Estação Casa

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ESTAÇÃO CASA Promoção e defesa de direitos de crianças que vivem com as mães na Penitenciária Feminina do Estado do Paraná



ESTAÇÃO CASA Promoção e defesa de direitos de crianças que vivem com as mães na Penitenciária Feminina do Estado do Paraná

Curitiba 2019


©2019, Rede Marista de Solidariedade 2019, PUCPRESS Este livro, na totalidade ou em parte, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização expressa por escrito da Editora. ESTAÇÃO CASA - Iniciativa da Rede Marista de Solidariedade Concepção e coordenação técnica: Diretoria Executiva de Ação Social (DEAS) Grupo Marista Direção Executiva: Alessandra Maia Rosas Direção Educacional: Viviane Aparecida da Silva Direção de Negócios: Luiz Augusto Kleinmayer Direção Regional: Marilusa Rossari Organização: Paulo Fioravante Giareta e Henrique Costa Brojato Coordenação do projeto: Henrique Costa Brojato Revisão de conteúdo: Viviane Aparecida da Silva Revisão final: Elisabete Franczak Branco www.solmarista.org.br

PUCPRESS Coordenação: Michele Marcos de Oliveira Edição: Susan Cristine Trevisani dos Reis Edição de arte: Rafael Matta Carnasciali Revisão: Juliana Almeida Colpani Ferezin Capa e projeto gráfico: Rafael Matta Carnasciali Diagramação: Rafael Matta Carnasciali Ilustração: Guilherme Capriglioni PUCPRESS / Editora Universitária Champagnat Rua Imaculada Conceição, 1155 Prédio da Administração - 6º andar Campus Curitiba - CEP 80215-901 - Curitiba / PR Tel. +55 (41) 3271-1701 pucpress@pucpr.br

Dados da Catalogação na Publicação Pontifícia Universidade Católica do Paraná Sistema Integrado de Bibliotecas – SIBI/PUCPR Biblioteca Central Edilene de Oliveira dos Santos CRB/9-1636 E79 2019

Estação Casa : promoção e defesa de direitos de crianças que vivem com as mães na Penitenciária Feminina do Estado do Paraná / Rede Marista de Solidariedade (organizador). – 1. ed. – Curitiba : PUCPRESS, 2019 104 p. : il. ; 18 cm Vários autores Inclui bibliografias ISBN 978-85-54945-57-2 978-85-54945-58-9 (e-book) 1. Direitos das crianças. 2. Direitos humanos. 3. Prisioneiras. 4. Filhos de prisioneiras. 5. Penitenciária Feminina do Estado do Paraná. I. Rede Marista de Solidariedade. 19-039

CDD 23. ed. – 323.352


PREFÁCIO

É com satisfação que apresentamos o registro da trajetória de atuação do Centro Social Marista Estação Casa, concebido e dinamizado pela Rede de Solidariedade do Grupo Marista. Vale destacar a relevância do repertório vivenciado nos últimos anos, que permitiu o desenvolvimento de um trabalho de excelência, reforçando nosso compromisso com a promoção e defesa dos direitos das crianças que vivem com as mães na Penitenciária Feminina de Piraquara, no estado do Paraná. A trajetória do Centro Social Marista Estação Casa sempre foi marcada por muitas conquistas e desafios. Contudo, essa história não se fez só, teve a importante participação de muitas pessoas, que desde o início não mediram esforços para a construção, sistematização e implementação de uma proposta socioeducativa baseada nas premissas da Rede Marista de Solidariedade. Apontamos também os esforços no fomento e no fortalecimento das articulações e integrações das políticas públicas voltadas às práticas de atuação do Centro Social quanto ao desenvolvimento integral dos bebês e das crianças atendidas. Desejamos a todos uma ótima leitura!

Marilusa Rossari Diretora Regional de Curitiba e Projetos Especiais Doutora em Educação Rede de Solidariedade – Grupo Marista



SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................... 7 Henrique Costa Brojato

DO PROGRAMA CIÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA AO PROJETO ESTAÇÃO CASA: itinerário da RMS na defesa de direitos............................... 13 Cristiane Regina Arns de Oliveira; Lilian Juliana Kuwano Buhrer

VISIBILIDADE LEGAL E PRÁTICA: doutrina de proteção integral.......................................................................... 43 Adriana Maria Matias; Yara Rodrigues de la Iglesia

PROPOSTA SOCIOEDUCATIVA DO CSM ESTAÇÃO CASA: movimentos, tensões e sentidos...................................................................... 59 Carla Cristina Tosatto; Yara Rodrigues de la Iglesia

CRIANÇAS E ADOLESCENTES COMO SUJEITOS DE DIREITOS: participação política da sociedade brasileira .................................................. 81 Ana Paula Ribeirete Baena

DEPOIMENTO .................................................................................................. 97 Rita de Cássia Rodrigues Costa Naumann

CONSIDERAÇÕES............................................................................................. 101 Viviane Aparecida da Silva

SOBRE OS AUTORES........................................................................................ 104



INTRODUÇÃO Henrique Costa Brojato

Construir o futuro significa construir o presente. Significa criar um desejo, que é o hoje, e é direcionado para o futuro. Antoine de Saint-Exupéry, Cidadela

Ao conhecer a unidade Centro Social Marista Estação Casa, tive uma das experiências mais marcantes de minha vida. Desde a passagem pelos portões da penitenciária localizada em Piraquara, PR, com seu esquema de segurança e os procedimentos burocráticos para quem precisa entrar naquele local – seja um funcionário, familiar, ou, como no meu caso, “marista” –, até a chegada ao portão de entrada da unidade, vivenciei sensações das mais diversas naturezas, ampliando cada vez mais o tom de que aquele momento, sem sombra de dúvidas, elucidaria um contexto repleto de desafios e histórias de vida. O mais surpreendente foi que pude encontrar, mesmo em meio a revistas e helicópteros, sob o lindo céu azul daquela tarde de quarta-feira, sorrisos, esperança, engajamento. Sorrisos de crianças brincando e interagindo com as mães, as funcionárias do sistema, as integrantes da equipe da unidade e muitos brinquedos. Essas educadoras significam uma esperança para aquelas mães que, mesmo sem saber quando conseguirão sair daquele lugar, regozijavam-se com o trabalho e atenção das “maristas”, sempre lhes oferendo olhares afetuosos, ouvindo-as e contando-lhes histórias de um tal de Marcelino Champagnat. Eu constatei ali o engajamento de uma equipe que queria ver algo de valor acontecer, desde a construção de um espaço educador e da proposta educativa à alimentação adequada para os bebês. Retomo essa experiência inicial, pois as primeiras imagens e impressões que tive daquela “estação” denominada “casa” suscitaram um trecho do livro Cidadela, de Antoine de Saint-Exupéry, que serviu de epígrafe a este texto. O que vi foi um presente, encharcado pela possibilidade de construção de um futuro: criar um ambiente no qual o desejo de que


aquelas crianças tivessem um futuro melhor, com seus direitos fundamentais garantidos, assistidos pelas famílias e pelas diversas instituições, que precisam fazer parte desse circuito em rede, traduziu-se como ponto de partida e de sentido, principalmente para quem contribuiu, ou ainda contribui, para a existência do CSM Estação Casa. Os sentidos produzidos por quem se compromete com tal atuação remontam à importância da dimensão estética inerente ao ser humano. Quando se entra na unidade, as cores vivas, a presença significativa e a qualidade dos espaços ali dispostos contribuem para materializar a beleza necessária a qualquer espaço educativo. Sendo essa experiência estética intrínseca à sua própria natureza, a atuação ética dentro de um contexto como aquele em que se localiza a unidade, marcado majoritariamente pela característica de instituições totais, que produzem essencialmente violências de todas as naturezas, demonstra que o direito à cultura, à educação, à saúde, à convivência familiar e comunitária dos bebês e crianças ali presentes precisa estar ancorado no direito fundamental de sonhar. Aliás, não fosse a loucura do sonhar, aquilo que remete à utopia tão presente na Doutrina Social da Igreja, talvez essa iniciativa nunca tivesse começado a questionar as raízes da produção da indiferença social em relação a esses bebês, que ainda hoje, mesmo depois de tantas incidências, permanecem invisíveis em muitos lugares de nosso país. O estigma destinado à pessoa em situação prisional acarreta diversos preconceitos, naturalizados de tal forma que muitas vezes é negligenciada a condição humana. Quando se considera a situação de mães em contexto prisional, esse fenômeno se repete; mais do que isso, muitas vezes se estende também à criança, mesmo antes de ela ter nascido. Como diria Herzfeld (2016), “a indiferença é a rejeição da humanidade comum. É a negação da identidade, da individualidade”, e desperta a importância de uma sensibilidade ao contexto imediato, para que as análises possam se abster do uso de perspectivas já determinadas pelas estruturas constituintes da instituição. Inspirados nessa sensibilidade que se fez presente, com vistas ao futuro das crianças lá atendidas, todas as pessoas que estiveram naquele lugar de transição, por motivos de visita, trabalho ou pesquisa, contribuíram significativamente para que a proposta atualmente praticada – e esperançada – pudesse agregar possibilidades a outras experiências e territórios. Foi nesse aspecto que a sistematização da proposta socioeducativa do Centro Social

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Marista Estação Casa nesta obra revelou-se um hercúleo desafio; contudo, constituiu-se um itinerário de leitura digno da complexidade e do valor atribuídos ao projeto. Esse itinerário é retomado a partir de seu contexto histórico e ontológico no texto intitulado “Do Programa Ciência e Transcendência ao projeto Estação Casa: itinerário da RMS na defesa de direitos”, escrito por Cristiane Regina Arns de Oliveira e Lilian Juliana Kuwano Buhrer. As autoras retomam importantes reflexões a partir dos ensinamentos do papa Francisco em relação à cultura do encontro, principalmente daqueles que se encontram nas periferias geográficas e existenciais no mundo. Desse apelo, surge a importância de haver, desde o Programa Ciência e Transcendência até a formulação da unidade CSM Estação Casa, uma metodologia que estabeleça uma ponte para o diálogo entre sistema prisional e mundo acadêmico. Nesse diálogo, o recorte principal está concentrado na criança, na mãe e na mulher inseridas no sistema, considerando a complexidade social, humana e existencial desse contexto. O texto enfatiza o objetivo principal de propiciar acesso e garantia aos direitos básicos de cidadania por intermédio da presença marista naquele contexto, que contou com toda a sistematização de ambos os processos e com o envolvimento de diversos atores durante sua construção. O segundo texto, intitulado “Visibilidade legal e prática: doutrina de proteção integral”, de autoria de Adriana Maria Matias e Yara Rodrigues de la Iglesia, resgata a concepção de criança que inspira a RMS, assim como traz à luz as legislações referentes à Doutrina da Proteção Integral, por meio do artigo 227 da Constituição Federal brasileira. Esse trajeto proporcionou o ambiente necessário para que a Estação Casa pudesse ser constituída enquanto uma “experiência de moradia temporária para bebês e crianças, à luz dos princípios da dignidade humana e no melhor interesse da criança”. Em outras palavras, o que as autoras expõem é a importância da Estação na constituição de um espaçotempo capaz de reduzir danos oriundos dos impactos que o sistema carcerário pode provocar nas aprendizagens e no desenvolvimento dos bebês e das crianças lá atendidos. O texto “Proposta socioeducativa do CSM Estação Casa: movimentos, tensões e sentidos” traduz em algumas páginas a atuação no cotidiano por meio da elucidação da metodologia desenvolvida na unidade. Carla Cristina Tosatto e Yara Rodrigues de la Iglesia expõem magistralmente a proposta socioeducativa da unidade, possível por meio de um processo teórico e metodológico, com vistas à promoção do desenvolvimento integral dos bebês e das crianças que “nascem e vivem temporariamente num contexto de privação

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de liberdade”. O esforço a muitas mãos empreendido pelas autoras, desde a metodologia participativa de construção da proposta e do texto aqui apresentado, além do complemento com a inserção de excertos das falas coletivas das mães atendidas, representa a importância e a viabilidade de uma proposta que tem como cerne o cuidar, assim como conjectura Leonardo Boff. Cuidar, representando uma atitude de responsabilização, preocupação e envolvimento afetivo, será considerado nesse texto qualidade educacional, “um modo de ser educador e educar”. O texto de Ana Paula Ribeirete Baena, intitulado “Crianças e adolescentes como sujeitos de direitos: participação política da sociedade brasileira”, retoma a importância da Constituição Federal e da democracia para a efetivação de uma perspectiva política que favoreça a promoção e a defesa de direitos. Para que essa perspectiva se efetive, os espaços de controle, mobilização e articulação social precisam ser fortalecidos, efetivando-se como estratégias legítimas de incidência política, provocando assim formas para a construção da relação entre governo e sociedade. Além dessa provocação, o texto aborda a atuação da RMS na defesa de direitos das crianças em contexto prisional, dando a visibilidade necessária à questão em nossos dias. Por fim, o depoimento de Rita de Cássia Rodrigues Costa Naumann, além das considerações feitas por Viviane Aparecida da Silva, vem consolidar em palavras o trajeto trilhado junto a todas as pessoas que fizeram do Centro Social Marista Estação Casa uma referência na busca pela efetivação da promoção e defesa de direitos em relação ao público atendido pela unidade. Segundo a doutora Rita, a unidade proporcionou “visibilidade, credibilidade, vida, cor, energia positiva, força e a possibilidade de construção de uma política pública específica para os casos de exceção, das crianças que, por uma circunstância, nasceram no espaço prisional”; dessa afirmação nos insurge um devir e, ao mesmo tempo a esperança e alegria de saber que grandes contribuições foram realizadas naquele contexto e nas vidas que por lá passaram, e ainda passarão. Assim como todas as outras publicações da Rede Marista de Solidariedade, esta tem como objetivo inspirar práticas por meio de experiências exitosas, além de provocar a problematização a partir dos desafios inerentes aos processos educativos. Além desse objetivo, esta publicação tem uma motivação especial em decorrência do caráter inovador com o qual a Estação Casa tem atuado: a construção de um futuro, sonhado por muitas pessoas, por meio da atuação no presente. Futuro em que a prática do agora se reverta em condições

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para a efetivação de direitos humanos dos bebês, das crianças e de suas mães, incidindo em qualidade de vida e no que mais quisermos alcançar. Convido você, tendo ou não ido à Estação Casa, a mergulhar nesta experiência ímpar, e se inspirar conosco.

Referência HERZFELD, Michael. A produção social da indiferença: explorando as raízes simbólicas da burocracia ocidental. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.

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DO PROGRAMA CIÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA AO PROJETO ESTAÇÃO CASA: itinerário da RMS na defesa de direitos Cristiane Regina Arns de Oliveira Lilian Juliana Kuwano Buhrer

O movimento recente da Igreja liderado pelo papa Francisco ressalta a cultura do encontro, em especial o encontro com aqueles que estão nas periferias geográficas e existenciais do mundo. Em 2015, em discurso (PAPA FRANCISCO, 2015) na assembleia da Organização das Nações Unidas (ONU), o papa chamou a atenção para os “direitos falsos”, que deixam “amplos setores sem proteção, vítimas do mau exercício do poder [...]”. Como caminho, indica a necessidade de afirmar vigorosamente os seus direitos. Dentro da perspectiva da Igreja de promover dinamismos positivos na sociedade que protejam e efetivem os direitos humanos, a Rede Marista de Solidariedade (RMS) do Grupo Marista desenvolve processos de escuta e debate com diversas áreas da instituição e organizações externas sobre os fenômenos da sociedade que atingem as crianças, os adolescentes e os jovens no contexto contemporâneo. Essa dinâmica responde ao posicionamento da RMS, voltado à promoção e à defesa dos direitos de crianças e jovens e à educação para a solidariedade. O posicionamento da RMS prioriza o atendimento de crianças e jovens em maior situação de vulnerabilidade social, prioritariamente os mais pobres. Para encontrar formas autênticas e criativas de promover e defender os direitos dessas crianças, nascem propostas e estratégias de atendimento direto e de incidência política. Nessa perspectiva foi concebido o projeto Estação Casa, fomentado inicialmente pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). A área de Identidade da universidade estruturou e implementou um


programa envolvendo a comunidade educativa em um amplo projeto na Penitenciária Feminina do Paraná, localizada em Piraquara, a cerca de 22 quilômetros de Curitiba. A iniciativa foi desenvolvida no âmbito do Programa Ciência e Transcendência.

Programa Ciência e Transcendência O Programa Ciência e Transcendência: Educação, Profissionalização e Inserção Social é resultado de estudo e pesquisa em campo a partir do convênio firmado entre a Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e a Secretaria de Estado da Justiça, Trabalho e Direitos Humanos (SEJU), em agosto de 2012. As decisões para firmar essa parceria entre a PUCPR e, especificamente, a Penitenciária Feminina do Paraná (PFP) foram decorrentes do desejo de construir um diálogo entre o mundo acadêmico e o mundo prisional, com foco no recorte “criança, mãe e mulher”, bem como da necessidade de estabelecer uma ponte entre a academia e essa realidade de alta complexidade social, humana e existencial. O programa priorizou trabalhar em consonância com uma das prerrogativas da missão da PUCPR que visa à formação de profissionais com alta excelência profissional, humana e ética. Quanto a esse contexto social específico, a Universidade procurou colocar-se como um instrumento de diálogo entre a academia e o meio prisional, com a finalidade maior de propiciar às mulheres e a seus filhos o acesso e a garantia aos direitos básicos de cidadania. As ações com a PFP foram iniciadas em outubro de 2012, após uma longa etapa de estudos e formações realizados na PUCPR com diversos profissionais da academia e do meio prisional. Antes do início específico em campo, foram proporcionadas 20 horas de formação aberta para a comunidade acadêmica, com o intuito de aproximar os dois contextos (acadêmico e prisional). Essa etapa de formação e implementação do Programa envolveu, além da comunidade acadêmica e prisional, também a civil, pois compreende-se que as questões prisionais são de responsabilidade de todos, com a convicção de que a colaboração pode construir soluções para problemas de alta complexidade. Após essa primeira etapa de formação, tiveram início as visitas em campo, com observação direta e participativa como instrumento de nossas investigações e como meio de conhecimento dessa realidade. Os dados coletados nas primeiras visitas alimentaram o direcionamento de projetos, estágios, cursos e pesquisas no meio prisional. A escuta de todos

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os atores do contexto, como as mulheres e as crianças, as agentes penitenciárias, a direção e os profissionais responsáveis, foi essencial para o planejamento das ações. Os dados coletados nesse campo de alta complexidade e extrema vulnerabilidade social, humana e psicológica foram sempre considerados para as tomadas de decisão. Os projetos e as pesquisas foram pensados com base na realidade, a partir do “olhar de dentro para fora”, em conjunto com os sujeitos desse contexto. Essa foi a nossa opção metodológica para estabelecer uma ponte entre os universos prisional e acadêmico. A partir dos dados dessa realidade específica, o Programa Ciência e Transcendência colocou em evidência a importância da educação, compreendida como a educação integral da mulher contemplada em seus aspectos biopsicossociais. O trabalho foi desenvolvido por meio de macrotemas, como: questões referentes à maternidade; aleitamento materno e primeiros cuidados com o bebê; processo de vínculo entre mãe e bebê na primeira infância; saúde da mulher para a prevenção de doenças tipicamente femininas; conscientização sobre as potencialidades da mulher, de seu ser e do existir; construção de perspectivas de projetos de vida para além-muros; interação com pessoas de seu convívio dentro do cárcere; a delicada relação com os familiares em dias de visita; convivência com a equipe de profissionais do sistema prisional, grupos religiosos e voluntários que trabalham em prol dessa realidade. Nesse foco específico do Programa dentro da PFP, conjuntamente com a educação integral da mulher, têm importância os aspectos jurídicos, como a possibilidade de garantia do cumprimento de seus direitos, além do acesso à escolaridade obrigatória, que já ocorre dentro do sistema prisional. São medidas que, aliadas a uma gama de formações técnicas e profissionalizantes, propiciam condições ímpares para a inserção e o desenvolvimento social das mulheres encarceradas.

Programa Ciência e Transcendência: Projeto Mamãe-Bebê Desenvolvido a partir do Programa Ciência e Transcendência, o Projeto Educação Mamãe-Bebê visou, de forma singular, criar condições para que as mães pudessem fortalecer e estreitar os laços maternos com seus bebês, que se encontravam com elas nessa situação transitória de privação de liberdade. A finalidade desse trabalho pedagógico era o fortalecimento do vínculo entre mãe e bebê.

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O projeto iniciou em abril de 2013 com um modelo de planejamento pedagógico diferenciado, ou seja, pensado como um trabalho educativo com as mães para que elas pudessem assumir e exercer a responsabilidade materna com os filhos na perspectiva do campo teórico da educação familiar (OLIVEIRA, 2013). A PUCPR desenvolveu esse projeto com a creche Cantinho Feliz, que em 2013 atendia uma população de quarenta mães e seus bebês, de 0 a 3 anos de idade, que moravam nesse local. Iniciou-se a elaboração do planejamento por etapas: contato com a Direção e a equipe de profissionais responsáveis pela creche da PFP; em seguida, observações no local e uma modalidade particular de observação participante (JACCOUD; MAYER, 2012), realizada pela pedagoga do Programa Ciência e Transcendência, que fez esse trabalho com as mães e seus bebês no espaço de convivência da creche e com as agentes penitenciárias que atuavam na creche Cantinho Feliz. O trabalho inicial da pedagoga foi a observação minuciosa das atividades desenvolvidas durante o dia entre mães e filhos, com atenção especial à rotina de atividades na creche da penitenciária. Também foram observados o comportamento das mães com os filhos, o relacionamento entre as mães, relação das mães com as agentes penitenciárias e o sistema em geral. A observação participante foi o ponto de partida para o encaminhamento metodológico e didático do planejamento pedagógico. Todas as atividades pedagógicas propostas no projeto contemplavam o binômio mamãe e bebê em virtude de muitos fatores, entre eles a importância de fortalecer o papel e a responsabilidade materna nos cuidados e na educação dos bebês e também em virtude da inexistência de uma equipe de educadores ou professores no espaço da creche. Os cuidados e as atividades diárias e educativas com os bebês eram realizados pelas mães num sistema de rodízio, ou seja, cada mãe cuidava de seu bebê e de mais um bebê em dias alternados, sob a supervisão de uma agente penitenciária. A partir dessas primeiras observações, foi desenhado um modelo de atuação que levasse em consideração a participação ativa e cooperativa das mães com seus bebês. O objetivo do planejamento pedagógico no campo específico da educação familiar permite que a mãe seja estimulada a olhar para seu bebê como um ser em desenvolvimento, mesmo que, por um período transitório, ele se encontre privado de liberdade.

