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“ Viajar: ensinou-me a relativizar e perceber que temos muito pouco direito de nos queixar”

informação – foi na Birmânia, agora Myanmar, a zona arqueológica de Bagan. Um dos lugares arqueológicos mais fascinantes do mundo, a nível das pirâmides egípcias ou dos templos de Angkor. Não se fala muito de Bagan, porque o próprio país está a ser rigidamente controlado por uma ditadura militar que não quer que se saiba muito, para que as pessoas não vão lá.

→ Qual a peripécia e/ou aventura em particular que lhe tenha marcado mais e que teve uma reação efusiva dos leitores, em geral?

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→ Sente que ainda há, atualmente, mitos e preconceitos sobre certos países e culturas que é preciso desmistificar? Que, na verdade, isso não se verifica... Temos sempre de pensar que nesses países vivem pessoas. Importa perceber se há uma guerra declarada, com recolher obrigatório, ou se é apenas um país com má reputação – como o caso referido de El Salvador, com uma geração perdida de delinquentes. Aí, nesse tipo de países perigosos, tem que se miscigenar, não ostentar riqueza exterior, tentar passar despercebido… da sua passagem física pelo planeta. O que me atrai menos são aquelas situações que percebemos que são fabricadas pela indústria do turismo para criar buzz, para as pessoas se interessarem e irem para lá e, depois, quando começamos a esvaziar o conteúdo afinal não tem nada. Por exemplo, há 20 anos aconteceu em Londres uma campanha através de notícias e entrevistas de se considerar a capital gastronómica do mundo, com os melhores restaurantes e os melhores chefes. Se há anedota entre os europeus é que os ingleses não sabem cozinhar. Se durante séculos foi um povo sem tradição gastronómica, como é que de repente já tem tudo isso e muito mais? Ou seja, era tudo montado, com dinheiro, com opiniões influentes, para atrair. Portanto, esse tipo de situações não me interessa como destino de viagem. Falei de gastronomia, como podia falar de outro tipo de turismo totalmente artificial, como o Dubai ou Las Vegas.

→ E aquilo que melhor tem aprendido e melhor o tem molda- do na sua forma de ser e de estar?

Em termos de carácter e de valores…

Sim, o viajar bastante fez-me e faz-me ser a pessoa que sou, sobretudo nesta questão de relativização da vida, dos problemas, daquilo que nos acontece. Quando há pouco disse sermos dos países mais ricos do mundo, é porque já vi muita pobreza, muita miséria, muita existência desperdiçada ao longo das viagens. Vejo notícias que são triviais. Tanto é assim que, passados dois/três dias, já ninguém se lembra qual foi a notícia de abertura do telejornal daquele dia. São problemas que não são problemas, que não interessam a ninguém, que são alimentados por uma máquina. Isto é real e acontece pelo mundo, não é teoria da conspiração. Viajar, portanto, comparando a minha vida com outras vidas, ensinou-me a relativizar e perceber que temos muito pouco direito de nos queixar e de desmontar certas certezas que nos são “vendidas”. Um exemplo, quando se diz que a comida portuguesa é a melhor do mundo. Isso só é verdade para os portugueses, não para os mexicanos ou indianos ou outros povos que têm uma excelente cozinha.

→ Qual foi o país que conheceu que mais o surpreendeu, pela positiva, que não estava mesmo à espera? Porquê?

A esta pergunta teria de responder um qualquer país que visitei nos anos 90, porque hoje em dia há tanta informação sobre os destinos que quase ninguém se consegue surpreender a viajar! Antigamente havia esta trepidação da descoberta, da novidade. Atualmente já não é bem assim. Mas há países que me continuam a surpreender e onde continuo a querer viajar. O México, sem dúvida, foi o primeiro país onde fui surpreendido. Ainda continuo a descobrir informações que desconhecia. A Itália é uma fonte cultural extraordinária. A nossa história como europeus, passa por conhecê-la e, antes, o próprio império romano. Mais recentemente, um sítio que me deslumbrou – talvez o último e por não haver tanta

