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Cultura | O meu pé como nunca o tinha visto| PhD António Delgado
PhD António Delgado Docente Universitário Investigador no CIEBA- U.Lisboa
CULTURA
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A Arte e a Vida O meu pé como nunca o tinha visto
Apesar da nossa época ser retrospectiva (a ideia de memória está em todo o lado), não deixa de ser igualmente prospectiva. Razão pela qual exporei parte da realidade que vivi por estes dias, associada à ideia do corpo e suas sensações.
Apesar de sermos um corpo, também temos um corpo, e só em estados de limites como o prazer e a dor percebemos esta última realidade. Uma contrariedade temporária num pé, ao caminhar, alterou o meu diaa-dia durante dois meses e por prescrição médica, obrigou-me a estar imobilizado e de perna estendida. A mencionada contrariedade incentivou-me a ver a representação deste elemento no âmbito da Arte (Escultura, pintura e derivados) no binómio “ARTE E VIDA”.
O resultado são parte das ideias e imagens que apresento, sem deixar de fazer uma indagação pelo Corpo e a Paisagem/Natureza, no âmbito da relação das belas Artes com a medicina.
A Arte nos seus múltiplos sucedâneos (mapas, gravuras, xilogravuras, litografias, fotografias…) que foram impulsionados para serem reproduzidos por meios mecânicos ajudaram-nos a entender melhor o mundo e a torná-lo mais pequeno e próximo do nosso olhar. Acrescido agora pelo infindável universo de “imagens” que emergem nos meios digitais ou em plataformas (cinema, vídeo e bancos de imagens) nas radiografias, endoscopias, TAC, Ressonâncias magnéticas, Esquemas, Gráficos… em infindáveis sistemas visuais que ampliaram a imensa “ICONOSFERA” em que o mundo se transformou.
Não é menos verdade que se impõe conhecêlo por substitutos em vez da sua própria realidade. Se antes a descoberta da imprensa já tinha possibilitado esta realidade, agora a “Arte na era da sua reprodutibilidade técnica”, tornou a imagem predominante na percepção do mundo: até já dizemos “estou a ver” em vez de “estou a compreender”, como anteriormente.
Caberá perguntar, terá o “Olho” substituído o cérebro e porque razão as imagens ao serem imediatas e contrariamente às palavras tão acessíveis a todos, em todas as línguas, não têm competências e aprendizagens prévias? É uma questão à qual não sei dar resposta, mas sei que, o ser humano para falar entre si pode entender-se de um extremo ao outro da terra, pela mediação de intérpretes ou tradutores, mas não há dicionários que traduzam o visível: «O olho escuta» mas não ouve o olhar do outro, mas pela palavra a realidade numa cultura é mera ilusão no outro…assim se inventou a torre de Babel e no presente o Diálogo entre Culturas e na religião o Ecumenismo.

A espécie humana emerge na natureza, insatisfeita com ela e ao contrário dos outros seres, usa o artifício para dominá-la e dominálos. Vive nesta terra mas imagina outras para viver. Recentemente Grupos de bilionários manifestaram querer colonizar outros planetas, como se a ideia fosse numa nova versão patriarcal da história como fez Abraão ao sair da UR. Estes bilionários são uma espécie de Ciro que como aquele querem a supremacia do mundo conhecido para serem o seu senhor, dominando-o pelas tecnologias e a difusão de imagens…

