Ansiedade
Um estudo de análise do comportamento humano e do modo como a cultura contemporânea tem produzido e lidado com esse novo paradigma da ansiedade enquanto condição do sujeito em seu tempo.

Etimologia
Um estudo de análise do comportamento humano e do modo como a cultura contemporânea tem produzido e lidado com esse novo paradigma da ansiedade enquanto condição do sujeito em seu tempo.
Etimologia
Ansiedade é um tema urgente, para além dos afetos pessoais. Por isso, para começar listamos 6 motivos para a sua marca mergulhar nele.
É inegável que houve crescimento das buscas pelo tema, assim como crescimento também no número de pesquisas relacionadas a tratamento, solução e “cura”: óleos essenciais, meditação, terapia, triptofano, Weleda...
Para evitar repetir a expressão, sugiro: Na atualidade, tornar-se ansioso não é algo raro.
Com o alto volume de informações a que temos acesso, identificar o que faz sentido, reter e eliminar aquilo que não cabe tornou-se tarefa difícil, principalmente ao lembrarmos de um contexto em que temos enxurradas de fake news, uma cultura pautada em produtividade e alta performance, mesmo em tempos de pandemia.
Esse novo contexto faz com que o termo VUCA (acrônico para as palavras já traduzidas, Volátil, Incerto, Complexo e Ambíguo), usado por tantos anos pelo marketing das empresas, fique defasado e insuficiente para descrever a nova realidade mundial.
O termo BANI foi apresentado pelo antropólogo e futurista Jamais Cascio durante um evento, em 2018 – portanto antes da pandemia Covid-19 –, no Institute for the Future (IFTF). BANI significa “Brittle, Anxious, Nonlinear, Incomprehensible”, ou traduzindo: Frágil, ANSIOSO, Não linear e Incompreensível.
Lidar com um mundo BANI nada mais é do que reconhecer a fragilidade do sistema em que estamos inseridos, assumindo que fatos inesperados, como uma pandemia, por exemplo, podem surgir e transformar toda uma lógica pré-estabelecida anteriormente.
É óbvio que se readaptar a um contexto de não constância e de múltiplas variáveis que surgem de forma desordenada nos leva a um cenário de ansiedade e falta de controle.
O mundo BANI é o mundo dos múltiplos dados e da falta de previsibilidade. É um mundo em que empresas e marcas que conseguirem quebrar as barreiras do óbvio e se aprofundarem no entendimento genuíno de seu consumidor terão maiores chances de encontrar um discurso que faça sentido.
O número de diagnósticos e afastamentos causados por doenças mentais cresce a cada ano – e o rombo para as empresas também.
de pessoas no mundo convivem com a depressão, segundo a OMS.
foi o número de afastamentos por conta de doenças mentais em 2020. As aposentadorias por invalidez pelo mesmo motivo somaram 290 mil.
é o número de brasileiros que sofrem com transtorno de ansiedade no Brasil.
Por ano, a economia mundial perde
em produtividade devido aos transtornos mentais, segundo a OMS
foi quanto aumentaram os afastamentos e aposentadorias por invalidez causados por doenças mentais em 2020.
9,3% da população (mais de 18,6 milhões de pessoas) possui algum transtorno de ansiedade.
Além disso, uma pesquisa feita pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) nos meses de maio, junho e julho de 2020 revela que 80% da população brasileira tornou-se mais ansiosa na pandemia do novo coronavírus.
A pesquisa, que ouviu 1.996 pessoas maiores de 18 anos de idade, mostrou também que: 65% têm sentimento de raiva;
∙ 63% têm sintomas somáticos, que podem ser dor, mal-estar gástrico, qualquer sensação orgânica resultante de um quadro de ansiedade;
∙ 50% tiveram alteração do sono.
DEPRESSÃO E ANSIEDADE NO BRASIL Prevalência de casos, em % da população, segundo dados da OMS
FONTE https://vocesa. abril.com.br/empreendedorismo/ empreendedores-apostam-no-mercado-de-saude-mental/ FONTE
Depression and Other Common Mental Disorders: Global Health Estimates. Geneva: World Health Organization (WHO), 2017. Licence: CC BYNC-AS 3.0 IGO
1º Brasil 41%
2º México 35%
3º Rússia 32%
4º África do Sul 31%
5º Canadá 30%
6º Estados Unidos e Inglaterra 28%
29,6% da amostra do estudo da MindMiners tem pelo menos um transtorno ativo recentemente.
O estudo São Paulo Megacity revela:
Quem tem algum tipo de fobia demora, em média, 36 anos para buscar a ajuda de um profissional; pessoas com depressão demoram 13 anos
∙
Em 2018, foram vendidas mais de 56,6 milhões de caixas de medicamentos para ansiedade e para dormir no país. Em 2015, tivemos 70,8 milhões de ansiolíticos vendidos.
∙
A partir de 2015 as vendas de ansiolíticos caíram enquanto as de Zolpidem (medicamento para tratar quadros de insônia) aumentam.
É importante lembrar que a ansiedade não é apenas um pot-pourri de preocupação excessiva: ataques de pânico, estado de hiper-vigilância, taquicardia ou insônia. Estamos falando de um estado emocional extremamente custoso.
Para termos um parâmetro, nos EUA o custo da ansiedade chega a cerca de US$42,3US$46,6 bilhões anualmente. Isso representa aproximadamente 30% dos gastos totais referentes a doenças mentais.
O mais interessante é que esse custo é dividido nos mais variados segmentos de mercado, que vão de medicamentos e terapias até produtos que tragam a promessa de algum tipo de conforto ou alívio, como: aplicativos de meditação, música, atividade física, produtos
físicos, como cobertores ou travesseiros que oferecem uma melhor noite de sono, chegando até a apps de mobilidade, como o Uber, que tem um discurso de comunicação de um transporte que “salva” do nervoso de lugares lotados, apertados e, para alguns, até claustrofóbicos.
Não é à toa que vimos a explosão de startups que oferecem terapias on-line, como a americana Talkspace, que viu sua receita dobrar no ano passado, de US$ 27,2 milhões para US$ 50,5 milhões.
No Brasil, o apetite dos fundos de investimento por essas empresas também nunca esteve tão alto: em 2020, startups do ramo arrecadaram US$ 4,68 milhões em investimentos – 150% a mais do que em 2019.
FONTE
https://vocesa. abril.com.br/empreendedorismo/ empreendedores-apostam-no-mercado-de-saude-mental/ https://www. anxietycentre. com/statistics/ anxiety-disorder-statistics-facts/
https://super. abril.com.br/ especiais/a-epidemia-da-ansiedade/
https://www. acrwebsite.org/ volumes/9826/ volumes/v14/ NA-14
29%
concordam, em alguma medida, que é comum ficar ansioso após ver uma propaganda de algum produto novo ou que chama atenção.
42%
concordam, em alguma medida, que quando compram algo, a ansiedade diminui momentaneamente.
58%
concordam, em alguma medida, que conhecem ao menos uma pessoa que sofre de consumo compulsivo.
FONTE Pesquisa do MindMiners com 550 brasileiros, em julho de 2019.
73%
concordam em alguma medida que as marcas tentam impor padrões sociais que acabam gerando ansiedade nas pessoas.
68%
concordam em alguma medida que as marcas contribuem para o aumento da ansiedade na sociedade.
FONTE Pesquisa do MindMiners com 550 brasileiros, em julho de 2019.
Não há uma definição única sobre ansiedade, mas há consenso sobre a ansiedade ser uma EMOÇÃO que tem uma função ADAPTATIVA, mas que, em sua forma mais grave, transforma-se em TRANSTORNO psicopatológico.
Inicialmente, é importante estabelecer que este é um estudo de análise de comportamento humano e dos modos como a cultura contemporânea tem produzido e lidado com esse novo paradigma que é a [ANSIEDADE], como perspectiva de mundo e como condição do sujeito em seu tempo.
1. Todos carregamos algum grau de ansiedade.
2. Ansiedade é um “estado ou sentimento” coletivo.
3. É um tipo de “sofrimento” da nossa atualidade.
“Nomear a ansiedade por sintoma pressupõe uma necessidade, um desejo ou uma possibilidade de “cura”. Precisamos estar “curados” para estarmos “adequados” no social? O que fazer com os ansiosos que não os medicar? O que a gente não consegue aguentar que provoca ansiedade em nós? Tem como escapar, ou apenas precisamos aprender como lidar?”
(SIMONE DE PAULA, psicanalista em entrevista exclusiva para o estudo.)
É interessante observar que a origem da palavra produziu significantes diferentes nas diferentes culturas de língua latina:
∙ Ansiedade (em português);
∙ Angoisse (em francês);
∙ Angoscia (em Italiano);
∙ Angústia (em espanhol).
E mesmo em línguas provenientes de outras matrizes, o termo ansiedade também pode apresentar “múltipla” conotação: por exemplo, em alemão é ANGST, que pode ser traduzida como MEDO, ANGÚSTIA ou ANSIEDADE.
A palavra ANSIEDADE se origina da raiz grega antiga ANGH, que é: ∙ Apertar forte; Estrangular; ∙ Estar oprimido; pelo sofrimento; Carga; ∙ Fardo; ∙ Problema.
Posteriormente, ANGH deu origem a termos latinos como ANGUSTUS (que significa pequeno ou estreitamento), ANGOR (que significa angústia) e ANXIETAS (tradução literal), com conotações de estreitamento, constrição e desconforto.
Em sua base ontológica (reflexão a respeito do sentido abrangente do ser), a ansiedade é compreendida como uma “ameaça ao próprio ser”, uma vivência de sobressalto.
Segundo o dicionário Houaiss,é um estado afetivo penoso, caracterizado pela expectativa de algum perigo que se revela indeterminado e impreciso, e diante do qual o indivíduo se julga indefeso.
Por mais antiga que fosse a palavra grega, raras vezes foi empregada como um conceito psicológico ou psiquiátrico antes do final do século XIX, e só se tornou disseminada no decorrer do século XX.
Os séculos XVIII e XIX testemunharam um aumento do interesse pelas “doenças nervosas”, mas os sintomas daquilo que hoje descreveríamos como ansiedade eram considerados essencialmente físicos em sua origem.
Após a célebre escrita de “A origem das espécies” (1859), Charles Darwin publicou um estudo intitulado “A expressão das emoções no homem e nos animais” (1872) em que concebe as emoções como comportamentos primordialmente EXPRESSIVOS:
I. MUDANÇAS FISIOLÓGICAS; II. EXPRESSÕES FACIAIS; III. ATITUDES AUTOMÁTICAS.
(A) Ativação do sistema simpático. A ansiedade coloca em ação uma série de mudanças fisiológicas. Essas mudanças estão associadas ao SISTEMA NERVOSO AUTÔNOMO (SNA), que compreende dois subsistemas complementares:
(SNS) SN Simpático: ∙ Prepara o corpo para REAGIR; ∙ Ativa os órgãos para uma situação emergencial.
(SNP) SN Parassimpático: Prepara o corpo para RELAXAR; ∙ Volta às atividades de funcionamento normal
Nos transtornos de ansiedade, há uma perturbação nesse equilíbrio dos sistemas,
pois existe uma ativação excessiva do sistema simpático — um quadro de DISAUTONOMIA
(B) Liberação de hormônios pela glândula suprarrenal/adrenal. Essa glândula libera hormônios relacionados ao estresse, tais como adrenalina e cortisol para conseguir um ganho provisório de rendimento em situações de risco.
O importante aqui é o entendimento de que o sistema em “modo adrenalina/cortisol” se mostra superior na fase aguda, mas insustentável cronicamente.
Domínio Público
Horror e Agonia; Terror – imagens do livro “A expressão das emoções no homem e nos animais”, de Charles Darwin, inspiradas em fotos do Dr. Duchenne.
∙
Durante episódios de ANSIEDADE, o corpo reage praticamente do mesmo modo ao MEDO, ao DESEJO e em grande parte à RAIVA:
Coração bate mais rápido: palpitações;
∙ Sangue vai para a periferia do corpo; Pupilas se dilatam; ∙ Lábios se avermelham; ∙ Tremor;
∙ Respiração acelerada.
A ascensão meteórica do termo “ansiedade” só começou em 1895, com a publicação de um artigo de Sigmund Freud (que viveu entre 1856-1939) intitulado “Sobre os fundamentos para destacar da neurastenia (doenças nervosas) uma síndrome específica denominada ‘Neurose de Angústia’”, onde argumentou que a ansiedade deveria ser separada de outras formas de doenças nervosas.
A palavra foi revivificada em meados do século XX, a partir do interesse pela obra do filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855), e especificamente por seu conceito de ANGST,
Não há uma definição única de ansiedade:
A diferença está no sentido dado a essa reação corporal.
Na ansiedade: há preparação para a ação.
∙ No medo: há ação de luta ou fuga.
∙ No desejo: preparação para o contato prazeroso.
∙ Na raiva: há explosão de fúria, podendo haver descontrole.
um temor angustiante desencadeado pela consciência simultânea de nossa liberdade de agir e nossa responsabilidade por essas ações Kierkegaard e suas ideias sobre ANGST foram uma importante influência sobre filósofos existencialistas como Martin Heidegger (18891976) e Jean-Paul Sartre (1905-1980).
“Aquele que aprendeu corretamente como ser ansioso aprendeu a coisa mais importante.” (Kierkegaard)
(SOREN
A ansiedade/angústia é um medo fora de foco, disperso. Kierkegaard usa o exemplo de um homem à beira de um precipício: quando olha para baixo, ele experimenta um medo focado de cair, mas, ao mesmo tempo, sente um grande impulso de se atirar intencionalmente para o precipício. Essa experiência de dupla sensação é a ansiedade devido à nossa completa liberdade para escolher saltar ou não saltar. O mero fato de alguém ter a possibilidade e liberdade de fazer algo, mesmo as mais aterrorizantes possibilidades, desponta um imenso sentimento de ansiedade/angústia: “vertigem de liberdade”
(DAVID BARLOW) PSICÓLOGOUNIVERSIDADE DE BOSTON Ansiedade é um estado de ânimo voltado para o futuro, em que se está pronto ou preparado para lidar com acontecimentos negativos vindouros. Aquele episódio terrível que pode acontecer e com o qual talvez eu não seja capaz de lidar, mas preciso estar pronto para tentar.
(LEANDRO TELES) NEUROLOGISTA - USP Ansiedade é um conjunto de emoções e modificações físicas que anteveem o estresse, a novidade ou o risco.
MAS HÁ CONSENSO SOBRE A ANSIEDADE SER UMA EMOÇÃO!
(DSM)
A antecipação apreensiva de um futuro perigo ou infortúnio acompanhada de uma sensação de disforia (sensação desagradável) ou de sintomas somáticos de tensão. O foco de perigo antevisto pode ser interno ou externo.
Um conjunto de emoções e reações corporais que antecedem o novo.
Um pacote cerebral que precisa de estímulos específicos para aparecer e gerar uma resposta física imediata, preparando o corpo para o enfrentamento ou para a esquiva de uma situação fora do comum.
1. Medo
2. Tristeza
3. Felicidade 4. Raiva 5. Nojo
Sendo sucesso absoluto nos cinemas, o filme conseguiu projeções para além das telas. Muitas outras teorias foram materializadas, valendo-se dos personagens, de forma bastante didática nas redes sociais, como no exemplo que explicita que a combinação de duas emoções básicas resulta numa emoção secundária. Nesse caso, a ANSIEDADE seria a combinação de MEDO com TRISTEZA.
EMOÇÕES são sensações intensas desencadeadas por nossa AVALIAÇÃO COGNITIVA de determinado acontecimento ou situação.
∙ Se a gente perceber que teve sucesso, ficaremos felizes.
Sem conhecer a FUNÇÃO da [ansiedade], será complicado reconhecer a DISFUNÇÃO, por isso, vamos entender rapidamente ambas:
As emoções nos ajudam a sobreviver, prosperar e transmitir genes → são, portanto, ADAPTATIVAS: uma das mais importantes defesas de que dispomos para lidar com o mundo, com nosso cotidiano.
Toda ação preventiva humana é fruto da ansiedade.
“As emoções evoluíram por seu importante papel adaptativo para uma pessoa lidar com tarefas cotidianas fundamentais. Por exemplo, a FELICIDADE que nossos ancestrais sentiam após desenvolver uma ferramenta útil os encorajava a repetir a experiência; a TRISTEZA que sentiam ao se separar dos amigos e entes queridos
∙ Se percebermos que fomos ofendidos ou contrariados, sentiremos raiva.
∙ Se acreditarmos que estamos em perigo, sentiremos medo, e assim por diante.
ajudava-os a preservar laços sociais importantes; a ANSIEDADE evitava que eles se tornassem refeição de algum animal selvagem.” (PAUL EKMAN)
A explicação clássica sobre a FUNÇÃO ADAPTATIVA da ansiedade foi formulada em 1915 pelo professor de fisiologia de Harvard, Walter Cannon (1871-1945), que cunhou a expressão RESPOSTA DE LUTA OU FUGA para denominar esse estado → só existem duas opções: enfrentamento (LUTA) ou esquiva (FUGA).
Quando a vida está em risco, tudo perde importância, o nosso comportamento volta-se apenas para a situação-limite.
Portanto, o propósito da ansiedade é de nos preparar para reagir da forma mais adequada e avisar os outros de que eles devem ficar a postos.
ASSISTA UM TRECHO DE “DOC HEAL”Quando o cérebro se antecipa diante de situações reais a fim de gerar uma sucessão de ajustes proporcionais a elas, o resultado tende a ser o melhor possível → quando a percepção antecipatória está relacionada ao risco, a ansiedade pode nos salvar; além disso, quando se pode dialogar com a ansiedade, ela conduz ao cuidado, ponto essencial para o bem viver.
Por isso, ela é absolutamente NORMAL, COMUM e incrivelmente COMPLEXA (em sua forma SAUDÁVEL e EXISTENCIAL com FUNÇÃO ADAPTATIVA), mas, em suas formas mais graves (DISFUNÇÃO), transforma-se em TRANSTORNO psicopatológico: quando ela é grave o bastante para ser considerada um problema clínico.