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O planejamento contempla com atenção especial as regras internas desse contexto – prisão de segurança máxima –, procurando resgatar nessas mulheres o “ser mãe”, com perspectivas de uma vida melhor com seus bebês dentro e fora do cárcere. O planejamento do referido projeto visava de forma principal trabalhar com atividades de fortalecimento do vínculo entre mãe e bebê. As atividades apresentavam como objetivos: implementar uma rotina no dia a dia das mães e bebês dentro da creche, contemplando os horários de alimentação, higiene, soninho e atividades educativas; estimular os gestos educativos entre mães e bebês; resgatar os sonhos e as novas perspectivas de vida da mãe; fortalecer a estima de si mesma, a autoconfiança e perspectivas de traçar projetos para o futuro; fortalecer e estimular o afeto materno e uma aproximação maior entre mãe e bebê no processo de desenvolvimento infantil; promover e fomentar no espaço de convivência momentos de reflexão, diálogo e uma boa socialização entre mães, agentes penitenciários e o sistema em geral; estimular e fortalecer atividades de práticas educativas comuns, como o hábito da leitura, rotina de higiene, acalantos, enfim, gestos que permeiam o vínculo entre mamãe e bebê e que estão implícitos no dia a dia da relação adulto-bebê. O trabalho com as mães e bebês na creche Cantinho Feliz foi realizado entre abril de 2013 a julho de 2014, sob a orientação de uma pedagoga e de projetos desenvolvidos por professores e estudantes da PUCPR e instituições parceiras. Em 2014, conforme descrito nos capítulos anteriores, a Diretoria Executiva de Ação Social (DEAS) do Grupo Marista assume, num processo integrado de transição, a creche da PFP como uma unidade social Marista: Estação Casa. Entre agosto de 2014 e dezembro de 2016, a PUCPR deu continuidade ao trabalho com as mulheres em situação de privação de liberdade por meio de diferentes modalidades de trabalho (ver Quadro 1), desenvolvendo projetos e oferecendo oportunidades de estágios, além de pesquisas realizadas por alunos, professores, voluntários, colaboradores das escolas e cursos da PUCPR, em parceria com a Rede Marista de Solidariedade, outras instituições, como os Colégios Marista Santa Maria, Colégio Bom Jesus e Colégio e Faculdade Bagozzi, e algumas outras universidades, como UniCuritiba, Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Universidade de Friburgo (Suíça).

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Quadro 1 – Modalidades de trabalho desenvolvidas na Penitenciária Feminina do Paraná (10/2012 a 06/2014) MODALIDADES DE TRABALHO

Pesquisas

DESCRITIVO Curso de Odontologia – Pesquisa de Mestrado Avaliação do impacto do tratamento restaurador traumático na qualidade de vida de mulheres em uma penitenciária feminina. Cursos de Psicologia e Arquitetura – Pesquisa interdisciplinar Reestruturação cromática: uma possibilidade de resgate do espírito de família e melhoria da qualidade de vida de uma população carcerária feminina. Rede Marista de Solidariedade Pesquisa diagnóstica sobre as condições para implementação de um projeto para Educação Infantil na Penitenciária Feminina do Paraná. Estudo realizado pela empresa Move – Avaliação e Estratégia em Desenvolvimento Social. Curso de Teologia – Pesquisa PIBIC Mulheres encarceradas: interação da Universidade na Penitenciária Feminina do Paraná com o propósito de (re)inserção social. Pesquisa de Pós-Doutorado – Parceria e Financiamento do estágio de pós-doutorado, Universidade de Friburgo (Suíça) Recidiva: fatores de risco e de proteção em meio prisional – Penitenciária Feminina do Paraná. Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDCA/PR). Secretaria da Família e Desenvolvimento Social (SEDS). Financiamento Fundo Estadual para a Infância e Adolescência (FIA). Projeto não aprovado: A criança em contexto prisional.

Estágios

Curso de Música Projeto – Musicalização Mamãe e Bebê Coral para 40 mulheres Curso de flauta – 20 mulheres Curso de violão – 20 mulheres Curso de Psicologia Projeto – A relação da mãe com a criança: o processo de vínculo no desenvolvimento da criança e na garantia dos seus direitos Curso de Enfermagem Projeto – Aleitamento materno e a saúde do bebê (Continuação)

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Curso de Enfermagem Projetos – “Outubro Rosa” e “A Saúde da Mulher” Curso de Nutrição Projeto – Alimentação saudável da mãe e do bebê Curso profissionalizante Manipulador de Alimentos – 60 mulheres Curso de Teatro – 60 mulheres Curso de Arquitetura e Urbanismo Projeto – Praça de Valores, Disciplina: Paisagismo Curso de Pós-Graduação em Arquitetura e Design de Interiores Projeto – Tudo de Cor para a Penitenciária Feminina do Paraná. Parceria PUCPR, Tintas Coral e SEJU.

Projetos

Curso de Engenharia Civil Projeto de vistoria dos pátios externos e da galeria A para a revitalização da penitenciária em parceria com a PUCPR, Tintas Coral e SEJU. Análise do substrato para revestimento de acabamento (pintura). Pastoral da PUC – Equipe Ciência e Transcendência Projeto Educação e Apoio à Maternidade Projeto Virtudes Maristas Projeto Música e Valores Projeto Espiritualidade e Vida Projeto Valores e Cidadania (UniCuritiba e UFPR) Movimento dos Focolares – Projeto Espiritualidade na PFP Escola de Direito PUCPR – Em singular, Núcleo de Prática Jurídica da PUCPR Projeto Assessoria Jurídica na PFP Equipe do Programa Ciência e Transcendência em parceria com a equipe da Rede Marista de Solidariedade. Vivência e entrevista com a diretora do Complexo Penitenciário Estadual, em Mata Escura (Salvador, Bahia), em abril de 2013. Visita, vivência e círculo de discussão com a fundadora do Centro Nova Semente, em Mata Escura, Irmã Adele Pezone, em abril de 2013 e dezembro de 2013. Equipe do Programa Ciência e Transcendência visita o Centro Penitenciário de Lonay, na Suíça. Entrevista com o diretor e visita geral, em junho de 2014. (Continuação)

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1. Questões de alteridade: reflexões sobre vulnerabilidade simbólica e inexistência social, em agosto de 2013. Grupo de estudos 2. Breves reflexões sobre a prisão e a questão de gênero sob o prisma da criminologia. Aproximação da terminologia jurídico-penal relativa às penas e à questão prisional, internacional sobre em março de 2014. o programa da 3. Estudo sobre o campo da sociologia: vulnerabilidade simbólica e inexistência sopenitenciária cial, em maio de 2014. Escola O Vidraceiro – empresa de São Paulo (presidente Eduardo Saraiva) Curso profissionalizante de 20 horas sobre instalação de box e mola para 360 mulheres na PFP, de abril a novembro de 2013. Grupo de Pesquisa

Programa Ecohabitare Curso profissionalizante de formação na área de construção civil. Parceria Ecohabitare, SEJU e SENAI – curso de formação profissional para 40 mulheres na Cursos PFP, em maio e junho de 2013. profissionalizantes Parceria do Programa Ecohabitare com universidades alemãs: Fachhochschule Frankfurt, Universidade de Karlsruhe, Fachhochschule de Köln. Curso de Engenharia Civil e Arquitetura Formação profissionalizante de 30 mulheres para a execução do projeto Tudo de Cor na Penitenciária Feminina do Paraná. Curso de Nutrição Abertura da IV Jornada Acadêmica do Curso de Nutrição (novembro de 2012). Múltiplos olhares por meio de projetos no contexto prisional da Penitenciária Feminina do Paraná. Congresso Internacional Educação e Justiça Social (maio de 2014) Apresentação e publicação dos artigos: - Projeto de Educação mamãe-bebê na Penitenciária Feminina do Paraná: um relato de experiência. Participação em Educação Musical em ambiente carcerário. eventos científicos - Projeto Valores e Cidadania: um relato de experiência com as mães da creche da Penitenciária Feminina do Paraná. - O dilema em relação à permanência das crianças nascidas no contexto prisional de suas mães. - Universidade e meio prisional: um diálogo possível? Semana Acadêmica da Escola de Negócios (maio de 2014) Equipe Ciência e Transcendência Apresentação do Programa Ciência e Transcendência: educação, profissionalização e inserção social. (Continuação)

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(Conclusão)

Projeto Transdisciplinar Formação Humana Pastoral da PUCPR Equipe Ciência e Transcendência

Páscoa Mãe e Mulher Cuidar Dia das Crianças Dia do Agente Penitenciário – PUCPR Natal

Fonte: Elaborado pelas autoras, 2018.

Crianças no contexto penitenciário A experiência da PUCPR fez chegar até a Rede Marista de Solidariedade, pela gestão da DEAS, um contexto pouco conhecido pela sociedade: a situação de crianças, filhos e filhas de mulheres em situação prisional, que vivem com a mãe dentro das penitenciárias. A percepção de que aquelas eram crianças invisíveis, cujos direitos não estavam sendo assegurados, lançou a RMS em uma trajetória de estudos e diagnósticos para melhor compreender essa realidade a partir dos atores que vivenciavam aquele contexto e organizações que tinham experiências de trabalho com a população carcerária, em especial as crianças e suas mães. Em 2013, uma das primeiras ações da RMS foi mapear experiências no Brasil em relação às crianças que viviam em contexto penitenciário. Foi identificado o Centro Nova Semente, um projeto que atendia especificamente os filhos e as filhas das mulheres em situação prisional da Penitenciária Lemos de Brito, no bairro Mata Escura, em Salvador, Bahia. Uma equipe formada pela RMS e pela área de Pastoral e Identidade Institucional da PUCPR conheceu a experiência, com o objetivo de entender mais profundamente essa realidade, bem como as metodologias de trabalho, os desafios e as oportunidades de promoção e defesa de direitos. A história do Nova Semente havia começado em 2009, após uma rebelião. Autoridades locais avaliaram não ser aceitável a permanência das crianças na penitenciária durante tanto tempo (naquela época, havia crianças de até 6 anos, aproximadamente) e estabeleceram que os bebês ficariam com a mãe em tempo integral até os 6 meses. Diante desse cenário, uma missionária italiana da Ordem de Jesus Redentor, Irmã Adele Pezone, que já realizava trabalhos na Penitenciária por meio da Pastoral Carcerária, acolheu algumas crianças em uma pequena residência na Mata Escura.

DO PROGRAMA CIÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA AO PROJETO ESTAÇÃO CASA

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Irmã Adele iniciou sua jornada na busca por uma estrutura que atendesse às demandas das crianças que seriam encaminhadas para o acolhimento institucional, em um esforço de desconstruir e construir uma nova percepção delas mesmas e do mundo. Na época, o Centro abrigava quarenta crianças, a maioria entre 2 e 11 anos. Porém, havia catorze gestantes na Penitenciária, cujos bebês, caso não fossem acolhidos por familiares, iriam para a instituição de acolhimento. A equipe do Centro contava com uma pedagoga, uma assistente social, uma psicóloga, educadores e profissionais voluntários, como a pediatra e a fonoaudióloga. O trabalho exigia também acompanhamento dos encaminhamentos jurídicos específicos ao caso de cada criança – como a situação dos irmãos das crianças que viviam com familiares, processos de adoção, liberação das crianças para visitar os familiares, reinserção das crianças na família e na comunidade, e várias outras situações que surgiam cotidianamente. Não foi casual o fato de o Centro estar ao lado da Penitenciária. A proximidade permitia que as crianças visitassem a mãe duas vezes por semana. Do outro lado, as mães se sentiam mais confortáveis em saber que os filhos estavam próximos e que o contato não seria interrompido. Nas visitas, as crianças, inclusive os bebês, eram submetidas ao procedimento-padrão, e tinham de passar pela revista dos agentes penitenciários. Essa norma da penitenciária tornava a visita algo impactante para as crianças. A equipe relatou que fazia um planejamento semanal, mas reconhecia a dificuldade de segui-lo: “há muitas situações-limite, questões que as crianças trazem do cotidiano, e é preciso então parar tudo e discutir com elas aquilo que nos apontam como demanda”, contou uma das educadoras. A equipe do Centro Nova Esperança desafiava limites para promover os direitos das crianças, como acesso à educação, à saúde, à convivência com os familiares. Ao mesmo tempo, incumbia-se de defender os direitos delas, com o objetivo primeiro de que as crianças fossem “vistas” pelas Políticas Públicas e pela sociedade, e que efetivamente passassem a ser atendidas em seus direitos básicos. Para isso, muitas peregrinações eram feitas ao Legislativo, Judiciário, Executivo, conselhos gestores de políticas públicas, além da participação em redes e fóruns da sociedade civil. Os aprendizados adquiridos, a partir da experiência do Centro Nova Semente e de todas as iniciativas desenvolvidas sob a coordenação da Irmã Adele, subsidiaram a equipe

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da RMS nas análises preliminares da complexidade desse contexto, da urgência em tornar essas crianças visíveis e da necessidade de se trabalhar em rede com os governos, a sociedade civil e a universidade. Outro aprendizado fundamental foi a compreensão de que havia fatores multidimensionais e interdependentes no trabalho de promoção e defesa dos direitos dessas crianças. Isso porque os aspectos jurídicos, legislativos e próprios do Sistema de Segurança Pública e do Sistema Penitenciário impactam diretamente a dinâmica do atendimento às crianças. Além disso, é necessário trabalhar os direitos de forma interdependente em relação à educação, à saúde, à convivência familiar e comunitária, entre outros. A partir dessas primeiras vivências e concepções, a equipe da RMS iniciou uma segunda etapa, concentrada na realização de um diagnóstico local em relação à realidade das crianças que viviam na Penitenciária Estadual do Paraná, a partir de algumas premissas da RMS.

O diagnóstico na penitenciária feminina do Paraná “A situação das crianças no cárcere atinge de maneira firme a sensibilidade e o imaginário de cada um de nós. Vislumbrar crianças impedidas de ir e vir, privadas do convívio familiar e comunitário, retiradas das ruas das cidades e das redes de ensino, dispositivos centrais de transmissão da cultura contemporânea, resulta em uma cena sombria da experiência, indesejável e insustentável à luz do que a humanidade já foi capaz de formular na vanguarda dos direitos humanos”. Relatório da Move sobre estudos de condições e oportunidades de atuação da Rede Marista de Solidariedade na Penitenciária Feminina do Paraná.

A RMS iniciou o mapeamento de parceiros para o diagnóstico a ser realizado na Penitenciária Feminina do Paraná em 2013. A organização escolhida foi a Move, que atuava

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no campo da avaliação e estratégia em desenvolvimento social, em temas relacionados aos direitos humanos. Alinhada à sua missão, a Move cedeu parte do trabalho de consultoria no sistema pro bono, viabilizando não apenas o diagnóstico, mas também o desenho de estratégias de atuação. O projeto – cuja equipe executiva foi composta pelos profissionais Rogério Silva, Bruna Ribeiro e Fernanda Sato – foi apoiado por um comitê de governança formado por integrantes da Move, da RMS (DEAS e Setor de Solidariedade), da PUCPR e da Penitenciária Estadual do Paraná. Iniciou-se um trabalho conjunto com a Move para o desenvolvimento de um plano de trabalho que contribuísse para a compreensão da realidade das crianças que viviam na Penitenciária Feminina do Paraná a partir das seguintes premissas: consideração de todos os atores envolvidos; escuta desses atores, inclusive das crianças; atenção aos múltiplos fatores que impactavam o desenvolvimento e a garantia dos direitos das crianças, como a condição de suas mães e familiares, a legislação municipal, estadual e nacional, as normas e regras do sistema penitenciário, a rede de proteção à criança do Município e do Estado, as organizações que já atuavam na Penitenciária, a dinâmica do dia a dia das crianças com as mães, a estrutura disponível às crianças e mães e as demandas das crianças em relação aos seus direitos fundamentais. Além das premissas para a realização do estudo diagnóstico, a RMS também estabeleceu alguns critérios alinhados a seu posicionamento para a proposição de estratégias, como: a articulação entre o atendimento direto às crianças e a incidência política; o trabalho em rede, incluindo serviços públicos e de organizações da sociedade civil e o potencial de replicação metodológica em outras realidades territoriais e geográficas. No escopo de trabalho da Move e da equipe Marista estavam o levantamento de dados externos e internos à Penitenciária, arcabouço técnico e jurídico, pontos críticos e oportunidades de atuação, princípios orientadores para uma intervenção social e propostas de estratégias de intervenção. O trabalho inicial foi realizado entre maio e julho de 2013, a partir de pesquisa diagnóstica na Penitenciária Feminina do Paraná, voltado principalmente aos efeitos da “vida na penitenciária” nas crianças. O estudo foi realizado por uma equipe multidisciplinar, com especialistas da área da psicanálise, educação, desenvolvimento social e direitos humanos (ver Quadro 2).

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Quadro 2 – Metodologias e técnicas utilizadas no diagnóstico TÉCNICA

AUDIÊNCIAS

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Diretora, vice, chefe da segurança, agentes penitenciárias, psicóloga, estagiárias, coordenadora da creche, pedagogas da penitenciária, professora e coordenadora da EMEI de Piraquara, advogada, assistente social e motoristas.

Grupo hermenêutico

Elaboração de uma carta coletiva assinada por 33 mães.

Questionários padronizados

266 questionários: 232 respondidos por mulheres e 34 por funcionários.

Visitas

Visita à escola que uma das crianças frequenta, em Piraquara.

Observação participante

Uma semana de imersão na Creche Cantinho Feliz (espaço da própria Penitenciária que abrigava as crianças).

Reuniões

Diálogos com equipamentos da rede socioassistencial de Piraquara.

Pesquisa

Consulta a diversos referenciais nacionais e internacionais.

Análise de documentos

Leitura e análise do livro de ocorrências da creche.

Visitas

Visita à escola que uma das crianças frequenta, em Piraquara.

Observação participante

Uma semana de imersão na Creche Cantinho Feliz (espaço da própria Penitenciária que abrigava as crianças).

Fonte: Elaborado pelas autoras, 2018.

Dados relevantes e questões centrais O estudo desenvolvido pela Move nas principais organizações e atores-chave com relação direta ou indireta com o contexto penitenciário, especialmente com as mães presas e seus filhos, aprofundou elementos essenciais sobre a complexidade daquele contexto. Foram organizadas perguntas orientadoras, privilegiando os discursos, as histórias e as percepções dos diferentes atores em relação à criança, e principalmente considerando a criança como sujeito (seu discurso foi contemplado em todo o processo).

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As diferentes demandas e concepções a respeito das crianças foram articuladas por meio das questões abordadas com diferentes públicos da pesquisa, que incluiu as mulheres presas, os funcionários da penitenciária, as crianças, a rede de serviços de Piraquara e as proposições legais e políticas relevantes. Três questões centrais nortearam o trabalho:

i) Os fatores e critérios determinantes na decisão sobre a permanência e o tempo de permanência da criança na penitenciária;

ii) Os efeitos da permanência da criança no ambiente penitenciário; iii) Limites e possibilidades em relação à oferta de educação infantil às crianças, além de um levantamento sobre as redes de serviços de atenção à criança no entorno da penitenciária. As questões centrais trabalhadas no diagnóstico orientaram as reflexões iniciais sobre a situação das crianças e de suas mães no âmbito do sistema de segurança ao qual estavam submetidas. Nos primeiros registros, foi destacado que: •

• • • • •

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Na Penitenciária Feminina do Paraná (PFP) havia, naquele tempo, 400 mulheres presas. Destas, 29 tinham crianças de até 3 anos de vida morando na Penitenciária, no espaço denominado “Creche Cantinho Feliz”. Outras 7 mulheres estavam gestantes. Esses dados variavam de maneira permanente, em função do ingresso, transferência, progressão de regime da pena e libertação de mulheres. Presas gestantes e mães não podiam frequentar aulas de alfabetização ou do Ensino Médio e não acessavam os canteiros de trabalho. No Estado do Paraná, era permitido que as crianças permanecessem com a mãe na Penitenciária até os 6 anos de idade. A Penitenciária mantinha a Galeria A, que compreendia celas de 4m2 destinadas às mulheres presas grávidas e àquelas com bebês de até 6 meses. A decisão sobre a permanência do filho na PFP era da mãe. Muitas mulheres ainda aguardam a condenação, incluindo mães com crianças. Em muitos casos, esse período se estendia por dois anos ou mais. Havia mulheres que se encontravam com desvio de execução, uma vez que foram condenadas ao regime semiaberto e, por falta de vagas, estavam na penitenciária. Há dificuldade de acesso aos documentos das mulheres, o que acarreta dificuldades para o registro das crianças, e, portanto, para a atribuição de guarda a um parente.

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• • • • •

A PFP é a única no Paraná a receber mulheres gestantes ou com filhos, abrigando mulheres provenientes de diferentes regiões. Por questão de segurança, as mães são divididas em dois grupos e se revezam no cuidado das crianças na creche Cantinho Feliz. A PFP pratica a revista em crianças. Apenas uma das crianças tem acesso à Educação Infantil; este é considerado um caso pontual. As crianças que moram na creche passaram a desenvolver alguma atividade com orientação pedagógica a partir dos projetos da PUCPR.

O diagnóstico revelou ainda aspectos como o perfil e a condição das mulheres encarceradas na Penitenciária Feminina do Paraná. Das 400 mulheres presas na penitenciária, 58% responderam a um questionário aplicado de forma censitária. Os dados permitiram constatar que o perfil da população carcerária participante da amostra era bastante jovem – 41% das mulheres tinham menos de 29 anos; 29% tinham idade entre 30 e 39; 23%, entre 40 e 54; e apenas 2% tinham mais de 55 anos. Outro aspecto importante foi a identificação de que 90% das mulheres respondentes eram mães, embora apenas 25% disseram que mantinham contato com os filhos. No percurso do estudo, compreendeu-se que esse era um dos fatores que impactavam a decisão das mães em manter os filhos por mais tempo junto delas, já que havia a possibilidade de perderem contato com a criança. Quanto à questão sobre a permanência ou não dos filhos na penitenciária, e qual seria o limite de idade, foram registradas diferentes opiniões. Alguns grupos de mães apontaram a preocupação com o ambiente nocivo e as sequelas que isso causava às crianças, porém outros grupos defenderam a permanência até os 6 meses de idade, para garantir a amamentação. Esses dois grupos representaram pouco mais de 50% das mães escutadas, que apoiavam o menor tempo possível de permanência das crianças no presídio. Outro grupo de mães considerou que as crianças deveriam permanecer até o limite máximo de tempo legalmente permitido, com a justificativa de que a saída das crianças significava, em muitas situações, a perda de contato com as mães. Houve mães que argumentaram sobre a necessidade de esse período se estender até 1 ano; e outras, entre 3 e 5 anos. Uma parcela das mães se posicionou totalmente contrária à permanência das crianças no presídio, em qualquer idade. As mães reconheceram a importância da relação

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mãe-criança, mas consideraram que os prejuízos de viver no ambiente prisional eram maiores que os ganhos. A segunda abordagem revelou aspectos referentes ao impacto que o ambiente penitenciário causava nas crianças. De forma geral, foi observado que o repertório de palavras das crianças era escasso e elas tinham pouca experiência de mundo. A comunicação restrita e o baixo interesse por brincar e explorar o novo, característico na primeira infância, eram agravados pela repetição de gestos e palavras próprios do contexto de um ambiente de segurança máxima. Pela análise das intercorrências que aconteciam na Creche, registradas em livros de ocorrência, e o uso de outras técnicas e ferramentas de pesquisa, foi possível identificar constantes conflitos de papéis entre mães e agentes penitenciárias, que dividiam o cuidado com as crianças. A indefinição sobre a natureza do próprio espaço, que ora se confundia com uma creche, ora com um serviço de acolhimento institucional, mesmo não se configurando legalmente como nenhum desses serviços, contribuía para que as normas de segurança se sobrepusessem às condições favoráveis ao desenvolvimento infantil. Esse aspecto será abordado com mais profundidade na próxima seção. A terceira questão analisou as condições para uma oferta de educação infantil às crianças. Naquele momento, o atendimento às crianças era feito integralmente na creche Cantinho Feliz. Apesar da nomenclatura de creche, a instituição não tinha vinculação com a rede municipal de educação de Piraquara e não desenvolvia propostas pedagógicas orientadas pela legislação. Conforme dados coletados em julho de 2013, havia 30 crianças – 14 delas residiam na creche e 16, com idade entre 0 e 6 meses, permaneciam com as mães nas celas situadas na chamada Galeria A, exclusiva para mães e gestantes. A Creche tinha bom padrão estrutural, contava com algumas atividades realizadas por organizações parceiras, porém sem equipe especializada no atendimento às crianças e recursos específicos dirigidos às demandas próprias da fase peculiar de desenvolvimento das crianças. A instituição penitenciária previa o ingresso das crianças em uma escola de educação infantil do município a partir dos 3 anos, com o consentimento da mãe. Naquele período, apenas uma criança frequentava a escola da rede pública de educação. Além da dificuldade com a logística de deslocamento, sob a responsabilidade da penitenciária, e o acompanha-

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mento da criança nas atividades escolares, as mães mostravam preocupação com a possibilidade de os filhos serem discriminados por viverem na penitenciária.

