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GONÇALO CADILHE

Texto: André Rubim Rangel

→ Acha que se não tivesse integrado os escuteiros, com os quais fez a sua primeira experiência de viagem, não teria vindo a optar por esta sua forma de vida viajante?

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(risos) É sempre muito difícil de dizer o que seria da nossa vida se não tivéssemos feito certa coisa ou se tivéssemos feito outras. É quase como que pagar uma dívida de gratidão para com os escuteiros, com o escutismo, esta ideia que acaricio muito de ter entrado para o CNE na década 70, numa altura em que havia mais liberdade. Os pais deixavam os filhos brincar mais tempo na rua: havia muito menos trânsito e a sociedade era mais tranquila. Coisas que fiz nos escuteiros na época não seria fácil de fazer agora. Isso foi um arranque bastante forte para impulsionar a curiosidade pelo mundo.

→ Quem o inspirou para este estilo de vida? Até porque licenciou-se em Gestão de Empresas e acabou por seguir algo bem distinto…

Felizmente tive a possibilidade de optar por outros talentos, que não aqueles académicos. Nunca fui um aluno brilhante, nem quis ser. Apenas queria ter a média mínima e fazer os exames na 1.ª fase, para não ter de ir repetir em setembro e poder ter um verão grande para poder viajar, em inter-rails e, depois, com algum dinheiro, em viagens intercontinentais. Quanto à Gestão de Empresas foi como que aquilo que vamos retirando da nossa vida até ficar o que sobra, que é o acabamos por fazer. Ou seja, na escola técnica que eu frequentava na Figueira da Foz havia quatro áreas que podia seguir: contabilidade, mecânica, eletrotecnia e construção civil. Acabei por optar por contabilidade que depois me levou para Economia na Faculdade. Fui estudando sem ter grande interesse no que estava a estudar. O que queria mesmo era viajar e, se possível, ganhar dinheiro com isso.

→ Como é ser viajante profissional, autor de viagens? O que é preciso para tal?

Em 30 anos, o mundo mudou tanto que não me sinto com autoridade para dar conselhos a um/a jovem que queira começar como viajante profissional ou o que quer que isso seja. Um motorista de camião TIR, tal como um piloto da TAP são viajantes profissionais. Quando eu comecei, no início dos anos 90, fui adquirindo o talento da escrita – não tirei nenhum curso ligado a Comunicação –, foi algo autodidata, que fui aprendendo com o tempo. Fui escrevendo reportagens de viagens e vendendo para revistas e jornais durante 10 anos, em toda a década de 90. Era aí que estava o dinheiro, que conseguia financiar as minhas viagens. Depois, à medida que o meu nome foi ficando mais conhecido e em que pude fazer viagens mais arrojadas, surgiu a possibilidade de escrevê-las em livro. Depois passei a fazer documentários de viagens para a RTP e, neste momento, faço viagens de grupo – com autores – para a Pinto Lopes Viagens e que está a exigir muito de mim. Hoje, que tenho 55 anos, o significado para mim da palavra «viagem» é bastante diferente de quando tinha 18 anos. Ao longo das décadas os meus interesses foram mudando.

→ Não se cansa de viajar? E esses interesses que refere residem em quê?

Canso-me de viajar, sim. Como qualquer um se cansa do emprego que tem, por muito bom que seja. E o meu é uma profissão muito boa. Eu alimento o assombro. Eu recordo-me regularmente do privilégio que tenho e, como tal, não tenho o direito de me cansar de viajar, porque é uma lindíssima forma de estar na vida, de viver, de escrever. Quando, porventura, me sinto cansado, recordo-me de quantos milhões de seres humanos gostariam de estar no meu lugar, para não me deixar cansar.

→ E para quem tem esse gosto de viajar pelo mundo mas não tem condições financeiras suficientes? Há forma de contornar isso?