Normal Neurótica Rollo May Existencial Patológica Tilich Funcional Disfuncional Gestalt-terapia Neurótica Irracional Freud
O que todos os casos de ansiedade têm em comum é serem DISTÚRBIOS DA EXPECTATIVA, provocando sensações desproporcionais ao risco, disfunção na percepção da realidade e na resposta ao medo
“É o significado dos acontecimentos que desencadeia as emoções, e não os próprios acontecimentos. O modo como estes são interpretados dependerá do contexto em que ocorreram, do estado de ânimo da pessoa no momento em que ocorreram e das experiências anteriores.” (PAUL SALKOVSKIS)
1956: revolução cognitiva | O cognitivismo visava identificar e entender os processos básicos por trás do modo como os seres humanos pensam.
O cognitivismo é, atualmente, tendência dominante na psicologia contemporânea e sugere que a ansiedade surge em decorrência do modo como avaliamos uma situação, em nossas ideias pré-concebidas e em nossos processos de pensamentos habituais, no que Aaron T. Beck (pai da terapia cognitivo-comportamental) chamou de “SISTEMA DE CRENÇAS”.
Esse sistema de crenças vai sendo construído por nossas experiências de vida. Além disso, é tão incrustado e automático que, na maioria das vezes, não estamos cientes de sua existência.
Aaron T. Beck descobriu que pessoas com transtorno de ansiedade tendem a apresentar um sistema de crenças nocivo a respeito de si mesmas, do mundo que as cercam e do futuro.
Podemos identificar o sistema de crenças nocivo a respeito de si nas comparações que os indivíduos estabelecem entre si e os outros nas redes sociais → somos sempre insuficientes versus a perfeição alheia de nossa time-line
Já o sistema de crenças nocivo a respeito do mundo está presente também nas redes sociais, na mídia em geral e na comercialização das notícias ruins por conta do mecanismo de fake news, algoritmos viciados, clickbait (que é tática usada na Internet para gerar tráfego on-line por meio de conteúdos enganosos ou sensacionalistas).
Esse sistema de crenças nocivo se traduz nos sujeitos ansiosos em pensamentos como:
1. É sempre mais sábio deduzir o pior.
2. Problemas podem surgir a qualquer momento, preciso estar preparado.
3. Sou uma pessoa vulnerável porque sou insuficiente.
4. Preciso estar no controle.
A ansiedade denuncia que algo (um comportamento, uma vivência, um valor) que foi bom um dia já não é mais adequado e precisa ser modificado ou flexibilizado. Essa consciência pode ser um gatilho de transformação de modos de vida e de consumo.
Hoje sabemos que a gênese da ansiedade depende da interação e da interpretação de diversas regiões cerebrais. Ela é fruto da análise de risco, relevância e prioridade feita principalmente por estruturas profundas e relativamente primitivas do cérebro, como a amígdala que fica dentro do lobo temporal, uma pequena região crítica para gerenciar medo, participando de importantes circuitos de memória, controle emocional e impulsos.
∙ O cérebro percebe e quantifica o risco.
Essa descoberta desencadeia uma resposta tripla: física, psíquica e cognitiva.
∙ A resposta do sistema simpático altera parâmetros e transmite senso de urgência.
∙ O cérebro desliga a racionalidade analítica e ponderada em prol de uma racionalidade impulsiva.
A análise de situação e da resposta comportamental não é feita ao acaso, ela é fruto da compilação de três SISTEMAS INTEGRADOS:
∙
∙
1 | SENSORES EXTERNOS:
∙
Os sentidos informam continuamente ao nosso cérebro o que acontece ao nosso redor.
∙ Tato, olfato, visão, audição, paladar, labirinto (movimento).
2 | SENSORES INTERNOS:
Parâmetros de funcionamento do organismo ∙ Temperatura interna, pressão arterial, ritmo cardíaco, posicionamento dos membros, grau de fome, sono…
3 | MEMÓRIAS:
Arquivo de experiências prévias para julgar se a situação oferece risco ou não.
Memórias pessoais: experiências vividas, apreendidas, sonhadas ou imaginadas.
∙
Memórias implícitas: temores coletivos. Considerando que a ansiedade é resultado de um sistema, e não de um único elemento; o que acontece quando o sistema não funciona adequadamente?
Le Doux e outros neurocientistas especularam que as pessoas com transtorno de ansiedade podem apresentar:
∙ Amigdalas cerebelosas hiperativas (computador emocional);
∙ Lobos frontais hipoativos (planejamento, tomada de decisão, linguagem e pensamento consciente);
∙ Hipocampo (que ajuda a formar e armazenar memórias contextuais – referências visuais) que não é capaz de identificar exatamente, com base em experiências passadas, quais elementos em uma situação sinalizam perigo, o que significava que elas podem ficar ansiosas sem necessidades.
O continente americano representa 21% do total de casos de ansiedade no mundo, ocupando a segunda posição atrás da Ásia.
Há indícios de que a ansiedade persistente (devido aos efeitos dos hormônios do estresse) pode alterar o modo como o cérebro funciona, por exemplo, prejudicando a memória de curto prazo ou mesmo diminuindo o tamanho do hipocampo. CASES
FONTE Depression and Other Common Mental Disorders: Global Health Estimates. Geneva: World Health Organization (WHO); 2017. Licence: CC BYNC-AS 3.0 IGO.
ASSISTA UM TRECHO DA SÉRIE “CORPO HUMANO” DO NETFLIXÉ o único continente em que o percentual de ansiedade é superior ao percentual de depressão.
PREVALENCE OF COMMON MENTAL DISORDERS (% OF POPULATION BY WHO REGION)
DEPRESSIVE DISORDERS
ANXIETY DISORDERS
AFRICAN REGION EASTERN MEDITERRANEAN REGION
EUROPEAN REGION REGION OF THE AMERICAS
SOUTH-EAST ASIA REGION
WORLD
FONTE Depression and Other Common Mental Disorders: Global Health Estimates. Geneva: World Health Organization (WHO); 2017.
Licence: CC BYNC-AS 3.0 IGO.
E embora no mundo toda diferença entre a porcentagem de casos entre o gênero masculino e feminino seja enorme (e desfavorável a esse último grupo), nas Américas essa discrepância é ainda maior.
PREVALENCE OF ANXIETY DISORDERS (% OF POPULATION), BY WHO REGION
MALE BOTH 6% 5%
9% 4% 3% 2% 1% 0%
8%
FONTE Depression and Other Common Mental Disorders: Global Health Estimates. Geneva: World Health Organization (WHO); 2017. Licence: CC BYNC-AS 3.0 IGO.
AFRICAN REGION EASTERN MEDITERRANEAN REGION
EUROPEAN REGION REGION OF THE AMERICAS
SOUTH-EAST ASIA REGION
WESTERN PACIFIC REGION 18
WORLD
∙
Enquanto os homens apresentam tendência de estabilidade/queda nos níveis de ansiedade com o avanço das faixas etárias, a curva feminina só inicia o movimento descendente a partir dos 55 anos. E mesmo após 80 anos ainda é consideravelmente superior ao indicador masculino.
FEMALE
15-19 20-24 25-29 30-34 35-59 40-44 45-49 50-54 55-59 60-64 65-69 70-74 75-79 80+
FONTE Depression and Other Common Mental Disorders: Global Health Estimates. Geneva: World Health Organization (WHO); 2017. Licence: CC BYNC-AS 3.0 IGO.
Retomando o tópico do transtorno: ele ocorre quando o sistema se desregula, gerando respostas físicas e emocionais desproporcionais em relação ao risco (exageradas seja em intensidade, seja em duração) ou na ausência do risco real.
Atualmente, vivemos uma epidemia de ansiedade patológica:
∙ AGUDAS: repentinas.
AUTOLIMITADAS: duram pouco tempo, mas se resolvem sozinhas.
∙ CRÔNICAS: podem se arrastar durante longos períodos, levando a um impacto direto na qualidade de vida.
Antes a ansiedade era classificada em SEIS tipos de transtornos (sistemas de classificação psiquiátrica):
1. Fobia.
2. Fobia social.
3. Síndrome do pânico.
4. Transtorno de ansiedade generalizada.
5. Transtorno obsessivo-compulsivo. (DSM-5 excluiu)
6. Transtorno de estresse pós-traumático. (DSM-5 excluiu)
A recente atualização (DSM-5), além de excluir os dois transtornos citados anteriormente, ampliou a diferenciação dos tipos de ansiedade:
1. Transtorno de ansiedade de separação.
2. Mutismo seletivo (infantil: dificuldade de um indivíduo se comunicar verbalmente em determinadas situações sociais).
3. Fobia específica.
4. Ansiedade social.
5. Transtorno de pânico.
6. Agorafobia (medo mórbido de se achar sozinho em grandes espaços abertos ou de atravessar lugares públicos).
7. Transtorno de ansiedade generalizada (com eventos da vida) = TAG.
8. Transtorno de ansiedade induzida por substâncias/medicação.
9. Transtorno de ansiedade por outra condição médica.
10. Transtorno de ansiedade especificado.
11. Transtorno de ansiedade não especificado (ideias obsessivas ou por comportamentos compulsivos recorrentes).
O melhor rendimento cerebral é alcançado ativando o modo certo na situação certa. Ativar o modo urgência em situações consideradas normais (sem urgência) produz resultados cognitivos ruins, gerando:
∙ Preocupação excessiva. Cansaço.
∙ Irritabilidade e impulsividade totalmente fora de contexto.
Baixo rendimento: pode assumir formas bastante incapacitantes.
E para diferenciar se a [ansiedade] é normal ou patológica é preciso averiguar:
1. O risco é real?
2. A resposta é proporcional em intensidade?
3. A duração é compatível?
4. Valeu a pena? Justificou o grau de ajuste?
De todo modo, em nossa sociedade atual, busca-se controlar a ansiedade, seja ela a comum ou a patológica, busca-se livrar-se dela o mais rapidamente possível, o que em muitos casos é mesmo bom e necessário temporariamente, embora insuficiente.
Como veremos mais adiante, na lógica do enhancement (aprimoramento), a busca pelo controle da ansiedade é no sentido de usá-la
como força motriz para o aprimoramento, e não necessariamente como forma de evitar a ansiedade patológica ou para se ter uma qualidade de vida, então, estamos falando de um controle dos sinais excessivos de ansiedade que podem atrapalhar a performance do indivíduo (este animal laborans / sujeito do desempenho)
Para o neoliberalismo, se a ansiedade faz o indivíduo mais produtivo, não é preciso livrar-se dela; apenas quando ela começa a atrapalhar a produtividade/performance. E essa lógica do mercado pode contribuir para que as pessoas demorem mais tempo para buscar ajuda.
Muitos de nós temos a pretensão de não querer ouvir a ansiedade, o que acaba por trazer dois tipos de consequências:
1. Retardamento no processo de desenvolvimento.
2. Recrudescimento da ansiedade: passando de normal a patológico.
“A ansiedade neurótica (patológica/ disfuncional) é simplesmente o resultado a longo prazo da ansiedade normal não enfrentada.” (Rollo May, 1977)
No livro “Dialogar com a ansiedade”, o prof. e dr. Enio Brito Pinto diz que: “No psicopatologizado mundo atual, em vez de ser compreendida como defesa (o que de fato é), a ansiedade saudável ou patológica é cada vez mais vista como defeito, problema, sintoma a ser eliminado. Isso me preocupa, pois corremos o risco de propor guerra àquela que é a habilidade humana mãe de todos os CUIDADOS. Muitas vezes é como se mandássemos matar o mensageiro porque a notícia que traz não é agradável.” (Enio Brito Pinto, 2021)
A ansiedade, especialmente a repetida ou exagerada, sempre denuncia que algo (um comportamento, uma vivência, um valor) que foi bom um dia já não é mais adequado e precisa ser modificado ou flexibilizado
Assim, os sofrimentos emocionais derivam menos de dificuldades com os conflitos subjetivos que com o ritmo de desenvolvimento, que leva em conta a PESSOA (sua singularidade/
subjetividade) e seu CAMPO EXISTENCIAL (contexto em que está inserido).
As pesquisas científicas indicam que os fatores genéticos determinam até 40% da hereditariedade da ansiedade, o que significa que o meio responde por 60% ou mais
TAG é um conceito relativamente novo, tendo sido sugerido pela primeira vez no Manual Diagnóstico e Estatístico (DMS) em 1980, e só se tornado categoria diagnostica específica nos anos 1990.
Embora o termo TAG seja recente para a maioria das pessoas, o conceito de PREOCUPAÇÃO certamente é familiar:
PREOCUPAÇÃO: uma cadeia de pensamentos e imagens, carregada de afeto negativo e relativamente incontrolável; representa uma tentativa de obter a solução mental de problemas sobre uma questão cujo resultado é incerto, mas contém a possibilidade de um ou mais resultados negativos.
Por isso, alguns especialistas chamam a preocupação de pensamento “e se?”.
das pessoas entrevistadas preocupam-se pelo menos 1 vez ao dia.
19,4% preocupam-se uma vez a cada 2 ou 3 dias.
15% preocupam-se cerca de uma vez por mês.
das pessoas, têm períodos de preocupação de mais de 2 horas.
11% preocupam-se por períodos de 1 a 2 horas.
18% preocupam-se de 10 min a 1 hora.
24% por menos de 1 minuto seguido.
Como já vimos no início desse material, 9,3% da população brasileira (mais de 18,6 milhões de pessoas) possui algum transtorno de ansiedade → somos o país mais ansioso do mundo!
∙ Cerca de 60% dos respondentes se autodeclararam ansiosos.
∙ Mais de 80% acreditam que a sociedade atual apresenta um alto grau de ansiedade.
E segundo dados de uma pesquisa realizada pela MindMiners em 2019: 3/4 dos respondentes consideram estressante viver no Brasil em função de:
1º Violência.
2º Crise econômica e desemprego.
3º Corrupção.
4º Má qualidade dos serviços públicos.
sofrem de TAG = mulheres representam o dobro.
2% dos jovens de 18 anos sofrem de TAG. 0,3% deles são afetados gravemente.
2015
Mais de 80% dos respondentes dessa mesma pesquisa afirmaram que a relação com algum membro da família provoca elevada ansiedade ou estresse.
∙ Mulheres e os jovens se sentem muito mais cobrados pela família.
Mais da metade dos respondentes diz que aumenta o consumo de alimentos quando está se sentindo ansioso.
∙ Mais uma vez, chama a atenção as maiores incidências desse tipo de comportamento entre as mulheres e os jovens.
1/5 dos respondentes afirmaram que consomem mais bebidas alcoólicas quando têm alguma crise de ansiedade.
E já que São Paulo é a cidade mais ansiosa do BRASIL, vamos olhar alguns indicadores dessa cidade:
da amostra tem pelo menos um transtorno recentemente ativo.
FONTE
dos paulistanos sofrem de transtornos de ansiedade – o dobro da média brasileira.
Mental Disorders in Megacities: Findings from the São Paulo Megacity Mental Health Survey, Brazil - https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal. pone.0031879 https://super.abril.com.br/especiais/a-epidemia-da-ansiedade/
∙
Desses 19,9%, cerca de 36,5% dos respondentes tiveram quadros graves de casos de transtornos de ansiedade.
∙ 57,4%, agorafobia sem pânico (medo mórbido de se achar sozinho em grandes espaços abertos ou de atravessar lugares público).
∙ 56,6% transtorno do pânico.
∙ 55,6% fobia social.
∙ Somente 32% das pessoas diagnosticadas em quadro grave de ansiedade buscaram tratamento no ano anterior.
FONTE MindMiners - https://mindminers.com/blog/ ansiedade/
FONTE Daniel e Jason Freeman, Anxiety | Ed. L&PM |“O ambiente urbano de uma metrópole como São Paulo pode exacerbar a sensação de insegurança em indivíduos predispostos ao transtorno de ansiedade. Redes familiares menos estruturadas, abusos na infância, maior exposição à violência, uso de substâncias psicoativas e até o alto custo de vida. Todos esses são fatores de risco para os transtornos de ansiedade.”
(Psiquiatra Lucas Gandarela, do IPq. )
A disfunção na ideia inicial de viver em sociedade, que era voltada para a AJUDA MÚTUA (COLETIVIDADE sempre foi uma NECESSIDADE humana, a fim de garantir: reprodução, preservação das vidas, obtenção de alimentos, segurança contra perigos externos e desenvolvimento), contribui para o “Sistema de Crenças” doente que vimos anteriormente.
Centros urbanos, assim como o acesso a mídia sensacionalista, acabam produzindo um cenário irreal, ou aumentado, dos perigos – caso clássico de quem assiste Datena todo dia.
Andreas Meyer-Lindenberg, professor de psiquiatria da Universidade de Heidelberg,
realizou um estudo com 32 voluntários saudáveis. Ele pedia que os voluntários resolvessem exercícios de aritmética, com um cronômetro correndo. A dificuldade foi ajustada para que a taxa de acerto ficasse entre 25% e 40%.
Durante o experimento, os pesquisadores diziam que o desempenho estava abaixo da média e sugeriam impacientemente que se apressassem. Enquanto isso acontecia, o cérebro dos voluntários era monitorado com um aparelho de ressonância magnética.
Os cientistas perceberam que, quanto maior a cidade onde o voluntário morava, mais ativada era sua amígdala – a região cerebral relacionada ao medo e às respostas a ele, como fugir ou lutar.
Além disso, quanto mais tempo da infância os voluntários haviam passado em uma cidade maior era a atividade em seu córtex anterior, área relacionada a emoções negativas.
Parece haver forte associação entre VIDA URBANA e circuitos neurais ligados à ansiedade.
Em seu recente livro “VOCÊ É ANSIOSO?”
O filósofo Luiz Felipe Pondé diz:
“A ansiedade é um ‘sintoma’ social, nascido, em grande parte, do fato que algumas pessoas ‘deixam o ônus’ da ansiedade para os outros e isso amplia o sofrimento daqueles que sabem demais, e faz com que estes adquiram a imagem de um neurótico pessimista e desequilibrado, enquanto outros são leves e divertidos... A ansiedade em sua dinâmica econômica distributiva, é uma consequência do maior ou menor investimento prático na responsabilidade com as coisas. Como toda virtude, a responsabilidade implica uma prática. A prática da responsabilidade, hoje, gera um desequilíbrio na distribuição da ansiedade, justamente porque o amadurecimento necessário para essa prática é um recurso em extinção. Na medida em que grande parte opta pela vida infantilizada, a distribuição desigual da ansiedade se instala.” (Luiz Felipe Pondé)
Sabemos que as mulheres são as mais afetadas, por isso que o Pondé chama de “dinâmica distributiva”, por vários motivos, mas eu vou destacar aqui dois deles:
1. CAPITALISMO no que tange à apropriação coletiva da força de trabalho (doméstico) dessas mulheres.
2. FAMILISMO no que se refere à alocação desigual de responsabilidades
Pensando por esse viés do CAPITALISMO, o conceito de APROPRIAÇÃO COLETIVA trata da apropriação do TRABALHO doméstico da mulher, onde o principal beneficiário é o HOMEM, porque a mulher no cotidiano familiar representa FORÇA DE TRABALHO GRATUITA, portanto, SEM VALOR!