Creio que um dia surgirá uma História da Fantasia Humana, mostrando o corpo como o único centro de operações onde tudo isto se gera. Alguns optimistas ao longo da história designaram o corpo como um templo. Pessoalmente, a ideia que dele nos dá Luciano de Samosata, no livro “ diálogo dos mortos” é aquele que mais aprecio, por ser filha do humor, mas lapidar e muito actual em relação às fantasias.
Há muitas “Histórias de Corpo” com apologias a fragmentos dele e até há quem assegure algumas partes, como fez a cantora Tina Turner com as suas pernas. Na cultura ocidental e mesmo universal, é recorrente o mito do corpo fragmentado e esquartejado, como nos ensinam os mitos da fecundidade ou até a eucaristia cristã com o corpo de Cristo dividido para comunhão. Numa visão antropológica cada parte do corpo, tem uma conotação e simbologias próprias e no trilho da evolução humana é a relação mão cérebro a mais referida. Recordo por exemplo, mais recentemente, no período moderno, que Adam Smith argumentou em termos económicos que numa sociedade bem governada, fazendo uma apologia simbólica à ideia da mão, para dizer que quando os mercados não são regulados é a “mão invisível” que os estabiliza. Esta ideia da “mão invisível” pode ver-se no âmbito religioso para factos inexplicáveis e não é difícil associar a Mão de Deus para explicar o que não se conhece como Maradona fez, ao ser acusado de marcar um golo com a mão que os árbitros não viram ou não quiseram ver.
No início do século XX Robert Hertz realizou um estudo muito interessante cujo título menciono na língua original “La prééminence de la main droite: étude sur la polarité religieuse” (A proeminência da mão direita: estudo sobre a polaridade religiosa), nele aborda a preponderância da mão direita na sociedade Ocidental e Cristã. À conta dessa preponderância assisti, em criança na escola primária esquerdinos serem obrigados a escreverem com a mão direita e até castigados. Vem-me igualmente à memória relatos do meu falecido pai, sobre os castigos na escola, por ser esquerdino. Tudo código de signos e simbologias postas em prática, por programas de Estado e a Sociedade (família, escola, religião, exército…) construídas por um elemento corporal que se queria comum. O livro que mencionei, apesar de ter um século continua a ser de leitura muito refrescante e aconselho-o!
O Pé
Todo este preâmbulo é devido ao Pé, que ao contrário da Mão, carece de análise simbólica para explicar o sentido de verticalidade humana e ser o suporte que aguenta o corpo na sua posição erguida. Mas que também o desloca de um sítio ao outro: um recurso natural e único nos primórdios e que suscitou a viagem e o nomadismo mas igualmente a fruição do contacto e da visão. O Pé associase ainda ao movimento, à exploração e ao conhecimento.
Também pode ser a imagem da Alma e do carácter e entende-se como um símbolo de poder quando alguém se prostra aos pés de outro ( FIG 1) ou se põe o pé em cima de alguém prostrado chão, como o mais humilhante desprezo pelo outro ( FIG.2). Ao contrário é sinal de humildade beijar ou lavar os pés de alguém como fazem os clérigos na época da Páscoa e noutras ocasiões. Há uma imensa tradição oral, literária e iconográfica sobre estas duas realidades. As Artes Plásticas estão repletas delas e no século XX, os artistas Neo Realistas representaram pessoas de pés desproporcionalmente grandes como forma de denúncia contra a exploração humana e falta de condições de trabalho ou estados de pobreza extrema por esse mundo fora ( FIG 3 ). A expressão “Pés descalços” continua muito actual.


No Egipto faraónico a representação dos pés nas esculturas, teve enorme importância simbólica, dado o realismo singular concedido aos pés das estátuas, em contraposição com o torso, fazendo suspeitar o sentido do pé no apoio firme na terra para estabelecer um nexo com a altura mediante a verticalidade. Não é descabido recordar que na fase de hominização a posição vertical sobre as duas pernas serviu para atemorizar os demais animais.
A imagem de RX (FIG 4) Representam o meu pé “COMO NUNCA O TINHA VISTO”. Pela primeira vez, apercebi-me visualmente, da estrutura óssea que o compõe e das formas que o delineiam. De facto as tecnologias médicas associadas à imagem permitem caminhar, se bem que de forma imaginária, a um lugar inacessível ao olhar comum. Mapeálo e cartografá-lo numa viagem visual com o pretexto de perseguir e detectar essa sombra onde se oculta a maleita geradora de dor.


