Filhos do sertão, Sebastião Kelvi Dantas

Page 1

FILHOS DOS SERTÃO

Sebastião Kelvi Dantas

1ª Edição

Rio de Janeiro-RJ/2024

Grupo Editorial Quimera

Ao meu Avôhai Zé Loneta

Este livro dedico ao povo que construiu o Brasil com as suas mãos.

Construíram as grandes capitais, construíram a cultura e a beleza de todo o país. Em memória dos que morreram no êxodo rural e ainda sofrem com a dureza da natureza e com a ignorância

Dedico ao Nordestino.

Também dedico esta obra a minha mãe, Katiucia Dantas, e a minha avó, Maria Dantas, que testemunharam de perto a dura realidade da vida sertaneja. E em especial, dedico a minha esposa, Carolaine Reis, que me apoiou e acreditou em mim. Amo você.

Eu estava no chão, olhando para as estrelas. O brilho do céu foi diminuindo e eu pude por fim acordar do pior pesadelo que já me ocorreu Mas, antes de tudo, vou te contar a minha história, como tudo começou, o começo do meu fim

Cuide do seu irmão, viu? disse minha mãe com um olhar de desespero.

Viu, mainha Nois vai pra onde? perguntei assustado.

Deus vai acumpanhar ocês! Vão logo!

Assim, eu e meu irmão saímos sem entender nada, não sabíamos pra onde ir. Então, ao sair pelos fundos de nossa casa, entramos correndo numa mata fechada e cheia de espinhos de mandacaru. Corremos assustados. Estava escuro, mas a lua estava cheia e conseguíamos ver algumas poucas coisas. Eu sentia um frio na espinha como se um lobisomem tivesse nos atacado e só conseguíamos correr. Até que o meu chinelo de couro enganchou em uma raiz de algum pé de umbu, e eu caí em cima de um mandacaru que acabou perfurando o meu olho esquerdo e arranhando o meu corpo. A agonia e a dor me tomaram. Meu irmão, coitado, não sabia o que fazer Éramos crianças, de apenas dez anos

Após retirar o espinho do meu olho, o sangue se misturou com o suor e as lágrimas, e o meu irmão tapou minha boca para não chorar, pra que ninguém pudesse ouvir a gente. Então, ficamos ali, parados no escuro, embaixo de um umbuzeiro e do lado do mandacaru, o carrasco da minha visão. Quando, de repente, ouvimos aquele som que nunca saiu da minha cabeça; os gritos de desespero da minha mãe. Se você me perguntar o que aconteceu com ela minutos antes do momento de sua morte, não saberei te responder com certeza, porém, garanto que ela viveu o inferno. Eu e meu irmão ficamos escondidos no meio do mato sem entender o que estava acontecendo, mas hoje eu imagino o que deve ter acontecido.

Após a voz da minha mãe se calar, um clarão vermelho tomou conta daquela escuridão; era a nossa casa em chamas. E aí, eu aprendi que aquele lobisomem que estava atrás da gente nada era perto do monstro que é o homem. Uma parte da minha alma ficou naquela casa em chamas, e um sentimento sombrio tomou conta do buraco que nela ficou.

Sob lágrimas, meu irmão falou:

– Vamo, vamo!

Pra onde? perguntei.

Mainha disse que Deus ia andar com nois, então vamo!

Assim, saímos correndo com o sangue do meu olho lavando o meu rosto cheio de lágrimas até que chegamos a uma estrada e seguimos por ela, correndo, mesmo sem enxergar direito, tanto por conta

1

do ocorrido, quanto pela escuridão que tomava conta da noite. Dessa forma, quando cansávamos de correr, continuávamos andando, mesmo sem saber para onde estávamos indo

Conhecíamos as terras onde morávamos, mas, naquele lugar, nunca tínhamos pisado, até que, lá no fundo da estrada, quando o sol já estava pensando em acordar, meu irmão viu uma carroça com um casal. Nesta hora, surgiram forças de onde não tínhamos e corremos em direção a eles gritando:

SOCORRO! Quando começamos a gritar, começamos também a chorar, e o casal veio às pressas ao nosso encontro.

O que aconteceu, meu Deus do céu? perguntou a mulher.

O velho homem tirou sua camisa e tapou o meu olho, para fazer um curativo. Aos prantos, subimos na carroça contando o que acontecera com a nossa mãe, e, assustados os dois foram correndo para a casa deles que ficava longe dali. Chegando lá, a mulher disse:

Bié, o que a gente vai fazê com esses mininu?

Deixar à “míngua” é o que não vamo fazer.

Vamo cuidar deles até aparecer alguém procurando.

Faça comida pra dar pra eles, os bichinhos correram a noite toda.