Assim, a apropriação coletiva está associada a uma série de desvantagens à mulher, porque permitiria aos homens disporem de seus CORPOS, TEMPO, ENERGIA DE TRABALHO e ENERGIA CRIATIVA.
Todo o processo de EMANCIPAÇÃO (carreira, estudos, outros interesses) de mulheres no Brasil (das brancas de classe média), passa pelo trabalho doméstico de mulhere (em sua grande maioria) afrodescendentes, que conseguem segurar a administração das casas para que as primeiras possam ir ou permanecer no mercado de trabalho.
Se a gente pensar que só em 2013 os direitos das trabalhadoras domésticas se equiparam às condições de trabalho remunerado, nem é preciso falar mais nada sobre esse tema –lembrando que somente 31,5% de empregadas domésticas tinham carteira assinada antes da obrigatoriedade.
E pelo viés do FAMILISMO, estamos falando de algo para além da questão da divisão de tarefas entre homens e mulheres, estamos falando da divisão de RESPONSABILIDADES
As ideologias familistas são um reforço do pensamento machista. Elas atuam para restringir a pluralidade de arranjos familiares e pelo retorno a padrões sociais de controle do corpo e da sexualidade feminina, das obrigações familiares cotidianas e dos filhos.
No caso dos filhos, é importante atentar que, também nos casos de DIVÓRCIO, os filhos recaem sobre as mulheres.
Mas a questão central desta ideologia é a alocação desigual de responsabilidades em função do acesso precário da maior parte da população a cuidados necessários à saúde e à garantia de proteção social e de proteção contra a violência.
Alguém tem que “cuidar” dos doentes, das crianças, dos idosos... Alguém tem que manter as crianças na segurança do lar... E esse alguém é sempre, ou majoritariamente, uma mulher.
Quase 88% das mulheres com +16 anos realizam trabalho doméstico, versus apenas 46% dos homens.
∙ Para crianças/adolescentes com +10 anos de idade, o número médio de HORAS SEMANAIS dedicadas ao trabalho doméstico é de 23,8 horas para as meninas e 10,1 para meninos.
∙ Isso implica estarmos roubando HORAS DE VIDA das meninas e POUPANDO horas de vidas para os meninos.
Ao ser desigualmente responsabilizada pelas atribuições cotidianas domésticas e cuidados com os entes (filhos, maridos, idosos, doentes...), a mulher é privada de RECURSO, TEMPO e REDE DE CONTATO.
A linguagem tenta suavizar o problema, nomeando o TRABALHO DOMÉSTICO de “Dupla Jornada”, “Acúmulo”, “Conciliação de tarefas” (etc.), como se ele fosse apenas um apêndice do trabalho assalariado.
Isso implica no que as feministas chamam de CARGA MENTAL.
Afinal, que mulher nunca ouviu a frase?
“Mas você não pediu!” “Era só pedir, eu teria ajudado.” “Me avisa se você quiser ajuda.”
Quando um homem espera de sua companheira que ela DIGA O QUE PRECISA SER FEITO, significa que ele a vê como A RESPONSÁVEL pelo trabalho doméstico.
Ela tem que saber o que é preciso ser feito e quando deve ser feito.
Quando eles pedem para elas mostrarem o que fazer, eles estão se recusando a se responsabilizar por uma parte dessa carga mental.
CARGA MENTAL representa o fato de a mulher sempre ter que pensar em todo o trabalho doméstico a ser feito.
É um trabalho permanente, exaustivo e invisível. A Flávia Biroli, no livro “Gênero e Desigualdades”, faz um questionamento de que eu gosto muito:
“As mulheres cuidariam mais das crianças porque possuíam tendências naturais para tais cuidados, e não porque os homens são socialmente liberados dessa função?”
No blog da marca PANTYs (calcinhas absorventes ecológicas), Jéssica Paraguassu, fundadora do @mulheresnocomandosp, alerta que: “Uma pesquisa realizada pelo grupo britânico Pearson, a maior empresa de educação do mundo, revelou que cerca de 76% dos brasileiros chegaram a repensar suas carreiras por conta da crise. O impacto negativo maior se deu na carreira de mulheres – segundo o IPEA, regredimos em 30 anos a nossa participação no mercado de trabalho”.
Embora o movimento feminista seja de importância capital para os avanços sociais da humanidade, ainda em seu livro “Você é Ansioso”, Pondé alerta um ponto de atenção em relação a um discurso que pode ser altamente ansiogênico. Ele diz:
“O excessivo projeto de autossuficiência feminina é profundamente ansiogênico na medida em que ninguém é autossuficiente... Afirmar indiscriminadamente a autossuficiência das mulheres é investir descaradamente num dos sintomas típicos da era da ansiedade: colocando as mulheres escravas de uma autoidealização vocacionada ao fracasso. Autossuficiência é sinônimo de ansiedade.” (Luiz Felipe Pondé)
MAIS SOBRE A PESQUISAPara a psicanalista SIMONE DE PAULA, podemos separar os ansiosos em dois grupos: o primeiro vive em BUSCA DO EU PERFEITO e o segundo RESPONDE À CULTURA:
“Eu preciso, eu preciso”: Não tem objeto: é simplesmente o amanhã.
“Posto, logo existo”:
Tem um objeto definido que imagina que vai atingir, mas, quando você chega perto ou o pega, ele escapa. Deslocamentos, substituições dos objetos fálicos.
O produto agora é a tua CONDUTA. Ex.: práticas para ser saudável.
Máscara social:
∙ Tentativa de estar sempre num lugar de potência (que pode ser avesso ao que a pessoa sente).
∙ Mesmo conquistando algo (ex.: profissional, que é um ideal compartilhado do nosso tempo), busca algo a mais.
Opera na lógica da adição:
∙ porque o sujeito deixa de existir; alcoolismo | toximania; ∙ a pessoa é viciada na ansiedade; ∙ síndromes da abstinência da ansiedade: quando atinge o gozo total, inverte a polaridade (deprime).
Pessoas ansiosas estão sempre perdendo o controle, mas tentando mantê-lo.
DESAMPARO
Máscara social:
O grande outro demanda o que eu devo ser. ∙ Busca permanente por atender o que o outro nomeia.
A resposta não é tão imediata.
A pessoa constrói uma FALTA não como DESEJO, mas como uma falta de algo que precisa ter = ideais sociais.
Para ser no mundo, ser ouvido, ser levado em conta – vai ficar se “enquadrando”.
FALTANTE do campo do ser o ideal no mundo = ser admirado.
Fazer pão artesanal, meditar... podem resolver.
“Mas ambos são sujeitos não desejantes. O ansioso não suporta a FALTA = PRIVAÇÃO. No entanto, ele não tem desejo, ele QUER tudo, não DESEJA tudo, porque não reflete o porque quer – é uma pessoa não desejante. É sempre preventivo. E para fugir do vazio = DESAMPARO é a contraparte da ansiedade. DESAMPARO = querer evitar esse espelho do pasado.” (SIMONE DE PAULA, psicanalista em entrevista para o estudo.)
Por fim, podemos entender a ansiedade em 6 esferas:
RELAÇÕES INTERPESSOAIS
TEMPORALIDADE
ESPACIALIDADE
CORPOREIDADE
CONSCIENTIZAÇÃO (dar-se conta)
VIDA AFETIVA
A ansiedade pode aparecer como falta de confiança em si ou no outro | Insegurança | Necessidade de controle de si ou do ambiente | Tensão no contato.
Dificuldade em ficar no presente | Vive num futuro em geral temido | Tende a ter muitas expectativas | Vivencia uma tensão entre o agora e o depois.
Indica insegurança em relação à ocupação dos espaços | Gera um estado de muita atenção ao ambiente | Temor com relação a espaços novos.
Tensão muscular desproporcional (às vezes crônica) | Dificuldade de relaxar e descarregar tensões.
Perfeccionismo | Temor desproporcional à rejeição ou humilhação | Exigência ambiental (real ou fantasiosa) bastante introjetada.
Dificuldade de se entregar aos sentimentos e aos ambientes | Dificuldade de confiar em seus afetos ou em como eles podem ser recebidos pelo ambiente.
As descrições dos quadros psicopatológicos hoje são muito boas e cuidadosas, mas elas foram desvirtuadas ao serem popularizadas, favorecendo a patologização do cotidiano e a medicação do sofrimento existencial da condição humana. Em vez de tentar compreender, categorizamos, julgamos, patologizamos.
“A vida é construída entre o medo e a segurança.” (Jean Delumeau “História do medo no ocidente.”)
Ansiedade é uma EMOÇÃO que, erroneamente, tende a ser utilizada como sinônimo de MEDO – medo e ansiedade são faces da mesma moeda.
O medo costuma ter um objeto claro: ver uma barbatana de tubarão enquanto estamos nadando, ficar cara a cara com um leão…
Medo é o substrato psíquico da percepção de risco, gerando a necessidade de proteção, de FUGIR ou LUTAR de uma determinada situação.
A prioridade aqui é a tomada rápida de decisão, não a reflexão ou ponderação. O tempo é um fator crítico.
Em situações de risco, a conduta precisa ser instintiva e impulsiva.
As coisas são menos claras quando se trata de ansiedade.
Podemos não fazer ideia de “por que”, nos sentimos ansiosos.
Se não sabemos o que está nos deixando ansiosos, é difícil saber como lidar com o problema.
Como afirma Holly Golightly em “Bonequinha de Luxo”: “Você sabe que alguma coisa ruim vai acontecer, mas não sabe o que”.
Os outros animais estão mais próximos do medo, e nós, por causa da nossa capacidade de simbolizacão, estamos mais próximos da ansiedade – quanto mais evoluída uma cultura, mais seus membros se afatam do medo e se aproximam da ansiedade.
“Em vez de definir o homem como animal rationale, deveríamos defini-lo como animal symbolicum.” (Cassirer, 1994.)
Então, por conhecermos o símbolo, vivermos o símbolo, por sermos cada um praticamente um símbolo, acabamos, de certa forma, por prescindir dos sentidos para entrar em contato com a ansiedade.
Em suma, porque o ser humano tem a capacidade de vislumbrar o futuro, o que gera uma maior disponibilidade para antever uma ampla gama de riscos dos quais se proteger, seu contato com a ansiedade é mais fundamentado em fantasias do que em sensorialidade.
O antílope não se paralisa porque o leão pode eventualmente aparecer.
Ele se move por instintos e sensorialidade.
Um ser humano evita sair à noite porque eventualmente pode ser vítima de violência.
Ele se move principalmente por reflexões, memórias e fantasias.
A ansiedade sempre deriva de expectativas pessimistas, as quais, por sua vez, são um salto para o futuro, gera uma espécie de não contato, está sempre baseada em uma antecipação.
Uma das características mais interessantes e paradoxais da ansiedade é o fato de que ela é fruto de um contato com o futuro, uma fantasia referente ao futuro que muitas vezes é vivida como se fosse realidade, antes de se concretizar.
Como vimos, a ansiedade não tem exatamente um objeto; caracteriza-se mais por um VAZIO ou por uma ameaça vaga à existência.
Tanto Kierkegaard quanto Heidegger consideravam o medo como medo de algo, ao passo que a ansiedade lida com a “não existência”, indicando que a ansiedade é um estado sem referência a um objeto.
Assim, a ansiedade está sempre voltada para o futuro, ao passo que o medo é vivido no presente
O medo é uma emoção ativa que nos impulsiona à ação, ao passo que a ansiedade tende a gerar paralisação, impasse. Na ansiedade a pessoa sente não ser capaz de lidar com a situação, enquanto no medo há esperança na lida com o perigo.
O medo é CONSTITUINTE do ser humano: fruto da consciência de nossa finitude. Medo primeiro é medo de MORTE. Ansiedade não se transforma em LUTA ou FUGA, mas em EVITAÇÕES
Ansiedade trafega no terreno do SIMBÓLICO, enquanto medo transita no caminho do CONCRETO.
Certa vez perguntaram a Perls se o PASSADO também traz ansiedade e ele respondeu: “Se você sente ansiedade pelo que fez, não é ansiedade pelo que você fez, mas ansiedade pela punição que virá no futuro” (Perls. 1977).
Reforçando que o DEVIR ou VIR A SER é um significante importante da ansiedade.
ANSIOSA é a pessoa que não consegue lidar com o tempo (dar o tempo das coisas). Ou como diria a sabedoria popular:
“Nove mulheres não geram um filho em um mês”.
Por isso, lidar com a ansiedade envolve: ∙ Entender que os sujeitos são diferentes, cada um tem um tempo pessoal.
∙ Não devemos abreviar o tempo das coisas.
∙ Aprender a respeitar o próprio tempo. O parâmetro deveria ser O SEU TEMPO; todos deveríamos ser conhecedores de quem somos no nosso tempo num estado não ansioso, quando corpo e mente estão alinhados.
∙ Lidar com a ansiedade é entender que já não temos mais o tempo da natureza porque há muito já deciframos esse tempo.
Tem um objeto: medo de algo. Não tem um objeto: estado de referências a um objeto. Impulsiona para a ação. Gera paralisação, impasse.
Luta ou fuga. Evitações. Real (concretude). Simbólico (linguagem).
Tempo PRESENTE.
Em suma: Podemos dizer que a morte é um dos mais ricos paradoxos da existência, a espera que não é espera. A morte não se espera, ela é certa, e, já que é assim, no cotidiano a esquecemos para poder continuar a viver.
A morte é a mais instigante ansiedade humana. O fato de termos consciência da morte provavelmente é também a origem das religiões, o que nos permite afirmar que a religião surge como a maneira de o ser humano lidar com os mistérios da vida.
Uma das finalidades da religião é propiciar sentido para a existência, e para cumprir tal finalidade, acaba por determinar uma conduta moral a praticamente todos os campos da vida, em todas as culturas conhecidas. Assim, uma importante função da religião é dar aos seres humanos NORMAS sobre a vida, regras, leis.
Tempo FUTURO.
No princípio da história da humanidade e, até muito recentemente, era papel exclusivo da religião regulamentar o comportamento humano dar bases para a vivência e a compreensão dos sofrimentos existenciais. Por isso, quase todos os nossos costumes têm origem em algum código moral estabelecido por determinada religião em algum momento da história.
A partir da Idade Média, e sobretudo após a Revolução Industrial, ampliou-se o referencial cultural, num processo que é conhecido como SECULARIZACÃO DA CULTURA.
Para Max Weber, secularização é um processo que marca a ruptura entre as sociedades tradicional e a moderna e se dá por meio da ampliação das matrizes de VALOR, descentralizando a religião e ampliando o espaço da RACIONALIDADE TÉCNICO-CIENTÍFICA.
A secularização marca uma ampliação das instâncias que conferem SENTIDO AO REAL , tarefa praticamente exclusiva da religião até então.
Assim, embora a RELIGIÃO ainda seja fonte importante de sobredeterminações de posicionamentos diante da vida, a CIÊNCIA divide com ela, com cada vez mais força, a base de sustentação ideológica humana ao longo da vida.
86% dos brasileiros têm alguma religião. Na ausência do estado, as RELIGIÕES atuam como guias espirituais e como FIGURAS CENTRAIS DO ASSISTENCIALISMO.
Estamos vivendo um importante momento da repercussão da lógica individualista também no campo da fé.
“As ideias religiosas dominantes de uma época tendem a refletir os interesses da classe dominante dessa mesma época.” (Teólogo JAMES COHEN.)
“Uma lógica neoliberal, capitalista, individualista também se traduz numa religião altamente individualizante: Deus é um gênio da lâmpada que você aciona para ele satisfazer seus desejos pessoais.” (Pastor Henrique Vieira | Podcast Mamilos | Episódio: Como resistir a mais um ano de pandemia.)
Até mesmo a religião deixa de ser comunitária e passa a ser individualista
Deixa de ser relacionamento com o sagrado e passa a ser custo-benefício: o quanto eu aprendo a manipular o divino para ele resolver meus problemas pessoais.
10% 3% 2% 2% 1%
(
50% 31%
“As religiões neopentecostais também não são uma resposta a esse sistema, por isso crescem tanto. O que elas dão como egrégora é sentido, explicação das coisas. Se parte da ansiedade tem a ver com o mundo do trabalho (segurança/estabilidade) e irmão só emprega irmão, é conveniente entrar numa Igreja: pelo senso de comunidade / pertencimento e pela empregabilidade: operam em sistema de pirâmide, aumentam possibilidade e emprego exponencialmente. Ajudam a ter sensação de controle, porque acham que tem alguma previsibilidade que está dada por alguma interpretação religiosa a discursos religiosos que permitem dar sentido para os acontecimentos, a significar, organizar, acalmar e dar bem-estar. A salvação é sempre individual. Neopentecostalismo está diretamente ligado a neoliberalismo!” (CAROLINE FREITAS, antropóloga em entrevista exclusiva para o estudo.)
A religião também acaba reforçando a meritocracia sem discutir as desigualdades e a necessidade de políticas públicas que possibilitem, de fato, que todos tenham os mesmos direitos; o discurso neopentecostal colabora para a despolitização do indivíduo e para a sua sobrecarga, propiciando também o aumento da ansiedade.
Resumindo, ao mesmo tempo que a religião tem um discurso acolhedor, de cura e solução para problemas, ela também reforça o olhar individual com pouca reflexão para contexto social-coletivo que impacta na manutenção de condutas ultrapassadas, e não na melhoria e revisão de comportamentos.
* O BRASIL É O PAÍS COM MAIS CATÓLICOS NO MUNDO FONTE Pesquisa Datafolha 2020No processo de competição entre CIÊNCIA e RELIGIÃO, no que diz respeito à regulação moral, a área da assim chamada SAÚDE MENTAL é um dos campos da ciência mais importantes hoje para que as pessoas tenham referências para avaliar o vivido e para lidar com os sofrimentos.