Análise de temas prioritários Para viabilizar a análise dos dados e subsídios produzidos pelo diagnóstico na Penitenciária Feminina do Paraná, foram realizadas oficinas de ideias e oficinas de formulação de propostas com a participação da Move, da equipe da Rede Marista de Solidariedade e de convidados externos. A metodologia de trabalho foi pautada em uma construção coletiva, com o envolvimento de participantes de diferentes áreas do conhecimento e dos diversos atores que participariam das tomadas de decisão, pactos e implementação do projeto. Os debates realizados nos fóruns foram organizados em torno de temas compreendidos como prioritários, a partir dos apontamentos do diagnóstico. Foram eles: a invisibilidade das crianças que viviam na penitenciária, tanto na legislação quanto no imaginário da sociedade; a ausência de debates sobre essa realidade nas pautas dos conselhos da criança e do adolescente; violação de direitos; a identidade do espaço no qual viviam as crianças; intervenções descontinuadas com a população carcerária (pesquisas, projetos e propostas pontuais); demandas educativas e políticas; tempo de permanência das crianças na penitenciária; limites e possibilidades na prática de Educação Infantil; efeitos da permanência das crianças no ambiente penitenciário; e a rede de atenção socioeducativa. Nas reflexões, análises e tomadas de decisão, o objetivo da equipe era compreender cada criança como um sujeito de direitos, que, apesar da complexidade da vida pessoal e familiar dentro e fora do sistema penitenciário, deveria usufruir plenamente dos direitos fundamentais, e não ser apenas um apêndice nas discussões dos atores envolvidos e das políticas públicas ou simplesmente uma questão técnica a ser desbravada. Foram evidenciadas questões como a dificuldade de delimitar a identidade do espaço Cantinho Feliz, onde as crianças permaneciam por mais tempo. Na observação do espaço, foi verificado que ora se atendia às demandas da segurança, ora o local funcionava como uma creche ou uma instituição de acolhimento. Essa situação foi observada especialmente porque os procedimentos de segurança eram privilegiados no espaço, impactando diretamente as crianças.

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As crianças eram cuidadas pelas mães em regimes de escala, com acompanhamento e supervisão de agentes penitenciárias. A rotina das crianças que se encontravam na creche estava vinculada à dinâmica de trabalho da Penitenciária Feminina do Paraná, incluindo os horários de entrada e saída das mães no espaço, que permaneciam na creche durante o período diurno. Durante a noite, as crianças também ficavam sob os cuidados das agentes penitenciárias. Essa dinâmica moldava de forma direta as relações entre mãe e agente, entre as mães, crianças e famílias, e todos os demais processos, como o acesso à educação infantil, procedimentos de alimentação, de saúde, entre outros. Uma questão controversa do Cantinho Feliz era a compreensão dos adultos que interagiam com as crianças, considerando-as “institucionalizadas”, o que implicava a responsabilidade do Estado, representado pelas agentes penitenciárias. Porém, as crianças naquela condição não eram objeto de medidas protetivas, assim como as mães não haviam perdido seu pátrio poder, como é previsto em situações de acolhimento institucional. Nesse contexto, o foco do espaço passou a ser a garantia de alimentação e cuidados básicos de saúde, sem contemplar os aspectos relacionados ao desenvolvimento integral das crianças e seus direitos fundamentais. Outra questão fundamental identificada foi a falta de integração entre o atendimento às crianças prestado pelas equipes da penitenciária e a rede de serviços públicos locais. Registrou-se ainda dificuldade de comunicação e manutenção do vínculo de mães presas e crianças com os seus familiares, situação agravada pela distância geográfica, já que a maioria desses familiares residia em outros municípios do Paraná e ainda em outros estados. Em relação ao desenvolvimento, observou-se que as crianças apresentavam pouco repertório de mundo, comunicando-se basicamente por gestos e choro. Elas brincavam pouco entre si e recorriam às agentes penitenciárias, reconhecendo nelas a autoridade. Essas tensões entre o exercício da maternidade e questões de segurança, educação e saúde se mantinham constantes no cotidiano das equipes de funcionários, agentes penitenciárias, mães e crianças. As contradições do contexto começavam a apontar mais claramente a necessidade de revisão de critérios, papéis e atribuições no cuidado com as crianças, com vistas ao desenvolvimento de um serviço que atendesse às suas demandas específicas, considerando o ambiente de segurança máxima.

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Na perspectiva legal e jurídica, observou-se que não havia políticas públicas específicas para atender às crianças, o que gerava incerteza técnica e jurídica, bem como subfinanciamento para o atendimento e a garantia de seus direitos. Faltavam dispositivos para a promoção de convívio familiar e comunitário das crianças, bem como poucas alternativas para que as mulheres mantivessem contato com os filhos que estavam fora da penitenciária. O diagnóstico indicou que este era um dos fatores que influenciava a decisão das mães em manter as crianças junto delas. Outros dois fatores relevantes levantados foram a falta de critérios claros para definir a permanência das crianças com as mães e a ausência de um processo de transição para a saída das crianças da penitenciária. Esta é apenas uma síntese dos relatórios detalhados produzidos nas primeiras fases do projeto, que subsidiaram a terceira etapa, focada no desenvolvimento de propostas de atuação. Esta última etapa contou com uma série de oficinas e articulações em níveis municipal, estadual e nacional, tanto com órgãos públicos quanto com instituições da sociedade civil, na perspectiva de viabilizar o desenho de um projeto aderente às demandas das crianças, considerando as peculiaridades do contexto em que viviam, as legislações e as possibilidades de incidência nas políticas públicas, com o propósito de contribuir para a promoção e defesa dos direitos fundamentais dessas crianças em todo o país.

As propostas para a promoção e defesa de direitos das crianças em contexto penitenciário A proposta do projeto Estação Casa surgiu de um amplo processo de escutas e diálogos com diversos atores e de um trabalho de diagnóstico desdobrado em mais de uma dezena de oficinas, além das articulações e parcerias com a própria Penitenciária Feminina do Paraná, órgãos do governo do Paraná, do município de Piraquara, conselhos gestores de políticas públicas e outros organismos da rede de proteção à criança, além das instituições da sociedade civil. O trabalho descrito nas sessões anteriores resultou em uma primeira definição de princípios orientadores que deveriam permear todo o processo de estruturação do projeto. São eles:

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1. A prioridade absoluta da criança deve ser respeitada, promovida e garantida. 2. Os padrões de segurança máxima da penitenciária não devem atravessar e impedir o conjunto de direitos das crianças. 3. As crianças devem ter acesso garantido tanto às mães quanto a outros atores e experiências fundamentais a seu pleno desenvolvimento. 4. Os vínculos familiares e comunitários das crianças devem ser promovidos de maneira permanente em todas as etapas de desenvolvimento. 5. A visibilidade das crianças abrigadas na penitenciária deve ser sempre objeto de promoção, a fim de fomentar o interesse e o investimento público nelas. 6. Todas as formas de discriminação e isolamento das crianças com mães presas devem ser combatidas e evitadas. 7. O exercício da maternidade como direito não pode prejudicar o progresso das mães para a remissão de penas, bem como para sua reeducação por meio da formação educacional e do trabalho e renda. 8. As crianças devem ser atendidas em suas demandas, seu tempo e suas linguagens, bem como em suas diferentes necessidades de atenção, afeto, estímulo, orientação, etc. 9. A experiência de moradia das crianças (sua residência) deve ser separada das experiências de educação infantil (creche), respeitando a natureza de cada espaço. 10. A produção de serviços de apoio para as crianças deve estar pautada na articulação entre diferentes atores, em respeito ao que é preconizado pelo ECA, pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil e pelo Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária. 11. Fundo Estadual para a Infância e Adolescência (FIA) deve ser estimulado a desenvolver projetos voltados às crianças cujas mães estão privadas de liberdade. 12. A oferta de atendimento às crianças deve se dar segundo padrões técnicos e éticos rigorosos, pressupondo o trabalho de profissionais adequados e a supervisão permanente de sua prática. Além das premissas acordadas, a pesquisa desenvolvida com as mulheres presas com filhos na penitenciária, bem como o trabalho de escuta, também contribuiu para a delimitação de um conjunto de direitos a serem priorizados para elas e as crianças.

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Direitos das mulheres privadas de liberdade • • • • •

Direito de ser mãe de seus filhos e de educá-los. Direito de se reinserir socialmente. Direito de fortalecer vínculos afetivos e familiares. Direito de ter apoio psicológico e jurídico. Direito ao trabalho e à remissão da pena.

Direitos das crianças • • • • •

Direito de ser amamentada. Direito à saúde e assistência social. Direito ao convívio com a família. Direito à educação, à brincadeira, ao cuidado e de acesso à cultura. Direito à revista não vexatória e a não ser submetida a outras práticas de discriminação e constrangimento.

Até a estruturação da proposta final de trabalho na Penitenciária Feminina do Paraná, a equipe estabeleceu questões transversais que deveriam ser consideradas nas alternativas de intervenção: •

Processo de transição da saída das crianças: Foi identificado que esse processo, embora previsto na legislação, não estava estruturado e promovia experiências disruptivas para as mães e seus filhos. Nessa perspectiva, a garantia dos direitos das crianças se tornava extremamente frágil, pois mãe e criança deixavam a penitenciária muitas vezes sem local para residir e sem contato com nenhum familiar. Envolvimento de famílias e do município de origem da mulher: Principalmente pelo trabalho de escuta com essas mulheres, observou-se a necessidade do desenvolvimento de dispositivos criados no âmbito da penitenciária e das redes municipais de assistência que permitissem os encaminhamentos necessários às questões envolvendo as crianças, priorizando a possibilidade da permanência das mulheres nos territórios de origem, para assim favorecer a manutenção do contato com os familiares. Apoio a mulheres presas e a egressas do sistema penitenciário: Foi considerada a importância do atendimento psicológico e social das mulheres pautado em subsídios que contribuíssem para conhecer os fatores que poderiam agravar a vulnerabilidade a partir da saída das mulheres e de seus filhos da penitenciária. Essa questão também suscitou a necessidade de verificar mais profundamente os fatores que

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envolvem a reincidência de crimes, para promover a formulação de políticas que garantam suporte às famílias e protejam os direitos das crianças. Revista de crianças: Naquele período, a legislação permitia que as instituições de segurança realizassem a revista completa em adolescentes a partir dos 16 anos. Na Penitenciária Feminina do Paraná, esse procedimento era autorizado apenas para maiores de 18 anos. Visitas de crianças à penitenciária e acesso a meios de comunicação: Destacou-se a importância das mulheres encarceradas terem acesso a canais de comunicação, como telefone, cartas, visitas, de forma mais constante, especialmente para favorecer o contato com os demais filhos. Formação dos funcionários sobre a presença da criança: A pesquisa desenvolvida mostrou ser fundamental instaurar um debate com as equipes da penitenciária a respeito da presença das crianças, para que sejam compreendidas como sujeitos de direitos e favorecer intervenções assertivas.

Essas questões foram debatidas e aprofundadas nos fóruns de discussão e orientaram o desenho de macrocenários de atuação da Rede Marista de Solidariedade. O primeiro deles foi o incremento de investimentos para a qualificação da proposta de atendimento às crianças já praticada pela penitenciária. Essa concepção incluía: aprimoramento da proposta pedagógica da Creche Cantinho Feliz; contratação de equipe qualificada com formação específica para o trabalho com as crianças; criação de dispositivos que facilitassem o acesso da criança ao mundo externo à penitenciária. O segundo cenário sugeriu a ampliação dos espaços de convivência das crianças. Nesse escopo, previu-se a necessidade de rever a proposta do espaço atual, criando diferentes ambientes para as crianças, tanto internos quanto externos, porém articulados entre si. Para tanto, seria necessária a definição de um espaço educativo novo para as crianças durante o dia, a reorganização dos processos da Creche Cantinho Feliz para garantir elementos de uma residência provisória, a contratação de equipe qualificada com formação específica para o trabalho, de maneira que atendesse a ambas as demandas, a preparação de propostas pedagógicas e socioeducativas, a criação de dispositivos que propiciassem o acesso da criança a atividades externas e a revisão do sistema de rodízio das mães da penitenciária no cuidado com as crianças. A integração à comunidade foi a estratégia assinalada no terceiro cenário. Essa proposição implicaria viabilizar as mudanças e os encaminhamentos apontados no segundo cenário, somando outros aspectos que ampliassem as possibilidades de reintegração das crianças às suas

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famílias, bem como fortalecessem o processo de reeducação das mães presas, com prioridade para que fossem reintegradas à vida em sociedade. Para efetivar essa estratégia, mapeou-se a importância de fomentar pactos entre os governos estadual e municipal, que permitissem às crianças ter acesso aos serviços municipais de saúde, educação, cultura, entre outros, em condição especial, além de viabilizar outros pactos com a Defensoria Pública e o Ministério Público Estadual, no sentido de priorizar o acesso das mães a medidas alternativas para o cumprimento da pena, assegurando seu papel de mãe e os direitos fundamentais das crianças. Em suas recomendações finais, a Move assinalou a relevância de considerar em qualquer cenário as diretrizes postas nas legislações e planos nacionais, especialmente: o Estatuto da Criança e do Adolescente; o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC); o Plano Nacional de Educação (PNE), entre outros. Além disso, alinhadas às premissas da Rede Marista de Solidariedade, as propostas deveriam assegurar os vínculos entre mãe e filho, especialmente durante o período da amamentação. Essa premissa não poderia, no entanto, negar os demais direitos das crianças. Todo o processo de pesquisa e reflexão também trouxe clareza de que, independentemente de qual fosse o espaço das crianças, sua natureza era de “lugar de passagem”, o que demandava cuidados relacionados à entrada da criança, à permanência no ambiente penitenciário e à transição para a sua saída. Salientou-se ainda, a partir das premissas da Rede Marista de Solidariedade, que a prática com as crianças em contexto penitenciário deveria resultar em contribuições para a efetivação de políticas públicas que garantissem a oferta de serviços às crianças. Por causa da complexidade dessa realidade, em linhas gerais, a intenção era assegurar na proposta final a produção de diretrizes comuns que respeitassem a singularidade de cada caso, cada mulher e cada criança. Para tanto, compreendeu-se a necessidade de criação de novos dispositivos, com participação de todos os atores envolvidos, e que articulassem diferentes políticas.

Proposta de projeto de promoção e defesa dos direitos das crianças em contexto penitenciário Todo o processo descrito anteriormente originou uma proposta de atuação da Rede Marista de Solidariedade e parceiros com enfoque na promoção e defesa dos direitos das

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crianças que viviam na Penitenciária Feminina do Paraná, em Piraquara. Apesar de ser uma experiência focada em uma realidade específica, desde o início o projeto previa dar visibilidade à situação das crianças em contexto penitenciário em todo o Brasil, produzindo subsídios para discussões no âmbito das políticas públicas. O desenho inicial previu dois níveis articulados de intervenção:

Um novo serviço

Projeto de atendimento direto às crianças na penitenciária

Inspirado nas práticas de advocacy

Projeto de defesa de direitos de crianças em contexto penitenciário

O projeto de atendimento direto contemplou o desenvolvimento de um novo serviço, com características diferenciadas do existente naquele momento na Creche Cantinho Feliz da Penitenciária Feminina do Paraná. Como premissa, a proposta não deveria se configurar como um serviço de abrigamento (assistência social) ou de maternidade (saúde), ou ainda de educação formal, e sim uma casa provisória para as crianças, com dispositivos que produzissem uma experiência de moradia temporária. O objetivo traçado para o projeto foi promover uma oferta de serviços que viabilizassem um espaço de moradia para as crianças, bem como articular o acesso a direitos fundamentais, especialmente à educação infantil. Diferentes estratégias foram formuladas para garantir o alcance desse objetivo, tais como: implantação de serviços de moradia (casa) para as crianças, na qual a rotina das crianças fosse desatrelada da rotina da penitenciária; articulação para viabilização gradual de serviço de educação infantil no município de Piraquara; articulação de ações que favorecessem os laços familiares das crianças; produção de novos arranjos e serviços de apoio às crianças; e garantia de recursos financeiros para as mudanças necessárias. Essa proposta se baseou em justificativas que foram sendo alinhadas às premissas desde o início do projeto, como a compreensão de que as crianças não deveriam pagar pela

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pena das mães e deveriam ter assegurados a liberdade e o desenvolvimento. No decorrer do processo, também se estabeleceu que os serviços no campo educativo e de moradia implicam diferentes funções sociais, enquadres teóricos e demandas técnico-assistenciais para as equipes, portanto deveriam ser tratados de maneira separada. A educação infantil, apoiada em diretrizes curriculares nacionais, com o cuidar e o brincar como eixos estruturantes, configurou-se fundamental ao complementar o papel da família. O projeto deveria prever mecanismos de acesso à educação, bem como o direito ao convívio com outras pessoas, para que as crianças pudessem se desenvolver integralmente. A partir das concepções iniciais da proposta, desenvolveu-se o contorno técnico-operacional do projeto. Nessa fase, chegou-se ao entendimento de que a mudança começaria pela denominação do espaço, passando então de Creche Cantinho Feliz para Estação Casa, para reafirmar a identidade do local como um lugar de transição da criança até a sua família de origem. Nesse novo espaço, a ênfase dada foi o morar e o brincar das crianças, que ali cresciam e conviviam. Uma nova equipe técnica foi projetada, principalmente privilegiando a habilidade no manejo das relações, e uma estrutura que suportasse os dois turnos, dia e noite. Para tanto, previu-se uma coordenação, educadores sociais, assistente social, psicóloga, pedagoga e assistência jurídica. Essa equipe deveria ser viabilizada por meio de parcerias públicas e privadas, com a função de também ser a ponte para outros serviços de educação, assistência social e saúde. Já se previa a articulação com o município para que as crianças, ao completarem 12 meses, tivessem acesso à Educação Infantil ofertada pelo município.

Projeção inicial das funções da equipe técnica • • • • • • • •

Acompanhar o desenvolvimento das crianças. Promover o contato entre as crianças e as famílias de origem. Apoiar o exercício da maternidade. Articular o trânsito das crianças para a Educação Infantil no município. Oferecer apoio social e psicológico às mães e às crianças. Efetuar os encaminhamentos de saúde e de assistência social. Promover um período de transição até a saída da criança, que envolva tanto esta, como sua mãe e os familiares que vão acolhê-la. Contribuir com apoio jurídico às mães que estão na penitenciária.

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Em curto prazo, a proposta efetivava a Rede Marista de Solidariedade como um novo parceiro pela operacionalização do espaço destinado às crianças dentro da Penitenciária Feminina do Paraná. Essa mudança implicou o desenho de diferentes estratégias, tais como: • • • • • • • • • •

Uma nova equipe técnica; Alterações no cotidiano do espaço, para que fosse o mais separado possível do cotidiano do presídio; Realização de ajustes estéticos, estruturais e operacionais para proporcionar um ambiente de “casa”, com um novo projeto pedagógico; Parceria com a penitenciária para rever certos procedimentos, como o sistema de rodízio das mães no cuidado com as crianças; Implantação de um projeto de vínculo com a família de origem, voltada à transição das crianças; Preparo da integração com a rede municipal, especialmente para o ingresso das crianças a partir de 12 meses na rede municipal de educação infantil; Início das articulações para viabilizar a cooperação com o município; Desenvolvimento de mecanismos para a interação das crianças em espaços externos e para combater a discriminação; Contribuição com as unidades de educação infantil que receberiam as crianças; Início dos processos de monitoramento e avaliação do projeto.

Apresentação da proposta de defesa dos direitos das crianças em contexto penitenciário A premissa da Rede Marista de Solidariedade de assegurar contribuições às políticas públicas a partir de projetos de inovação social, somada a todo o trabalho de diagnóstico para o projeto Estação Casa, resultou em uma proposta de defesa de direitos das crianças que viviam na Penitenciária Feminina do Paraná, articulada ao projeto de promoção de direitos, descrito na seção anterior. A estratégia da RMS no eixo da defesa de direitos parte de uma experiência prática, cuja execução e subsídios produzidos são monitorados e avaliados permanentemente, na perspectiva de gerar insumos para replicações em outros contextos e contribuição para a formação de agendas no âmbito político e nas tomadas de decisão em relação às políticas públicas.

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Alinhado a esse posicionamento, o projeto teve como objetivo contribuir no debate para um novo ambiente técnico-político favorável à promoção e proteção dos direitos de crianças cujas mães estivessem privadas de liberdade. As estratégias estabelecidas para atender a esse intuito foram: • • • • •

contribuição nos debates públicos para a promoção de ajustes na legislação estadual que incidia sobre o tema; garantia da maior visibilidade possível para as crianças com as mães em privação de liberdade; articulação de atores capazes de garantir o direito das crianças; produção de novos arranjos e serviços qualificados; garantia de recursos financeiros para as mudanças necessárias.

Para o desenvolvimento das estratégias, o projeto contemplou um planejamento em fases, que garantisse, em um primeiro ciclo, ações concomitantes que permitissem pactuar alianças entre as instituições envolvidas, estruturar convênios necessários, definir a governança do projeto, viabilizar orçamentos, contratar a equipe projetada e realizar o desenho aprofundado do projeto pedagógico. Em um segundo estágio, o projeto previu articulações com setores públicos do município de Piraquara, a efetivação de ofertas de serviços em parceria com o município, para apenas em uma terceira fase ser definido o plano estratégico da defesa de direitos, com ações locais e nacionais, que iniciassem um processo de influência em políticas de promoção e proteção dos direitos das crianças em contexto penitenciário. Com os principais contornos do projeto elaborado, a Diretoria Executiva de Ação Social (DEAS) do Grupo Marista, responsável pelas unidades de atendimento direto a crianças, adolescentes e jovens, iniciou o processo de implementação do projeto. A opção pela metodologia de escuta, com a maior participação possível dos atores envolvidos no projeto, integrada aos resultados colhidos com o trabalho de diagnóstico e análise do contexto, já indicava que a implementação da proposta teria de ser constantemente revista, avaliada e adaptada aos momentos e cenários social, político e jurídico, e principalmente às demandas dos sujeitos do projeto e às possibilidades e limites de atores e organismos que estariam articulados entre si.