Ninguém nunca veio atrás da gente, nos procurar, e foi assim que, sem querer, esse casal, Dona Maria de Bié e Seu Bié da Gruta, nos adotou. Eles nos ensinaram quase tudo que sabemos. Seu Bié ensinou a mim e a meu irmão a domar cavalo, aboiar, atirar, plantar, e tudo que um vaqueiro precisa saber. Dona Maria cuidou de nós como se fôssemos filhos dela, talvez sejamos, porque ela nunca pôde ter filhos e viu na gente a oportunidade de ser mãe. E ela se saiu muito bem nesse papel, nos ensinou a ler, a escrever e a cuidar da casa.

Bié contava histórias de sua juventude, a história que mais gostávamos eram as suas no cangaço, embora não gostasse muito de falar sobre isso. Sim, por incrível que pareça, ele foi cangaceiro, na verdade, ele foi um dos primeiros cangaceiros do Nordeste Contou que, uma vez, conheceu o melhor vaqueiro que ele já viu na vida dele, quando passou por Pernambuco. Um tal de Raimundo Jacó, que ele chamava de Raimundo doido, o melhor aboio que ele já ouviu, que, infelizmente, foi morto por conta de uma rixa com um vaqueiro que trabalhava com ele. Assim, meu pai Bié me deu um conselho: “Não confie na boa vontade dos homens, meu filho, o mesmo que te aplaude pela frente te esfaqueia pelas costas. Todo mundo é bom e meu capote sumiu”.

Uma história boa que ele contava era a de quando foi caçar preá com outro cangaceiro na Paraíba, finado Lió de Matias. Eles entraram no mato escondidos, viram quatro preás, tomando água no tanque, grandes virados na peste. Lió puxou o rifle papo amarelo, mirou, mas, quando foi atirar, Bié foi mordido na canela por uma cobra, o seu grito de susto espantou os preás, e ao ver o que estava acontecendo, Lió correu, amarrou a perna de Bié, tirou um chocalho da capanga, que dizia ser bento e que curava mordida de cobra, chacoalhou e ele não morreu envenenado.

Já faz três anos da morte de Seu Bié, que morreu de tuberculose junto à Dona Maria, pois, recusava-se deixar sua esposa sozinha, e ficou do lado dela até o último dia de vida, e por conta disso acabou contraindo a doença também, e morrendo um mês depois. Deles eu tenho uma saudade gigante e a eles devo a minha a vida e a do meu irmão. Agora, aos dezessete anos de idade, eu e meu irmão decidimos que vamos procurar entender o que aconteceu com a nossa mãe e nos vingar de quem fez aquilo com ela. E vamos fazer o inferno parecer um paraíso para essas pessoas.

Ao ouvir sobre o cangaço na infância e na adolescência toda, eu e meu irmão ficamos fascinados com a ideia de andar pelo mundo e fazer justiça para aqueles que precisam. E foi com esse pensamento, o de que poderíamos fazer justiça ao que aconteceu com a nossa mãe, que ficamos motivados

Bié tinha uma vaca leiteira que nos dava o sustento da casa, vendíamos o leite também vendíamos fumo, que comprávamos em uma cidade vizinha. Duas ou quatro vezes por semana nós íamos à cidade de Barro Grande, que ficava perto de nossa casa. Lá vendíamos o leite e o fumo. Certo dia, um guarda estava passando na rua e eu o perguntei:

Vai querê um fumo, sinhô?

Oxe, quero.

O guarda pegou um rolo de fumo completo, colocou em sua bolsa e saiu.

Ei, sinhô, esqueceu de pagá.

Oxe, cê num me ofereceu? Eu peguei saiu rindo, o guarda.

Naquela hora me deu uma raiva muito grande, mas, quando pensei em xingá-lo, um homem passou correndo e gritando:

CORRE, MINHA GENTE, QUE TEM CANGAÇÊRO PELA REGIÃO!

Rapaz, não ficou um pé de gente na feira; tudo o que tinha de homem, mulher, menino, menina, gato, cachorro saiu correndo.

Assim, ficamos sabendo que existia um bonde de cangaceiros ali perto de onde nós morávamos, no Sul de Sergipe. Quando cheguei em casa, conversei com o meu irmão sobre o acontecido na feira. Tanto do fumo quanto dos cangaceiros.

Vamo, Cosme!

Rapaz, e isso é vida de homi? Andá pelo mundo matando gente.

Que nada, rapaz, pai Bié era cangaçêro, e cê num via como ele era gente boa?

Mas, Damião...

Esqueceu o que aconteceu com mainha?

Cosme ficou pensativo, olhou para baixo e respondeu.

Tá certo, a gente já num tem nada mesmo.