Hoje vivemos uma excessiva psicopatologização da vida, certa desnaturalização do sofrimento, em paralelo à naturalização da medicação.
“As referências das pessoas para avaliar seus sofrimentos e suas ansiedades migram da religião para a ciência, do sagrado para o profano, do pecado para a norma, do comunitário para o individualismo, do padecimento para o adoecimento.” (ENIO BRITO Pinto, “Dialogar com a ansiedade”, 2021.)
A psicopatologizacão do cotidiano colabora para a restrição do olhar crítico diante de uma ideologia consumista e acelerada. Indignações que potencialmente transformariam a vida de comunidades inteiras seguem sedadas em conformismos químicos.
Vivemos uma intensa e reducionista teoria corporal, a qual é facilitada pelo mal costume de nossos teóricos e médicos de separar o corpo da alma, como se não fôssemos uma totalidade. Nossa cultura enfatiza que TEMOS um corpo, não que SOMOS um corpo.
Nós somos uma totalidade; o que afeta o corpo afeta nossa mente (psiquismo) e nossa espiritualidade (ou alma). Mas a ênfase no corpo que se tem, e não no corpo que se é, justifica melhor o uso pouco cuidadoso de medicamentos
“Os alopatas gostam pois classifica e eles podem receitar ansiolíticos. Mas é como uma coisa. Se eu chegar na sua casa e disser: esqueci uma coisa, você não vai entender do que digo. Agora, se falo que esqueci uns óculos, será mais fácil achar.” (CARLOS RANZANI, médico homeopata.)
Segundo o prof. Enio Brito Pinto, estamos cada vez mais próximos do “SOMA”, o medicamento obrigatório do “Admirável mundo novo” (Aldous Huxley). No livro, todas as pessoas de uma determinada classe existencial são obrigadas a tomar um comprimido que as fará felizes e alegres por 24 horas.
Por exemplo, chamar ANTIDEPRESSIVOS de MODULADORES DE HUMOR revela uma sutil manipulação semântica. Sutilmente estamos tirando os SENTIMENTOS do nosso vocabulário cotidiano, substituindo as palavras que os traduzem por TERMOS MÉDICOS.
Quando foi a última vez que você ouviu alguém dizer que estava TRISTE?
Tente dizer a alguém que você está triste e observe a reação que isso causa.
Agora troque a palavra: quantas pessoas você já ouviu dizer que estão DEPRIMIDAS?
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Organização e manias viraram TOC. ∙ Criança muito ativa virou transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH). ∙ Indivíduos inconstantes viraram bipolares.
As descrições dos quadros psicopatológicos hoje são muito boas e cuidadosas, mas elas foram desvirtuadas ao serem popularizadas, favorecendo a patologização do cotidiano e a medicação do sofrimento existencial da condição humana, em vez de tentar compreender, categorizamos, julgamos, patologizamos.
E a psicopatologização da vida vai fazendo a gente acreditar que estamos sozinhos nessa – que somos os únicos a ter que enfrentar algum transtorno.
Quanto mais a ansiedade for vista como pessoal, individual e meritocrática pouco será feito em relação aos 18,6 milhões de brasileiros que sofrem da mesma condição, que claramente está mais relacionada à cultura e ao social do que ao indivíduo. Do momento em que isso não é analisado de forma coletiva, torna-se tabu buscar reflexões, acolhimento e HUMANIDADE! O mundo torna-se frio, consequentemente mais ansioso.
“Só podemos escapar à ansiedade se não nos aventurarmos, ou seja, renunciando à liberdade.” (ROLLO MAY, 1987.)
A ansiedade é a vertigem da liberdade, segundo Kierkegaard.
Liberdade tem origem no latim libertas e significa a condição do indivíduo que possui o direito de fazer ESCOLHAS, de acordo com a própria vontade.
Mas fazer escolhas implica em dispêndio de grandes energias psíquicas e envolve uma certa sensação de insegurança.
Kierkegaard usa o exemplo de um homem à beira de um precipício: quando o homem olha para baixo, ele experimenta um medo focado de cair, mas, ao mesmo tempo, sente um grande impulso de se atirar intencionalmente para o precipício.
É como a representação gráfica da carta “O louco” no modelo Rider-Waite, uma pessoa que se atira no abismo. O louco também é a carta zero – inicial.
A ansiedade patológica era compreendida por Kierkegaard como certo cerceamento interior, causado pelo medo da liberdade. Ele usou o termo “hermetismo” para definir a pessoa que se fecha a si mesma e aos outros. Segundo o filósofo existencialista, a ansiedade favorece evitações: é um fechamento à vida, a riscos e sobretudo ao risco de fazer escolhas com liberdade.
“A ansiedade é a realidade da liberdade como uma potencialidade, antes que essa liberdade seja concretizada.” (Rollo May, 1987)
A liberdade é fundamental para o desenvolvimento da personalidade, assim como a autonomia a qual deriva da liberdade.
Liberdade individual não seria apenas a liberdade ante restrições e limites, mas a possibilidade de escolha e de responsabilização por ela –deve vir de uma expansão da consciência, já que liberdade envolve sempre uma ansiedade potencial.
“A liberdade tem estes paradoxos: é desejada e temida, é vitória contra ansiedades e raiz de novas ansiedades, é horizonte, não é meta”.
(ENIO BRITO PINTO, 2021.)
O processo educacional tradicional tende a inibir a curiosidade infantil desde o início e ao longo de toda a vida dos indivíduos, pois somos uma sociedade que se baseia fortemente em ORDEM, CONTROLE e PREVISIBILIDADE.
Esse olhar curioso para o mundo, quando bem acolhido e incentivado, abre as portas para ampliar a autonomia –capacidade que a pessoa tem de se guiar, principalmente pelas próprias regras.
Para a educação, exige-se dos pais PLASTICIDADE, que sejam permeáveis a
mudanças, capazes de experimentar novidades e de mudar comportamentos e valores assim que descobrem que estes já não respondem mais às necessidades atuais.
O mais comum é que, ao menor sinal de curiosidade da criança, já lhe sejam dadas respostas, já lhe sejam dadas definições da realidade, impedindo a exploração. Ou então são estipuladas rigorosas regras (com claras exigências de serem obedecidas), além dos inúmeros “deveria” e “não deveria” – que podem se tornar INTROJEÇÕES cristalizadas e, dessa forma, dificultar o processo de autoatualização.
Inibem-se, assim, as possibilidades de perguntar e de desobedecer, tão básicas para que conheçamos o mundo e nele dialoguemos com nossas ansiedades.
Além disso, o Estado sempre se utilizou da educação como ferramenta de exclusão social e de manutenção das desigualdades; além de colaborar na internalização do modo de vida indivíduo-empresa da lógica neoliberal.
Focando em um ensino dogmático com objetivo quase exclusivo de servir à lógica de mercado, dando pouco espaço para reflexão e críticas, a educação perde seu
caráter formativo de indivíduos pensantes e abre caminho para a formação de gerações de pessoas com pouco poder de reflexão e crítica sobre o mundo que as cerca.
A ansiedade só aparece quando existem alternativas, quando há possibilidade de escolha. Quem não pode escolher não vive ansiedade, tampouco liberdade.
Sempre que há possibilidade ou necessidade de escolha, há conflito interior e/ou com o ambiente. Isso porque a ansiedade é vivida no momento do aparecimento de alguma potencialidade ou possibilidade diante do indivíduo, alguma probabilidade de preencher a existência, mas essa possibilidade implica a destruição da segurança atual, que por sua vez provoca a tendência a rejeitar a nova potencialidade. Implica a perda escolhida.
Quando a ansiedade é patológica, alerta para a tentativa de abdicação da liberdade e a negação do diálogo; a pessoa projeta no outro a restrição que tem em si e não se responsabiliza pela escolha nem por suas consequências. Evita assim a ação necessária, responsabilizando os outros, quando no mínimo deveria dividir as responsabilidades com eles.
A ansiedade patológica é sempre companheira dessas escolhas pela aparente NÃO ESCOLHA
∙ Obedecemos a regras culturais nem sempre explicitadas (a mão invisível do mercado?);
∙ Obedecemos a antigas lições tomadasna infância e aparentemente esquecidas (mando-obediência);
∙ Obedecemos a más interpretações da realidade pouco questionadas (precarização do trabalho, sociedade do ter…);
∙ Obedecemos a sagrados (religiosidade) pouco dialogais;
Obedecemos a uma imensa variedade de INTROJEÇÕES não apropriadas.
A liberdade é a matriz da DESOBEDIÊNCIA, e essa, por sua vez, a matriz da BOA OBEDIÊNCIA.
Trata-se de um paradoxo muito interessante: a obediência precisa ser um ato de liberdade para que seja integrada e livre da ansiedade patológica. A OBEDIÊNCIA SADIA precisa da POSSIBILIDADE de desobediência.
Indivíduos esses que têm como único e exclusivo objetivo manter-se na classe social em que estão inseridos ou ter mobilidade social ascendente, tomando a educação como mais um possível investimento a fim de se manter uma “empresa” competitiva.
“A liberdade e a capacidade de desobediência são inseparáveis. A possibilidade da desobediência é a mãe da autonomia.” (Erich Fromm, 2013.)
Etimologicamente, OBEDECER quer dizer DAR OUVIDOS.
Precisamos encontrar o lugar da obediência saudável, fruto de apropriações críticas de valores, e não de introjeções.
Vemos bastante esse tipo de obediência tradicionalista e introjetiva no Brasil de hoje –a obediência ACRÍTICA!
Sempre que recebemos uma ordem ou um conjunto de regras a que devemos obedecer, o primeiro contato é através da INTROJEÇÃO, a qual gera um DEVER (de obedecer).
Num movimento saudável, essa introjeção precisa ser seguida de uma INTEGRAÇÃO, uma crítica à ordem recebida, que possibilitará a aceitação ou a rejeição dela.
A partir daí, finalizando o processo de integração, a OBEDIÊNCIA AUTÔNOMA derivada da compreensão da ordem e da concordância com seus aspectos centrais, ou a DESOBEDIÊNCIA DISCUTIDA, dialogada se não há concordância.
Quando a pessoa não vive com clareza a possibilidade da desobediência, quando abdica da autonomia, tende a desenvolver uma de três possibilidades de reação àquilo que deve ser motivo da obediência, todas potencialmente geradoras de ansiedade patológica:
1. Cálculo de riscos.
2. Conformidade cega.
3. Revolta.
Nos casos mais extremados e graves, essas alternativas levam ao RADICALISMO / FANATISMO.
Mas, nos casos mais comuns, levam ao RESSENTIMENTO, à INFELICIDADE moralista ou à VIDA DUPLA. Isso porque se baseiam no DEVER, e não no COMPROMISSO.
1. Cálculo de riscos
É aquela atitude que desobedece sem assumir a desobediência, confiante na possibilidade da ocultação da responsabilidade:
Dirigir acima do limite da velocidade permitida.
∙ Mentir com boas intenções.
∙ Aventuras sexuais que provavelmente não serão descobertas pelo cônjuge.
∙ Bisbilhotar o celular do(a) companheiro(a)…
Isso implica preferir assumir uma vida dupla a assumir uma posição ante o mundo.
Nesse caso, é fundamental (re)aprender a se posicionar nas bifurcações da vida.
Trata-se de uma atitude de submissão, quase sempre baseada na introjeção, que muitas vezes só tem saída através de uma depressão. Por um tempo considerável a pessoa abdica de sua possibilidade de escolher e a delega ao outro, evitando a ansiedade saudável proveniente da escolha e abrindo caminho para a ansiedade patológica e suas evitações.
Nesse caso é fundamental (re)aprender a questionar e questionar-se, criando a possibilidade de desobediência.
A revolta como reação ao que deve ser motivo de obediência é muito comum no estilo profletor de personalidade (que faz para o outro o que gostaria que fizessem por ele = toda ação vira uma dívida = necessidade sempre dependente do outro), geralmente fruto de uma incapacidade ou dificuldade de se identificar, se afirmar e se comprometer.
Nesse caso, é fundamental (re)aprender o autocuidado, a dizer não e acionar a rede de apoio.
Quando a pessoa consegue não utilizar com frequência essas três formas de abdicações da autonomia, quando consegue reduzir os “deve/ deveria”, torna possível a abertura à desobediência, abrindo-se também para a possibilidade de se comprometer.
∙ Dever é fruto da obediência acrítica ou da falta de possibilidades de escolha consciente. – Quando alguém faz algo baseado no “deveria”, o faz com ressentimento.
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Compromisso é fruto de decisões autônomas, de escolhas feitas de modo ponderado. – Quando conseguimos realizar tarefas com compromisso é porque conseguimos dar sentido a elas.
Enquanto a liberdade é mais geral, a autonomia é mais restrita.
A autonomia é um caminho para retirar a vertigem dos momentos de decisão.
Liberdade é voar no céu
Autonomia é também voar no céu mas com controle
Autonomia é um termo de origem grega cujo significado está relacionado com independência, autossuficiência.
Autonomia é obedecer ao mando da própria consciência, do autogoverno, sem desprender-se de uma ética.
Sagar PatilNEOLIBERALISMO é uma forma de organização social que pauta todas as nossas relações: de amizade, familiares, afetivas, laborais… Todas elas serão relações “produtivas/utilitárias”, ou seja, relações de troca, onde é preciso ganhar algo, maximizar algo, potencializar algo – tudo tem uma função (de lucro).
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humanas (transcendentais, políticas, religiosas, mercadológicas) sempre tiveram a função de reprimir o terror da existência, conferindo a ela uma função, um sentido e uma forma de superação da finitude.
Elas são poderosas ferramentas, responsáveis por atribuir sentido, motivo, direção à existência humana e servir de “objeto” ao DESEJO.
As ideologias transcendentais existem desde o início da vida em sociedade, onde o Grande Outro* (neste caso Deuses) eram responsáveis pela origem do mundo e dos homens.
As ideologias/utopias multiplicaram-se na Revolução Industrial e período pós-guerra e passara a assumir um caráter INDIVIDUALISTA na segunda metade do séc. XX.
Atualmente, religião, trabalho e consumo ocupam este lugar.
A lei de um Grande Outro “comunitário” não existe mais; cada indivíduo é livre para escolher como reprimir a morte e lidar com o próprio desejo.
∙ O Grande Outro se torna o próprio inconsciente a reconhecer e atender ao próprio desejo.
Não tememos mais a Deus, desacreditamos do Estado e das leis – utopias de um mundo melhor e uma nova realidade não encontram respaldo.
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Vivemos um período de desilusão após o fracasso das promessas dos séculos anteriores de que dominaríamos a natureza, a ciência conquistaríamos a felicidade, a segurança.
Vivemos ainda um período de pessimismo: Exterminismo Ecológico, a crença de que somos a última geração: tudo será pior, o trânsito, o clima, a economia, o emprego, a pandemia irá nos dizimar...
No BRASIL atual, soma-se a tudo isso a instabilidade do futuro da democracia.
A virada à extrema-direita, pondo em risco certos achados históricos como direitos humanos, tolerância em geral e afins, pode criar em nós uma sensação de que o que era tomado como certo, resultado de uma construção racional já instituída, não passava de uma breve ilusão efêmera.
A política voltou a se revelar objeto de possível irracionalidade, e se essa questão já gerava ansiedade no passado, hoje gera ainda mais, fruto do retorno à irracionalidade na vida política.
O modelo “eleito” como substituto das ideologias, ou seja, o do consumo/trabalho se mostra, a princípio, incapaz de ocupar o lugar do desejo e de proporcionar um cenário otimista.
∙ Mais trabalho para produzir as “novidades”, menos tempo para usufruí-las, mais capital para realizar a substituição, mais trabalho para conseguir este capital.
DESAMPARO e PERTENCIMENTO: não temos mais um centro. Nossa consciência foi se transformando e agora não temos mais onde nos agarrar. Não temos mais Deus, até a espiritualidade virou mercantilizada e isso é angustiante. E essa crença cega na tecnologia?
INDIVIDUALIDADE é muito recente, a noção de sofrimento também é recente.
“A gente está vivendo uma vida escapista: tudo o que a gente faz é para negar a morte. Não estamos conseguindo encarar o FIM: da espécie, do planeta (que tá vindo). EQM (Experiência Quase Morte): leva a uma maior consciência sobre aceitação do não controle.” (NATALY SIMON, Produtora de conteúdo em entrevista exclusiva para o estudo.)
* Grande Outro (Dicionário de psicanálise): termo utilizado por Jacques Lacan para dar um lugar simbólico – o significante, a lei, a linguagem, o inconsciente ou ainda Deus – que determina o sujeito, ora de maneira externa a ele, ora de maneira intrassubjetiva em sua relação com o desejo.
“Antes, tínhamos DEUS. Com o iluminismo, os sujeitos ficam submetidos ao CIENTÍFICO. Imaginamos possibilidades de outros modos de vida (ex. : uma sociedade igualitária). Séc XIX-XX: Freud revela o INCONSCIENTE, a tecnologia mostra-se dúbia: nazismo. O socialismo real ruiu.
Mas ainda estamos sob efeito de acreditar na ciência: marketeira, bélica, farmacológica. Mas o discurso científico é paranoico: garante que vamos chegar a uma verdade que não existe. Então, estamos desamparados de um ideal que a gente possa se cercar de ‘me basto’. Estamos num momento em que não existe um SUJEITO por trás do discurso científico, existe uma fala, mas não tem ninguém encabeçando essa fala. Utopias serviam para o Futuro. Chegamos, e aí?” (SIMONE DE PAULA, Psicanalista em entrevista exclusiva para o estudo.)
Vale destacar ainda a economia do cuidado que é totalmente invisibilizada e desmerecida. Fundamental para a evolução da sociedade, mas, por não fazer parte do sistema de
Porque hoje estamos convictos de que temos a propriedade do EU/SI, mas isso é uma falácia à medida que aquilo que entendemos por SUBJETIVIDADE (construção de uma identidade) não é algo que nos pertence, ela simplesmente nos atravessa.
Nossa identidade não é exatamente nossa, ela é fruto da nossa temporalidade, da situação em que vivemos, do nosso CAMPO EXISTENCIAL,e a forma como nos organizamos enquanto sociedade é através de uma ética de produção neoliberal.