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Os desafios previstos foram de fato confirmados durante o processo de implementação do projeto, e muitos outros emergiram como importantes questões éticas, lacunas e limites. Diante da complexidade e dos obstáculos, mas também contando com muitos agentes públicos e privados, que com afinco buscaram soluções conjuntas, a Rede Marista de Solidariedade assumiu o compromisso, junto com todos os seus parceiros, de manter um processo de diálogo que pudesse construir pontes entre o poder público, as organizações da sociedade civil, os conselhos, fóruns e redes, e os sujeitos de direitos prioritários da proposta – as crianças que viviam na penitenciária –, na busca pela garantia dos direitos daquelas e de outras milhares de crianças vivendo na mesma situação.

Uma síntese da proposta do projeto Estação Casa •

• • • •

Uma opção metodológica por um dispositivo voltado a produzir uma experiência de moradia temporária para as crianças, com enfoque no desenvolvimento integral e nos direitos das crianças; A construção, a partir da experiência prática, de metodologias e subsídios que contribuam para a formulação de políticas públicas; Uma proposta estruturada no eixo da defesa de direitos, exigindo o diálogo com as políticas públicas de maneira transversal; O imperativo de realizar incidência política nos níveis municipais e estaduais para a efetivação de direitos; Preenchimento de lacunas e viabilização de adaptações necessárias ao processo de implementação, como ajustes na proposta de atendimento, na equipe de trabalho e nas estratégias de articulação e de sustentabilidade do projeto.

Referências JACCOUD, Mylène; MAYER, Robert. A observação direta e a pesquisa qualitativa. In: POUPART, Jean et al. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. p. 254-294. OLIVEIRA, Cristiane Regina Arns. L’école et la famille dans les milieux populaires au Brésil: discours parental et apprentissages scolaires. Paris: L’Harmattan, 2013.

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PAPA FRANCISCO. Viagem apostólica do Papa Francisco a Cuba, aos Estados Unidos da América e visita à sede da Organização das Nações Unidas (19-28 de setembro de 2015) - Visita às Nações Unidas - Discurso do Santo Padre. Libreria Editrice Vaticana, Vaticano, 25 de set. de 2015. Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/september/documents/papa-francesco_20150925_onu-visita.html>. Acesso em: 03 jul. 2019.



VISIBILIDADE LEGAL E PRÁTICA: doutrina de proteção integral Adriana Maria Matias Yara Rodrigues de la Iglesia

Uma sociedade pode ser julgada pela sua atitude em relação às suas crianças pequenas, não somente no que se diz sobre elas, mas também em como essa atitude é expressada no que lhes é oferecido ao longo de seu crescimento. (GOLDSCHMIED; JACKSON, 2016, p. 13).

Atualmente, as convenções internacionais, seguindo as novas descobertas científicas, designam à criança o estatuto de cidadão de plenos direitos. No entanto, a compreensão sobre a criança não é e nunca foi um conceito fixo. Na verdade, varia muito na história e em todas as culturas. Em um livro de 1960, traduzido no Brasil como História social da criança e da família, o autor Philippe Ariès menciona que, antes do século XVII, a infância não era um conceito reconhecido. Foi somente em algum momento entre o século XVII e XX que o termo criança começou a ter seu significado atual. De acordo com o autor, na sociedade medieval, com a idade de 7 anos as crianças agiam e eram tratadas como pequenas versões dos adultos à sua volta. Sendo assim, o conceito de criança como uma fase distinta é relativamente novo; surgiu por volta do século XVII, juntamente com a redução da mortalidade infantil, com as mudanças no sistema educacional e na família. Durante a maior parte da história humana, era comum que grande parte das crianças não sobrevivesse até a idade adulta – 7 em cada 10 crianças não viviam após os 3 anos de idade, e essa altíssima taxa de mortalidade era uma das razões pelas quais as crianças eram tratadas com certa indiferença emocional.


Quando as taxas de sobrevivência aumentaram, os pais começaram a tratar as crianças com mais carinho e envolvimento emocional (ARIÈS, 1978). No fim do século XIX, a vida de muitas crianças ainda era dominada pela pobreza e pela doença. No entanto, a ideia de criança como um sujeito que necessitava de cuidados específicos já havia sido aceita por parte da população, abrindo caminho para futuras políticas implantadas no decorrer do século XX. Durante esse século, cada vez mais as crianças eram vistas como uma responsabilidade do Estado. Essa mudança no paradigma do século XX foi refletida em alguns dos marcos legais no campo dos direitos. Foi por meio da Declaração dos Direitos da Criança, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1959, que a infância tornou-se uma questão fundamental em programas de cooperação internacional, e as crianças começaram a ser vistas como detentoras de direitos. Esse foi o tratado de direitos humanos mais amplamente ratificado no mundo e a base sobre a qual repousam as políticas sociais voltadas à infância. No Brasil, existe um arcabouço legal que designa o Estado, a Família e a Sociedade como responsáveis por assegurar a prioridade absoluta e a garantia de todos os direitos fundamentais à vida, à educação, à dignidade e à convivência familiar e comunitária da criança e do adolescente (redação dada pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010). Posteriormente, por meio do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), foram regulamentados e garantidos esses direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, para assegurar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, prezando pela liberdade e dignidade de toda criança e todo adolescente. É indiscutível o avanço do ponto de vista jurídico trazido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) quanto à condição peculiar da criança e do adolescente como sujeitos em desenvolvimento, com direitos e responsabilidades assegurados legalmente. No entanto, no Brasil, a atenção dessas políticas públicas para com as infâncias é bastante recente, mais recente ainda em relação às crianças cujas mães vivem em situação de privação de liberdade. São perceptíveis as debilidades da política encarceradora no Brasil. Embora se disponha de legislações voltadas à defesa e à promoção dos direitos das crianças e dos adolescentes, há violações quanto ao exercício de direitos de forma geral. Mais grave ainda no caso de gestantes e mulheres com filhos que cumprem pena em regime fechado. A rotina do cárcere é marcada por uma cultura repleta de intervenções punitivas, que evidenciam diversas violações de direitos, principalmente quando nos referimos à presença de bebês e crianças em contexto prisional.

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Portanto, dentro do sistema prisional vive-se um paradoxo: uma legislação avançada que representa um grande marco normativo, em que o bebê e a criança deixam de ser objeto de intervenção estatal para tornar-se um sujeito de direitos; e, por outro lado, a falta de um órgão que coordene de forma integrada as ações de assistência, saúde, proteção e educação dos filhos de mulheres que vivem em situação de cárcere. A criança, eleita como prioridade absoluta, arca com os prejuízos da omissão e negligência do poder público. A Lei n° 7.210, Lei de Execução Penal, alterada pela Lei nº 11.942, de 28 de maio de 2009, preconiza melhorias para as mulheres e seus filhos em situação de cárcere. Um dos avanços apregoados pela legislação é a garantia de espaços para berçários que acolham os filhos de mulheres em situação de privação de liberdade no período da amamentação até os 6 meses de idade. A mesma lei prevê espaços de creche, em que as crianças serão acompanhadas por profissionais qualificados, atendendo às normas educacionais e, ainda, com a possibilidade de extensão do tempo de permanência das crianças no cárcere até 7 anos de idade incompletos (BRASIL, 1984, 2009a). O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, visando preservar os direitos aqui destacados, editou a resolução nº 4, de 2009, dispondo no artigo 2º:

Art. 2º: Deve ser garantida a permanência de crianças no mínimo até um ano e seis meses para as(os) filhas(os) de mulheres encarceradas junto as suas mães, visto que a presença da mãe nesse período é considerada fundamental para o desenvolvimento da criança, principalmente no que tange à construção do sentimento de confiança, otimismo e coragem, aspectos que podem ficar comprometidos caso não haja uma relação que sustente essa primeira fase do desenvolvimento humano; esse período também se destina para a vinculação da mãe com sua(seu) filha(o) e para a elaboração psicológica da separação e futuro reencontro. De acordo com Santa Rita (2007, p. 38), “não se pode negar que a prisão atinge diretamente os filhos das mulheres que estão sob privação de liberdade”. Sendo assim, torna-se indispensável a fixação de uma política efetiva voltada a essa clientela”. As políticas públicas que visam garantir o princípio do melhor interesse da criança parecem sucumbir quando se trata de bebês e crianças que vivem em sistemas prisionais com as mães, que cumprem pena privativa de liberdade. Esse princípio parece transmutar-se

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em melhor interesse estatal, sem que isso represente necessariamente a adoção da melhor opção para a criança. Foi com a finalidade de contribuir para a formulação de políticas públicas que assegurassem o melhor interesse do bebê que nasce e vive temporariamente nos contextos prisionais que o Grupo Marista implantou o Centro Social Marista Estação Casa, por meio de um Termo de Cooperação firmado com o Estado do Paraná, por intermédio da Secretaria de Estado da Justiça, Trabalho e Direitos Humanos, visando à promoção e defesa dos direitos dos bebês e das crianças que se encontram na Penitenciária de Piraquara. O Centro Social Marista Estação Casa encontra-se em uma estrutura física no Complexo Penitenciário de Piraquara anexo à Penitenciária Feminina do Paraná (PFP), localizado na região metropolitana de Curitiba, sendo a única instituição de segurança do Estado a receber mulheres grávidas, e, em certas circunstâncias, encarcerar bebês recém-nascidos junto com as mães que devem cumprir sentença. De acordo com o Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN (PARANÁ, 2017), a PFP é um estabelecimento de segurança máxima, de regime fechado, que se destina à custódia de presas provisórias e condenadas. Apesar de a Lei de Execução Penal (LEP) prever que os estabelecimentos penitenciários se destinam a presos condenados a regime fechado, enquanto as cadeias públicas abrigariam apenas presos provisórios, na Penitenciária Feminina do Paraná essa determinação não é considerada. Essa unidade penitenciária foi inaugurada em 13 de maio de 1970, acolhendo em suas celas mulheres com seus bebês ou filhos pequenos. Em 1983, foi criado no espaço da capela um ambiente para acolher os bebês e as crianças. Em 1990, foi criada a Creche Cantinho Feliz, na tentativa de promover um lugar diferente do espaço prisional. Em outubro de 2014, foi constituído o Centro Social Marista Estação Casa, que tem como objetivo principal defender e promover os direitos dos bebês e das crianças nascidas no contexto prisional. A especificidade da proposta estrutura-se em dois grandes eixos: a defesa e a promoção dos direitos das crianças, exigindo um permanente diálogo com as políticas públicas. No eixo Defesa de Direitos, o CSM Estação Casa atua na incidência política (em espaços de controle social) e na consolidação da proposta e da metodologia, com a finalidade de contribuir para a formulação e o monitoramento de políticas públicas que assegurem o melhor interesse da criança que nasce e vive temporariamente nos contextos prisionais. O CSM Estação Casa, por meio de uma equipe interdisciplinar e com o apoio de especialistas da Rede Marista de Solidariedade (RMS), atua na proposição de pautas que assegurem a

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visibilidade e o fortalecimento da luta em prol das crianças, buscando o preenchimento dessas lacunas nas políticas públicas. No eixo Promoção de Direitos, o CSM Estação Casa atua com o foco na proteção integral do bebê e da criança nascida no contexto prisional. As premissas do projeto contemplam uma proposta socioeducativa que garanta o desenvolvimento integral do bebê e da criança; o fortalecimento de vínculo entre mãe e filho; e a promoção de ações que auxiliem na transição da criança que vive temporariamente no sistema prisional para a convivência com a família estendida ou, quando necessário, em unidade de acolhimento, sempre garantido o superior interesse da criança. Ainda no âmbito da promoção, o CSM Estação Casa tem por objetivo garantir o acesso das crianças aos seus direitos fundamentais (o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária), além de colocá-las a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, previstos na Constituição Federal (1988) e garantidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (1990).

Estação Casa: um ponto de chegada e de partida Retomo, pois, ao ponto de partida como um presente, o ponto de chegada. Entre um começo e outro não há nada. Exceto o nada da vida vivida. Vergílio Ferreira, Conta-corrente 1

A Lei n° 12.962, de 8 de abril de 2014, alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), introduzindo importantes avanços no que se refere aos direitos da família e à situação prisional. Essas alterações legislativas visam assegurar o direito à convivência familiar da criança ou do adolescente com o genitor ou genitora, mesmo que encarcerado. O texto também estabelece que a condenação criminal não implica automaticamente a destituição do poder familiar. De acordo com a lei, a guarda dos filhos só será retirada dos pais que vivem em situação de cárcere no caso de eles terem cometido crime doloso contra o próprio filho, e desde que este ato seja punível com reclusão.

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Negar o direito de exercer a maternidade a uma mulher que vive em situação de cárcere seria imputar a ela uma pena adicional. Culturalmente, os cuidados relacionados à nutrição e à educação dos filhos ainda continuam primordialmente sob responsabilidade da mulher. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (2017), quatro em cada cinco mulheres (80%) são chefes de família e as principais, quando não únicas, responsáveis pela guarda das crianças. Ao investigar a literatura nacional e internacional em relação à legislação de vários países, inclusive do Brasil, Stella (2008) destaca que a manutenção da criança junto da mãe encarcerada traz um resultado benéfico para o desenvolvimento do bebê, pois contribui para a construção do vínculo entre mãe e filho. Entende-se que é um direito fundamental a permanência do bebê com a mãe, e que o aleitamento materno é essencial para a nutrição da criança, além do vínculo estabelecido com a mãe ser de grande importância para o seu desenvolvimento psicossocial e afetivo. Ao mesmo tempo que é assegurado o direito da mãe e do filho conviverem, mesmo dentro do cárcere, a legislação afirma que a criança tem direito à liberdade, e isso pressupõe o direito de participar da vida comunitária, sem discriminação (art. 16, inc. V, do ECA, BRASIL, 1990). Esses filhos encarcerados, portanto, já nascem com seus direitos violados. Muitos consensos ainda precisam ser construídos quando se fala em infâncias concebidas dentro de um sistema carcerário. Será esta realidade um “mal necessário”? Como apontar uma saída entre a institucionalização da criança ou a separação da mãe? É fato que o ambiente prisional não foi pensado para gestantes, muito menos para bebês, tendo em vista as restrições impostas pelo sistema e uma rotina marcada por repressões, configurando-se um lugar violento e tenso. A escolha entre a institucionalização da criança ou a separação da mãe parece não encontrar consenso nem mesmo entre as mães encarceradas. Diante dessa contradição, as possíveis respostas quanto à permanência do bebê junto com a mãe precisam ser individualizadas, sendo necessário levar em conta todo o contexto psicossocial e familiar dessa mãe, bem como sua vontade pessoal. É indiscutível que ambas as possibilidades configuram violação dos direitos da criança. É irrefutável, no entanto, a necessidade urgente de elaborar e implantar políticas que tratem da permanência do bebê com a mãe, garantindo um desenvolvimento integral para as crianças que vivem ou venham a viver em sistemas carcerários. Diante desse paradoxo, o CSM Estação Casa entende esse espaço como uma experiência de moradia temporária para bebês e crianças, à luz dos princípios da dignidade humana e no melhor interesse da criança, princípios que vêm desdobrados em várias legislações, principalmente no Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990). O CSM Estação Casa traba-

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lha para garantir o que prevê a Resolução CNPCP nº 4 (BRASIL, 2009), na perspectiva de que esse período de permanência deva se pautar na provisoriedade, trabalhando-se na perspectiva de uma ruptura gradual entre mãe e filho(a). De acordo com Ventura, Simas e Larouzé (2015, p. 617), “diante da extrema vulnerabilidade das pessoas envolvidas e da natureza fundamental deste direito, exige uma interpretação equitativa e sistêmica das normas a serem aplicadas [...]”. Buscando minimizar os impactos que a separação possa causar no bebê e na criança, o processo de ruptura do vínculo mãe-bebê é encaminhado de forma dialógica, respeitosa e cuidadosa para mãe e criança, sempre levando em conta as particularidades de cada caso, garantindo o superior interesse da criança. Durante o processo de desligamento da criança, todos os referenciais familiares indicados pela mãe como possibilidade de cuidado e proteção serão consultados. Posteriormente, todas essas informações serão anexadas ao PIA (Plano Individual de Atendimento), que é construído por uma equipe interdisciplinar do CSM Estação Casa junto com a mãe privada de liberdade, e encaminhado à Vara da Infância e Juventude, responsável pelos trâmites legais da guarda provisória da criança. No caso de um familiar não poder assumir a guarda provisória, caberá ao Ministério Público ajuizar ação de acolhimento ou de afastamento do convívio familiar. A Resolução CNPCP n. 04/2009 estabelece, no art. 3º, que esse processo pode durar até seis meses, elaborando-se etapas conforme o quadro psicossocial da família, considerando as seguintes fases:

a) presença na unidade penal durante maior tempo do novo responsável pela guarda da criança; b) visita da criança ao novo lar; c) período de tempo semanal equivalente de permanência no novo lar junto à mãe na prisão; d) visitas da criança à mãe por período prolongado; gradualmente reduzidas até que a criança passe maior tempo no novo lar e faça visitas à mãe em horários convencionais. Sabe-se que a legislação é um instrumento importante na garantia de direitos, porém nem sempre se mostra suficiente para assegurar o superior interesse da criança. As crianças nascidas nos cárceres, em muitas circunstâncias, são submetidas a uma série de regras institucionais que não respeitam sua condição peculiar de ser em desenvolvimento.

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O tempo, o espaço e as grades Para a criança, o espaço é o que sente, o que vê, o que faz nele. Portanto, o espaço é sombra e escuridão; é grande, enorme ou, pelo contrário, pequeno; é poder correr ou ter de ficar quieto, é esse lugar onde pode ir olhar, ler, pensar. O espaço é em cima, embaixo, é tocar ou não chegar a tocar; é barulho forte, forte demais ou, pelo contrário, silêncio, são tantas cores, todas juntas ao mesmo tempo ou uma única cor grande ou nenhuma cor. O espaço, então, começa quando abrimos os olhos pela manhã em cada despertar do sono; desde quando, com luz, retornamos ao espaço. (FORNEIRO, apud ZABALZA, 1988, p. 213).

De que espaço estamos falando? Mesmo que a legislação assegure espaços de creche que serão acompanhados por profissionais qualificados, atendendo às normas educacionais e, ainda, à possibilidade de extensão do tempo de permanência das crianças no cárcere até os 7 anos de idade incompletos, conforme Lei n° 7.210/84, com as alterações da Lei n° 11.942/09 (BRASIL, 1984, 2009a), não existe uma política que defina claramente como deve ser esse espaço que abriga bebês e crianças dentro do cárcere. Stella (2008), durante o desenvolvimento de um estudo para entender o funcionamento de “creches” em presídios, relata que o quadro de funcionários que atuam no cuidado e na educação dos bebês e das crianças encarceradas geralmente envolve as mulheres em situação de privação de liberdade e as agentes penitenciárias, o que pode indicar falta de propostas psicopedagógicas apropriadas ao desenvolvimento dos bebês e das crianças. Para Barbosa (2010, p. 18), “a profissão de professora na creche não é, como muitos acreditam, apenas a continuidade dos fazeres ‘maternos’, mas uma construção de profissionalização que exige bem mais que competência teórica, metodológica e relacional”. Na atualidade, juridicamente, os conceitos de creche e pré-escola estão voltados a um projeto educativo. A Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica, configura-se um direito constitucional a todas as crianças de 0 a 5 anos de idade. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei n° 9.394/96, a Educação Infantil foi incorporada à Educação Básica, passando a ser regulamen-

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tada pelos órgãos educacionais. A educação de crianças pequenas passa a ser um direito da criança e um dever do Estado. A LDBEN de 1996 define que a função das instituições de Educação Infantil é cuidar das crianças e educá-las de forma indissociável, pois esse trabalho com crianças pequenas exige delicadeza e sensibilidade, e sua essência precisa ter como alicerce um conhecimento profundo sobre as especificidades de uma criança pequena. É necessário que esse profissional tenha postura de pesquisador do universo infantil. Desde outubro de 2014, o Centro Social Marista Estação Casa, por meio do Termo de Cooperação firmado com o Estado do Paraná, propõe um espaçotempo que potencializa o desenvolvimento integral do bebê e da criança, bem como o fortalecimento de vínculo entre a mãe e o bebê. Para desenvolver essa proposta socioeducativa, foi formada uma equipe interdisciplinar composta por direção, coordenação pedagógica, assistente social, enfermeira, psicólogo, educadores sociais e analista administrativo. Um dos aspectos fundamentais da proposta socioeducativa é criar um espaçotempo que se diferencie do sistema prisional, buscando minimizar os impactos que o sistema carcerário possa provocar no desenvolvimento e nas aprendizagens dos bebês e das crianças pequenas que vivem temporariamente em situação de cárcere com as mães. As primeiras aprendizagens dos bebês constituem o repertório inicial sobre o qual será continuamente constituída a identidade pessoal e as novas aprendizagens. Para os bebês e as crianças se desenvolverem – dentro das limitações impostas pelo sistema prisional –, com vistas a evitar ou pelo menos atenuar os efeitos nocivos de seu aprisionamento, são necessários adultos afetivos, disponíveis e corresponsáveis pela organização das ações educativas. Os conhecimentos científicos que há atualmente sobre os bebês indicam que, desde muito pequenos, mesmo antes do nascimento, eles já estão em relação com o mundo. Após o nascimento, os bebês necessitam de adultos que organizem o espaço, o tempo e os materiais que vão ao encontro da sua situação peculiar de desenvolvimento, que estejam abertos às suas experiências e necessidades de movimentação e às suas descobertas e aprendizagens. Estudos nos diferentes campos disciplinares têm mostrado a importância de as ações pedagógicas estarem centradas na capacidade dos bebês e das crianças de agir autonomamente, de fazer escolhas e de se movimentar livremente pelo espaçotempo da instituição. O espaçotempo deve ser acolhedor, seguro, educativo e promover e respeitar as culturas infantis, garantindo acima de tudo o vínculo entre mãe e bebê. Conforme descreve Camargo (2008, p. 45), “os espaços de nossa infância nos marcam profundamente.

