Ferreira Gullar: O Zuenir, por modéstia, está dizendo que o esforço foi só do Elio Gaspari, mas foi dele também. Zuenir e Elio levaram o Poema sujo para o Golbery e ele disse: “Isso é uma obscenidade, esse poeta é um pornógrafo! Mas eu não me oponho a ele voltar, não. Por mim, ele pode voltar, mas tenho que falar com o Figueiredo, chefe do SNI”. Falou. Aí, segundo informações que recebi em Buenos Aires, Figueiredo teria declarado: “Não quero este comunista aqui”. Foi essa a resposta que recebi: “Olha, Gullar, você não vai poder voltar porque o Figueiredo disse que não quer você lá”. Eu me tomei de fúria: “Como esse sujeito se atreve a falar isso? Ele é o dono do Brasil? Eu vou voltar, vou voltar, não aceito isso, vou voltar”. Eu queria voltar, precisava voltar, tinha um filho doente, internado numa clínica psiquiátrica, o outro entrando pelo mesmo caminho. Se o regime argentino descobrisse quem eu era, eu estava perdido. Eu tinha que voltar. Tracei um plano: escrevi para a ABI e a OAB e pedi que entrassem em contato com o ministro da Justiça e o comandante do Exército avisando que eu ia voltar; se me prendessem ou me matassem, teriam que assumir a responsabilidade.
dos poetas, dos amigos, da vida, dos ventos, do Brasil – não era um poema individualista. CADERNOS: O sr. esteve na iminência de ser preso várias vezes, e, quem sabe, de sofrer conseqüências ainda mais graves pelo fato de contestar regimes de força no momento em que eles se implantavam em alguns países da América Latina, nas décadas de 60 e 70. Isso aconteceu no Brasil e depois em seu exílio no Chile e na Argentina. Era como se o sr. es ti vesse submetido a uma espécie de tropismo perverso, que o arrastava sempre para o olho do furacão. Sem essas coincidências diabólicas, como o sr. acredita que poderia ter sido sua experiência no exílio?
Ferreira Gullar: Se eu tivesse vivido num Chile menos conflituoso, eu teria menos ansiedade, menos angústias. Você lê no meu livro Rabo de foguete que a minha saída do Chile é um desespero só. De qualquer maneira, eu acredito que jamais me adaptaria ao exílio. O Poema sujo é conseqüência do meu momento literário, mas também dessas circunstâncias.
CADERNOS:
O sr. está descrevendo um processo de amadurecimento, que teve um ponto de inflexão nessa coisa brutal do general Figueiredo. O seu processo então passou a ser todo de preparação da volta? O próprio Poema sujo se encaixaria nisso?
CADERNOS:
Se não é apenas um “poema do exílio”, ao menos ele se encaixa no âmbito da literatura do desterro.
Ferreira Gullar: Bem, possivelmente eu não teria escrito o Poema sujo se não tivesse sido exilado.
Ferreira Gullar: O Poema sujo foi escrito quando a ditadura tinha se instalado na Argentina. Meus amigos desapareciam, ou eram presos, ou fugiam. O meu passaporte estava cancelado pelo Itamarati. Senti o cerco se fechando. Quem sabe estaria chegando ao final. Pensei: “Vou ter que escrever essa coisa final, o testemunho final, o depoimento final. Eu vou ter que escrever isso”. Então fui escrever esse poema, que era a experiência da vida toda; não era só um poema do exílio, mas um poema da memória, da perda, da recomposição do mundo perdido e do amor à vida. Escrevi esse poema como um poema-limite. Nele tem de tudo: formalismo, infância, as aventuras. Quando escrevi o poema sentia como se estivesse rodeado de outras vozes,
CADERNOS:
Naquela fase o sr. teve medo de morrer, não?
Ferreira Gullar: É verdade. Eu nunca pensei em me suicidar, mas tive medo que pudesse acontecer comigo o que vinha ocorrendo com meus amigos. CADERNOS:Rabo
de foguete dá a entender que, do ponto de vista literário, graças ao Poema sujo, suas contas com o exílio estão em dia; o mesmo não ocorreria no plano familiar. O sr. concorda com essa leitura? 44