Estamos imersos nesse CAMPO EXISTENCIAL do NEOLIBERALISMO: uma forma de vida nos campos do trabalho, da linguagem e do desejo. Como tal, ele compreende uma gramática de reconhecimento e uma política de sofrimento
produção, é simplesmente ignorada, não remunerada. E quem cuida de quem cuida? Estamos à beira de um colapso?
“O impacto na vida das mulheres é imenso: amplia as desigualdades de renda, precariza as condições de vida em todos os âmbitos e ainda acarreta estresse, estafa, depressão, entre outros problemas para a saúde.”
‘Por que eu, empresário, tenho que pagar licença maternidade ou paternidade porque você decidiu ter filho e vai ficar fora para cuidar dele?’, alguém vai dizer. Ora, você emprega pessoas? Sim. Pois é, alguém cuidou e educou essas pessoas, você já está se aproveitando desse trabalho que alguém desempenhou 25-30 anos atrás. Mas o pensamento econômico atual não considera esse trabalho, que não tem nada que ver com produtividade, como algo de valor: não tem valorização salarial, não tem prestígio, não tem condições”. (PAULO DOS SANTOS, ECONOMISTA, PARA O THE INTERCEPT BRASIL. Fonte: https://lab. thinkolga.com/economia-do-cuidado)
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No livro “Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico”, Vladmir Safatle, Nelson da Silva e Cristian Dunker apontam apontam uma contraposição dos pensamentos liberais e neoliberais na função do sofrimento:
LIBERALISMO: considerava “o sofrimento um problema que atrapalhava a produção (produtividade)” e criava obstáculos para o desenvolvimento e para o cálculo da felicidade.
NEOLIBERALISMO: descobriu que se pode extrair mais produção e mais gozo do próprio sofrimento. Extraindo o máximo de cansaço com o mínimo de risco jurídico, o máximo de engajamento no projeto com o mínimo de fidelização recíproca da empresa.
O neoliberalismo propõe a individualização dos sujeitos – um ser econômico que em todas as suas relações sempre faz um cálculo pensando no lucro: como obter a maior vantagem pessoal nas suas relações.
E como se edificou o NEOLIBERALISMO?
Surge, no momento da ascensão da burguesia industrial, defendendo os interesses dessa classe.
Adam Smith, em 1776, afirma que as relações sociais baseadas no INTERESSE constituem vínculos mais efetivos do que qualquer outro princípio – o ser humano tende naturalmente à troca porque é movido pela ideia de vantagem individual, e não pela busca de promover felicidade alheia, solidariedade
“A economia política pressupõe uma definição arbitrária do homem como um ser que, inevitavelmente, faz aquilo através do qual ele pode obter a maior quantidade de itens necessários, comodidades e luxos com a menor quantidade de labor e sacrifício físico com a qual estes podem ser obtidos.” (ADAM SMITH)
No marginalismo o indivíduo é colocado no centro dos processos econômicos: prevalecendo a busca individual pela maximização de seu bem-estar.
Para os marginalistas, os mercados são baseados no cálculo do VALOR-UTILIDADE:
“Redução, subjetiva e individualista, do consumidor à capacidade de ordenar suas preferências e efetuar escolhas alternativas em vista da maximização de sua satisfação global. Abstraído de seu contexto, sua classe social e a totalidade do sistema, esse sujeito reflete algo da dinâmica do capitalismo financeiro, então em pleno desenvolvimento.” (Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico.)
Com a Grande Depressão, em 1929, mais o cenário pós-guerra (1ª GM), surge o Keynesianismo, que propõe um Estado máximo: empresas estatais, funcionalismo público, o Estado aquecendo a economia investindo capital.
Em contraposição a esse intervencionismo do Estado, autores como Frederick Hayek e Milton Friedman começaram a elaborar teorias que recolocassem a liberdade econômica no centro do
Com isso, ele defende a ideia de que a vida dos sujeitos se reduz a operações de troca e rentabilidade.
Com a chegada da Revolução Industrial e aumento do número do desemprego, baixa no salário e aumento da miséria na Inglaterra, os utilitaristas ajudaram a promulgar a Lei dos Pobres (Poor Law) que determinava assistência aos pobres desocupados - a contrapartida seria que a classe trabalhadora teria de aceitar qualquer remuneração imposta para obter um posto de trabalho.
SÉC. XVIII E XIX MARGINALISMO METADE DO SÉC. XIX (1870)
Aqui, a utilidade é diferente para cada indivíduo pela quantidade disponível desse bem no instante em que é adquirido: o ar é um bem amplamente disponível, mas não tem valor algum, mesmo que seja absolutamente útil, por exemplo. Essa é a lógica da utilidade MARGINAL, que será base para o cálculo de tendência dos preços, lucro e salários – já que o trabalho é uma mercadoria como outra qualquer.
Em ambas as teorias, tanto utilitarista como marginalista, há a concepção do sujeito e da sua ação como essencialmente racionais, sempre a fazer um cálculo que visa maximizar algo para si, e que será base do neoliberalismo.
sistema, vistas como maneiras de sanar a crise na Europa e EUA, e criaram o Colóquio Walter Lippmann (1938) onde surge o termo “neoliberalismo” e onde são discutidas suas ideias iniciais.
Após o Colóquio, é criada a Sociedade Mont Pèlerin, em 1947, para a continuação da elaboração do modelo e difusão dos ideais neoliberais em oposição direta ao Keynesianismo.
“O Neoliberalismo é uma forma específica de governamentalidade, na qual a economia se converte em um modo de gestão de si e dos outros... Como gestão de si, o neoliberalismo pressupõe um sujeito que age em conformidade com a lógica capitalista, movido pelo interesse, pela utilidade, pela satisfação, que se traduzem nas formulações teóricas em termos matemáticos. Como modo de gestão dos outros, pressupõe um modelo de interação social baseado na dinâmica do mercado. Operando de maneira espontânea, o mercado tende a confluir para situações de equilíbrio. ”
(MICHEL FOUCAULT)
Os grandes pensadores neoliberais afirmam que a ideia de livre-iniciativa, empreendedorismo e competividade são ideais que surgiriam espontaneamente nos indivíduos se a intervenção do Estado fosse limitada.
Para isso ocorrer, seria necessário intervir e reeducar até que a ideia de “empreendedor de si” fosse disseminada a ponto de se tornar natural a cada indivíduo. Assim, ao contrário do que
muitos pensam, a implantação do neoliberalismo necessitava de ainda mais intervenção do Estado na configuração dos conflitos sociais e na estrutura psíquica dos indivíduos, ao menos nesse primeiro estágio – daí a ideia de ser considerado uma engenharia social objetivando despolitizar a sociedade ao internalizar nos indivíduos a ideia de que todas as escolhas e consequências advindas delas têm como responsável único e exclusivamente o indivíduo em si – a noção de liberdade como empreendedorismo e livre-iniciativa tornam-se status quo da sociedade atual.
Para isso foi necessário bloquear um tipo específico de conflito que coloca em questão a gramática da regulação da vida social: era preciso acabar com instituições, organizações, sindicatos que visassem questionar a tal noção de liberdade a partir da consciência da natureza fundadora da luta de classe – daí a importância de DITADURAS para implementação do modelo neoliberal (a exemplo do Chile Allende / Pinochet).
A contradição de um Estado aparentemente não intervencionista somado ao definhamento de políticas de bem-estar social explica não só boa parte das ditaduras instauradas na América Latina, mas são possíveis de visualizar ainda hoje em dia em cenas cotidianas no país:
1. Ações da polícia nas periferias de SP e Rio de Janeiro.
2. Tentativas de Eduardo Bolsonaro de classificar o MST como terrorismo.
3. Truculência da política militar nas manifestações organizadas por movimentos sociais e partidos de esquerda...
FONTE Augusto Pinochet | Biblioteca del Congreso Nacional de ChileO cenário brasileiro pré-golpe militar era similar ao do Chile de Allende: o então presidente João Goulart, Jango, pretendia realizar o que chamou de Reforma de Bases com o intuito de diminuir as desigualdades sociais no país, incluindo a reforma agrária, a permissão de analfabetos ao voto e reforma educacional, sendo receptivo às ideias de Paulo Freire –desagradando a burguesia brasileira da época como também o governo dos EUA que trabalhava para ganhar a Guerra Fria e extinguir o comunismo do mundo.
Nesse contexto, inicia-se o processo de golpe militar culminando em 31 de março de 1964.
Além da brutalidade e repressão instauradas pelo regime militar, a corrupção e a desigualdade social também aumentou nesse período devido ao também chamado “Milagre Econômico”, período entre 1968 e 1973 –grande volume de empréstimos tomados do exterior possibilitaram a expansão do setor industrial, que criou mais empregos, sem a possibilidade de uma organização sindical, controlada pelo Estado – o investimento em infraestrutura no país como estradas e hidrelétricas, e resultando em um dos maiores índices de crescimento econômico do país com taxa de crescimento do PIB de até 13% ao ano.
No entanto, esse crescimento econômico ficou concentrado nas classes mais altas, fazendo as classes populares continuarem na mesma condição de pobreza, aumentando as desigualdades sociais.
Com a crise do petróleo em 1973, a economia brasileira se viu sem saída, com alta dívida externa que criara, impactando durante anos a economia do país.
Após a ditadura, em 1989, Fernando Collor foi eleito o presidente em eleições diretas e começou a implantar os ideais neoliberais (“Não fale em crise. Trabalhe.”), abrindo o mercado brasileiro, privatizando empresas públicas, reduzindo o funcionalismo público...
No governo de FHC, o Estado deixa de ser desenvolvimentista e investidor e passa a ser regulador como forma de melhorar a economia do país e se adequando ao cenário da globalização. Cria agências reguladoras, ditando regras às novas empresas atuantes no país com a privatização de estatais e implanta
o Plano Real, a fim de combater a inflação que causava grandes danos até então, conseguindo o início da estabilização econômica, a volta do crescimento e aumento do poder de compra da população.
É a partir da década de 1990 também que grandes empresas começam a criar ambientes e programas internos de “benefícios” como maneira de incentivar a produtividade e promover uma concorrência, até então (e muito similar aos discursos das startups dos tempos atuais) “saudável”,
1. como bonificações com participação nos lucros;
2. premiações aos funcionários, times, departamentos com os melhores resultados;
3. enrijecimento de medidas de cortes no quadro de funcionários ao fantasma do desemprego;
4. busca por validação externa, como o GPTW, que certificava, pela primeira vez no Brasil, em 1997, as melhores empresas para se trabalhar.
O Milton Friedman disse a seguinte frase:
“... Não mais a empregabilidade total, mas a manutenção de um índice ótimo de desemprego, de modo a manter os salários os mais baixos possíveis, aumentando a oferta de mão de obra, enfraquecendo a força de negociação dos sindicatos e aumentando os dividendos provenientes diretamente da mais-valia.” (MILTON FRIEDMAN)
Assim, o desemprego, os baixos salários e outras formas de precarização do trabalho transformam-se em “regra do jogo”.
Com a chegada de Lula à presidência ocorre um afrouxamento do neoliberalismo no país.
1. interrompeu o processo de privatizações; 2. conseguiu aumentar a renda dos cidadãs; 3. ampliou o acesso ao crédito que colaborou para o aquecimento da economia, gerando mais empregos;
4. criou ferramentas para ampliar também o acesso à educação e às universidades, culminando em um crescimento econômico e poder de compra, além da ascensão da classe C.
Por um lado, suas políticas públicas que tentavam contornar as desigualdades colaboraram para a internalização do discurso neoliberal pelas críticas geradas aos programas de cotas nas universidades, por exemplo, como também ao aceitar a sociedade de mercado como modo de vida, proporcionando que parcelas da população até então excluídas adentrassem e tivessem poder de consumo sem nenhuma mudança estrutural no sistema, sem resolver a causa de tais desigualdades.
Ainda no primeiro mandato de Dilma Rousseff, a então presidente faz um discurso que ameaça o neoliberalismo e, consequentemente, grupos da elite brasileira: ela declarou que, para se desenvolver, o Brasil precisa “equacionar as três amarras do país: taxa de juros alta, câmbio e impostos altos”.
Em seu segundo mandato, Dilma reduz a intervenção do Estado na economia, cria cortes de investimentos públicos e cortes orçamentários,
porém, como resposta à crise política e econômica no país, é dado início ao seu processo de afastamento, terminando em seu impeachment.
Ainda que mais sutil do que o que foi feito no Chile, pode-se observar que o neoliberalismo também tem grande impacto na política e economia brasileira desde a década de 1990.
Sendo menos reforçado durante os governos Lula e Dilma, mas, diante de uma crise de valores, representatividade e em um momento de incertezas e descrença, o neoliberalismo volta com mais força no governo de Temer com: ∙ o controle dos gastos públicos, ∙ a reforma trabalhista, ∙ as privatizações, ∙ o leilão de usinas hidrelétricas.
E termina por consolidar sua hegemonia nas eleições de 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro e seu ministro da Economia, Paulo Guedes, discípulo da Escola de Chicago.
Gary Becker, maior representante da Escola de Chicago e ganhador do prêmio Nobel de Economia, em 1992, defendeu que o indivíduo vai sempre escolher a alternativa que maximiza sua vantagem pessoal.
“O comportamento do indivíduo econômico pode ser entendido, por simples agregação, para quaisquer grupos.” (GARY BECKER)
Desconsiderando as diferenças de classe, raça, gênero e posição política de cada indivíduo, o neoliberalismo reforça a falácia de que todos são iguais e todos têm a mesma liberdade e condições - MERITOCRACIA.
Falácia construída com forte ajuda da mídia.
E por falar em mídia, devemos lembrar os quadros de seu programa CALDEIRÃO DO HUCK, em que a pessoa em apuros
financeiros, tem que ganhar uma brincadeira – memorizar, acertar perguntas, por exemplo –para ganhar dinheiro, sempre com um discurso sobre a pessoa empenhada, guerreira, que mesmo nas dificuldades não desiste e corre atrás e, por isso, merece o prêmio – de novo: meritocracia!
Por outro lado, pessoas que começam a ganhar influência/reconhecimento, principalmente fora do padrão cis/heteronormativo, reforçam a questão também da necessidade de representatividade para esvaziar o mito de que é só você se esforçar, ser melhor, que o sucesso virá.
Becker defendia ainda que, sob o olhar da maximização da utilidade individual, o indivíduo pensa e age somente olhando para si, deixando o outro de fora de seu raciocínio e ações.
É Becker também que ajuda a criar e divulgar o conceito de “capital humano”, em que a qualificação do indivíduo tem relação direta com sua produtividade e, assim, consequências na economia.
É um modelo que não prevê consequências e não considera o impacto negativo como sociedade.
Se você duvida disso, vale assistir ao primeiro episódio da terceira temporada da série “Tales by Light” da Netflix, que mostra os perigos enfrentados por vítimas de trabalho infantil em Bangladesh.
Desde a década de 1970 vivemos a cultura do “Eu”.
Em 1976 a revista “New York” lançou um dossiê escrito por Tom Wolfe sobre a “Me decade”.
E consecutivamente a cultura individualista foi ampliando o conceito do “ME” autônomo até chegar o “ME ME ME”.
Até a controversa função dos coachs de carreira, que supostamente seriam pessoas aptas para direcionar o caminho dos seus clientes, ajudando nas escolhas,
já possuem a modalidade autônoma do AUTOCOACHING.
Esse conceito ainda hoje é amplamente difundido e internalizado de maneira a perceber que, cada vez mais, as gerações mais novas começam a sentir o peso da cobrança do investimento em sua educação e formação.
Conceito que implica uma relação consigo mesmo marcada pela exigência de autovalorização constante, os indivíduos são agentes autônomos, capazes de agir livremente para satisfazer seus interesses e o fazem incorporando a ideia de ser uma empresa eles próprios, tendo que saber investir, inclusive na escolha de sua educação/formação, para sobreviver e concorrer uns com os outros.
Ao se tornar “capital”, o indivíduo precisa sobreviver ao mercado criando uma rotina exaustiva de comparação e competitividade em todos os aspectos de sua vida, e que o faz desconfiar de todos e vive com temor constante por não saber de onde virá a próxima ameaça, seja ela qual
Essa lógica de que o indivíduo é empreendedor de si próprio, forma-empresa, faz com que o olhar para si também seja sob a perspectiva de cobrança: é preciso ser bem-sucedido, é preciso sempre melhorar/otimizar todos os seus atributos, “soft skills” e “hard skills” para manter-se competitivo no mercado.
Nesse contexto, a ansiedade seria quase que um motivador para correr atrás desses aprimoramentos – a depressão se instaura por ser “o vácuo em que o sujeito não se reconhece cumprindo determinados papéis” (C. Dunker), quando o indivíduo não consegue se adequar ao discurso e exigências do mundo neoliberal repleto de máximas, excesso de expectativas.
Se você se identifica, vale a pena assistir ao filme “O congresso futurista”.
Capas de revistas.
Tales by Light, Netflix | divulgação TRAILER: “O CONGRESSO FUTURISTA”A condição do sujeito na atualidade é a ansiedade. Se estamos inseridos no contexto NEOLIBERAL em sua lógica individualizante e meritocrática, a busca por antídotos contra a ansiedade também será individualizada.
“A busca pela felicidade funde-se com a ideia mercadológica de demanda, de modo que os afetos humanos passam a ser reduzidos a motivações para investir, comprar e vender.” (LUDWIG VON MISES, economista e filósofo liberal).
A lógica neoliberal reforça a despolitização do sujeito, pois é um discurso que valoriza a autonomia, individualidade, quase uma “privatização” do sofrimento e da responsabilidade: cada um por si.
Esse pensamento vai levar ao esvaziamento do conflito, pois o sofrimento não é mais causado por um sofrimento social externo, político, mas sim atribuída ao próprio sujeito, que tem a liberdade para fazer suas escolhas, investimentos. Assim, não parece fazer sentido haver uma luta política a fim de acabar com esse sofrimento que o sujeito sente.
O neoliberalismo precisou alterar a “gramática social do sofrimento”. Tal mudança teve sua consolidação na edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-III), no final dos anos de 1970, quando o sofrimento psíquico passa a ser descrito por seus sintomas e sinais.