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Sejam eles berço, casa, praça, creche, escola, cidade, sejam eles bonitos ou feios, confortáveis ou não, o fato é que influenciam definitivamente nossa maneira de ver o mundo e de nos relacionar com ele”. Outro aspecto essencial da proposta socioeducativa ofertada pelo CSM Estação Casa é a criação de uma rede compartilhada de educação e cuidado, na qual todos os adultos que atuam nesse espaço são corresponsáveis pelos processos educativos instaurados. Dentro do organograma do CSM Estação Casa, os educadores sociais atuam mais diretamente na promoção de cuidados que respeitem as necessidades integrais do bebê e favoreçam laços qualitativos com a mãe e outros adultos de referência. No entanto, entende-se que a tarefa de educar integralmente, dentro de um sistema carcerário, que abrigue de forma provisória bebês e crianças, deve fazer parte de um projeto coletivo, em que diferentes profissionais são articulados aos processos educativos. As mulheres encarceradas precisam de uma rede de apoio para poder cuidar e educar seus filhos em um contexto tão limitante. Portanto, toda a equipe que atua no CSM Estação Casa está comprometida com a criação de espaçotempos educativos, assegurando uma atuação na qual diferentes olhares e práticas se articulem e se integrem. Entende-se que ser mãe não pressupõe a existência de capacidades naturais para enfrentar essas realidades, mas exige uma aprendizagem formal e informal, e esse apoio está assegurado legalmente à mulher em situação de privação de liberdade. “Incumbe ao poder público proporcionar assistência psicológica à gestante e à mãe, no período pré e pós-natal, inclusive como forma de prevenir ou minorar as consequências do estado puerperal”, conforme art. 8º, § 4º da Lei n° 8.069/90, com as alterações da Lei n° 12.010/09 (BRASIL, 1990, 2009c). O puerpério, entendido como o período após o parto no qual a mulher passa por alterações físicas e psicológicas, pode se estender até três meses após o nascimento do bebê. Trata-se de um período no qual as novas mães se deparam com bastante dificuldades e dúvidas quanto à sua condição, pois enfrentam um grande conjunto de mudanças em vários níveis. O espaço prisional, em muitos casos, agrava o estresse e as dificuldades das mães, dificultando o atendimento, os cuidados e a atenção de que um bebê necessita. A maternidade é também uma prática social, mas, infelizmente, dentro do cárcere muitas vezes não há modelos sociais que possibilitem às mães desenvolverem as competências necessárias para estabelecer dinâmicas saudáveis e construtivas com os filhos. Para exercer a função materna, é preciso conectar-se com as necessidades dos bebês, ser

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capaz de observá-las, escutá-las, respeitá-las e satisfazê-las. Considerando que bebês e crianças pequenas têm necessidade de suas mães, tanto no aspecto físico quanto psíquico, a mãe deve ser apoiada para a construção de conhecimentos básicos sobre a maternidade. É importante proporcionar todas as orientações para que a relação e o cuidado consigo e com o bebê se constitua de forma completa e saudável para ambos.

Considerações O desafio posto a cada um de nós, quando nos foi confiado a nobre tarefa de fazer parte de tantas histórias, é conferir caráter singular a cada bebê e a cada criança que passa a primeira infância no cárcere. Tentar compreender os porquês de suas histórias nos levam a mais perguntas do que respostas, e, em meio a tantas incertezas, busca-se algumas respostas nas palavras de um dos maiores estudiosos da resiliência, Boris Cyrulnik (2009, p. 17):

Frente à perda, à adversidade, ao sofrimento que encontramos todos, um dia ou outro, no decorrer de nossas vidas, muitas estratégias são possíveis: seja abandonar-se ao sofrimento e fazer carreira de vítima, seja fazer alguma coisa com o sofrimento para transcendê-lo. A resiliência não é de forma alguma uma história de sucesso, é uma história da luta de uma criança empurrada para a morte que inventa uma estratégia de retorno à vida; não é o fracasso que é pressuposto desde o começo do filme, é o devir imprevisível, as soluções surpreendentes e frequentemente romanescas. A fabricação de uma narrativa sobre si próprio preenche a vida de nossas origens que perturbava nossa identidade. Constrói-se uma imagem, dá-se coerência aos acontecimentos, repara-se uma ferida injusta. Um relato não é um retorno ao passado, é uma reconciliação. Quando parecem falhar todas as possibilidades do bem-estar social que a lei exige e que as políticas públicas deveriam garantir, resta a esperança de que essas crianças, hoje encarceradas e violadas nos seus direitos, consigam reparar suas feridas e fazer de suas fragilidades uma fonte de onde extrair a potência e a alteridade, para criar e recriar as próprias narrativas.

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Diante da complexidade do tema, urge a necessidade de programas de redução de danos, políticas de inclusão social e de justiça social que possam substituir a pena privativa de liberdade por alternativas que não violem os direitos humanos. Que a justiça social prevaleça enquanto compromisso do Estado e das instituições não governamentais na busca de superar as desigualdades sociais.

Referências ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981. BARBOSA, Maria Carmem. Especificidades da ação pedagógica com os bebês. SEMINÁRIO NACIONAL: CURRÍCULO EM MOVIMENTO – Perspectivas Atuais, 1., 2010, Belo Horizonte. Anais... Brasília: MEC, 2010. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/docman/dezembro-2010-pdf/ 7154-2-2-artigo-mec-acao-pedagogica-bebes-m-carmem/file>. Acesso em: 12 dez. 2018. BRASIL. Constituição (1988). Emenda constitucional nº 65, de 13 de julho de 2010. Altera a denominação do Capítulo VII do Título VIII da Constituição Federal e modifica o seu art. 227, para cuidar dos interesses da juventude. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc65.htm>. Acesso em: 03 jul. 2019. BRASIL. Lei n° 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 13 jul. 1984. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/LEIS/L7210.htm>. Acesso em: 12 dez. 2018. ______. Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o estatuto da criança e do adolescente, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 16 jul. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm>. Acesso em: 12 dez. 2018. ______. Lei n° 11.942, de 28 de maio de 2009. Dá nova redação aos arts. 14, 83 e 89 da Lei n° 7.210, de 11 de julho de 1984 – Lei de Execução Penal, para assegurar às mães presas e aos recém-nascidos condições mínimas de assistência. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF,

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VISIBILIDADE LEGAL E PRÁTICA

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PROPOSTA SOCIOEDUCATIVA DO CSM ESTAÇÃO CASA: movimentos, tensões e sentidos Carla Cristina Tosatto Yara Rodrigues de la Iglesia

A cada giro de espelhos Muda o vitral da vivência Não permanece a figura Nem um desenho regressa Helena Kolody

O Centro Social Marista Estação Casa vem, desde sua constituição, tecendo caminhos teóricos e metodológicos para a implementação de uma proposta socioeducativa que promova o desenvolvimento integral dos bebês e das crianças que nascem e vivem temporariamente num contexto de privação de liberdade. Trata-se de uma proposta alicerçada no princípio da criança como prioridade absoluta e na luta pela defesa e promoção do direito à vida e à dignidade humana. Um dos objetivos primordiais da proposta socioeducativa é a criação de espaçotempos orientados e marcados por dinâmicas e processos que respeitem as potencialidades e necessidades dos bebês e das crianças, assegurando o direito à educação, ao brincar, à cultura e ao lazer, à saúde e à convivência familiar e comunitária. São espaçotempos promotores de aprendizagem e desenvolvimento e permeados por atos de educação e cuidado, respeitando e valorizando as culturas infantis, a expressão em múltiplas linguagens, o brincar, a criatividade e a inventividade dos bebês e das crianças. Buscamos, portanto, criar uma rede de educação e cuidados em torno dos bebês e das crianças, promovendo um protagonismo compartilhado nas ações educativas. O foco está na relação e no vínculo entre mãe e filho(a), mas acreditamos que, para os bebês e as crianças aprenderem e se desenvolverem, são necessários adultos afetivos, disponíveis e

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corresponsáveis pela organização das ações educativas. Para isso, é necessário conhecer os bebês e estar com eles, acolhendo-os, sustentando-os e desafiando-os para que participem de um percurso de vida compartilhado. Destaca-se aqui um ponto essencial da proposta: o desenvolvimento de um trabalho interdisciplinar “Ser Grupo Marista é olhar para e dialógico no qual a atuação de profissionais de difeo próximo e não ver a quem, rentes áreas se faz presente. Por isso, o CSM Estação não importa quem o que fez Casa conta com uma equipe interdisciplinar formada e de onde veio. Marista é ser por direção, coordenação pedagógica, assistente soamor, é ser humano. Até mesmo cial, enfermeira, psicólogo, educadores sociais e ananesse lugar escuro e vazio, lista administrativo. O objetivo é a atuação conjunta encontramos alguém para dar desses profissionais para assegurar o desenvolvimenamor ao nosso pequerrucho, to da proposta socioeducativa. No entanto, cada um coisa que a nossa família não deles possui focos específicos que possibilitam um está dando no momento1”. olhar integrado para o processo de desenvolvimento e aprendizagem de cada bebê e de cada criança. A direção é responsável pela gestão do Centro Social, liderando e articulando as diferentes áreas de atuação da equipe interdisciplinar em consonância com as deliberações da Diretoria Executiva de Ação Social (DEAS) e com a dinâmica operacional da unidade, envolvendo todos em prol da proposta socioeducativa, alinhada aos valores da Missão Marista. A coordenação pedagógica faz a gestão dos processos pedagógicos da unidade e é responsável pela implementação da proposta socioeducativa. Essa área contribui fortemente para a elaboração das políticas e metodologias educacionais segundo os princípios institucionais, as orientações da DEAS, o regimento da unidade e a legislação vigente. O serviço social coordena o processo de planejamento e implementação da proposta socioeducativa no que se refere à especificidade de atuação dessa área, tendo como base as orientações institucionais e o compromisso com a garantia de direitos sociais. O serviço de psicologia desenvolve práticas que buscam incidir na dimensão subjetiva dos fenômenos coletivos e sociais, problematizando e propondo ações no cotidiano da unidade que contribuam para a defesa e a promoção dos direitos das infâncias. Os profissionais da área de educação social são a referência mais próxima e concreta dos bebês e das crianças. Relacionam-se cotidianamente com esses atores e os acompanham Relato de uma mãe atendida pelo Centro Social Marista Estação Casa.

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nas atividades que fazem parte da jornada instaurada, sendo responsáveis pela mediação nos processos socioeducativos que potencializam o desenvolvimento integral dos bebês e das crianças. Destacam-se aqui, também, as mediações e orientações voltadas às mães nos processos compartilhados de educação e cuidado que são desenvolvidos. O serviço de enfermagem coordena o processo de planejamento e implementação da proposta socioeducativa no que se refere à área da saúde. O profissional da área administrativa é responsável pela execução de rotinas administrativas, compras, recursos humanos e financeiros da unidade. A construção dessa proposta é marcada por conquistas e desafios, pois construir um espaçotempo que se diferencie do sistema prisional e esteja pautado nas potencialidades e necessidades dos bebês não é tarefa fácil. Tensões e contradições são inerentes ao nosso contexto de atuação, e a complexidade e singularidade desse ambiente exige um olhar e um fazer em constante transformação. Vale destacar, igualmente, que esse espaçotempo também é marcado por belezas, potências e possibilidades. É desses movimentos permeados de potencialidades e desafios que trataremos a seguir, destacando os princípios que norteiam a proposta socioeducativa que está sendo construída no CSM Estação Casa.

Princípios norteadores da Proposta Socioeducativa do CEM Estação Casa Às crianças emudecidas em seus direitos, no seio de suas mães silenciadas nos cárceres. Josiane R. P. Veronese

O Centro Social Marista Estação Casa tem como objetivo primordial defender e promover os direitos dos bebês e das crianças nascidos no contexto prisional. Sabemos, no entanto, que o cárcere não é um lugar adequado para o desenvolvimento psicossocial do bebê, e por isso trabalhamos na perspectiva da redução de danos, com foco no desenvolvimento

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integral dos bebês e das crianças, sem nunca perder de vista a dignidade da pessoa humana. Para sustentar e orientar o desenvolvimento da proposta socioeducativa, elencamos alguns princípios norteadores que serão descritos a seguir, apontando, em cada um deles, os principais avanços e as conquistas obtidas desde a implantação do projeto.

Direito à aprendizagem e ao desenvolvimento integral do bebê e da criança O amor é como a criança: deseja tudo o que vê. William Shakespeare

A proposta socioeducativa tem como objetivo criar um espaçotempo que se diferencie do sistema prisional, buscando minimizar os impactos que o sistema carcerário possa provocar no desenvolvimento e nas aprendizagens dos bebês e das crianças. Um espaçotempo que coloque – dentro das limitações impostas pelo sistema prisional – os bebês e as crianças no centro do processo, como sujeitos criativos, ricos em potencial, intérpretes do mundo e protagonistas da própria história. Nossa intenção é dar voz e vez a esses sujeitos de pouca idade, entendidos como cidadãos de plenos direitos, rompendo, cada vez mais, com uma visão que coloca o bebê e a criança pequena em estado de transição, incompletude e dependência. Para organizar uma jornada com vistas a evitar ou, pelo menos, atenuar os efeitos nocivos do aprisionamento dos bebês e das crianças são necessários adultos afetivos, disponíveis e corresponsáveis pela organização das ações educativas. Em um contexto prisional, é fundamental a criação de uma rede compartilhada de educação e cuidado, na qual todos os adultos que atuem no espaço sejam corresponsáveis pelos processos educativos instaurados. As educadoras sociais, com acompanhamento da coordenação pedagógica, atuam diretamente na mediação dos processos socioeducativos com os bebês e as crianças. Nesse sentido, privilegia-se uma tríade educativa formada pela mãe, pelo bebê e pela educadora social, compartilhando o cuidar/educar/brincar como ações indissociáveis do processo educativo. Esse processo objetiva potencializar as aprendizagens e o desenvolvimento dos bebês e

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das crianças pequenas, a prática do diálogo e o compar“Ser mãe lá fora não é fácil; tilhamento de responsabilidades entre as educadoras e aqui dentro, é mais difícil olhar as mães. para seu filho e pensar no que Como já destacado anteriormente, a proposta sofizemos de errado. Passar esse cioeducativa do CSM Estação Casa está pautada na insofrimento todo com ele nos faz dissociabilidade dos atos de cuidar e educar. No entanto, companheiro um do outro cada cabe refletir acerca de algumas questões para se pensar vez mais, aumenta cada vez essa relação entre cuidado e educação. Em primeiro lugar, mais o amor, o carinho. Sinto é importante perguntar: o que significa cuidar? uma grande emoção de olhar Cuidar refere-se somente às ações relacionae superar isso, não que não das aos aspectos de higiene, alimentação, sono, etc., amamos os outros pequeninos, ou seja, aos cuidados básicos relativos à saúde? Ou claro que amamos, mas a envolve olhar, escutar, brincar, sorrir, estar junto, ofesituação nos faz ter um apego recer apoio, afeto, presença? Muitas pesquisas desa mais, sentir uma emoção a tacam que, quando o assunto é integrar cuidado e mais, temos todo apoio aqui educação, a questão que se coloca é como transforcom nossos filhos, não falta mar momentos de cuidado em momentos de educanada, pois existe um grupo ção, como se um não estivesse imbricado no outro. de mulheres maravilhosas e É como se o ato de cuidar não envolvesse a educação, e de muita sabedoria para nos vice-versa. No entanto, é possível cuidar sem educar? É apoiar o tempo todo. Conforme o sistema permite, elas nos possível educar sem cuidar? ajudam muito, dando atenção e Concordamos com Pasqualini (2006, p. 41) quannos fazendo nos sentir amada. do a autora destaca que o cuidado e a educação são “diO Grupo Marista faz muita mensões intrinsecamente ligadas e talvez inseparáveis diferença na vida de muitas do ponto de vista da práxis pedagógica. Apenas uma crianças e mulheres que se apreensão superficial de tais fenômenos, que se restrinencontram neste lugar2.” gem as suas dimensões operacionais, pode estabelecer uma polarização do tipo educar-cuidar”. Maria Malta Campos (1994) vem destacando, desde o início da década de 1990, essa impregnação nas ações de cuidado e educação. A autora propõe uma noção de cuidado mais abrangente, que seja incluída no conceito de educar. Sendo assim, todas as atividades relacionadas à proteção e ao apoio necessário no cotidiano da criança, que remetem à dimensão Relato de uma mãe atendida pelo Centro Social Marista Estação Casa.

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do cuidado – alimentar, lavar, trocar, curar, proteger, consolar, etc. –, deveriam integrar aquilo que chamamos de educar. Por conseguinte, cuidar envolve oferecer atenção, estabelecer contato, escutar de forma sensível e interessada as necessidades, os desejos e os interesses dos bebês e das crianças. O cuidado como postura ética, atitude responsiva, de escuta e diálogo com os bebês e as crianças dilata as possibilidades da educação. Assim, o cuidado é compreendido como uma qualidade da educação, um modo de ser educador e educar. Realçamos aqui o conceito de cuidado defendido por Boff (1999, p. 33), quando destaca que “cuidar é mais que um ato, é uma atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção, de zelo e de desvelo. Representa uma atitude de preocupação, responsabilização e envolvimento afetivo com o outro”. É fundamental, portanto, impregnar todas as ações voltadas aos pequenos de intenções educativas pautadas na visão do bebê e da criança como um ser inteiro que precisa ser educado com muito cuidado! O cuidar, como destacado anteriormente, dilata, amplia, enriquece, nutre a educação e as possibilidades de aprendizagem dos bebês e das crianças. Portanto, a proposta do CSM Estação Casa visa promover formas de cuidar e educar que respeitem as necessidades integrais do bebê e da criança e favoreçam laços qualitativos com a mãe e com outros adultos de referência. Toda a equipe que atua no CSM Estação Casa está comprometida com a criação de espaçotempos educativos, assegurando uma atuação na qual diferentes olhares e práticas se articulam e se integram. As crianças atendidas pela equipe do CSM Estação Casa frequentam o espaço durante o dia, mais especificamente das 9 às 15 horas, e o restante do tempo permanecem nas celas, em uma galeria materno-infantil. A jornada que passam no Centro Social é organizada respeitando os tempos e os processos específicos de cada criança. Na tentativa de proporcionar um desenvolvimento integral, trabalhamos na perspectiva da construção de espaçotempos que possibilitem ao bebê e à criança: • • • • • •

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Construir uma identidade pessoal e uma imagem positiva de si. Vivenciar diversas experiências de cuidados, interações e brincadeiras. Brincar cotidianamente de diversas formas. Alimentar-se atendendo às necessidades nutricionais, afetivas e de aprendizagens de novos paladares e consistências. Explorar movimentos, gestos, sons, formas, texturas, cores e palavras. Expressar necessidades, emoções, sentimentos, descobertas e frustrações.

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A seguir, serão destacados como esses espaçotempos são constituídos e as principais concepções que norteiam as práticas e os projetos desenvolvidos.

Espaçotempo para se conhecer e construir uma identidade pessoal e uma imagem positiva de si Entende-se que a noção do próprio corpo se constitui progressivamente desde o início da vida, dentro de um processo de desenvolvimento complexo. Para exemplificar o trabalho desenvolvido, podemos destacar uma grande conquista na implantação da proposta socioeducativa: a organização de um ambiente – a sala de referência dos bebês e das crianças pequenas – que potencializa as explorações e os desafios, e possibilita a descoberta de novas sensações, odores, formas, cores e sons. Trata-se de um ambiente de calma e sutilezas, que se diferencia das celas frias, cinzentas, intimidadoras, úmidas e coercitivas. Um ambiente composto por um espelho e repleto de fotos dos bebês e de suas mães, bem como de mediações que objetivam potencializar o reconhecimento e o desenvolvimento de uma imagem positiva de si mesmo.

Espaçotempo para a higiene e para vivenciar diversas experiências de cuidados, interações e brincadeiras O cuidado como relação de confiança e interação entre o adulto e o bebê envolve momentos de aprendizado, brincadeira e tomada de consciência do próprio corpo e do corpo do outro. Ações realizadas, como a reforma do banheiro e a instalação de cubas de água quente, marcaram o início de um projeto de humanização do cuidado. A implantação da proposta de banhos de ofurô, proporcionando aos bebês conforto, aconchego e tranquilidade, e as massagens para fortalecer o vínculo entre a mãe/educadora e o bebê são pontos de destaque do trabalho que está sendo desenvolvido. Outro ponto essencial é a troca de fraldas, concebida e vivida como uma experiência sensorial e afetiva estabelecida entre o bebê e a mãe/educadora.

Espaçotempo do brincar cotidianamente de diversas formas Envolve ações como a preparação de espaços que possibilitem o movimento livre e a aquisição de materiais adequados à faixa etária, privilegiando tecidos, caixas, elementos

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naturais, potinhos de encaixar e empilhar, objetos côncavos/convexos (bacias, potes, bolas de diversos tamanhos) e objetos sonoros dispostos ao alcance dos bebês e das crianças. Destaca-se, também, a proposta de ampliação do repertório das mães por meio de canções infantis, brincadeiras de rodas, jogos, literatura infantil, contação de histórias e a criação de uma bebeteca.

Espaçotempo de alimentação, atendendo às necessidades nutricionais, afetivas e de aprendizagem de novos paladares e novas consistências Uma proposta de alimentação saudável e equilibrada, que proporcione experiências com diferentes texturas, sabores, odores, formatos e cores, por meio das quais o bebê e a criança constroem uma relação saudável e prazerosa. Ações como a aquisição de alimentos saudáveis para complementar a dieta dos bebês e a organização do lactário para a elaboração dos alimentos, seguindo normas de higiene e a organização de espaços confortáveis e relaxantes para que as mães amamentem seus(suas) filhos(as), foram algumas das conquistas.

Espaçotempo para explorar movimentos, gestos, sons, formas, texturas, cores e palavras Um espaço confortável e seguro para que o bebê possa explorar livremente, pesquisando e experimentando as possibilidades de movimentação. Uma das ações que mais impactou a construção de uma autonomia assistida foi a sensibilização das agentes penitenciárias e das mães sobre a necessidade do bebê passar mais tempo no chão. Os carrinhos de bebê, em que as crianças passavam grande parte do dia, foram doados. Atualmente, os bebês desfrutam de liberdade para mover-se e aprimorar as posturas e desenvolver aprendizagens com o corpo inteiro em movimento.

Espaçotempo para expressar necessidades, emoções, sentimentos, descobertas e frustrações O bebê e a criança necessitam de um espaço adequado com adultos responsivos, que os acolham em suas necessidades e que possibilitem o desenvolvimento de habilidades para que se expressem adequadamente, interpretem e regulem suas emoções, bem como

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entendam as emoções dos outros. O espaçotempo é planejado para acolher e satisfazer às necessidades dos bebês, tanto no que se refere às suas necessidades básicas (sono, fome, frio) como afetivas (colo, contato visual, toque). A tríade mãe/bebês/educadoras é trabalhada de forma conjunta, e há apoio mútuo na tarefa de acolher e potencializar a construção das competências emocionais e relacionais do bebê.

