Vidas: crônicas, pensamentos e devaneios - Flavão

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Sou professor de matemática e tenho uma teoria de que toda questão dessa disciplina, que tanto amo, divide-se em quatro etapas:

1. Leitura: onde fazemos o levantamento das informações dadas no enunciado;

2. Interpretação: onde identificamos o comando da questão;

3. Decodificação: transformar tudo aquilo que foi lido, entendido e levantado em uma ou mais equações;

4. Resolução: quando elucidamos, finalmente, a(s) equação(ões) matemática(s) formulada(s).

Repararam que, das quatro etapas citadas, três delas dependem da língua portuguesa?

Se fosse uma proporção, diria que a interpretação de texto está para o matemático assim como a chave de fenda está para o mecânico. A interpretação é a minha ferramenta e, por isso, a escrita exerce um fascínio indescritível sobre mim. Uso a escrita para desabafar, para desopilar o fígado e, como todo nostálgico, para documentar os momentos que tiveram algum significado ao longo de minha vida.

Não é por acaso que adoro a tradução da linguagem em números. Uma vez, meu professor, colega de profissão, minha referência e meu amigo Rinaldo Diniz Costa me contou acerca do trabalho feito pelo psicólogo Albert Mehrabian, em 1950. Na sua pesquisa, ele apurou que a mensagem na comunicação interpessoal é transferida na seguinte proporção:

1. 55% da transferência é feita pelo gestual;

2. 38% é feita pelo tom de voz e

3. 7% é feita pelas palavras, a mensagem em si.

Essa informação é tão magnífica que precisa ser compartilhada. Quantas foram as vezes, em uma discussão mais acalorada, que alguém tentou levá-lo à razão com o argumento de que “o seu interlocutor estava certo e que você deveria encerrar o bate-boca”?

P R E F Á C I O

E aí, você retruca:

Mas ele não tinha que apontar esse dedo na minha cara!! Olha o gestual tendo mais importância para você do que aquilo que foi falado.

Ou então, você vira para o interlocutor e o adverte:

Fala baixo! Não grite comigo! Olha o tom de voz tendo a sua importância em detrimento daquilo que se deseja passar na mensagem.

Aqui, nesse livro, estaremos restritos a apenas 7% dos artifícios usados para a transferência da mensagem. Você não terá o meu gestual nem o meu tom de voz.

Espero que tenha êxito e você, por consequência, obtenha 100% de diversão.

Um grande abraço, Flavão.

O TRISTE FIM DO GOL VERDE

OTATU FOI a pessoa que mais conviveu comigo. Nos conhecemos na metade da década de 80. Começamos a compartilhar as derrotas e as vitórias a partir dos 18 anos. Uma dessas vitórias, das mais celebradas, foi a sua aprovação no vestibular da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, a UERJ. Lembro que suas notas foram ótimas. Lembro, inclusive, de fazermos uma comparação com outras carreiras e descobrirmos que, com tais notas, ele só não passaria para Medicina.

Ele arrebentou mesmo.

Vale lembrar que, ao longo daquele ano letivo, o fato dele ser um bom aluno acabou tornandose um grande problema. O seu pai, sabendo de sua capacidade, insistia para que ele fizesse vestibular para Engenharia, mas o sonho do Tatu era fazer Educação Física

Após algumas discussões, o pai aceitou ter um filho professor...

Com a aprovação para a Universidade Pública, o pai lhe deu um carro de presente: era um Volkswagen, modelo Gol, numa cor verde-claro (quase azul), onde não funcionavam os limpadores dianteiros, as lanternas acendiam apenas a parte traseira e a buzina mais parecia um fanho falando (e não gritando) “AAAMMMMM”.

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Sempre achei que seu pai tivesse dado aquele carro por vingança só por ele não ter prestado o vestibular para Engenharia, mas o Tatu sempre dizia que foi ele quem escolheu aquele carro. E eu sempre fingi que acreditava.

O carro era horrível. Só não era mais horrível do que o Tatu dirigindo.

Existem três histórias sobre o Gol Verde, que a gente sempre lembra: duas envolvem a péssima direção do Tatu, na época, e os problemas que o carro tinha; a terceira lembrança que me vem à mente, remete ao cuidado que o Tatu tinha com aquele automóvel.

Na primeira, para contextualizá-la, tenho que alertá-los que o Tatu dirigia com as mãos grudadas ao volante.

Acho que você não entendeu... Vou explicar: quando eu digo “mãos grudadas” é porque elas não deslizavam sobre o volante. Na hora de fazer uma curva, por exemplo, o Tatu ia girando o volante até os braços se cruzarem. Quando chegava ao limite, ele inclinava o corpo, descendo a cabeça quase no colo do carona, se a curva fosse para a direita, ou colocando a cabeça para fora do carro em caso de curva para a esquerda.

Numa das primeiras vezes que saímos com o carro, fomos a uma festa de 15 anos, no Alto da Boa Vista. A ida foi tranquila. Fomos eu, Tatu e duas amigas nossas, que moravam na mesma rua onde ficavam nossas casas. Apesar do céu nublado, não choveu. Para resumir: sem problemas para relatar nessa viagem de ida.