No mesmo período, começa-se a perceber uma tendência na psiquiatria em correlacionar todos os transtornos a uma causa biológica. Esse contexto favorece:
a racionalização dos diagnósticos, tirando o contexto social e comportamental do indivíduo;
∙ a fragmentação dos problemas, que devem ser resolvidos um a um, independentemente, e o podem ser de tal forma desde que o know-how e os meios técnicos necessários para utilizá-lo estejam disponíveis e que seu regime de uso seja estritamente observado.
Ao focar nos sintomas, o Manual cria a brecha para diagnósticos rápidos, surge então a ideia de que, “se tenho isso, o que faço para tratar?” – trazendo a ascensão dos fármacos e de medidas paliativas que focam no controle dos sintomas, e não no profundo conhecimento sobre as causas de tais condições e transtornos.
Cria-se, então, uma lista de tarefas a serem realizadas para evitar o descontrole e, consequentemente, a baixa na performance esperada.
Aumentando a lista de afazeres e metas do indivíduo-empresa, abre-se caminho para um ciclo vicioso de tentativas frustradas, sofrimento e tentativas de aprimoramento (enhancement).
Esse aprimoramento também permeia indivíduos sem diagnóstico, que não possuem o transtorno em si, mas que utilizam dos métodos/medicamentos enhancers para melhorar seu desempenho:
∙ consumo de Viagra por homens sem disfunção erétil; ∙ estudantes uniersitários que tomam Ritalina em época de provas e entrega de trabalhos para aumentar foco e produtividade durante uma semana.
“Não há mais uma divisão nítida entre doentes e pessoas saudáveis, e todos são, assim, potenciais consumidores de psicofarmacológicos... todos podem ser uma versão melhorada e mais produtiva de si, e uma versão potencializada de si.” (“Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico”, VLADIMIR SAFATLE, NELSON DA SILVA JR, CRISTIAN DUNKER.)
“O espírito moderno nasceu sob signo da busca da felicidade – de mais e mais felicidade. Na sociedade líquido-moderna dos consumidores, cada membro individual é instruído, treinado e preparado para buscar a felicidade individual por meios e esforços individuais... Todas as vitórias líquidomodernas são temporárias.” (BAUMAN)
Fica claro, então, como o neoliberalismo se utiliza do sofrimento para aumentar a produtividade, como nos força a buscar o autoaprimoramento, e é nesse cenário que a busca pelo bem-estar, wellness, no aqui e agora, se consolida.
“...Tanto a causa do sofrimento não é causado por sofrimento social, externo, político, portanto, que daria para resolver politicamente, então esvazia politicamente já que as causas do sofrimento nunca são sociais, então não faz sentido ter qualquer tipo de luta política; como também dentro da dimensão interna: como se sublimasse e internalizasse um conflito mas sem conflito: o resultado quando o sujeito não entende que dentro dele há uma experiência de conflito ele não consegue nem reagir àquilo. O que acontece, basicamente, quando há disrupção entre sujeito e sociedade, sempre a culpa é do sujeito.” (“Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico”, VLADIMIR SAFATLE, NELSON DA SILVA JR, CRISTIAN DUNKER.)
Estamos vivendo a vitória do neoliberalismo e consequentemente do individualismo. A ansiedade também é uma manifestação individual onde há profunda ênfase no indivíduo. Então é quase óbvio que a busca por saídas também seja altamente individualizada e produtizada:
∙
Religiões (como vimos antes) Yoga ∙ Meditação ∙ Aromaterapia Sagrado Feminino ∙ “Gourmetização” de rituais, como ayahuasca, que agora é vendido em kits de luxo ∙ Coaching ∙ Consultoria de imagem ∙ Personal branding ∙ Investimento obsessivo em estudos (aprimoramento)
“Acho que hoje o termo ‘autocuidado’ é uma armadilha. Os cuidados giram em torno de fazer com que seja mais fácil viver neste mundo, e acho que é aí onde devemos nos concentrar. Talvez hoje o que chamo de autocuidado tenha a ver com tomar decisões em prol de nossa humanidade e não tanto do sistema produtivo, ou do sistema patriarcal, no caso das mulheres, que, historicamente, somos as que têm se encarregado dos cuidados. O que chamo de autocuidado é dizer ‘não’ a uma dinâmica que nos faz mal a médio e longo prazo.” (JARA PÉREZ)
“Não dá para pensar ansiedade sem pensar no sistema capitalista, que cria necessidades e expectativas e depende disso. Marshal Sallens diz que as sociedades ocidentais transformam o desejo em DOR x PRAZER FÍSICOS, porém, efêmeros.” (CAROLINE FREITAS, antropóloga em entrevista exclusiva para o estudo.)
Há também uma associação com fatores econômicos que colocam o CONSUMO e o TRABALHO sem limites como grandes metas da vida, a medida da felicidade, de forma que o valor pessoal e a autoestima acabam medidos a partir da possibilidade do consumo ou de trabalho excessivo, gerando um novo tipo de sofrimento que afeta a saúde existencial, com destaque para ansiedade e depressão.
O autor do livro faz um paralelo entre os séculos XX, que ele chama de época BACTERIOLÓGICA, e o século XXI, que ele chama de época NEURONAL.
Se antes estávamos sujeitados às dualidades: dentro x fora, amigo x inimigo, próprios x estranho, ataque x defesa, na atualidade, nos vemos diante do fracasso da alteridade, do excesso de iguais, do excesso de positividade de uma sociedade permissiva e pacificadora.
Se na época bacteriológica o ESTRANGEIRO precisava ser combatido porque representava um risco, agora o IMIGRANTE não é mais um risco, mas sim um PESO para a sociedade.
dentro x fora amigo x inimigo próprio x estranho ataque x defesa
dentro x fora amigo x inimigo próprio x estranho ataque x defesa
o estrangeiro precisa ser combatido porque é um risco
o estrangeiro precisa ser combatido porque é um risco
fracasso da alteridade excesso de IGUAIS excesso de positividade permissiva e pacificada
fracasso da alteridade excesso de IGUAIS excesso de positividade permissiva e pacificada
o imigrante não é mais um risco, mas sim um peso
o imigrante não é mais um risco, mas sim um peso
Como vimos, a lógica social do século anterior era regida pela negatividade, proibição, não ter direito, coerção. E isso produzia sintomas individuais como loucura e delinquência, fruto de um sujeito barrado em sua autenticidade e liberdade.
Já na atualidade, o sujeito é fruto de uma lógica social da positividade, do poder ilimitado, do projeto, iniciativa, motivação e multitasking, um sujeito do DEVER (animal laborans), que desenvolverá sintomas como depressão, déficit de atenção, hiperatividade e burnout.
lógica social:
• negatividade
• proibição
lógica social:
• não ter direito
• negatividade
• coerção
• proibição
• não ter direito
• coerção
sintomas característicos: loucura, delinquência sujeito barrado!
fruto de uma lógica social:
• positividade
• poder ilimitador
fruto de uma lógica social:
• projeto, iniciativa, motivação
• positividade
• multitasking sintomas característicos: loucura, delinquência sujeito barrado!
• poder ilimitador
• projeto, iniciativa, motivação
• multitasking
sintomas característicos: depressão, déficit de atenção, hiperatividade e Burnout sujeito do dever
sintomas característicos: depressão, déficit de atenção, hiperatividade e Burnout sujeito do dever
bacteriológica séc xx
época neuronal início séc xxi
“A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade do desempenho... No lugar de proibição, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e motivação... A sociedade do desempenho produz depressivos e fracassados... O depressivo não está cheio, mas está esgotado pelo esforço de ter que ser ele mesmo. A depressão é a expressão patológica do fracasso do homem pós-moderno em ser ele mesmo. A Síndrome de Burnout não expressa a si mesmo esgotado, mas antes a lama consumida. O homem depressivo é aquele animal laborans que explora a sim mesmo e, quiçá deliberadamente, sem qualquer coação estranha. É agressor e vítima ao mesmo tempo... está submisso a ninguém ou está submisso apenas a si mesmo... a queda da instância dominadora não leva à liberdade. Ao contrário, faz com que liberdade e coação coincidam... O animal laborans pósmoderno é provido do ego a ponto de quase dilacerar-se... a coação de desempenho força-o a produzir cada vez mais. Assim, jamais alcança um ponto de repouso da gratificação. Vive constantemente o sentimento de carência e culpa. E visto que, em última instância está correndo consigo mesmo, procura superar a si mesmo até sucumbir.”
(BYUNG-CHUL HAN, “A sociedade do cansaço”)
Vamos trazer essa teoria um pouco mais pra perto. 29%
dos respondentes disseram ter sido diagnosticados com ansiedade
21% dos respondentes disseram ter sido diagnosticados com depressão
20% dos respondentes disseram ter sido diagnosticados com estresse 52%
dos respondentes disseram ter uma autopercepção de nível alto de estresse.
44% responderam entre 8-10 e, dentre eles, 7% responderam experienciar nível 10 de estresse.
38% responderam entre 5-7. 61%
respondentes disseram lidar com o estresse parcialmente bem.
bem com o estresse.
entre 1-4.
FONTE FONTE Pesquisa Stress in Brazil (2017) Marilda E.N Lipp, Tátila Martins L, Louis M.N.Lipp, et al. Stress in Brazil. Int J Psychiatr Res. 2020; 3(3): 1-4.Segundo a anamt.org.br:
∙ Brasil é o 2º país com maior número de pessoas afetadas pela Síndrome de Burnout;
∙ 72% dos brasileiros no mercado de trabalho sofrem alguma sequela do estresse;
∙ 2% deles sofrem com a Síndrome de Burnout (cerca de 33 milhões de brasileiros);
∙ 92% das pessoas que sofrem de Burnout continuam trabalhando.
Em seu outro livro “Favor fechar os olhos”, o filósofo acerta em cheio ao dizer que a sociedade do cansaço atual faz o próprio tempo de refém, que ela o acorrenta ao trabalho e o transforma em tempo de trabalho. O tempo trabalho é um tempo sem conclusão, sem inícios e sem fim.
Segundo o autor, trazemos o tempo do trabalho não apenas nas férias, mas também no sono. O relaxamento é apenas uma modificação do trabalho, na medida em que serve para a regeneração da força de trabalho. A recuperação não é o outro do trabalho, mas seu produto. Também apenas a desaceleração ou lentidão não podem gerar um outro tempo.
Ela é, igualmente, uma consequência do tempo de trabalho acelerado. Ela apenas desacelera o tempo de trabalho, em vez de transformá-lo em outro tempo; a desaceleração não surte nenhuma cura. Antes, ela é apenas um sintoma.
Na mesma linha, Luiz Felipe Pondé diz que:
“Uma das maneiras mais seguras de você ser uma vítima da era da ansiedade é querer ser sempre um vencedor e querer sempre saber tudo de tudo. Talvez essa seja uma das maiores contradições da dialética da ansiedade: quanto mais você quer vencer pior a
ansiedade se torna, mas não querer vencer é uma forma de melancolia que não faz bem a ninguém.
Gente, é o fim da possibilidade do ócio. Até o ócio precisa ter uma utilidade. Estamos vivendo a ausência de limite entre pessoal e profissional. Eu confesso que no início da pandemia, naquelas primeiras semanas em que a gente ainda estava tentando entender, eu senti um alívio por não ter o que fazer. Agora, o covid é a nova produtividade disfarçada de ócio criativo: museus para ver online, cursos, listas e mais listas de coisas para fazer, já que está em casa... Vamos fazer um milhão de coisas enquanto o mundo está colapsando?” (NATALY SIMON, produtora de conteúdo em entrevista exclusiva para o estudo.)
Muitas pesquisas indicam os malefícios dessa hiper produtividade. Você é o que produz, você é o produto, você é a performance, você é A MÁQUINA. Cada vez mais distante do conceito de humanidade.
O fato está dado. E a reflexão?
Parece que a maquinária nos empurra a produtividade e eficiência máxima.
Mas é impossível negar que algum “contra movimento” ou que alguma reflexão acerca dessa condição que estamos vivendo como sujeitos começa a ser feita.
O livro “A vida não é útil”, de Ailton Krenak, vendeu mais de 50 mil cópias em sua primeira edição (em 2020) e já foi traduzido para inglês, francês, espanhol, italiano e alemão.
Estamos desesperados procurando uma saída?
Estamos vivendo o elogio de um modo de viver que não tem o cuidado, o amor, a coletividade como valores centrais, mas a produtividade, a competitividade, o individualismo e o imediatismo.
Essas limitações têm etiologia complexa, coerente com a complexidade humana. Não há como definir uma causa para um adoecimento existencial, haja vista que ele é cocriação vagarosa, elaborada entre o ambiente, a pessoa que sofre e fatores impossíveis de determinar com precisão. Os sofrimentos chamados patológicos, assim como os saudáveis, são fruto de complexas teceduras de sentido que inevitavelmente fazemos a cada situação vivida. Nessa tecelagem, entram fios:
∙ Históricos
∙ Genéticos individuais.
∙ Ambientais.
∙ Temporais. Espaciais.
∙ Corporais.
∙ Afetivos.
Conscientes e inconscientes.
∙ Configurações de personalidade.
∙ Evolução da espécie.
Estilo de vida: consumista.
∙ Precarização do trabalho:
– Sobrecarga de tarefas.
– Poucas válvulas de escape.
– Intolerância ao erro.
– Necessidade de multitarefa.
– Falta de tempo.
– Altos graus de cobrança. Revolução tecnológica: elevada velocidade de informação.
Fica clara, portanto, a existência de um tipo de ansiedade que não está ligada a nossos instintos, mas tem origem nos VALORES CULTURAIS aos quais somos submetidos desde muito cedo.
Nossos pensamentos e ações sofrem grande influência do que se reconhece como adequado e produtivo para alcançar o sucesso em um determinado grupo social.
Crianças nascidas e criadas em sociedades materialistas naturalmente desenvolverão níveis mais elevados de ansiedade, afinal, são convocadas a projetar-se no futuro desde muito cedo:
O que você quer ser quando crescer? Quantos filhos você vai ter? Você quer ser famoso? Quando você for mais velha/o...
E quando chega a adolescência as cobranças só aumentam:
Isso que você escolheu vai te dar futuro?
Você já pensou no seu amanhã?
Em que lugar vai morar? Quantas línguas quer aprender a falar?
Outro ponto importante relaciona-se ao fato da autoestima ter a ver com o SER, não com o TER: os seres humanos nunca tiveram tanto acesso a bens materiais quanto hoje. Por outro lado, nunca houve tantas pessoas insatisfeitas, ansiosas, compulsivas por comida, compras, drogas, sexo, redes sociais, internet etc.
A cultura consumista e individualista está tão enraizada em nosso comportamento diário que, na maioria das vezes, não percebemos o quanto vivemos sob a ditadura do ter.
Tempo é dinheiro Dinheiro compra tudo! O dinheiro compra felicidade. O que o dinheiro não compra ele manda buscar. Enquanto há dinheiro, há amigos. O dinheiro fala todas as línguas. Mais vale um pássaro na mão do que dois a voar. Não existe gente feia, existe gente pobre
O simples SER é desestimulado de todas as maneiras, pois aparentemente não demanda consumo e muito menos gera lucro. Não é à toa que a sociedade atual recebe várias denominações como sociedade: ∙ capitalista, ∙ de mercado, ∙ de consumo, ∙ das celebridades, do espetáculo, ∙ da informação, ∙ da era tecnológica (online holics).
Todas são objetivação que visam nos mostrar os aspectos mais importantes da cultura que rege e influencia todos os que vivem a ditadura do ter e do parecer.
As pessoas inevitavelmente buscam um sentido para a própria vida, e essa busca tem um fundamento cultural. As pessoas vão desejar, como sentido existencial, o que a cultura coloca como desejável. Se a cultura lhe diz que o bom é ser rico e famoso, ela desejará sê-lo em alguma medida.
RITA VON HUNTY: HOME OFFICEeconomia relações familiares excesso de trabalho relações românticas o trabalho em si
No ocidente hoje, de forma sutil e constante, somos treinados a negar a sabedoria de nosso organismo (a fonte da autonomia), em prol de uma adaptabilidade heterônoma (sujeição a uma lei exterior, portanto, o oposto de autônoma).
O vínculo psicológico e existencial entre a ansiedade e a libido é mediado pelo desejo. Esse fator é determinante: é impossível desejar e não ter ansiedade.
Na sociedade de consumo, baseada na produção infinita de desejo, é impossível não termos um DESEJO ANSIOGÊNICO.
identificam o desejo como uma “tortura” que domina o homem e o faz sofrer – propõem superar o desejo como forma de libertação.
“hedoné” (prazer) era compreendido como a ausência do desejo ou a redução das necessidades básicas de uma sobrevivência sem miséria, mas sem acúmulo.
“aphalé panta” significava: desapegue-se de tudo o que existe e, assim, assemelhe-se a um divino que “não precisa de nada”.
Todas essas formas de busca de superação do desejo se afastam na estrutura contemporânea da sociedade do consumo.
“A única forma acessível à sociedade do consumo de qualquer forma que se assemelhe minimamente à superação do desejo é a gourmetização dessa superação, por exemplo: ir a um roteiro na Índia de business class. (...) A ansiedade se relaciona diretamente com a busca de felicidade, de sucesso e de progresso. Como não há como recusar esses três comportamentos hegemônicos, uma das soluções para a ansiedade talvez seja a desistência estoica da vida (...) Quanto mais conhecimento maior risco de paranoia e ansiedade associada (...) A ansiedade é prima-irmã da possibilidade de melhorar a vida. Quanto mais assertividade em direção ao sucesso e à prosperidade mais ansiedade. Suspeito que esse vínculo entre ansiedade e possibilidade de prosperidade jamais será quebrado em nosso mundo contemporâneo pautado pela produtividade e eficácia.” (PONDÉ, “Você é ansioso?”)
A verdade é que vivemos em uma estrutura que sempre nos faz sentir insuficientes:
∙ Neoliberalismo.
∙ Obsolescência programada (ocorre quando um produto vem de fábrica com a predisposição a se tornar obsoleto ou parar de funcionar após um período específico de uso – geralmente um tempo curto). Sociedade do cansaço: precarização do trabalho e lógica utilitarista.
Imperativos de felicidade = positividade tóxica. ∙ Imperativos de prosperidade. ∙ Sociabilidade corporativa competitiva. ∙ Desemprego inevitável e epidêmico (revolução cognitiva). ∙ Sistema capitalista: vitória do individualismo/ neoliberalismo/meritocracia. ∙ Disseminação de práticas psicoterápicas de estilo coaching ∙ Instrumentalização das relações (todos se sentem uma coisa ou uma função).