Plano de Desenvolvimento Individual (PIA) A elaboração do Plano de Desenvolvimento Individual (PIA) está prevista no ECA (atualizado pela Lei n° 12.010, de 3 de agosto de 2009) e na resolução conjunta CNAS/ CONANDA n. 01/2009 (Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes). O PIA é entendido como uma estratégia de planejamento que, a partir do estudo aprofundado de cada caso, compreende a singularidade dos sujeitos e organiza as ações e atividades a serem desenvolvidas com a criança e sua família durante o período de acolhimento. Imediatamente após o ingresso do bebê ao Centro Social Marista Estação Casa, é enviada para a Vara de Família a Declaração de Nascido Vivo e ofício solicitando a medida de proteção do bebê. Juntamente com a medida protetiva, encaminha-se breve histórico pessoal e familiar da mãe e do bebê. Posteriormente, a equipe Interdisciplinar elabora um Plano Individual de Atendimento (PIA), levando em conta a finalidade desse acolhimento, seu caráter temporário, a formação de vínculos, bem como as ações que visam assegurar o direito à saúde, à educação, ao convívio materno e comunitário, ao lazer, entre outros. O PIA deve ser remetido ao juiz do Foro Regional de Piraquara, PR, no prazo de quinze dias, a contar do ingresso da criança na unidade penitenciária, e obrigatoriamente deverão estar em anexo a certidão de nascimento da criança e os documentos que se fizerem necessários, tais como prontuários médicos, indicações de tratamento, etc. Mantém-se um protocolo para cada criança acolhida na instituição, composto de uma cópia do PIA, certidão de nascimento e de toda a documentação referente à criança no período em que ali permanecer – prontuários, prescrições médicas, carteira de vacinação, relatórios psicopedagógicos, entre outros que se julgarem necessários. Essa documentação será arquivada em duas pastas: uma contendo a cópia de toda a documentação, e anotações e relatórios da equipe interdisciplinar; e outra com os originais que serão entregues à mãe no momento do desligamento da criança.

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Tempo de permanência e processo de saída Ainda que a Resolução CNPCP n. 4 (BRASIL, 2009b) preconize no art. 3º que o processo de separação entre mãe e filho deva ser gradual e durar pelo menos seis meses, devendo ser elaborado em etapas, nem sempre ocorre assim. Uma pesquisa realizada por Ana Gabriela Braga e Bruna Angotti (2015) revelou que existe um paradoxo que permeia o ser mãe em prisões no Brasil: o excesso de maternidade nos meses em que a mãe permanece com o filho e a súbita ruptura dessa relação no momento da separação. A esse fenômeno as autoras da pesquisa denominam de hipermaternidade e hipomaternidade. Assim, durante o período de convivência com os bebês na unidade prisional, as mães exercem hipermaternidade – impossibilitadas de frequentar atividades ou de trabalhar e convivendo 24 horas com os(as) filhos(as). Quando a convivência é interrompida e a criança é retirada do convívio materno (entregue para a família ou encaminhada para o acolhimento), ocorre a transição da hipermaternidade para a hipomaternidade, que é o rompimento abrupto do vínculo, sem transição nem período de adaptação (BRAGA; ANGOTTI, 2015). O CSM Estação Casa trabalha para garantir o que prevê a Resolução CNPCP nº 4/2009, na perspectiva de que esse período de permanência esteja pautado na provisoriedade e trabalhando no sentido de uma ruptura gradual e cuidadosa entre mãe e filho(a). Quando a mãe que se encontra em situação de privação de liberdade dá entrada com seu bebê no CSM Estação Casa, a equipe interdisciplinar, com a participação ativa da mãe, inicia o processo de construção do PIA. Esse documento tem como objetivo a realização de um estudo aprofundado de cada bebê, pensando na organização de ações e atividades a serem desenvolvidas com ele durante o período que permanecer no sistema penitenciário; e, ao mesmo tempo, preparando a saída do bebê para os referenciais familiares indicados pela mãe, como possibilidade de cuidado e proteção. O encaminhamento é feito de forma dialógica, respeitosa e cuidadosa para a mãe e para a criança, sempre levando em conta as particularidades de cada caso, garantindo o superior interesse da criança.

Protocolos básicos de saúde O direito à saúde é garantido constitucionalmente e deve ser usufruído por todos. Nesse sentido, é fundamental garantir que a proposta de cuidados da criança que vive junto

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com sua mãe que está em situação de privação de liberdade esteja em consonância com a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança (PNAISC), do Ministério da Saúde. Um dos aspectos fundamentais é a garantia da Caderneta de Saúde como um direito da família e da criança que vive em situação de cárcere. De acordo com o Ministério da Saúde, nas maternidades, a Caderneta de Saúde da Criança deverá ser disponibilizada a todas as crianças ali nascidas, residentes ou não no município de nascimento, usuárias do Sistema Único de Saúde (SUS) ou de planos privados de saúde. Esse documento é utilizado como manual de orientação dos cuidados que devem ser dirigidos às crianças de 0 a 10 anos pelos profissionais de saúde e, principalmente, pelos pais e/ou cuidadores. Dentro da proposta socioeducativa do CSM Estação Casa foi desenhado um plano de trabalho com o compromisso de promoção à saúde integral do bebê e o aprimoramento das ações de prevenção de agravos. As informações contidas na Caderneta de Saúde da Criança são imprescindíveis para a abertura do prontuário, pois fornecem dados muito importantes sobre a gestação, o parto e o pós-parto e orientações gerais sobre o estado de saúde do bebê. Durante a permanência do bebê no sistema prisional, é realizado um plano de puericultura e um calendário de vacinação de atendimento na Unidade Básica de Saúde (UBS) do município de Piraquara ou nos hospitais de referência. Os atendimentos dos bebês que ocorrem extramuros não contam com a presença das mães, sendo realizados pelo serviço de enfermagem do CSM Estação Casa e pelas agentes de segurança da Penitenciária Feminina do Paraná. No entanto, a comunicação da mãe com o profissional de saúde é garantida por meio de uma carta que é entregue ao médico. Garante-se o acesso das mães a toda documentação de saúde dos(as) filhos(as). Preserva-se o direito de a mãe tomar as decisões a respeito de qualquer procedimento necessário a ser realizado com o(a) filho(a), bem como ser informada do estado de saúde e da administração de qualquer medicação. Os dados de crescimento e desenvolvimento do bebê são realizados mensalmente pela enfermeira do CSM Estação Casa e apresentados à mãe. Para uma melhor comunicação com o sistema, o serviço de enfermagem criou um registro de ocorrência de saúde, para que haja atenção integral à saúde do bebê e da criança.

Amamentação e alimentação complementar A infância é um período em que grande parte das potencialidades humanas são desenvolvidas. Investir em ações de saúde e nutrição resulta em inúmeros benefícios para a

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saúde das crianças. A amamentação também é uma forma muito especial de comunicação entre a mãe e o bebê, e uma oportunidade de o bebê aprender muito cedo a se comunicar com afeto e confiança. De acordo com a legislação, os estabelecimentos penais destinados às mulheres serão providos de berçário, onde as mães possam cuidar dos filhos, inclusive amamentá-los, no mínimo até os 6 meses de idade, conforme art. 83, § 2º da Lei n° 7.210/84, com as alterações da Lei n° 11.942/09 (BRASIL, 1984, 2009a). A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda o aleitamento exclusivo até os 6 meses de idade e a continuação da amamentação, juntamente com a alimentação complementar, até 2 anos ou mais. Dentro da proposta socioeducativa do CSM Estação Casa, proporcionamos espaçotempos por meio de rodas de conversa, atendimento individual, conversas informais, vivências práticas e aulas de culinária, nos quais as mães são acolhidas e apoiadas para as tomadas de decisão sobre a amamentação “Primeiramente agradecemos o pessoal do Marista por estar aqui todos os dias com a gente, se dedicando a nós e nossos filhos. Queremos humildemente pedir a colaboração de todos vocês que possam olhar e nos ajudar a pedido de um fato favorável pelos nossos filhos que estão aqui conosco. Fomos nós que erramos, e estamos aqui pagando pelos nossos erros, ao lado dos nossos filhos. Pelo nosso ver, estar ao nosso lado é o melhor para eles. Queremos em primeiro lugar pedir se há possibilidade dos nossos filhos receber uma mamadeira a noite. Pois a última alimentação deles (uma mamadeira) é no horário das 17 horas e 30 minutos.3”

e a alimentação dos(as) filhos(as). É um trabalho que tem como objetivo ouvir e entender essas mulheres, bem como dialogar com elas sobre os prós e contras de qualquer decisão relacionada à alimentação do(a) filho(a). Esse processo consiste em aceitar e respeitar os sentimentos e as opiniões das mães. Evitamos o uso de palavras que soem como julgamento e primamos pela utilização de um vocabulário simples e acessível. Mas todas as mediações são feitas com vistas a orientar, apoiar e contribuir para que as mães possam tomar decisões que favoreçam o desenvolvimento integral dos bebês e das crianças atendidas.

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Relato de uma mãe atendida pelo Centro Social Marista Estação Casa. ESTAÇÃO CASA


Apoio e orientação às mães sobre os cuidados com os bebês Em um estudo realizado por Mello e Gauer (2011) com mulheres privadas de liberdade em regime fechado em uma penitenciária do Rio Grande do Sul, as mães relataram menor consumo de drogas com o nascimento dos filhos, e que exerciam o papel de mãe pela primeira vez. De acordo com o relato, essas mulheres consideravam o aprisionamento uma oportunidade de realizar seu papel materno, pois muitas delas, embora tivessem tido outros filhos anteriormente, não tiveram condições de criá-los, principalmente devido ao uso abusivo de substâncias tóxicas. Um dos aspectos fundamentais da proposta socioeducativa do CSM Estação Casa é apoiar as mães e promover-lhes o desenvolvimento de competências necessárias para que cuidem dos(s) filhos(as) e os(as) eduquem. Muitos relatos colhidos pela equipe na Penitenciária do Paraná são da própria história de vida das mulheres, e assim foi possível levantar que elas foram vítimas de violência física ou psicológica na infância. As pesquisas apontam que adultos, caso tenham sido tratados de

“Hoje posso ver tudo o que perdi longe dos meus filhos que ficaram lá fora, a cadeia me afastou deles; não pude interpretar com eles o meu real papel de mãe, ao contrário de hoje. Meu filho que está aqui comigo tem quase três meses e, apesar do lugar em que estamos, com ele aprendi muita coisa que já poderia ter aprendido antes... apesar de ser cadeia, tem um espaço dedicado somente às crianças, e foi bem aqui que realmente estou a cada dia que passa aprendendo a ser mãe de verdade.4”

forma inadequada na infância, tendem a repetir a experiência ruim com os(as) próprios(as) filhos(as). As marcas deixadas por cuidados inadequados persistem psicologicamente (BARUDY; DANTAGNAN, 2007). Para apoiar os processos de mediação, destacamos a seguir algumas ações educativas de orientação e práticas desenvolvidas em conjunto com as mães e os bebês, primando pelo cuidado voltado às necessidades do bebê, que favoreça a construção ou o fortalecimento do vínculo entre mãe e bebê, considerando e respeitando as diferentes histórias de vida de cada mulher. 4

Relato de uma mãe atendida pelo Centro Social Marista Estação Casa.

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Dança e acalanto: Realização de dança circular para as mães segurando os bebês no wrap sling. O uso do sling e de outros acessórios similares, em médio e longo prazo, proporciona benefícios ao desenvolvimento do bebê, favorecendo o aleitamento materno e potencializando a vinculação materno-infantil. Massagem Shantala: Massagem que a mãe realiza em seu bebê, por meio de movimentos e alongamentos suaves e ritmados. Alguns benefícios que a técnica da massagem proporciona: fortalecimento do vínculo entre mãe e bebê; melhora da respiração, porque expande a caixa torácica; estimulação da coluna vertebral e da movimentação de braços, mãos, pernas e pés; facilita o desenvolvimento da musculatura e o aprendizado de abrir e fechar, pegar e soltar. Chá de benção e chá de boas-vindas: Ritualização do processo de gestação do bebê por meio de uma celebração que precede o parto (chá de benção) e outra que acolhe a mãe e o bebê recém-nascido em sua chegada ao mundo (chá de boas-vindas). Rodas de conversas: O diálogo é um momento singular de partilha, uma vez que pressupõe um exercício de escuta e de fala. Para Freire (1998), o diálogo afirma-se como essência da prática educativa problematizadora, por meio do qual as pessoas, através da palavra, humanizam-se. Temas trazidos pelas mães e/ou gestantes ou pela equipe são colocados na roda e, por meio do diálogo, são problematizados. Esse momento é considerado um processo dialético, em que novos saberes são socializados e outros tantos, construídos. Oficinas para mães e gestantes: As oficinas são momentos de encontro dos diferentes saberes, para que as mães se sintam valorizadas e produtivas. O objetivo da proposta é voltar a atenção ao processo de construção, sem preocupação estética, com o tempo ou com o resultado. A proposta de oficinas aporta momentos de calma, diminuindo conflitos e desentendimentos entre as mães e as gestantes. Durante a produção, muitos diálogos são construídos; muitas histórias são contadas; muitas dores, desveladas; e muitos sonhos, anunciados como projetos de vida após o cárcere. Durante a proposta das oficinas, as mães também confeccionam o álbum do bebê, um registro da história do(a) filho(a) contada e ilustrada pela mãe. Esse álbum é levado pela mãe quando ela deixa a Penitenciária, para que tenha consigo um pouco da história, das experiências vividas e das aprendizagens do(a) filho(a).

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Acesso e inclusão da família aos serviços da rede socioassistencial Os acessos aos serviços fundamentais para o desenvolvimento da criança em situação de cárcere devem ser assegurados de forma integral nas políticas públicas, tendo em vista tratar-se de crianças em situação de vulnerabilidade. As ações desenvolvidas pelo CSM Estação Casa possibilitam o acesso da criança a serviços básicos ofertados pelas políticas públicas (Saúde, Educação e Assistência Social), e é responsabilidade do Serviço Social verificar se a família estendida tem acesso aos serviços ofertados pela rede socioassistencial do seu município, para que sejam proporcionados acompanhamento e apoio dessa família no período em que a mãe e o bebê estiverem em situação de privação de liberdade. Essas crianças não devem perder o contato com sua rede social, com a família extensa, e ter garantida a participação nos diferentes equipamentos sociais aos quais têm direito, e assim estarem preparadas para a vida extramuros. A articulação e a integração dessas políticas públicas já mencionadas, aliadas ao fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos, são imprescindíveis para que a família, a comunidade, o poder público e a sociedade em geral assegurem os direitos já garantidos nas legislações.

Fortalecimento e promoção de vínculo com a família extensa Conforme determinado no artigo 19, § 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), “será garantida a convivência da criança e do adolescente com a mãe ou o pai privado de liberdade, por meio de visitas periódicas promovidas pelo responsável ou, nas hipóteses de acolhimento institucional, pela entidade responsável, independentemente de autorização judicial”. A situação de grande vulnerabilidade social em que vivem as famílias atendidas pelo CSM Estação Casa não possibilita que ocorram essas visitas, pois a maioria não possui condições econômicas para arcar com as despesas do deslocamento. Outro aspecto que dificulta a visita é o fato de que a família, em muitas situações, já assumiu a guarda provisória dos outros filhos da mãe que vive em situação de cárcere.

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Por isso o papel do CSM é fundamental na preparação e promoção de um espaço humanizado para o recebimento dos familiares, por meio da elaboração de cartas e da revelação de fotos dos bebês e das crianças para serem enviadas aos familiares, com o objetivo de manter o vínculo familiar.

Formação continuada: espaçotempos de reflexão, problematização e produção de conhecimentos A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Leonardo Boff

Para apoiar o processo de construção, sistematização e revisão permanente da proposta socioeducativa e qualificar a atuação dos profissionais da equipe interdisciplinar, o CSM Estação Casa promove espaçotempos de formação continuada, pautados na reflexão e na problematização das situações que emergem do cotidiano e nas necessidades formativas da equipe interdisciplinar. As situações vividas no cotidiano da unidade são tidas como o material formativo por excelência, e a formação é pensada não em termos de conhecimentos a transmitir, mas, sim, de problemas a resolver. Concordamos com Nóvoa (2010, p. 23) quando o autor destaca que “formar não é ensinar às pessoas determinados conteúdos, mas, sim, trabalhar coletivamente em torno da resolução de problemas. A formação faz-se na produção, e não no consumo do saber”. “Acreditamos que a formação é um fazer permanente, que se refaz constantemente na ação” (FREIRE, 1998, p. 21). Buscamos, portanto, valorizar as experiências como objeto de aprendizagem, tornando o ambiente de trabalho um importante cenário de reflexão, desenvolvimento e produção de conhecimento. Os processos formativos valorizam a participação, o diálogo, a pesquisa e a reflexão, tendo no fazer educativo o cerne e o fio condutor para as aprendizagens e transformações a serem empreendidas na unidade. São objetivos dos processos formativos: • Potencializar a reflexão sobre aspectos relevantes da prática, à luz de referenciais teóricos que contribuam para um processo reflexivo rico e transformador, na perspectiva da tríade reflexão/ação/reflexão.

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• • • • • •

Construir repertórios que permitam agir não conforme o senso comum, mas pela ativação dos diversos saberes profissionais. Fundamentar teoricamente as tomadas de decisões cotidianas na direção de uma ação cada vez mais intencional, refletida e humanizada. Superar a dicotomia entre teoria e prática. Promover um ambiente de troca e de partilha de saberes e experiências. Garantir a continuidade dos processos formativos, possibilitando a ressignificação das práticas. Criar situações de aprendizagens que requeiram tomadas de decisões vinculadas aos contextos de trabalho dos profissionais.

Para dar concretude a esses objetivos, valemo-nos de estratégias formativas centradas na prática e de diferentes espaçotempos de formação. As estratégias representam os caminhos que os profissionais percorrem para realizar a formação continuada de suas equipes e devem favorecer o trabalho colaborativo, colocando no centro do processo a reflexão permanente sobre a prática. São estratégias que propiciam o confronto teórico e a construção de novos referenciais para o trabalho que está sendo desenvolvido. A seguir, citamos de forma sucinta algumas das estratégias utilizadas para efetivação dos processos formativos: •

Observação direta: Por meio da observação é possível ter acesso ao desenvolvimento do trabalho em vários planos, tais como: interações, atitudes, valores, objetivos, intervenções, e são analisadas questões de cunho tanto pedagógico quanto subjetivo e relacional. O sentido dessa ação está na construção de uma compreensão cada vez maior dos processos inerentes à dinâmica das ações e dos projetos instaurados, com vistas a qualificar a prática educativa e garantir que o acompanhamento e a formação dialoguem com os saberes experienciais dos profissionais e possam provocar mudanças no contexto em que atuam. Análise de situações homólogas: As situações homólogas são práticas escolhidas pelo formador para explicitar os processos dos sujeitos envolvidos em certos atos, bem como levantar discussões a respeito do conhecimento em questão com o objetivo de apoiar o planejamento dos profissionais. Assim, não é apenas vivenciar atividades, mas, sobretudo, refletir sobre elas, analisá-las para compreender os processos que ocorrem em situações semelhantes e, consequentemente, significá-las (CARVALHO et al., 2006).

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Análise de bons modelos: Consiste na utilização de boas práticas como “modelos” para provocar e instigar a análise e as discussões. Não se trata somente de compartilhar uma experiência, mas, sim, refletir sobre ela, teorizá-la, tê-la como fonte e cenário para elaboração de novos conhecimentos. Assim, os “modelos” precisam ser apresentados não como exemplos a serem seguidos, mas como uma estratégia que mobiliza a reflexão por meio da socialização de saberes e práticas. Análise de casos: Consiste em registros de situações referentes ao bebê e sua mãe que permitam a análise, discussão e reflexão sobre as situações descritas pela equipe interdisciplinar. Com base num conhecimento teórico, a análise de casos possibilita “a partilha de pontos de vista sobre uma mesma situação, que poderá ser interpretada de modo diferente, dependendo dos intervenientes nesse estudo, uma vez que os conhecimentos teóricos, adquiridos ou construídos, possibilitam essa diversidade” (ALARCÃO, 1996, p. 108).

No CSM Estação Casa, são garantidos diferentes espaçotempos para o desenvolvimento da formação continuada, entre eles: parada mensal, assessoria individual,1 reunião de equipe (semanal), estudo de caso (semanal). Todos os espaçotempos formativos são essenciais e devem estar articulados e integrados, potencializando-se mutuamente. Vale destacar, no entanto, que, numa formação centrada na reflexão sobre a prática, o mais importante é o processo reflexivo instaurado na unidade, e que acontece permanentemente, em todas as mediações e intervenções, sempre com o olhar para um fazer plural que confere autoria e protagonismo a todos os atores envolvidos.

1

A assessoria individual é fundamental no processo de uma formação que precisa estar pautada em dois pilares: o educador, como agente de transformação; e o centro social, como lugar de crescimento profissional permanente. Nas assessorias individuais, o formador tem a oportunidade de entrar em contato com a singularidade de cada profissional, assumindo sua coautoria e corresponsabilidade no desenvolvimento dos processos.

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Referências ALARCÃO, Isabel (Org.) Formação reflexiva de professores: estratégias de supervisão. Porto, Portugal: Porto Editora, 1996. BARUDY, Jorge; DANTAGNAN, Maryorie. Los buenos tratos a la infancia: parentalidad, apego y resilencia. Barcelona, Espanha: Gedisa, 2007. BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano, compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999. BRAGA, Ana Gabriela Mendes; ANGOTTI, Bruna. Dar à luz na sombra: condições atuais e possibilidades futuras para o exercício da maternidade por mulheres em situação de prisão. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Assuntos Legislativos; Ipea, 2015. Série Pensando o Direito, n. 51. Disponível em: <http://pensando.mj.gov.br/wp-content/uploads/2016/02/ PoD_51_Ana-Gabriela_web-1.pdf>. Acesso em: 14 dez. 2018. BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o estatuto da criança e do adolescente, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 16 jul. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm>. Acesso em: 12 dez. 2018. ______. Ministério da Saúde. Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher – PNDS 2006: dimensões do processo reprodutivo e da saúde da criança. Brasília, 2009a. ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Manual instrutivo das ações de alimentação e nutrição na Rede Cegonha [recurso eletrônico]. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica, 2013. ______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes. Brasília, 2019. ______. Resolução CNPCP nº 4, de 15 de julho de 2009. Dispõe sobre a estada, permanência e posterior encaminhamento das(os) filhas(os) das mulheres encarceradas. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 16 jul. 2009b.

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______. Resolução CNAS/CONANDA n. 01/2009. Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes. Disponível em: <http://www.crianca.mppr.mp.br/pagina-1350. html>. Acesso em: 01 jul. 2019. CAMPOS, Maria Malta. Educar e cuidar: questões sobre o perfil do profissional de educação Infantil. In: BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Coordenação de Educação Infantil. Por uma política de formação do profissional de educação infantil. Brasília: MEC/SEF/COEDI, 1994. p. 32-42. CARVALHO, Silvia Pereira de; KLISYS, Adriana e AUGUSTO, Silvana (Orgs). Bem-vindo, mundo! Criança, cultura e formação de educadores. Peirópolis: São Paulo, 2006. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1998. JUDIT, Falk. Educar os três primeiros anos: a experiência de Lóczy. Araraquara: Junqueira & Marin, 2011. MELLO, Daniela Canazaro; GAUER, Gabriel. Vivências da maternidade em uma prisão feminina do Estado do Rio Grande do Sul. Saúde e Transformação Social, Florianópolis, v. 2, n. 2, p. 113-121, 2011. NÓVOA, António. A formação tem que passar por aqui: as histórias de vida no Projeto Prosalus. In: NÓVOA, António; FINGER, Matthias (Org.). O método (auto)biográfico e a formação. Natal, São Paulo: EDUFRN; Paulus, 2010. PASQUALINI, Juliana. Contribuições da psicologia histórico-cultural para a educação escolar de crianças de 0 a 6 anos. 2006. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2006. TOMA, Tereza Setsuko; REA, Marina Ferreira. Benefícios da amamentação para a saúde da mulher e da criança: um ensaio sobre as evidências. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, p. S235-246. Suplemento 2.1, 2008. Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/ saude/cidadao/visualizar_texto.cfm?idtxt=24225>. Acesso em: 14 dez. 2018.

