, o sr. considera que essa procura terminou?

Ferreira Gullar: Não. Em geral trabalho de dia, mas sem horário. O problema, como eu disse, é que não gosto de escrever. Mesmo poesia, eu só gosto quando entro naquele clima que já descrevi antes. CADERNOS:

Quando é que a poesia o convoca realmente?

Ferreira Gullar: Às vezes acontece na rua. Não é sempre, mas às vezes eu saio – tenho prazer em estar no meio das pessoas – e fico pensando nos poemas, elaborando mesmo. É um prazer saber que a poesia está nascendo no meio da multidão. Mas o momento do nascimento do poema, desse você não tem controle.

Ferreira Gullar: Esse livro que vou publicar tem vários momentos diferentes. Um deles traz textos que eu chamo de poemas prosaicos. Eles nasceram depois da última poesia de Barulhos, que se chama “Nasce um poema”. Depois que escrevi “Nasce um poema” passei meses sem produzir, fiquei achando que tinha entrado numa nova crise. Quando voltei a escrever, fiz poemas quase narrativos. Quer dizer, o poeta está sempre num impasse, numa situação de impasse. No meu caso, ainda acontece a mesma coisa que se vê n’A luta corporal : quando adquiro a habilidade, eu corto, rompo. Não consigo continuar, eu não quero continuar. Não é uma questão de buscar o novo simplesmente, mas porque ali tem que aflorar a coisa fresca; é que sou exigente e não quero a habilidade, como falei. Então, continuo buscando. Meu último poema, “Morrer no Rio de Janeiro”, que entreguei a vocês para sair nos CADERNOS, é feito em versos livres, enquanto os que eu vinha fazendo um pouco antes dele eram rimados. Ora, “Morrer no Rio de Janeiro” jamais poderia ter sido escrito com rimas, metrificado. Quer dizer, o poema também se impõe, entende? Quando ele vem, de qualquer um de seus abismos, ele desconhece tudo, não reconhece pai nem mãe, não adianta – ele não respeita nada.

CADERNOS:

Por que alguém deveria se dedicar à poesia nos dias atuais?

Ferreira Gullar: Eu acredito que as pessoas nasçam poetas. É o destino delas. Então, dificilmente deixam de fazer poesia. CADERNOS:

E os leitores?

Ferreira Gullar: Também. Eu acho que há pessoas que têm uma sensibilidade especial para a poesia. Não são capazes de escrever, mas são capazes de ler com sensibilidade um poema. Eu tenho recebido manifestações de leitores assim, que me encontram, me páram na rua e dizem: “Olha, eu li o seu livro inteiro, as suas poesias me ajudaram muito”. Isso é uma coisa que nasce com a pessoa. Para mim, o fato de ser um poeta da banalidade, do mundo real e ter esse retorno, para mim esse é o grande barato, está compreendendo? É comovente eu conseguir fazer um poema que é da vida do outro também. Eu falo da fotografia aérea da minha cidade e ele também pode sentir isso, ele tem a sua cidade, ouviu passar o avião sobre a cidade dele. Quer dizer: eu estou contando a história do meu país 55


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