“O titanic somos nós... Todos nós imaginamos que existe um iceberg esperando por nós, oculto em algum lugar no futuro nebuloso, com o qual nos chocaremos para afundar ouvindo música...” (Jacques Attali)
Em meio a tudo isso, estamos lutando para preservar: nossa INTEGRIDADE FISICA (corpo) e PROPRIEDADE, a ORDEM SOCIAL: segurança do sustento (renda/emprego) – sobrevivência (invalidez/velhice) e um LUGAR NO MUNDO: posição social e identidade (classe, gênero, etnia, religião).
Não saber o futuro gera medo constante, que gera uma predileção pelo AQUI/AGORA. O Bauman já dizia:
“Se as cadernetas de poupança implicam a certeza de futuro, um futuro incerto exige cartões de crédito.” (BAUMAN)
A causa do encolhimento do presente não é a ACELERAÇÃO, mas a inexistência de uma PARADA. Perdemos a capacidade de esperar. Vivemos o autoelogio da correria. Rapidez se converteu em PRESSA. Pressa que desencadeia a ruptura do tempo, o que conduz ao aceleramento sem direção e sem sentido.
“A história da humanidade é a história da ansiedade.” (Maurício Horta)
Toda humanidade antecipa. Não vamos mudar esta característica marcante da nossa condição. Culturalmente estamos preocupados com preservação, extensão da vida. E não antecipar pode nos trazer um senso de insegurança.
Apesar de termos um traço marcante relacionado com preservação, há um agravante no mundo moderno que torna as pessoas ainda mais ansiosas do que nossos antepassados: A FORMATAÇÃO DO TEMPO.
O tempo desde sempre é simbólico. Demanda a nossa percepção e interpretação do sentido da vida.
A ”corrida contra o tempo” está na recusa da mortalidade e inconformidade com a finitude, pois reforça a todo momento quão implacável é a ação linear da cronologia. E é na ação linear que começamos a sentir de perto a ansiedade.
Ansiedade tem relação com a forma de ver o tempo linear como progresso. Nele, a narrativa da vida é a narrativa do desenvolvimento: pra frente, sem volta.
A partir do progresso, vivemos em busca pelo novo, que demanda em certo nível a disrupção: a desconexão com laços passados.
Já nas culturas indígenas não é o futuro que atormenta.
Pelo contrário, é pelas experiências passadas e pela presença simbólica dos antepassados que se constrói o presente.
Cultua-se a passagem (tempo como um continuum.)
Os relógios das igrejas demarcavam os tempos da cidade sob a ótica da moral cristã.
O horário da oração, o horário das atividades comerciais e de trabalho, o tempo de se reunir no templo para adorar a Deus.
Os relógios das fábricas anunciavam o início e o término do turno.
Os calendários demarcam os planos de ação sob um regulamento social, mais estável e menos afeito ao acaso (ou à desorganização).
O poder está em quem detém o controle das horas marcadas por minutos e segundos.
Nesta lógica de poder o tempo é social e prescritivo (demanda uma lógica cultural): a cultura de base norte-americana ensina que tempo é um bem, escasso, que é mensurável economicamente.
Gastando tempo. Ganhando tempo. Economizar tempo. Não perder tempo.
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tem o hábito de ficar vendo o celular na cama antes de dormir.
O tempo (este conceito simbólico e imaterial) tem uma profunda capacidade de afetar o comportamento das pessoas, trazendo consequências sobre a experiência subjetiva dos indivíduos. Portanto, a ansiedade é sempre uma distorção do tempo.
67% o celular é a primeira coisa que veem ao acordar.
Ou como diria André Comte-Sponville: O tempo precisa da alma.
Até bem pouco tempo, quem nascesse camponês camponês morreria.
a inovação busca: vir a ser progresso mudança lugar de metamorfose
(a ansiedade é o efeito colateral da inovação.)
Com o advento do neoliberalismo, o ser humano já não está mais inserido de maneira aparentemente natural e imutável numa situação social. Pelo menos em tese ele pode escolher seu lugar no mundo e seus valores.
Se antes a liberdade nem sequer era pensada como valor, agora a felicidade depende da liberdade e de sua consequente, e ansiogênica, possibilidade de escolher.
A tradição, por muito tempo promoveu respostas para dúvidas, escolhas e ansiedades. Era só fazer como sempre se fez, como seus pais, seus avós, seus antepassados todos fizeram. Isso acalmava ao mesmo tempo que limitava, ou acalmava porque limitava com um impedimento externo.
Talvez o ser humano nunca tenha sido, ao longo da história, tão ameaçado pela impermanência como o é agora. Mais que nunca, estamos sujeitados a viver muitas situações sob um ESTADO DE EMERGÊNCIA CRÔNICA.
“Vivemos num mundo baseado na PRESSA, um mundo onde as raízes mais e mais são trocadas por âncoras.” (BAUMAN, 2011)
Viver no presente com o aprendizado do passado, e não com a cabeça no futuro, talvez seja o jeito mais eficaz de ser inteiro e manter os níveis de ansiedade produtivos e necessários, sem que nos façam mal ou nos castiguem a ponto de tornar o cotidiano algo penoso.
É preciso um tempo considerável de ansiedade constantemente elevada para que nosso organismo adoeça de modo irreversível.
Estamos vivendo uma época de incremento da ansiedade, sobretudo da patológica, uma das consequências disso é a deterioração – ou até mesmo perda – da capacidade de esperar, fenômeno que é marcado pelo autoelogio da correria a que tantos se sentem prazerosamente obrigados.
Muito da ansiedade patológica está ligado à dificuldade de ter esperança numa época de tantas vivências sem sentido.
“A ansiedade nada mais é do que a tensão entre o agora e o depois. Poucas pessoas conseguem suportar essa tensão; assim, elas PREENCHEM O VAZIO ensaiando, planejando, tendo certeza…” (PERLS, “Gestalt-terapia”, 1977)
No que diz respeito à ansiedade, um dos critérios fundamentais para o diagnóstico é o entendimento da vivência da pessoa com o tempo:
∙
Como essa pessoa lida com o tempo?
∙
∙
∙
Como passa por ele?
Como vive a sua temporalidade?
Como dialoga com o tempo Chronos (cronológico, compartilhado, mostrado nos relógios e calendários = tempo do FAZER), Kairós (da natureza, próprio, único, vivido = tempo do SER) e Aíôn (eterno, cíclico, indeterminável e imensurável = tempo PERPÉTUO)?
DOCUMENTÁRIO: “QUANTO TEMPO O TEMPO TEM”
Na ansiedade, é o trânsito entre presente e futuro que está em foco.
Sabe-se, portanto, que a transformação da ansiedade patológica em saudável passar por uma necessária presentificação.
Precisamos ter a consciência de que só existimos no presente, sem perder de vista que há aqui um paradoxo notável: o presente não existe.
Mal percebemos o presente e ele já é passado. Um mundo que deveria ser rápido transformou-se em um mundo apressado.
Pensar o mundo atual é pensar em progressos conquistados com rapidez inimaginável décadas atrás, tanta rapidez que nos tem levado a entrar em processo de apressamento.
Há uma naturalização da correria como se ela fosse boa e inevitável, mas ela não é nem uma coisa nem outra, mas formou-se um autoelogio à pressa e ninguém se pergunta a sério se precisa mesmo correr tanto.
“Correria, né? Como se fosse bom. Valorização da figura do estressado na linguagem e nas relações. Ser ansioso, estressado, viver na correria virou um sinal de sucesso. É sucesso dormir pouco e não ter nenhum lazer. Acho que em SP temos uma relação um pouco distorcida em relação ao respeito do tempo do outro por causa das
dificuldades de deslocamentos e atrasos serem menos tolerados. Experiência individual de ansiedade varia conforme essa experiência coletiva (SP é diferente de POA, que é diferente de...)” (CAROLINE FREITAS, antropóloga em entrevista exclusiva para o estudo.)
É obvio que há momentos em que precisamos ter pressa, e não é uma pressa eventual, mas a pressa vivida como se não houvesse alternativa é que é preocupante, pois é como se as pessoas tivessem mesmo de correr tanto, quando na verdade essa pressa é mais um preço que se paga para se alcançar alguma notoriedade ou privilégios de consumo, desejos seduzidos por símbolos de poder.
“Com a valorização do concreto em detrimento do simbólico, com a excessiva monetização da vida social e da vida pessoal e, especial e delicadamente, com o desenvolvimento tecnológico, o mundo e as relações se liquefazem” (BAUMAN).
A revolução tecnológica dá valor a imediatismos, cria as sensações de que se pode fazer mais do que cada coisa a seu tempo, naturalizando a aceleração ansiosa do cotidiano. E o líquido (ou seria GASOSO?) nos invade silenciosamente, fazendo confundir o desejo com necessidade, progresso material com felicidade, troca de mensagens com intimidade, quantidade de supostos amigos com amizade sincera.
Afobada Objetiva Precipitada Atenta Ansiosa Ágil
Luta contra o tempo
Faz do tempo aliado
Se apoia no futuro Embasada no presente
Ainda que aqui a rapidez pareça mais positiva que a pressa, ela também traz um preço alto a longo prazo no humano. É uma característica da máquina, do pós-humano, suplanta a nossa condição biológica.
Se pressa e rapidez são atitudes diante de situações e da própria existência, podemos dizer que a rapidez é uma atitude embasada no presente, no bom ritmo de passagem entre os tempos, ao passo que a pressa se apoia no futuro, é praticamente estagnada nele.
Em “Alice no país das maravilhas”, o Coelho representa a passagem inevitável do tempo, de um tempo sempre APRESSADO (e não rápido).
No livro “Favor fechar os olhos”, Byung-Chul Han faz uma dura crítica à aceleração sem direção, sem SENTIDO. Segundo o autor, tem-se uma CONCLUSÃO quando INÍCIO e FIM do processo formam um CONJUNTO dotado de SENTIDO, assim, a NARRATIVA é uma conclusão porque, em função de sua conclusão, ela produz um sentido. Narrativas não se deixam acelerar arbitrariamente.
Rituais e cerimônias são formas de conclusão. Eles têm o seu tempo, ritmo e compasso próprios. Eles representam processos narrativos que se furtam à aceleração.
Acelerar sem fim, em contrapartida, é o que um processador faz, pois ele não trabalha narrativamente, mas apenas aditivamente. Aceleração destrói as suas estruturas próprias de sentido e tempo.
O inquietante na experiência de tempo atual não é a aceleração, mas sim a conclusão faltante, ou seja, a falta do ritmo e do compasso das coisas.
A causa do encolhimento do PRESENTE não é, como se assume equivocadamente, a aceleração, mas a inexistência de uma PARADA, que desencadeia a ruptura do tempo, o que conduz ao aceleramento sem direção e sem sentido.
Já dizem que não estamos mais na sociedade líquida, e sim gasosa – 3º estado da modernidade (1-Sólido – 2-Líquido – 3-Gasoso). Ainda mais incerta, volátil e invisível.
Se na líquida é possível ver e sentir, mesmo que escorra, a gasosa é invisível, intocável e ainda mais efêmera.
Vale lembrar que, na Modernidade Sólida, observamos:
∙ Transformações clássicas geradas pelo capitalismo. Burguesia.
∙ Início da concentração urbana.
∙ Novas relações sociais.
∙ Compreensões clássicas entre o papel da mulher e do homem.
∙ Formação familiar clássica “tradicional”.
Já na Modernidade Líquida: ∙
Transformações amplas. Fragmentação do indivíduo. ∙ Relações fluidas. ∙ Identidades heterogêneas. Enfraquecimento das instituições.
E na Modernidade Gasosa: ∙ Criticidade e Distopia: Lugar ou estado imaginário em que se vive em condições de extrema opressão, desespero ou privação. ∙ Amorfidade: Nada assume uma forma fixa. Tudo em constante mutação. ∙ Inconfinável: Nada se comporta em nenhum lugar. Tudo respira e intoxica solto pelo ar. Indivisibilidade: a massa burra conduz o todo. Ninguém é de ninguém, nada é de ninguém, tudo evapora. ∙ Interdependência: tudo se relaciona com tudo o tempo todo. E o que teria potencial de ser algo positivo transforma-se em negativo. ∙ Vaporosidade: Realidade virtual, holografia, fluidez vaporosa.
Como bem definiu Flavia Prando do Centro de Pesquisa e Formação do SESC na matéria intitulada “MODERNIDADE GASOSA”:
“Se nós tínhamos a percepção de que relacionamentos, ideias e instituições escorriam entre nossos dedos, incapazes de manter sua forma frente à fragilidade moderna, nas últimas semanas, passamos a ter a nítida sensação de que elas podem evaporar, feito gás, e, sinceramente, isto não cheira nada bem... Muitos viram seus projetos esvaneceram antes de tomar forma, empregos evaporaram no ar. De um dia para o outro fomos obrigados a desmaterializar e transformar fazeres. Atiramo-nos, muitas vezes sem boias, em
um mar cibernético que pouco conhecemos, invadindo saberes e territórios alheios. Se a modernidade ficou gasosa, os estímulos estão cada vez mais sólidos e onipotentes. Nossa vida privada parece ter sido outro conceito que evaporou. Afinal, qual o limite do home office? Das webconferências? Dos grupos de whatsapp? Fica a cargo do bom senso individual, ou teremos que criar uma nova ética para que possamos interagir sem constranger, propor sem invadir, trocar sem exaurir?”
Tudo isso, e mais um pouco, gera ansiedade e FOMO: constantemente correndo atrás não se sabe do que.
Pensar em multiplicidade de escolha é como pensar na infinidade de opções disponíveis na internet...
A metáfora do mar como a navegação na internet que usávamos tão maravilhadas/os ainda no final dos anos 1990 continua válida e cada vez mais adequada para a realidade das redes.
Não é fácil se embrenhar na infinitude de dados.
A cada dia que passa temos a sensação de necessitarmos saber de tudo, pois tudo está disponível.
E com esta corrida acelerada, vamos também nos sentindo mais perdidos, uma nau à deriva num dilúvio informacional.
Pensando na ansiedade, mais uma vez nos deparamos com o sentido de progresso.
No livro “FAUSTO”, de Goethe, Mefistófeles (um demônio) faz uma aposta com Deus: diz que poderá conquistar a alma de Fausto (um favorito de Deus, sábio erudito), um sábio que tenta aprender tudo que pode ser conhecido.
Os dois chegam ao acordo (selado com sangue) de que Mefistófeles fará tudo o que ele quiser na Terra e, em troca, Fausto terá de servir ao demônio no Inferno.
Mas há uma cláusula importante: a alma de Fausto será levada somente quando Mefistófeles criar uma situação de felicidade tão plena que faça com que Fausto deseje que aquele momento dure para sempre.
Organizar informações de forma conceitual e racional, encontrando ordem e sentido nas coisas.
Fausto queria ler tudo, saber tudo, ser um imortal que sabe tudo.
A revolução tecnológica, entre outras coisas, revela um sujeito que age pura e simplesmente em resposta à cultura.
Para Freud, há uma dialética entre conhecimento e paranoia:
Em sua dimensão cognitiva, se caracteriza pelo mesmo movimento de organizar dados do mundo e da vida, estabelecendo uma racionalidade que gera sentido na organização desses dados.
O paranoico vê sentido em tudo à sua volta, mas um sentido conspiratório. A paranoia é um delírio de grandeza.
A distância entre o conhecimento e a paranoia é o RECONHECIMENTO e a ACEITAÇÃO de que NEM TUDO TEM SENTIDO na vida, nas coisas e no mundo. É, portanto, um RECUO na intenção de tudo entender e de tudo arrancar sentido.
Esse recuo tem muito a ver com a DESISTÊNCIA DE TER SUCESSO, imperativo absoluto na ordem do mundo em que vivemos: devemos, imperativamente, sempre vencer, prosperar e ter sucesso. Onde essa ordem se impuser de forma inexorável, seu afeto essencial será a ANSIEDADE.
Existe uma grande vantagem em “não ter tudo”. Somos seres que precisam concluir, encerrar, “morrer”.
A internet permite termos a ilusão de possibilidade de acesso a tudo e a todos: as pessoas, os papers, os livros, os artigos, os materiais disponíveis do planeta – essa disponibilidade de acessos causa uma falta ainda maior do que antes tínhamos.
Quem está no campo INTELECTUAL é a pessoa que vai criar a paranoia de tudo SABER (como Fausto). ∙ Quem não está vai criar a paranoia de tudo CONSUMIR: que roupa comprar, a que festa ir, que maquiagem usar, que carro ter... ∙ E, de acordo com dados coletados pela Comscore no início da quarentena, em meados de março/2020, nosso consumo de informações pelas redes aumentou 55% em relação ao mês de fevereiro.
“Cada um tem um gozo e vai querer ter abundância disso. Cada um vai querer e não vai poder/conseguir. Então começa a fazer pactos com o diabo: cartão de crédito, telefonia... Internet transformou a percepção de TEMPO: INSTANTANEIDADE!” (SIMONE DE PAULA, psicanalista em entrevista exclusiva ao estudo.)
“Quando patologiza, quando a gente nomeia é porque chegamos num ápice. Mas existe um processo que é o socialmente aceitável: FOMO, JOMO (parece mais utópico), ansiedade da informação. FOMO: você já sabe, mas fica com medo de que algo novo apareça e te desatualize. É diferente de ANSIEDADE DE INFORMAÇÃO, que é viver correndo atrás de um saber que ainda não tem... A base das revoluções sempre foi a descoberta de novas fontes de ENERGIA. O momento que estamos vivendo é único porque é a primeira Revolução INFORMACIONAL = produção de conhecimeto: é objetivo, meio e fim... Outro dia li uma frase não sei onde que dizia: a tecnologia não é boa nem ruim, tampouco neutra. Se será opressora ou libertadora, só saberemos mais adiante... O mais louco é que ao consumir a tecnologia, a gente ajuda a desenvolvê-la. Eu paguei para usar, a marca produz melhorias a partir do meu uso e ano que vem eu tenho que pagar mais caro pelo que eu mesma ajudei a melhorar.” (CAROLINE FREITAS, antropóloga em entrevista exclusiva para o estudo.)