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CRIANÇAS E ADOLESCENTES COMO SUJEITOS DE DIREITOS: participação política da sociedade brasileira Ana Paula Ribeirete Baena

Defender os direitos humanos de crianças, adolescentes e jovens é parte da missão da Rede Marista de Solidariedade (RMS). A RMS acredita que a construção de uma sociedade mais justa e digna passa necessariamente pela defesa do direito à vida, à saúde, à educação, ao respeito, à liberdade, dentre outros, a partir da premissa da dignidade humana. A Constituição Federal de 1988 trouxe a garantia constitucional e o princípio da absoluta prioridade do Estado brasileiro em relação à criança e ao adolescente. É ainda a Constituição Federal, conhecida como Constituição Cidadã, que introduz o direito à participação popular na formulação das políticas públicas e o exercício do controle social das ações do Estado, além da livre organização dos cidadãos em torno de temas que digam respeito ao desenvolvimento da sociedade, proporcionando o exercício da cidadania participativa. Essa participação dos cidadãos brasileiros como coautores das políticas sociais se organiza a partir de uma série de espaços institucionais legalmente constituídos, colocando, lado a lado, gestores públicos e sociedade civil para analisar e debater os problemas que afetam a população e buscar a construção de políticas públicas capazes de resolver tais situações. Esses espaços, intitulados conselhos setoriais de políticas públicas, estão presentes nos níveis municipais, estaduais e federal, na esfera da educação, saúde e assistência social, segurança pública, por exemplo. O compartilhar do poder decisório entre governo e sociedade civil acerca do investimento do recurso público, da gestão para o desenvolvimento de políticas públicas e da fiscalização da atuação dos agentes públicos e privados deve ser a premissa fundamental da existência dos Conselhos. Com a chegada do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei Federal n° 8.069/1990, em alinhamento com a Constituição Federal e a Convenção Internacional sobre os Direitos da


Criança, da Organização das Nações Unidas, de 1989, o Brasil assumiu o compromisso local, e com a comunidade internacional, de promover esforços para que as crianças e os adolescentes brasileiros sejam respeitados, por meio da elaboração de políticas públicas e criação de mecanismos específicos, projetos e programas de proteção e promoção capazes de concretizar as ações previstas em tais documentos. Ao explicitar que todas as crianças e todos os adolescentes brasileiros, sem distinção, são sujeitos de direitos e em condição peculiar de desenvolvimento, o ECA impõe aos poderes executivos em todas as esferas, assim como aos poderes legislativos, judiciários, ao Ministério Público, às famílias e a sociedade em geral, obrigações de assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Vale lembrar que a absoluta prioridade compreende a primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias, precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública, preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas e a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude. Coube ao Estatuto da Criança e do Adolescente, na esteira da Constituição Cidadã, instituir a figura dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente. O Conselho dos Direitos figura entre as diretrizes da política de atendimento dos direitos da criança, em conjunto com a municipalização do atendimento, com a criação e manutenção de programas e serviços específicos, com a integração operacional de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, com a mobilização da opinião pública para a participação dos diversos segmentos da sociedade e a manutenção dos fundos da infância e adolescência, dentre outras diretrizes. Com isso, todos os Municípios e Estados da federação devem instituir seus conselhos e, por consequência, seus fundos especiais nos três níveis da federação. Os Conselhos são órgãos deliberadores de políticas públicas e controladores das ações do executivo para a efetiva implementação das políticas definidas. Nesse espaço, em igual número de representantes, Governo e instituições da sociedade civil que atuam direta ou indiretamente com crianças e adolescentes devem se reunir para discutir os problemas que afetam essa população e buscar soluções concretas, definindo estratégias de atuação interinstitucional. Os Conselhos dos Direitos, assim como os Conselhos setoriais de Políticas Públicas nas áreas da educação, saúde e assistência social e outras, são instâncias estratégicas da

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democracia participativa, constituindo-se espaços legítimos de controle social e de exercício da cidadania. Vale destacar que esses conselhos são espaços permanentes (instituídos pela Constituição Federal; sua existência não depende da vontade do poder público e sua criação se dá por leis próprias), colegiados (devem ser compostos por representantes oficiais do governo e de outros atores da sociedade civil organizada) e deliberativos (suas decisões devem ser transformadas em ações, em geral, políticas públicas). Proporcionam ainda, com seu funcionamento, a possibilidade da representação institucional e atuam como porta-vozes dos diversos segmentos da sociedade civil organizada. O trabalho dos Conselhos dos Direitos, acrescido da atuação dos Conselhos Tutelares, os quais são responsáveis pelo atendimento direto em casos de violação de direitos da criança ou do adolescente e também pela fiscalização da atuação dos governos e organizações sociais, combinada com a participação das varas e das promotorias da infância e juventude, delegacias especializadas, escolas municipais e estaduais, equipamentos públicos da assistência social, saúde, cultura, esporte e lazer, além das organizações e instituições sociais de atendimento a esse público, compõem o chamado Sistema de Garantia de Direitos (SGD). Cada um dos integrantes desse Sistema tem a sua importância e papel definidos, e a atuação deve ser integrada, articulada e em rede, objetivando sempre o alcance e a efetivação dos direitos previstos pelo ECA. A oportunidade de exercer a cidadania participativa acontece também para além dos espaços institucionais de conselhos dos direitos e de políticas públicas setoriais. A organização dos fóruns temáticos e de comissões interinstitucionais nas áreas de defesa dos direitos da criança e do adolescente, de educação básica, políticas públicas, aprendizagem profissional, prevenção à violência, economia solidária, dentre outros temas, é uma estratégia importante para reunir organizações sociais e, em alguns modelos de espaços, também pessoas físicas que buscam analisar e debater os desafios enfrentados pela sociedade. São arenas nas quais o debate entre ideias diferentes e experiências práticas diversificadas podem construir consensos, produzir conhecimento, formar posições e exercer, por meio de táticas diversas, a incidência política e a mobilização social. Esses espaços, quando utilizados para o propósito da busca da mudança da realidade, conseguem construir subsídios e elaborar propostas de políticas e projetos capazes de pressionar os gestores públicos, tanto no executivo como no legislativo, e ainda influenciar a tomada de decisão dos conselhos de políticas e de direitos.

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Outro movimento importante de participação social na área da criança e do adolescente, mais voltado para a articulação de pessoas, instituições sociais e serviços, públicos ou privados, são as redes socioassistenciais, as quais integram os atores sociais de um determinado bairro ou território, a partir da articulação dos serviços disponibilizados pelas organizações comunitárias, associações de bairro e instituições sociais, pelo próprio poder público, representado pelos equipamentos de saúde, assistência, educação, cultura e conselhos tutelares. As redes socioassistenciais discutem e encaminham casos concretos de atendimento, além de organizar protocolos e fluxos entre os serviços disponíveis, voltados para a criança e ao adolescente. Nos últimos trinta anos, a sociedade brasileira tem tido a oportunidade de exercer a cidadania participativa, proporcionada pela democracia. As instituições sociais, que atuam na perspectiva de promover e defender direitos, vêm colaborando sobremaneira para fortalecer esses espaços de controle, mobilização e articulação social como estratégia legítima de incidência política, representação institucional e provocadores de novas formas de construir a relação entre as sociedades e os governos.

A defesa de direitos para a RMS Integrar essa dimensão de atuação de incidência política por meio da representação institucional é uma das estratégias da Rede Marista de Solidariedade para contribuir para a defesa dos direitos de crianças, adolescentes e jovens. A participação da RMS nessa área ocorre há mais de dez anos, e vem se modificando e se atualizando juntamente com as transformações da sociedade brasileira. Em conjunto com o atendimento em educação básica e assistência social de milhares de crianças, adolescentes e jovens, todos os anos os profissionais da Rede participam ativamente da vida política e social dos territórios nos quais estão inseridos, dedicando tempo e oferecendo suas competências, e dessa forma cooperam concretamente para a transformação daquela cidade, região, estado e do país. Com protagonistas e lideranças em diversos espaços de mobilização, representação e controle social, a presença Marista já influenciou nacionalmente nas tomadas de decisão de políticas públicas para a população infanto-juvenil, pela integração no Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), nos mandatos de 2015-2016 e 20172018, e no debate e na reflexão da situação das crianças por meio do Fórum Nacional dos

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Direitos da Criança e do Adolescente, durante seis anos. Também reúne esforços com outras organizações nacionais para promover os direitos da primeira infância brasileira, integrando a Rede Nacional Primeira Infância (RNPI). Além da atuação nacional, a RMS participa dos espaços de controle social estaduais para acompanhar as ações dos governos e influenciar as políticas públicas nas temáticas da criança e do adolescente, juventude, educação e economia solidária. Como conselheira dos Direitos do Estado do Paraná, por exemplo, a RMS, por meio do Centro Marista de Defesa da Infância, contribuiu diretamente para as definições de políticas, em especial na área do orçamento público para a infância e no fortalecimento do direito à convivência familiar e comunitária. Com o atendimento de crianças, adolescentes e jovens, nas áreas de educação básica e assistência social, em dezoito cidades brasileiras, distribuídas entre os estados do Paraná, de Santa Catarina, do Mato Grosso do Sul e de São Paulo, as unidades sociais e educacionais maristas estão presentes em mais de setenta espaços, nos quais, por meio de uma participação qualificada, constante e proativa, promovem a incidência na formulação, implementação e fiscalização de políticas públicas para a população infanto-juvenil em diversos conselhos de políticas públicas e de direitos, redes socioassistenciais, fóruns dos direitos municipais e regionais, comissões, etc. Nesses espaços, temas como educação, alimentação, assistência social, cultura, educação infantil, juventude, economia solidária, saúde mental, transportes e equidade racial são analisados, debatidos e deliberados, sempre considerando a perspectiva da proteção integral e da garantia de direitos humanos de crianças, adolescentes e jovens. Contribuiu ainda com o debate de temas que afetam a vida das crianças, promovendo articulação e mobilização da sociedade civil organizada em busca do exercício de seu protagonismo. A expertise de buscar a transformação social em âmbito nacional e local é fortalecida pela atuação internacional, na medida em que os maristas realizam intervenções políticas em diversas partes do mundo, por meio de coalizões e grupos específicos, em nome da Fundação Marista de Solidariedade Internacional (FMSI), que há mais de dez anos está envolvida no campo da solidariedade internacional com o propósito de tornar o mundo um lugar melhor para crianças e jovens. A FMSI possui status consultivo no Comitê dos Direitos da Criança, interagindo com a Organização das Nações Unidas e suas agências e atuando com o jeito marista, que considera a criança e o adolescente seres únicos, protagonistas e detentores de direitos humanos, independentemente de sua localização no planeta.

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Incidência pela criança em contexto prisional: uma breve história Ampliar a percepção da sociedade sobre os temas que envolvem a população infantojuvenil, seja promovendo novas perspectivas e olhares sobre realidades já postas, repercutindo temáticas que necessitam de maior debate ou reflexão, seja dando visibilidade a assuntos pouco ou não tratados, também é uma forma de interferir na sociedade. E foi exatamente por compreender a importância de dar visibilidade à existência de violações de direitos que não ocupam espaço na agenda pública que a Rede Marista de Solidariedade ingressou no universo da criança que vive em contexto prisional. A partir de um projeto desenvolvido pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), cujo objetivo era levar para as mulheres em privação de liberdade atividades que promovessem a educação, a profissionalização e a inserção social, a RMS se deparou com a situação de invisibilidade de crianças que viviam com as mães privadas de liberdade. O projeto em questão foi realizado na Penitenciária Feminina do Paraná (PFP) e também na Creche Cantinho Feliz, criada pela PFP em 1990 e gerida pela penitenciária, para ser uma área reservada para as crianças e suas mães. Entre maio e julho de 2013, os pesquisadores da PUC registraram situações que compuseram o contexto da penitenciária e da Creche Cantinho Feliz, permeado de diversos pontos críticos. Os aspectos de segurança eram privilegiados no funcionamento do espaço e as crianças eram submetidas à rotina da penitenciária, sendo obrigadas a fazer as refeições e a dormir nos mesmos horários de suas mães. A alimentação das crianças era a mesma das mulheres, sem preocupação com questões alimentares e de desenvolvimento para cada faixa etária das crianças que residiam no espaço. Não havia critérios para o tempo de permanência da criança junto às mães, processos estruturados e definidos de transição para a saída da criança ou para a inserção dela na escola municipal. Na ausência das mães das crianças, as agentes penitenciárias desempenhavam o papel de cuidadoras, inclusive durante a noite. No entanto, o escopo funcional de atuação dessas profissionais não prevê formação e orientação para esse tipo de atividade. Durante a noite, bebês e crianças com necessidades ou dificuldades comuns, como medo, fome, fezes, choro, não recebiam, via de regra, um amparo mais cuidadoso, tão importante nessa fase de desenvolvimento. O direito ao convívio com a mãe e com a família extensa não era privilegiado, tampouco regulado por dispositivos adequados.

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Diante desse cenário, as áreas estratégicas da RMS decidiram buscar mecanismos que não somente cessassem as inúmeras violações de direitos e situações degradantes às quais esses bebês e crianças eram submetidos dentro do cárcere das mães, mas também trouxessem luz a um problema que grande parte da sociedade nem sabia da existência. Começa então com muitos estudos, consultoria externa, pesquisas de campo e articulação de profissionais de diversas áreas um movimento profundo de compreender o problema, estudar possíveis condições para amenizar a situação, identificar atores para apoiar propostas de projetos e localizar potenciais fontes de recursos humanos e financeiros. Do campo do estudo, passou-se ao campo da prática, nascendo então em 2014 o projeto especial Centro Social Marista Estação Casa. A Estação Casa tem como áreas de atuação a promoção dos direitos, traduzido no atendimento direto dos bebês e de suas mães, e a defesa de direitos, estruturado por meio da incidência política e advocacy. A realização de incidência política nos três níveis da federação, para colaborar com a construção de metodologias e subsídios capazes de contribuir para a formulação de políticas públicas e para a visibilidade do tema, a partir da experiência prática, foi a estratégia de defesa de direitos escolhida pela RMS. Diante dos pontos críticos identificados, alguns princípios orientadores da intervenção marista em favor das crianças em contexto prisional foram estabelecidos para a atuação com bebês e suas mães e para o trabalho de defesa dos direitos dessa população no poder público e na sociedade. A prioridade absoluta para a criança deve ser respeitada, promovida e garantida, independentemente do local em que essa criança se encontre. A condição de privação de liberdade da mãe não deve ser estendida ao filho, tampouco impedir o conjunto de direitos das crianças, como a promoção de vínculos familiares, do direito a atendimento de saúde e de condições adequadas para o desenvolvimento social, psicológico, motor e emocional em suas diversas etapas. A produção de serviços de apoio para as crianças deve estar pautada na articulação entre diferentes atores, em respeito ao que é preconizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, pelo Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária e por outros documentos nacionais e internacionais. O orçamento dos governos e de outras fontes de recursos públicos deve prever financiamento de políticas específicas para promover os direitos das crianças que estão com as mães privadas de liberdade e daquelas que estão vivendo longe das mães em razão do cárcere. Ao mesmo tempo que a proposta de atuação da equipe de profissionais da RMS para o atendimento das crianças que estavam na Creche Cantinho Feliz começou a ser desenhada,

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foram sendo desenvolvidas ações que buscassem atenuar as principais violações das crianças que viviam naquele contexto. As equipes da RMS e da recém-criada unidade social Estação Casa articularam parcerias no governo do Estado do Paraná com a Secretaria de Estado da Justiça, Trabalho e Direitos Humanos (SEJU), à época gestora do Departamento Penitenciário do Estado do Paraná (DEPEN/PR) e da penitenciária feminina que permitiu o início das atividades da unidade social com as crianças. Articulações com o poder executivo de Piraquara, para o atendimento das crianças em idade escolar pela rede pública de educação, e com a Secretaria de Saúde, para a verificação da situação dos registros de vacinação e avaliação clínica dos bebês e das crianças, foram providências tomadas para garantir direitos básicos. Dar conhecimento das violações de direitos ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Piraquara e provocar a atuação da promotoria da infância e juventude local também foram intervenções institucionais realizadas para construir um novo cenário para as crianças atendidas pela unidade marista. A interface entre a equipe gestora da Estação Casa e a direção da Penitenciária Feminina possibilitou à equipe marista acessar as instâncias que discutiam a questão da mulher privada de liberdade no Paraná. A partir de uma indicação e convite da própria direção da Penitenciária, a Rede Marista de Solidariedade se inseriu nas discussões paranaenses acerca dessas políticas.

Breve cenário: política nacional, estadual e poder judiciário No contexto de análise dos problemas relativos ao encarceramento feminino brasileiro, permeado pelas diversas formas de discriminação que envolvem a mulher no âmbito da justiça criminal e na esfera penitenciária, o Ministério da Justiça, por meio do Departamento Penitenciário Nacional, elaborou, em 2014, a Política Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional. Essa política traz cenários importantes sobre o déficit carcerário feminino, o aumento do ingresso de mulheres no sistema prisional e a falta de políticas específicas para dar conta da construção de novas vagas e de um olhar diferenciado à questão de gênero que contribua com a construção de práticas mais

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humanizadas de atenção a essa população. A política nacional pretende, ainda, enfrentar os desafios da integralidade das políticas criminal e penitenciária com as diversas políticas sociais de proteção às mulheres e aos seus filhos. Para buscar a efetivação da política nacional, coube aos Estados brasileiros, por meio dos órgãos estaduais de gestão do sistema prisional, a incumbência de elaborar suas Políticas de Atenção Integral às Mulheres Privadas de Liberdade e Egressas do Sistema Penal. No Paraná, em 2015, o Departamento Penitenciário (DEPEN) publicou a Portaria nº 1.015/2015, que institui a Comissão Permanente para Formulação, Implantação e Implementação da Política Estadual de Atenção às Mulheres Privadas de Liberdade e Egressas do Sistema Penal do Estado do Paraná (PEAME). Essa comissão foi composta por dezesseis servidoras de áreas estratégicas do Departamento Penitenciário e mais dez instituições parceiras: Tribunal de Justiça do Paraná, Secretaria de Estado de Trabalho e Desenvolvimento Social, Secretaria de Estado da Educação, Secretaria de Estado da Saúde, Casa Civil, Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Paraná, Universidade Federal do Paraná, Conselho Penitenciário do Paraná e Ministério Público do Estado do Paraná. Para garantir a defesa dos direitos de bebês que estavam vivendo com as mães na penitenciária, a Rede Marista de Solidariedade foi convidada a integrar essa comissão e incidir diretamente no plano estadual que estava sendo elaborado. A experiência prática do atendimento que ocorria e a profundidade dos conceitos e conhecimentos da importância do respeito ao pleno e saudável desenvolvimento infantil colocaram a instituição na condição de único membro da sociedade civil organizada a integrar a Comissão. Cria-se, então, naquela proposta de Plano Estadual, o eixo Primeira Infância, no qual se inclui a defesa dos direitos da criança que vive em contexto prisional, definindo objetivos e metas para garantir direitos fundamentais. O registro de nascimento com nome do pai, importância do aleitamento materno com orientação e estímulo, calendário vacinal assegurado, acompanhamento do desenvolvimento e crescimento seguro, com ações de puericultura, realização dos testes de saúde disponíveis (teste do pezinho, orelhinha, dentre outros), são foco do eixo voltado à primeira infância das crianças vivendo no cárcere. Orientação permanente das mães, estabelecimento de pareceres e relatórios individuais, com base nas recomendações do Ministério Púbico, dentre outros objetivos estratégicos, foram incluídos no Plano. Essa amplitude de olhar pelo direito ao desenvolvimento integral da criança passou a fazer parte das discussões da Comissão e compor as diretrizes do Plano Estadual, a partir do trabalho marista dentro da penitenciária e fora dela, por meio da incidência política.