No fim da festa, duas coisas ocorreram e que a gente não esperava: a chuva já caía forte e a mãe de uma de nossas amigas pediu uma carona para o Tatu, já que o carro tinha uma vaga.

Ela definitivamente não sabia onde estava se metendo e se arrependeria amargamente desse pedido de carona.

Ao ligar o carro, lembramos do grande problema: o limpador não funcionava e penas as lanternas traseiras acendiam.

No início, o Tatu passava rente às muretas de proteção. Tudo escuro, sem farol, eu nem quis saber qual era o ponto de referência que ele tinha. Desconfiava que fosse a mureta. Quando chegava muito perto, ele fazia a curva.

A saída para resolver o problema da visão limitada foi a melhor: Tatu resolveu abrir a janela, mesmo caindo um temporal que molhava todo mundo dentro do carro, reduziu a velocidade para 20km/h, colocou a cabeça para fora do carro e assim foi descendo o Alto e evitando uma queda da ribanceira.

Nossa descida demorou bem mais do que o normal, mas o Tatu transmitia uma tranquilidade de monge tibetano, mesmo estando com metade do corpo para fora do carro e todo ensopado. O mesmo não posso dizer da mãe de nossa amiga. Todo o perigo da situação havia sido absorvido por ela e convertido em dentes trincados, dedos fincados no painel e no assento do carona e algumas palavras balbuciadas, que pareciam orações em voz baixa.

Eu e as meninas, no banco de trás, só ficávamos rindo.

A filha tentou, em vão, acalmar a mãe e quase apanhou na nossa frente.

Depois que chegamos, a mãe saiu do carro sem se despedir e carregou a filha com ela. Coincidentemente, a filha daquela senhora nunca mais aceitou carona do Tatu.

A outra história inesquecível, foi quando precisamos ir ao Centro da Cidade com o Gol verde. Na antiga Avenida Suburbana (hoje, Dom Hélder Câmara), na altura do Norte Shopping, Tatu para na direita, atrás de uma fila de ônibus, que se forma a uns 30 metros de distância do ponto. A fila vai se movimentando muito lentamente. Vendo aquilo, sugiro que ele saia daquela fileira, pois, se o ritmo permanecesse daquele jeito, chegaríamos atrasados ao nosso destino.

Tatu concorda comigo, olha para trás, dispensando o retrovisor, aposta que o espaço é suficiente, acelera o carro e joga o Gol Verde para a pista central.

Quando percorremos uns 10 metros, um ônibus da pista da esquerda começa a cruzar a nossa frente, nos fechando e dando toda a sensação de que não nos viu e iria fazer a manobra sem ter conhecimento de nossa existência.

Tatu não freia.

Nesse mesmo instante, um segundo ônibus, do nosso lado direito, começa a jogar para a pista central, também, com o objetivo de sair da fileira do ônibus, como fizemos cerca de 5 segundos antes. Da mesma forma que o seu colega de profissão à nossa esquerda, esse motorista de ônibus também parece não ter conhecimento do nosso Gol Verde.

Tatu não freia.

Um ônibus vindo da pista da esquerda para a pista da direita.

Outro ônibus vindo da pista da direita para a pista da esquerda.

Nosso carro sendo “sanduichado”, e querendo se manter na pista central.

Tatu não freia.

Quando observo o desenho da situação, instintivamente, começo a colocar uma mão no teto, outra no painel do carro, ao mesmo tempo que me afasto da janela localizada à minha direita.

O ônibus da direita está muito perto.

O Tatu não freia, mas buzina.

Só ouço um fanho falando “AAAAAMMMMM”.

Os ônibus se aproximam. A colisão é certa.

Vamos morrer.

Tatu, num ato desesperado, coloca a cabeça para fora e grita como nunca o vi fazendo:

AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHH!!!

Os ônibus freiam.

Nosso Gol Verde segue viagem e a gente fica em silêncio, sem falar sobre o assunto, até o dia seguinte.

Como disse, o Gol Verde nunca esteve em perfeitas condições e o zelo do Tatu para com o seu presente de aprovação no vestibular não ajudava muita coisa. O fim daquele carro mostra muito o que quero dizer

Apesar de ser extremamente desleixado com o seu carro, Tatu sempre foi vaidoso. Era comum ter um pente no seu porta-luvas ou em cima do painel. Ao sair do carro, era automático pegar o pente e dar uma ajeitada no seu cabelo.

Certa manhã, indo para a UERJ, Tatu leva consigo um punhado de balas SOFT. Chegando à Universidade, pega o pente, dá aquele jeito no cabelo e deixa o mesmo sobre o painel, perto de umas três balas SOFT restantes.

Vai assistir aula.

7 da manhã. O horário, na Universidade, era integral.

O calor daquele dia foi infernal. O maçarico foi aceso pelo Moço lá de Cima, às nove e meia e só foi desligado às cinco da tarde.

Quando Tatu chega ao carro para ir embora, já são 20 horas. As balas, totalmente derretidas. Aquele líquido proveniente da bala se juntou ao pente e enrijeceu assim que a temperatura amenizou com a chegada daquela brisa do entardecer e o cair da noite. O pente ficou grudado no painel. Nunca mais saiu.

Quando o Tatu vendeu o Gol Verde, o pente foi de brinde.

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