FIG. 7 - Escultura de Charles Alphonse Achille Gumery “Aquiles ferido no calcanhar por Paris”.Este trabalho ganhou o prestigioso Prix de Rome em 1850. A estátua mostra Aquiles virando-se de lado para olhar para o ferimento em seu calcanhar ao ser atingido pela flecha de Paris. O escultor mostra o guerreiro despreocupado inspecionando o calcanhar, que vai finalmente matá-lo.
Numa iconografia narrativa que tem simbolicamente a ideia da angústia psíquica, da insegurança pessoal ou mesmo a ideia da permeabilidade do carácter humano gerado pela dor física onde ela surge como meio comunicativo. É a dor a geradora destas tecnologias e de toda esta nova iconografia gerada por elas. Um dia quando se quiser estudar a iconografia da dor estas e outras imagens serão fundamentais, no campo das Belas Artes, na sua componente, a História de Arte.
Mas estas máquinas também desvelam como o corpo não é um lugar de santidade nem uma realidade idealizada mas sim uma especificidade biológica: um imenso universo que endoscopias podem-nos desvelar em tantas imagens, esquemas e diagramas como os satélites nos mostram a terra, ampliam a nossa noção de entender o cosmos de forma incomensurável e aparentemente sem segredos. Quantas cirurgias se fazem com recurso à imagem de vídeo?
É pelo sentido prospectivo oferecido pelas tecnologias que podemos encontrar os múltiplos meios produtores de campos e dialécticas artísticas futuras e francamente cativam-me de igual modo como o sentido retrospectivo, patrimonial e material das anteriores imagens.
Expresso ainda, que a representação do corpo de forma parcial e os diversos truncamentos dele, surgiram na Arte Ocidental a partir da segunda metade do século XIX, e no século XX consolidaram-se na sua autonomia estética. Anteriormente as representações parciais do corpo, estavam ligadas apenas ao retrato em busto e à cabeça. Mas na Arte Moderna do séc. XIX as esculturas de Rodin “homem do nariz partido” (FIG.5) ou “homem que caminha” (FIG.6) foram proféticas para toda arte dos séculos XX e XXI. Contribuíram para superar o tema da figura ou corpo parcial, para situá-lo no domínio do corpo defeituoso, incompleto, fragmentado e/ou mutilado, como forma de expressar a impetuosidade dos impulsos ou mesmo a avareza dos sentidos. A representação do “corpo parcial”, incide igualmente na sua dimensão psicanalítica e simbólica satisfazendo necessidades imperiosas e até mesmo dos desejos mais ocultos. Por outro lado, este tipo de representação parcial ou fragmentada do corpo, faz dele num sinal de corpo não integrado, no próprio Corpo Social e que, nos casos mais extremos, implica exclusão social.
O contorno das formas delineadas pelo raio X, mostrou o meu calcanhar, remetendome a imagem para uma visão retrospectiva, associada à sua simbologia no ocidental, através do “ Calcanhar de Aquiles. (FIG.7) Levando-me a viajar pela Odisseia e também a revisitar o mito de Tétis a mãe de Aquiles, ambos glosados na pintura por autores como Paul Rubens na forma como Hesíodo descreve a história na “ Teogonia” FIG 8. Mas o calcanhar humano também pode ser elemento de ataque para esmagar um animal qualquer ou servir para bater o pé com força no chão para manifestar raiva, ao jeito dos equídeos.
Na sua essência, um osso pode ser o resíduo que sobra do corpo deixado depois de desaparecer. Tem sentido funerário e uma extensa mitologia na cultura ocidental e das artes .
Se na parte superior o pus em evidência pela e a sua relação com a arte, suscitado por um acidente numa “Calçada portuguesa”. Caminhar nestes espaços é uma armadilha constante para os inadvertidos nas ruas das nossas cidades, vilas e aldeias. Torcer os pés, parti-los ou cair de forma aparatosa, forma parte de macabros caminhares em passeios desnivelados (depressões, elevações ou desalinhados).
Para concluir, este artigo emerge da relação que estabeleço entre a ARTE E A VIDA e expressa parte do que elaborei durante dois meses para registar diversas notas e ideias sobre autores circunscritos à representação do PÉ NA ARTE…
Apesar de já não estar engessado, a reflexão sobre continuará, provavelmente em próximas edições n

FIG. 8 - Pintura sem referencia de Autor. Nas profundezas do Tártaro, o Reino dos Mortos, é considerado o rio da invulnerabilidade. Quem se banhar nestas águas se tornaria, então, invencível; além disso, o Estige é conhecido por guardar as mais inquebráveis promessas. O desejo da ninfa era que seu filho crescesse e jamais sofresse a ira de nenhum mortal. Entre muitas figuras que passaram pelo rio, Aquiles é de fato o mais notável. Ainda bebé, Tétis segurou-o pelo calcanhar