Ou de duas uma: ou se viaja sem se ter uma retribuição, com uma reserva de dinheiro que acumulou –cada um/a tem de fazer opções na vida – para poder viajar um tempo e com um emprego que o facilite, como os “digitais-nómadas”. Ou, então, não se tem emprego fixo e que se vai conseguindo viajar. É óbvio que Portugal é um país, dentro da zona Euro e dos países mais ricos do mundo, embora nós Portugueses não acreditemos muito nisso.

Mas quando começamos a comparar-nos com os países do sudeste asiático, quase todos os países da América Latina e todos os de África, percebemos que há riqueza e há a possibilidade de juntar dinheiro aqui para o gastar em países onde o custo de vida é muito mais barato.

Essa é uma possibilidade de viajar, tendo sempre em conta que custa dinheiro. E que leva tempo para tal. Não esqueçamos que viajar com pressa custa sempre mais do que viajar devagar.

→ Entende que o surf, que pratica, também ajudou a impulsionar mais viagens no seu currículo?

De que modo se complementam ambas?

Sim, o surf tem um pouco essa característica, tal como o alpinismo. Não temos montanhas de qualidade em Portugal que justifiquem ficar cá. Quem gosta de alpinismo tem de viajar, as montanhas do mundo não vêm ter cá contigo! Com o surf é a mesma coisa: Portugal tem bastantes ondas de qualidade, mas não são nem as melhores do mundo nem tão grandes quanto isso! Comecei a fazer surf com 14 anos e ainda hoje pratico. Quando comecei, contactei com australianos e californianos que andavam a fazer essas temporadas por cá, como na Figueira que tinha ondas boas. Quis também viajar para ir conhecer as ondas e ir atrás delas, nomeadamente na África do Sul. Para mim, tem lá uma onda que é o paradigma, a melhor onda do mundo, na minha opinião. Ao ir a esses locais ia, também, alargando o meu portefólio de reportagens distintas – que não só sobre as ondas – que depois vendia para revistas especializadas dessas temáticas.

→ Para si, o que faz com que o seu primeiro livro, dos 19 já pu- blicados, seja a sua obra-prima?

O livro não é por mim que é assim considerado, mas por alguns críticos ou por alguém que escolheu esse livro. É o mesmo que o pai escolher o seu filho preferido: não existe. Cada livro que escrevi tem a sua razão. Diria que o primeiro, «O Planisfério pessoal», descreve uma volta ao mundo de quase dois anos sem apanhar aviões. Atravessei, por exemplo, os oceanos em cargueiros. Em terra, fui apanhando autocarros locais ou boleias. Ora esse livro tem um carácter especial, pois a partir dele fiquei conhecido como escritor de viagens em Portugal. Antes desse livro, a literatura de viagens estava parada. Havia alguns exemplos quase históricos, como a recolha de textos em livro do Miguel Sousa Tavares. Além desses outros livros que se seguiram, tenho projetos de novos livros na gaveta e que acho que serão importantes. Cada livro tem as suas credenciais para se poder considerar o meu melhor livro. Esse primeiro, para mim, é como que um diamante em bruto. Depois desse há uns três ou quatro que entendo es- tarem ao mesmo nível.

→ O que o atrai mais e atrai menos nas culturas e nas gentes que visita?

Algo que me atrai bastante é perceber como uma civilização continuada nos milénios consegue produzir um Povo com valor, com originalidade, com capacidade crítica de raciocínio, dentro daquilo que é uma continuidade histórica. Não é por acaso que os chineses são tão diferentes de nós: eles têm uns quatro ou cinco milénios de civilização própria. Ou os indianos. Atrai-me muito perceber essas civilizações, para lá do momento que estamos a atravessar e que a todos nos diz respeito. E a forma como o ser humano vai deixando a sua marca no território. Penso, por exemplo, nos socalcos de arroz em Banaue, nas Filipinas. É uma poesia natural e de inteligência humana. Ou ver o Taj Mahal, ou as estátuas da ilha da Páscoa, ou o Machu Picchu, são assombros que me interessam sempre e que me comovem! Toda essa tentativa do ser humano perecer para lá

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