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Ainda na esfera estadual, coube à equipe da Estação Casa conquistar espaço para mostrar ao Conselho Estadual da Criança e do Adolescente do Paraná os desafios enfrentados por essa população e colocar o debate na pauta do principal órgão definidor de política pública. Até então, as violações praticamente não figuravam entre as demandas para debate por parte dos conselheiros estaduais, e as devidas intervenções de responsabilidade desse Conselho não integravam as pautas políticas do órgão. Buscando influenciar e contribuir para a estruturação de políticas públicas que vinham sendo debatidas por diversos órgãos, os profissionais envolvidos na Estação Casa estavam sempre disponíveis e passaram a ser requisitados para contribuir com seus conhecimentos e experiências. Em 2016, o Ministério da Justiça, por meio do Departamento Penitenciário Nacional, da Diretoria de Políticas Penitenciárias e a Coordenação de Políticas para Mulheres e Promoção das Diversidades, promoveu em Brasília um workshop com o tema “Convivência Mãe-Filho(a) no Sistema Prisional”. Esse encontro contou com a participação marista e, mais uma vez, reiterou a postura de defesa de direitos dessa população, ressaltando a importância dos cuidados com os bebês, nas mais diversas etapas para o desenvolvimento integral deles em um contexto que não é favorável, tampouco seguro para uma criança. O resultado do workshop foi a elaboração das Diretrizes para Convivência Mãe-Filho(a) no Sistema Prisional, documento nacional que aborda temáticas como acolhimento e convivência das crianças com as mães, manutenção dos vínculos familiares e contato com o mundo exterior, promoção dos direitos fundamentais das crianças, espaços de convivência mãe e filho, dentre outros assuntos. O documento apresenta um conjunto de propostas voltadas à maternidade na prisão, observando as normas internacionais e nacionais sobre o tema. Ainda no âmbito nacional, a RMS pautou a invisibilidade e violação dos direitos de bebês e crianças em contexto prisional no Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e ainda inseriu o tema no II Plano Decenal da Assistência Social (2016/2026), na diretriz 5 – Plena Integralidade da Proteção Socioassistencial, durante a X Conferência Nacional de Assistência Social, a partir da inclusão desse grupo populacional entre os públicos de atuação dessa política. A compreensão das variáveis relacionadas à maternidade no cárcere exigiu das equipes maristas uma interlocução com diversos órgãos estaduais ligados ao tema, dentre eles o poder judiciário e as secretarias de políticas públicas. O Marco Legal da Primeira Infância (Lei n° 13.257 de 8 de março de 2016) que estabelece princípios e diretrizes para a formulação e a implementação de políticas públicas

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para a primeira infância em atenção à especificidade e à relevância dos primeiros anos de vida no desenvolvimento infantil e no desenvolvimento do ser humano, promoveu importantes alterações no Código de Processo Penal. Pela alteração, o juiz poderá substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 anos de idade ou com deficiência; estiver gestante a partir do 7.º mês de gravidez ou no caso de uma gestação de alto risco ou mulher com filho de até 12 anos incompletos. No entanto, essa substituição da prisão preventiva por domiciliar, cumprida com o uso de tornozeleira eletrônica, requer um olhar apurado do juiz, celeridade na análise dos processos, a existência de condições e o constante cuidado no acompanhamento para o cumprimento da pena. As audiências de custódia também influenciam o encarceramento feminino. Esse mecanismo visa à garantia da rápida apresentação do preso a um juiz nos casos de prisões em flagrante. A ideia é que o acusado seja apresentado e entrevistado pelo juiz, em uma audiência em que serão ouvidas também as manifestações do Ministério Público, da Defensoria Pública ou do advogado do preso. Durante a audiência, o juiz analisará a prisão sob o aspecto da legalidade, da necessidade e da adequação da continuidade da prisão ou da eventual concessão de liberdade, com ou sem a imposição de outras medidas cautelares. Cabe, nesse momento, contextualizar o cenário da vida familiar da mulher, se tem filhos, se eles estão sob cuidados de outras pessoas ou se podem ficar aos cuidados de outros, se as crianças estão bem de saúde, e demais informações que possam e devam influenciar a decisão do juiz em substituir a prisão preventiva, em casos de flagrante, por prisão domiciliar. Ao mesmo tempo, essas entrevistas servem para apoiar o julgamento dos casos para que as decisões relativas aos processos criminais dessas mães acusadas de crime sejam julgadas com maior brevidade, promovendo uma definição quanto à sua situação penal e o impacto em relação à vida dos filhos. A partir da necessidade de maior rigor no acompanhamento das prisões provisórias e na fiscalização das condições dos presídios, revelada pelos mutirões carcerários promovidos pelo Conselho Nacional de Justiça em vários estados brasileiros, foram instituídos os Grupos de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF), no âmbito dos Tribunais de Justiça de todo o país. Além das atribuições já mencionadas de fiscalização dos presídios e acompanhamento das prisões provisórias, o GMF tem como missão planejar e coordenar os mutirões carcerários realizados pelos próprios tribunais e acompanhar o cumprimento das recomendações, resoluções e dos compromissos assumidos em relação

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ao Sistema Carcerário nos seminários promovidos pelo CNJ. Em razão das competências do Tribunal de Justiça e do GMF, uma das estratégias executadas no campo da incidência da Estação Casa é a relação direta com esses órgãos, buscando, além de compreender as variáveis que envolvem tais situações, promover contribuições na perspectiva da defesa dos direitos da criança que vive em contexto prisional. Articular os gestores estaduais nas áreas da saúde e da assistência social também integra o rol de ações realizadas na área de incidência. A partir do trabalho de aproximação do bebê em contexto prisional com sua família extensa, visando à mínima permanência da criança na penitenciária, a equipe da Estação Casa identificou as lacunas das redes socioassistenciais dos municípios de origem dessas famílias. Equipamentos como os Centros de Referência de Assistência Social e os Centros Especializados pouco ou nunca se apropriaram das circunstâncias que envolvem os filhos das famílias cujas mães estão privadas de liberdade e a inserção deles quando retornam para suas cidades de origem, sejam acompanhados das mães, para viverem em famílias extensas ou para serem abrigados em instituições de acolhimento. Para os profissionais da Estação Casa, todas as oportunidades surgidas para debater e tratar o tema trazendo à tona as violações, apresentando propostas de intervenção consistentes, provocando a articulação dos diversos atores do executivo, legislativo, judiciário e promotorias são aproveitadas como estratégias de defesa dos direitos.

Plano de incidência do Centro Social Marista Estação Casa O trabalho de incidência que vem sendo realizado nos últimos cinco anos possibilitou avanços importantes em relação aos direitos fundamentais das crianças e dos bebês e ainda para a gestantes atendidas pela Estação Casa. A garantia de certidão de nascimento, de atendimento médico e acompanhamento da saúde das crianças por meio de prontuário individual, vacinas obrigatórias, atividades próprias para o desenvolvimento emocional e físico dos bebês, direito à amamentação ou a alimentos complementares, em casos específicos, comunicação direta e permanente com a Vara da Infância e Juventude local, com todas as informações necessárias sobre os bebês, e busca ativa da família extensa são frutos da constante articulação e incidência com diversos setores.

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Para além da garantia dos direitos dos bebês atendidos pela Estação Casa, a RMS atua para promover a criação de políticas públicas voltadas aos direitos das crianças em contexto prisional, incluindo aquelas que vivem longe das mães em razão da privação de liberdade. Para tanto, em 2018, a Rede Marista também passou a integrar a Comissão Especial sobre a política de atenção às crianças com mães em situação de prisão e egressas. Essa comissão foi criada pelo Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDCA-PR) a partir da provocação da comissão da PEAME, por sugestão da Rede Marista. A comissão do CEDCA-PR é composta ainda pelo Ministério Público, Tribunal de Justiça, a Ordem dos Advogados do Brasil, a Secretaria de Segurança Pública e o Departamento Penitenciário do Paraná. O objetivo desse grupo é analisar o impacto causado nas crianças e nos adolescentes nesse contexto e propor políticas e programas para atender a essa população. A incidência política e o advocacy são um conjunto de ações dirigidas aos governos com o objetivo de apoiar uma lei ou política, programa, decreto, ou para tentar mudar ou abolir uma política. Deve ser um processo planejado que requeira uma estruturação de ações, com objetivos, metas, identificação de cenário, previsão de recursos, busca de parcerias, identificação de opositores, mobilização dos organismos envolvidos e da sociedade. A busca por alterar o status de uma situação exige um trabalho específico e constante, considerando que o cenário social e as legislações estão em permanente mudança. É um trabalho cujo resultado pretendido é a transformação de valores e crenças da sociedade, ampliando o conhecimento sobre os problemas vivenciados e sobre as responsabilidades de cada agente para mitigar ou resolver os problemas. Busca-se alterar a percepção da sociedade sobre o papel dos atores políticos diante dos desafios vivenciados e identificar a responsabilização da atuação desses agentes, seja por ação ou omissão, conforme cada contexto. Pretende-se ainda ofertar informações, dados e subsídios de análise aos cidadãos e às instituições sociais organizadas, para que possam conhecer as realidades e o seu papel diante de cada situação. Com isso, os processos democráticos de participação e controle social são ampliados e fortalecidos. A base do trabalho de defesa de direitos da RMS está estruturada em um plano estratégico de incidência política e advocacy, construído para dar suporte às ações e intervenções realizadas, buscando alterar, a partir de ações concretas, o cenário de violações e invisibilidade em relação ao tema e contribuir para políticas e programas públicos, com orçamento próprio, fiscalizados e acompanhados pelas instâncias de controle social do Estado.

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O plano de incidência está organizado em quatro grandes eixos temáticos: comunicação, ativação de redes e coalizões, políticas públicas e monitoramento. Para cada eixo estão previstas ações estratégicas que buscam influenciar as condições relativas às condições de vida das crianças dentro das penitenciárias e das crianças que vivem longe das mães por causa do cárcere. Estratégias como articular ações conjuntas com outros órgãos governamentais, compor comissões especiais de trabalho, provocar a reflexão da sociedade por meio dos meios de comunicação, apresentar propostas de diretrizes nacionais sobre o tema, pautar o assunto em espaços de controle e mobilização social, integrar redes que discutam o tema, provocar a produção de estudos e pesquisas, produzir conhecimento especializado, contribuir com a organização de dados e informações de qualidade, promover seminários e participar de encontros são ferramentas de atuação distribuídas entre os eixos do trabalho do plano executadas por profissionais da RMS. As principais mensagens que o plano de incidência tenta disseminar são: a importância do cumprimento da legislação em relação às mulheres com filhos privadas de liberdade, a garantia de um parto humanizado, a preservação do vínculo materno durante o período do aleitamento, a existência de espaços adequados para os bebês enquanto estão com as mães, o estabelecimento de ritos de saída da criança da penitenciária, com ou sem a mãe, de maneira segura e com o mínimo de traumas, a atenção intersetorial das políticas públicas para os filhos de mulheres encarceradas e daquelas que cumprem penas alternativas, a desconstrução do senso comum sobre o tema e responsabilização do Estado brasileiro para a garantia dos direitos fundamentais desses bebês e dessas crianças. Vale destacar que as ações e estratégias previstas no plano de incidência são monitoradas e revisitadas sempre que o cenário externo, tanto local como nacional, sofre alterações legislativas ou políticas, dada a dinâmica e complexidade do tema. Ao enveredar por esse campo de atuação, a RMS constrói, com base em seus valores institucionais, um modelo de fazer advocacy e incidência política, ambos estratégias pautadas e orientadas pelo enfoque em direitos humanos de crianças, adolescentes e jovens, objetivando contribuir para a construção de políticas públicas, dar visibilidade ao tema e colaborar para uma mudança de perspectiva da sociedade sobre essa situação.

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Referências BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal. CONVENÇÃO Internacional sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas, 1989. BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 13 out. 1941. Disponível em: <http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689.htm>. Acesso em: 19 dez. 2018. BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o estatuto da criança e do adolescente, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 16 jul. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm>. Acesso em: 12 dez. 2018. BRASIL. Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016. Dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, a Lei nº 11.770, de 9 de setembro de 2008, e a Lei nº 12.662, de 5 de junho de 2012. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 9 mar. 2016. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13257.htm>. Acesso em: 19 dez. 2018. PARANÁ. Portaria nº 1.015/2015. Dispõe sobre a Comissão Permanente para Formulação, Implantação e Implementação da Política Estadual de Atenção às Mulheres Privadas de Liberdade e Egressas do Sistema Penal do Estado do Paraná – PEAME.

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DEPOIMENTO Rita de Cássia Rodrigues Costa Naumann

Um dos maiores desafios da minha trajetória profissional, como gestora de unidades penais por duas décadas, sem dúvida alguma foi assumir em 2011 a direção da Penitenciária Feminina do Paraná, onde permaneci por quase sete anos. Era uma unidade de regime fechado e segurança máxima, que atendia aproximadamente quatrocentas mulheres privadas de liberdade, mas o real desafio não eram as mulheres, e sim a existência das crianças no cárcere, o que deixa até mesmo o mais experiente profissional no sistema penitenciário em uma posição de impotência. Não há situação mais paradoxal, mais impactante e emocionante, que a presença de crianças no ambiente prisional. A Penitenciária Feminina é a única do estado do Paraná a atender recém-nascidos(as), filhos(as) de mulheres que foram presas ainda gestantes, atribuindo à Penitenciária muito mais responsabilidade e comprometimento com a causa da infância, pois o encarceramento feminino é um contexto extremamente complexo, e a presença de crianças nesse ambiente carcerário potencializa os desafios no cumprimento da lei e para que direitos sejam assegurados. No universo prisional feminino, é possível afirmar que são mínimas as reflexões sobre a proteção integral, a maternidade e a infância, devido principalmente à herança histórica das prisões femininas no Brasil; pois esse é um espaço predominantemente masculino em todos os níveis, como gestão, estrutura física, normas e procedimentos de segurança, serviços penais; portanto o raciocínio não acontece em função das necessidades e especificidades de gênero, e sim sob a ótica masculina, causando violações de direitos muito mais acentuados com as mulheres. Para que a invisibilidade reinante das mulheres no sistema penitenciário seja compreendida, é necessária uma retrospectiva na história quanto ao papel da mulher na sociedade, à criminalidade feminina e à origem das prisões femininas, pois o conhecimento desse processo histórico nos faz entender também a violência, a invisibilidade e o poder punitivo e suas diferentes facetas sobre a mulher.


Considero a privação de liberdade traumática e nociva para qualquer ser humano, mas significativamente mais dolorosa para as mulheres, diante das especificidades da questão de gênero, especialmente a maternidade, pois a prisão é um espaço de exclusão que potencializa vulnerabilidades. Essa condição de encarceramento coloca a mulher privada de liberdade em uma posição extremamente singular, que deveria ter um olhar diferenciado. A maternidade de mulheres que cometeram crimes tem uma carga extra de preconceito, discriminação, de desrespeito aos dispositivos legais com referência ao não encarceramento de mulheres gestantes e puérperas, reforçando a invisibilidade da mulher no sistema de justiça e a lógica punitivista. Se a invisibilidade da mulher é uma realidade nas prisões, a infância praticamente não existe. O que deveria ter um olhar diferenciado, por causa da fragilidade e vulnerabilidade da mulher e da criança, por estarem nesse momento de tanta adversidade, torna-se uma imensurável invisibilidade diante das políticas públicas, uma lacuna entre a legislação que assegura seus direitos e a realidade. Uma das maiores conquistas no período em que estive na direção da Penitenciária Feminina do Paraná foi estabelecer a parceria com a Rede Marista de Solidariedade, pois, devido à expertise que possui com a infância, a RMS conquistou um território fundamental na garantia de direitos dessas crianças. Por meio da Estação Casa, a Rede Marista de Solidariedade trouxe não apenas uma proposta educativa específica, mas outros avanços importantes, como visibilidade, credibilidade, vida, cor, energia positiva, força e a possibilidade de construção de uma política pública específica para os casos de exceção, das crianças que, por alguma circunstância, nasceram no espaço prisional. A implantação da proposta educativa da Estação Casa, e a chegada dos profissionais à penitenciária, exigiram que fosse estabelecido um processo de construção das relações, de respeito, de conhecimento da engrenagem da prisão, das sequelas deixadas por essa vivência no cárcere, das condições de aprisionamento. É um processo muitas vezes difícil, porém riquíssimo não apenas em termos profissionais, mas enquanto ser humano. Confesso que, a cada avanço, a cada conquista, a cada mudança na rotina das crianças na instituição, para que não estivessem pautadas no tempo e pelo espaço da prisão, eu comemorava muitas vezes silenciosamente, porém com a certeza de que era o único caminho a ser trilhado no processo de desenvolvimento das crianças. O caminho do direito, da parceria,

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da possibilidade, da construção, do respeito, da visibilidade, do reconhecimento da infância como prioridade absoluta, independentemente do lugar que estejam. O caminho ainda é longo nessa chaga social, e árdua a luta para que as instituições femininas sejam reconhecidas, para que seja efetivada uma política de desencarceramento especialmente para gestantes e puérperas, e para que sejam preenchidas as imensas lacunas com relação à infância na prisão. Mas também tenho certeza de que a Rede Marista de Solidariedade já mostrou que existe um caminho e, o mais importante, que é possível. Esses anos em que a proposta da Estação Casa foi concretizada foi apenas o começo, pois essa experiência brilhante poderá influenciar ainda o restante do país, com a traumática realidade de centenas de crianças vivendo intramuros. À Rede Marista de Solidariedade, e toda a equipe de profissionais que nela atuam, registro o meu imenso respeito, a minha eterna gratidão, o meu reconhecimento pelo excepcional trabalho realizado e a minha esperança de que essa parceria tenha continuidade, pois assim esse período da história ficará registrado como garantia de direitos e de humanização das mulheres privadas de liberdade e de seus(suas) filhos(as).

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CONSIDERAÇÕES Viviane Aparecida da Silva

Este trabalho está ancorado na história de muitas crianças e mães, e de muitos profissionais que, de alguma forma, se comprometeram a dar mais dignidade às infâncias que conviveram no Centro Social Marista Estação Casa, na Penitenciária Feminina do Paraná. Para a Rede Marista de Solidariedade, a relação com o tema se iniciou em maio de 2013, quando realizou uma pesquisa diagnóstica como apoio da Move Social, com enfoque nos efeitos da “vida na penitenciária” sobre as crianças. Foram realizadas oficinas, observações da realidade, leitura de registros, rodas de conversa com mulheres presas, profissionais e crianças, entrevistas com técnicos do Estado e do Município de Piraquara, aplicação de questionários e extensa leitura de legislação e literatura especializada. O relatório foi debatido pela Rede de Solidariedade e culminou na elaboração do projeto Estação Casa. Mas, antes dele, lá já existia o espaço “Cantinho Feliz”, que buscava fortalecer o olhar para os bebês que viviam com as mães na Penitenciária. A intenção que deu origem ao nome foi de uma moradia (casa) para as crianças, com rotina desatrelada da rotina da penitenciária, e provisória, uma estação transitória, considerando que o melhor para a criança não seria estar naquele lugar porque os aspectos de segurança são privilegiados no funcionamento do espaço, com consequências sobre as crianças, em especial regime de horários, relação entre mãe-agente-criança. Por esse motivo, a articulação de ações que favoreçam os laços familiares das crianças sempre esteve presente na metodologia do atendimento, bem como a produção de novos arranjos e serviços de apoio a elas, como, por exemplo, arranjos para a transição do bebê. A partir de sua implantação, os esforços da Rede voltaram-se para a garantia de recursos financeiros para as mudanças necessárias para a criança viver a plenitude de sua infância, mesmo com os limites impostos, já que se identificou naquele momento a ausência de políticas públicas específicas para atender às crianças, o que gerou certa incerteza técnica e jurídica, bem como sobre a sustentabilidade do projeto. Esse aspecto apontou para a necessidade de se criar um plano de incidência em políticas públicas que desse visibilidade às crianças que vivem em contexto


prisional com as mães e o impacto dessa realidade na sociedade. Para essa ação, estabeleceu-se como posicionamento a defesa do respeito à prioridade absoluta para a criança, e que os padrões de segurança máxima da penitenciária não devem atravessar e impedir o conjunto de direitos das crianças, tendo elas o acesso garantido tanto às mães quanto a outros atores e experiências fundamentais a seu pleno desenvolvimento, considerando que todas as formas de discriminação e isolamento das crianças com mães presas devem ser combatidas e evitadas. O atendimento às demandas das crianças, seus tempos e linguagens, bem como às diferentes necessidades de atenção, afeto, estímulo, orientação, nortearam a criação da proposta educativa do Estação Casa. A produção de serviços de apoio para as crianças esteve pautada na articulação entre diferentes atores, em respeito ao que é preconizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, e segundo padrões técnicos e éticos rigorosos, pressupondo o trabalho de profissionais adequados e a supervisão permanente de sua prática, à luz de outras experiências da Rede Marista de Solidariedade no trabalho com bebês. O olhar sensível para a maternagem também foi um dos pilares da proposta, que proporcionou às mulheres o direito de ser mães de seus filhos e de educá-los, de fortalecer vínculos afetivos e familiares, de acompanhar as decisões de transição dos filhos para a família, direito à amamentação, e de serem informadas e formadas sobre o desenvolvimento infantil. O projeto se consolidou no fortalecimento dos vínculos entre as mães e os bebês, e no exercício do protagonismo compartilhado em prol da garantia dos direitos dos bebês. A experiência do Estação Casa colocou em evidência a valorização do papel dos vínculos na primeira infância, particularmente o vínculo materno, num ambiente prisional não adequado para que a plenitude da infância seja vivida, com privações de experiências de vida cruciais para seu pleno desenvolvimento intelectual, social e afetivo. Coloca-se em relevo a importância da primeira infância no desenvolvimento humano, e a necessidade de um ambiente apropriado para os bebês, para que tenham a oportunidade de receber, no tempo mínimo que lá estiverem, condições adequadas de alimentação, afeto, segurança e cuidados. Posteriormente a esse tempo, há a esperança de que tenham na família o apoio necessário para crescerem seguras, saudáveis e protegidas, e que o Estado assegure com absoluta prioridade (art. 227 da Constituição Federal) os direitos dessa criança. Reforça-se com esta publicação a responsabilidade de todos em formular políticas de cuidado e educação para a primeira infância. No entanto, a invisibilidade desse público no contexto prisional e a grave situação das mulheres empobrecidas que incidiram na prática de crimes, aliada à ausência, muitas vezes da figura paterna e de redes de apoio, nos aponta para a complexidade do tema.

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Considerando os dados apresentados nesta publicação, fica o convite a darmos maior atenção ao tema mulheres e bebês que vivem em prisões, para fortalecer esforços preventivos do encarceramento e a rápida reinserção social. Medidas privativas de liberdade devem ser sempre a última alternativa, considerando as especificidades da gestação e do cuidado com a criança. Crianças em prisões jamais devem ser tratadas como presas, ou ter rotinas das presas, sempre pensando no melhor interesse da criança, e as mães precisam passar a maior parte do tempo possível com elas. A alta vulnerabilidade social dos territórios de origem dessas mães está intrinsecamente relacionada com a desigualdade de oportunidades gerada pela pobreza e pela ausência de uma rede de proteção social e por uma limitada presença do Estado. Mulheres jovens, mães, marcadas pela pobreza, de cidades do interior e das periferias das grandes cidades, constituem assim os assustadores dados estatísticos que colocam o Brasil na quarta posição da maior população feminina encarcerada do mundo. Assim, fazem-se necessárias políticas integradas, focalizadas na geração de emprego, nas oportunidades educacionais, nas ações estruturais abrangentes e sistêmicas, comprometidas com a mudança social e o aprimoramento das políticas públicas, principalmente para as populações mais empobrecidas. A Rede Marista de Solidariedade buscou contribuir no debate para a promoção de um novo ambiente técnico-político favorável à promoção e proteção dos direitos de crianças cujas mães estejam em privação de liberdade. Este trabalho objetivou desenvolver uma metodologia de atuação e dessa forma contribuir para a intervenção na realidade dos bebês e de suas mães, para assim destruir o muro da invisibilidade, da indiferença, do desconhecimento e do preconceito. Espera-se que a proposta lá aplicada seja inspiradora para outras experiências e, mais ainda, que o acesso a direitos básicos de cidadania seja garantido a todas as crianças brasileiras.

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SOBRE OS AUTORES Adriana Maria Matias Especialista em Questão Social pela Perspectiva Interdisciplinar da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Assistente Social pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Contato: matias.adriana@grupomarista.org.br Carla Tosatto Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR); pesquisadora e educadora das infâncias, atua como coordenadora educacional do Ensino Fundamental – Anos Iniciais do Grupo Marista/Rede Marista de Solidariedade. Contato: ctosatto@solmarista.org.br Cristiane Regina Arns de Oliveira Doutora em Ciências da Educação pela Universidade de Friburgo (Suíça). Atua à frente do Observatório de Educação para a Solidariedade pela Diretoria de Identidade Institucional da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e como professora do Departamento de Educação pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Contato: cristiane.arns@pucpr.br Henrique Costa Brojato Psicólogo, especialista em Psicopatologia Fenomenológica pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, em Antropologia Cultural pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e cursando Mestrado em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Atua como diretor do Centro Social Marista Propulsão – Grupo Marista/Rede Marista de Solidariedade. Contato: henrique.brojato@solmarista.org.br Ana Paula Ribeirete Baena Jornalista formada pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), atua como coordenadora de relações institucionais da área social do Grupo Marista/Rede Marista de Solidariedade. Contato: paula.baena@solmarista.org.br Viviane Aparecida da Silva Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pesquisadora do grupo de pesquisa em currículo: questões atuais, da PUC-SP, atua como gerente educacional da área social do Grupo Marista/Rede Marista de Solidariedade. Contato: vasilva@solmarista.org.br Yara Rodrigues de la Iglesia Doutora e Mestre em Educação pela Universidade de Lisboa, pedagoga pela Universidade Luterana do Brasil, Porto Alegre. Atua como professora no Curso de Licenciatura em Pedagogia da Faculdade São Braz. Contato: yara.la@grupomarista.org.br

SOBRE OS AUTORES




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