Lembro-me sempre daquela história no meu primeiro livro, em que estava no Peru. Há lá uma pobreza extrema, muito por causa do frio, não aquela pobreza em certos países tropicais em que a pessoa vai buscar uma banana e mata a fome. Nesses países andinos a terra é muito escassa, e fá-los ser duros, por isso há muita criminalidade violenta, porque há muita desigualdade. Ora estava eu numa central de autocarros duma companhia que fazia o percurso para a cidade que eu queria ir. Quando entro, entra também uma quadrilha armada para assaltar o cofre. Apontaram-me uma arma ao peito “para não me armar em herói”, como me disse em espanhol o assaltante. Como se eu estivesse indeciso em fazê-lo! (risos) Ele mandou-me ir para o canto e eu ia recuando, mas não para o canto que ele dizia, mas aproximando-me da porta – que era grande e estava aberta. Ele percebeu que quem estava de fora o via a apontar-me uma arma e alertava a polícia, por isso deixou-me fugir para não se expor nem ser denunciado. Eu tinha comigo máquina digital, computador, passaporte português – sendo europeu, vale imenso! Soube no dia seguinte que eles tinham roubado 300 dólares, o valor que estava na caixa. Se eles tivessem pegado em mim e me levassem até aos arredores, ficando com os meus bens, ganhariam não 300 mas o equivalente a uns 3.000 ou 10.000 dólares, só com a venda do passaporte! (risos) Ainda bem que foram burros, se não a história tinha sido outra (risos). Mas fiquei aquela tarde toda a tremer, à espera que me acalmasse, por ter tido a arma apontada a mim. Foi um dos maiores sustos na minha vida! Outros apanhei em países muito perigosos como no Afeganistão, em El Salvador, na Argélia. Tenho tido muita sorte, com os cuidados que vou tendo, com “a manha da rua”, sabendo estar fora segundo o princípio: “em terra onde estiveres, faz o que vires fazer”. Viajo sempre com a população local, nunca pegaria num jipe sozinho e ir por aí fora…

→ Entrando no nosso país e na área deste jornal, o que pode relatar das viagens que já tenha feito pelo Douro acima, desde o Douro mais turístico-cultural ao mais rural e social?

Conheço relativamente bem Portugal, não estou muito preocupado com o que me falta conhecer. A questão é que passo muito tempo fora de Portugal e quando regresso a casa – à minha Figueira da Foz – não tenho muito estímulo para visitar outros sítios. Certo é que quando pesquisamos aqueles grandes livros, em inglês, sobre “os 100 lugares no mundo que deve visitar antes de morrer”, ou então “os 100 lugares mais bonitos do mundo”, o que vemos aparecer sobre Portugal? E quando aparece, se aparece, geralmente é o Vale do Douro, são os Açores e, eventualmente, uma cidade como pode ser Évora ou o centro histórico do Porto. Isto para dizer que, se olharmos com alguma frieza e objetividade –claro que, como Portugueses, sentimos carinho com o que é nosso e que consta lá fora –, não há muito para ver em Portugal! Temos de ver numa perspetiva global e não podemos ofender-nos com isso. Quanto ao Douro, tem tido o bom senso de se preservar, é um grande destino a nível mundial! Tenho amigos na zona de Alijó e, volta e meia, vou lá passar o fim de semana com eles.

→ Peço-lhe uma mensagem final para os nossos leitores… Um dos meus livros é sobre Santo António, que começou por ser um frade agostiniano. E eu estive na Argélia precisamente para ver a cidade natal de Santo Agostinho, que é Hipona, e este santo tem esta frase fantástica: “Quem nunca viajou, nunca saiu da primeira página dum livro”. Já que a vida é um livro. Esta frase tem 1.500 anos e continua a ser muito válida! Hoje temos todos os meios para viajar, ao contrário de Santo Agostinho no seu tempo. Por isso, aproveitemos, porque viajar enriquece a nossa vida. ○

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