Não corresponder à instantaneidade gera ansiedade: FOMO, irrelevância, exclusão, cancelamento, sensação de inexistência...
49% 51%
49%
FONTE Pesquisa do MindMiners com 550 brasileiros, em julho de 2019.
concordam em alguma medida que, quando recedem uma notificação do Whatsapp, Facebook ou Instagram, ficam ansiosos para abrir logo e ler a mensagem.
depois que postam algo, checam ao menos uma vez as curtidas da sua publicação.
concordam em alguma medida que, quando recedem uma notificação do Whatsapp, Facebook ou Instagram, ficam ansiosos para abrir logo e ler a mensagem.
48%
concordam em alguma medida que, concordam em alguma medida que, concordam em alguma medida que
depois que postam algo, checam ao menos uma vez as curtidas da sua publicação. 48%
se abandonarem as redes sociais, ficarão desatualizados sobre alguns acontecimentos do círculo de amigos.
41%
41%
concordam em alguma medida que, concordam em alguma medida que, concordam em alguma medida que
se abandonarem as redes sociais, ficarão desatualizados sobre alguns acontecimentos do círculo de amigos.
ANSIEDADE & SMARTPHONESestão usando as redes sociais por mais tempo do que consideram saudável e adequado.
58%
passam mais tempo do que deveriam no celular.
74%
74%
tem o hábito de ficar vendo o celular na cama antes de dormir.
tem o hábito de ficar vendo o celular na cama antes de dormir.
45% seriam mais produtivos se não estivessem com o celular o tempo todo.
51%
estão usando as redes sociais por mais tempo do que consideram saudável e adequado. 58% passam mais tempo do que deveriam no celular.
45% seriam mais produtivos se não estivessem com o celular o tempo todo.
51%
concordam em alguma medida que concordam em alguma medida que concordam em alguma medida que
concordam em alguma medida que concordam em alguma medida que concordam em alguma medida que
67%
67%
o celular é a primeira coisa que veem ao acordar.
o celular é a primeira coisa que veem ao acordar.
se sentem ansiosos quando ficam sem seu celular.
se sentem ansiosos quando ficam sem seu celular.
FONTE Pesquisa do MindMiners com 550 brasileiros, em julho de 2019.
a tradição busca: familiaridade estabilidade continuidade lugar de segurança
a tradição busca: familiaridade estabilidade continuidade lugar de segurança
a inovação busca: vir a ser progresso mudança lugar de metamorfose
a inovação busca: vir a ser progresso mudança lugar de metamorfose
Estruturalmente, as redes sociais são causa de ansiedade pelo simples fato de saturarem a vida cotidiana com as mais diversas narrativas, muitas delas simplesmente conteúdos espalhados por indivíduos antes silenciados pela própria irrelevância.
No livro “Favor fechar os olhos”, Byung-Chul Han faz uma dura crítica às redes sociais enquanto instrumento altamente ansiogênico. Para ele, a depressão vivida nos tempos atuais é consequência da nossa perda na capacidade de concluir – e o rolar incessante da tela interdita a pausa necessária para refletirmos sobre o que acabamos de ver, para poder concluir.
A síndrome de fadiga por informação (IFS), ou o cansaço de informação, revela nossa incapacidade de pensar analiticamente, é a incapacidade de concluir e inferir. O sujeito do desempenho é incapaz de chegar a uma conclusão porque ele se despedaça sob a coação de sempre produzir mais e mais desempenho.
Precisamente essa incapacidade de chegar a uma conclusão e de encerrar conduz ao burnout. Assim, a depressão e a ansiedade seriam o fracasso frente ao incontrolável do sujeito que busca iniciativa, produtividade, eficiência.
“Rede social não te dá um tempo de reação: você tá indignado com um post, aí vem um meme e você ri, fica chateado, fica ansioso. Estamos respondendo muito rápido a estímulos”. (NATALY SIMON, produtora de conteúdo em entrevista exclusiva para o estudo.)
Diante de uma desconfiança social e da ausência da solidariedade devido à competitividade do modelo neoliberal, as relações entre os indivíduos se tornam cada vez mais frágeis e necessitam de mais reafirmações banais –como likes e visualizações em seus posts.
“Existe um aspecto importante que é você ter algumas características, alguns referenciais que permanecem ao longo do tempo, ajudam você a formar uma identidade sobre si mesmo. E você ter uma identidade coesa sobre si mesmo é um dos mecanismos de equilíbrio interno: eu sei quem eu sou, eu sei onde eu trabalho, sei com quem eu me relaciono. Mas, à medida que esses referenciais ficam muito fluidos e múltiplos, as pessoas começam a perder essa capacidade de montar uma identidade. E ao invés de ter processos de identidade, passam a ter identificações, identificações temporárias. Não é por acaso que, ao mesmo tempo que está aumentando a prevalência de transtornos de ansiedade, também tem aumentado a prevalência de transtornos de personalidade. As pessoas não sabem quem elas são, não sabem o que elas querem da vida. Porque os referenciais são muito fluidos, muito soltos”. (Dr. Geilson Santana, pesquisador do Núcleo de Epidemiologia Psiquiátrica da USP, em https:// super.abril.com.br/podcasts/ dossie-1-aepidemia-da-ansiedade)
Coded Bias, Netflix| divulgaçãoE como vem sendo revelado, essa indústria é bastante PERVERSA à medida que todos os features criados por ela são para manter os usuários mais tempo conectados, adictos. E cujos algoritmos reproduzem os preconceitos sociais vigentes.
Sucesso do TIKTOK: você não precisa escolher o que vai ver, ele te coloca no looping dos seus assuntos de interesse –“consumo” passivo.
“As imagens inquietantes não falam ou contam, mas sim fazem barulho. Frente a essas imagens ‘ameaçadoras’ não se pode ‘fechar os olhos’. O olho fechado é um signo visual da CONCLUSÃO. Hoje, a percepção é incapaz da conclusão, pois ela zapeia pela rede digital sem fim. A rápida alternância entre imagens torna impossível ‘fechar os olhos’. Esse, pressupõe um demorar-se contemplativo. A memória virtual (informação) é sem história, é meramente aditiva, portanto, sem CONCLUSÃO, sem sentido. Por isso tende a proliferação e massificação. Não existem mais barragens que regulem, que articulem ou que deem ritmo ao fluxo do tempo, que poderiam deter ou conter o tempo ao darem uma parada”.
(BUYN-CHUL HAN, “Favor fechar os olhos”)
The social dilemma, Netflix| divulgação
A ansiedade pode ser entendida como uma ANOMALIA no sentimento de ANTECIPAÇÃO (+) e/ou PREOCUPAÇÃO (-).
ANTECIPAÇÃO: vislumbrar o futuro, o que gera uma maior disponibilidade para antever uma ampla gama de situações e traçar planos alternativos para que tudo saia bem, mesmo diante de imprevistos.
PREOCUPAÇÃO: cadeia de pensamentos, carregada de afeto negativo e relativamente incontrolável; representa uma tentativa de obter a solução mental de problemas sobre uma questão cujo resultado é incerto, mas contém a possibilidade de um ou mais resultados negativos.
Feliz: divertido, encantado, alegre, satisfeito, encantado, otimista, grato, contente, entusiasmado, amoroso, maravilhado.
Forte: certo, único, dinâmico, persistente, resistente, seguro, empoderado, ambicioso, poderoso, confiante, determinado.
Energizado: determinado, inspirado, criativo, renovado, vibrante, fortalecido, motivado, focado, revigorado.
Diminuir a ansiedade é reforçar a busca pelo ponto de equilíbrio.
Estar no centro (centrado) e reconectado/a com a estabilidade.
Triste: depressivo, desesperado, abatido, pesado, chateado, odioso, triste, choroso, frustrado.
Forte: incerto, chateado, duvidoso, indeciso, perplexo, envergonhado, hesitante, tímido, perdido, inseguro, pessimista, tenso.
Energizado: incomodado, agitado, farto, irritado, crítico, ressentido, indignado, furioso, lívido, amargo.
No livro “O PEQUENO PRÍNCIPE” de Antoine de Saint-Exupéry, a Raposa tem uma fala que expressa bem o sentimento de ANTECIPAÇÃO, ela diz:
“Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar o coração…”
Na animação, a cena que expressa bem o sentimento de PREOCUPAÇÃO é aquela em que o Pequeno Príncipe imagina a CATÁSTROFE que acontecerá se os Baobás crescerem em seu asteroide.
Quando fazemos antecipações ou ficamos com preocupações, esticamos um elástico simbólico do que potencialmente estaria lá na frente e o trazemos para o momento atual.
É fundamentado em fantasias.
Ansiedade está muito ligada ao que entendemos por chance: possibilidade de ocorrer ou não ocorrer. É acidental, está ligada com o acaso, com a casualidade. CHANCE É OCASIONAL.
E não adianta termos tanta ansiedade se nossas predições são errôneas. NÃO CONSEGUIMOS ANTECIPAR TUDO. Sobretudo não antecipamos o pior fato recente: a pandemia.
“Quando olho para trás e penso em todas aquelas preocupações, lembro-me da história do velho que, em seu leito de morte, disse que teve muitos problemas na vida, a maior parte dos quais nunca aconteceu”.
(WINSTON CHURCHILL)
Sobreviver à ansiedade é uma questão de virtudes:
Estoicos, epicuristas, gregos e romanos achavam que a chave da autonomia na vida era não desejar demais a desprendimento material / desapego.
Desejo mais próximo de necessidades reais.
Aceitar uma razoável dose de descontrole e aceitar que em algum momento você vai perder.
Ser educado pela contingência é aprender a viver sem ter certeza de tudo, sem controlar tudo.
Sobreviver graças a humildade, reverência e resiliência.
Como vimos, diminuir a ansiedade é reforçar a busca pelo ponto de equilíbrio e estar no centro (centrado) e reconectado/a com a estabilidade.
Temos a figura do/a equilibrista:
∙ Alguém que tem equilíbrio em suas ações, onde o cérebro está em plena conexão com os sentidos.
∙ Os extremos não são um objetivo. Nada falta e nada sobra.
Ao mesmo tempo notamos uma sensação de serenidade.
∙ Ao estar equilibrado/a, o/a equilibrista se descarrega dos fardos, sai da instabilidade, reconstrói-se e retorna ao prumo.
∙ Somente com a carga necessária.
∙ Rearranjando-se em sua relação com o meio (que no caso é a corda).
O/a equilibrista não pode ficar só antecipando, precisa estar com a mente focada no agora, descarregado/a carregado/a. É precário, tem muitas possibilidades de dar errado, por isso se torna tão difícil conseguir. Não é para todos.
“Émile Durkheim diz que ‘só o social explica o social’ e não podemos recorrer a outras ciências para explicar fenômenos sociais, portanto, SINTOMA tem a ver com BIOLOGIA. Ansiedade é individual, mas podemos analisá-la pelo olhar antropológico (grupos). Nesse sentido, ela se relaciona com o Zeitgeist, com uma dimensão estruturante da nossa sociedade: o sistema capitalista; portanto, ansiedade é uma característica das relações sociais, não só de aspectos individualizantes. A sociedade não é igual à soma dos indivíduos, mas não existe indivíduo que não seja produto/ produtor desse universo de representações coletivas. A gente só nomeia a coisa graças a um conjunto de elaborações que são coletivamente produzidas. Como a gente vivencia a ansiedade tem a ver com algo que é individualmente uma elaboração coletiva. Portanto, uma angústia coletiva que emerge em momentos mais agudos”. (CAROLINE FREITAS, antropóloga, em entrevista exclusiva para o estudo.)
E se não estamos vivendo uma “angústia coletiva” e “momentos mais agudos”, como disse a Caroline, o que estamos vivendo?
Não há mais dúvidas de que o ZEITGEIST é absolutamente ANSIOGÊNICO
Aprendemos que a ansiedade é a CONDIÇÃO DO SUJEITO na atualidade.
Então a pergunta é: estamos boiando ou afundando na ansiedade?
Ansiedade não é um sintoma da cultura, ela é a cultura – estamos INSCRITOS NELA porque estamos inscritos num CAMPO EXISTENCIAL NEOLIBERAL
A humanidade está buscando desesperadamente escapar dessa condição.
Mas ainda estamos buscamos saídas dentro da mesma lógica operante: ou seja, individualista.
Não é pelos mecanismos tradicionais já conhecidos que vamos sair dessa.
Temos que acessar outro tipo de estrutura de pensamento.
Uma pequena parte da população já começa a construir sistemas coletivos em oposição ao sistema neoliberal, meritocrata, individualista e individualizante.
“Tudo o que está desviando nossa atenção do que é essencial, que é encarar nossos medos: de não pertencer, não ser amado, da morte, de passar necessidade... Precisamos parar de individualizar tudo e entender que é sistêmico, que envolve conscientização política e social + articulação coletiva. O que é esse coletivo? Ainda não sabemos: estamos engatinhando nesse entendimento, mas estamos engatinhando, já é alguma coisa”. (NATALY SIMON, produtora de conteúdo em entrevista exclusiva para o estudo.)
Só quem está fora da cultura pode estar fora da ansiedade.
O colapso utópico nos leva a uma busca desesperada por alternativas.
Ouvir as cosmologias dos povos originários tem se mostrado uma importante saída: Ailton Krenak, Davi Kopenawa, Jelma Guapixana, Sonia Guajajara.
“A ideia de que o ser-humano não está descolado da natureza e essa separação da sociedade x natureza é distópica. Não existe meio ambiente, existe ambiente. Lógica capitalista/neoliberal começa a ser fortemente questionada. Não são como as utopias dos séculos XIX e XX, são diferentes e um processo de construção de novas utopias. As novas utopias podem ser uma saída, por isso têm interessado tanto. Esse pode ser um revés da ansiedade, desse Zeitgeist, do capitalismo: uma reação de construção de alternativas via recuperação/valorização de saberes que rompem com essa separação entre NATUREZA e SOCIEDADE/CULTURA. (dicotomia básica)”. (CAROLINE FREITAS, antropóloga em entrevista exclusiva para o estudo.)
O tempo que se deixa acelerar é o
“O tempo que se deixa acelerar é o tempo-do-EU (Ich-Zeit). Ele é o tempo que eu tomo para mim. Ele é que conduz à falta de tempo. Há, porém, também outro tempo a saber: o tempo do outro, um tempo que eu dou ao outro. O tempo do outro como dádiva não se deixa acelerar. Ele também se furta ao trabalho e ao desempenho, que exige o meu tempo. A política temporal do neoliberalismo desfaz o tempo do outro, pois ele não é eficiente. Em oposição ao tempo-do-eu, que isola e singulariza, o tempo do outro promove a COMUNIDADE. Apenas tempo do outro liberta o eu narcisista da depressão e da exaustão.” (BYUNG-CHUL HAN, “Favor fechar os olhos”, em busca de outro tempo.)
“ANSIEDADE. COMO ENFRENTAR O MAL DO SÉCULO.” (Augusto Cury)
“ANSIEDADE CORPORATIVA.” (Adriano Silva)
“ANSIEDADE, DEPRESSÃO E OUTROS PROBLEMAS EMOCIONAIS.” (José alberto de Camargo; Naiara Magalhaes)
“ANSIEDADE. O QUE É, OS PRINCIPAIS TRANSTORNOS E COMO TRATAR.” (Daniel & Jason Freeman)
“CÉREBRO ANSIOSO.”(Leandro Teles)
“O CONCEITO DE ANGÚSTIA.” (Soren Aabye Kierkegaard)
“DIALOGAR COM A ANSIEDADE.” (Ênio Brito Pinto)
“FAVOR FECHAR OS OLHOS. EM BUSCA DE OUTRO TEMPO.” (Byung-Chul Han)
“FILOSOFIA DO ZEN-BUDISMO.” (Byung-Chul Han)
“A LENTIDÃO.” (Milan Kundera)
“MEDO LÍQUIDO.” (Zygmunt Bauman)
“MENTES ANSIOSAS.” (Ana Beatriz Barbosa Silva)
“NO ENXAME.” (Byung-Chul Han)
“O SER TEMPO” (André Comte-Sponville)
“SOBRE A BREVIDADE DA VIDA.” (Sêneca)
“SOCIEDADE DO CANSAÇO.” (Byung-Chul Han)
“O TEMPO.” (Fernando Rey Puente)
“A VIDA NÃO É ÚTIL.” (Ailton Krenak)
“VOCÊ É ANSIOSO?” (Luiz Felipe Pondé)
“AILTON KRENAK” | Roda Viva – 2021 | Youtube
“O CONGRESSO FUTURISTA” | Ari Folman – 2014 | Prime Video
“O CORPO HUMANO” – ep: 1 | Stephen David Entertainment – 2021 | Netflix
“DÁ PRA TER ESPERANÇA NO FUTURO?” | GNT PAPO DE SEGUNDA - 2021 | Youtube
“DIVERTIDA MENTE” | Pete Docter – 2015 | Youtube
“EXPLICANDO A MENTE” - ep: Ansiedade | Vox production | Netflix
“O FUTURO DO TRABALHO” | Tempero Drag - 2020 | Youtube
“HEAL, O PODER DA MENTE” | Kelly Noonan Gores – 2017 | Youtube
“HOME OFFICE” | Tempero Drag – 2019 | Youtube
“IN TIME, O PREÇO DO AMANHÔ | Andrew Niccol –2011 | Youtube
“MERITOCRACIA” | Tempero Drag – 2021 | Youtube
“O PEQUENO PRÍNCIPE” | Mark Osborne - 2015 |Netflix
“QUANTO TEMPO O TEMPO TEM” | Adriana Dutra e Walter Carrasco – 2015 | Netflix
“QUEM FOI PAULO FREIRE” | Nexo Jornal - 2019 | Youtube
“UMA ANÁLISE DA SOCIEDADE DO CANSAÇO” | Canal Curta! – 2019 | Youtube
CONTEÚDO
Fernanda Goto Mariane Cara Priscila Tutida
REFERÊNCIAS
Felipe Costa Lucas Kappaz Maisa Romero Natalia Niro
REVISÃO Antonella Weyler Fabiola Tutida Maisa Romero Natalia Niro
PROJETO GRÁFICO Foresti Design
DIAGRAMAÇÃO REVISTA Dorotéia Design
VÍDEO ElToro
IMAGEM DA CAPA Christopher Ott