Vendemos a vaca no outro dia, pegamos o dinheiro e compramos comida e algumas roupas, além de fumo também. Fizemos a nossa trouxa de roupa, subimos em cima dos nossos jegues, Viajante e Garotinho, e fomos atrás de fazer justiça.

Mesmo sem saber o local exato onde ficava o acampamento dos cangaceiros, nós ficamos procurando pela caatinga. Mas, após dois dias procurando, já estávamos pensando em desistir, porque a comida já estava acabando. Já estava escurecendo, quando paramos em um pequeno rio, demos água aos animais e comemos um pouco de pão, quando, de repente, pulam do meio do mato quatro homens vestidos com gibão, chapéu de couro e cada um com um rifle papo amarelo na mão.

Vamo, cabra safado, levante as mão! ordenou um dos homens.

Calma! Quando vi que eram cangaceiros, meu coração se alegrou, o que eu não sentia há muito tempo.

Quero entrar pro bando, eu e meu irmão disse com um pouco de desespero.

Como é, rapaz? Riu o homem, e me perguntou. Como cabrunco cê atira sendo cego de um olho? Você acha que é assim, é? Só dizer que quer entrar que entra?

E ordenou.

Tampem os olhos deles, vamo levar eles pro acampamento.

Então, eles amarraram minhas mãos, e taparam meu olho, acho que fizeram o mesmo com o meu irmão. Me colocaram no meu jumento e foram guiando-o. Depois de muito tempo, já estava sem paciência de tanto esperar, até que ouvi um dando ordem de parada Quando o jumento parou, tiraram a minha venda. Vi uma barraca grande marrom, com um banquinho na frente e um espelho amarrado acima. Eu estava no terreiro do acampamento e tinham alguns cangaceiros lá que estavam nos encarando, tinha um mirando em mim com uma pistola enferrujada, mas acho que não era muito bom de mira, parecia que estava bêbado.

Havia umas seis barracas iguais a que falei, marrons, de diferentes tamanhos, algumas com espelhos, armas e munição Na minha esquerda havia uma fogueira, e as barracas formavam a espécie de um círculo, e de dentro de uma barraca dessas saiu um homem enxugando o rosto, estava vestido como os outros cangaceiros, uma roupa bordada, com uma cor amarronzada, com um revólver na cintura e algumas balas de rifle no peito. Um dos homens que nos prenderam falou com ele.

Sinhô, esses rapais aqui disseram que querem entrar no bando

Alguns riram, e o homem que eles se referiram sorriu, ele tinha cabelos cacheados longos e alguns fios grisalhos, acredito que estava fazendo a barba antes de sair da barraca.

Apois! disse o homem Então, cês querem entrar no cangaço?

Sim, sinhô, disse eu e meu irmão

Quantos anos cês têm?

Dezessete respondemos um após o outro.

E por que cês quer entrar no cangaço? perguntou.

Porque quero matá as pessoas que mataram a minha mãe disse o meu irmão.

E você? ele me perguntou A mesma coisa sinhô, somos irmãos.

Agora deu a peste! Já que vocês querem entrar, vão ter que fazer algumas coisas pra mostrar que merecem, né só chegar assim que entra não. Primeiro, cês sabe atirá?

Sim respondemos.

Será mermo? Parece que cê é cego de um olho.

Sim, Sinhô, é bom porque eu não preciso fechar ele pra mirar.

Já vi que além de cego você é ruim. Falou o homem e riu. Não sou besta, ri junto.

Como é o nome dos infiliz? ele perguntou.

Damião disse eu.

Cosme disse meu irmão.

Assim, entramos no cangaço, pelo menos era o que a gente pensava. Dormimos com eles, mas dormimos ao relento, a gente não tinha barraca, mas nem ligávamos. Fechei meus olhos e sonhei com a minha mãe. Ela tinha os olhos castanhos, a pele escura, e tinha um cabelo crespo, sobre o qual ela usava um lenço estampado, e um vestido azul, a forma como a vi pela última vez. Ela estava sorrindo, e olhava pra mim como quem queria dizer alguma coisa, mas não sabia como. Quando fui abraçá-la, fui acordado por meu irmão.

Acorde homi, quer moleza pegue em bosta.

Levantei e o homem que nos aceitou no bando chamou a gente na barraca dele.

Tenho uma coisa pra vocês fazê, que é pra eu ver se cês merece entrá ou não.

Pois diga! falou meu irmão.

Eu vou soltar os dois garrote, que nois têm, no meio da mata, pra cês pegá. Se cês pegarem cês ficam, se eles fugi eu mato cês dois.

Não vou mentir, fiquei com medo, mas pensei que, fora o meu irmão, eu não tinha nada, então pouco importava morrer.

E cês não vão usá corda, vai ser no braço.

Tá certo disse Cosme.

E assim foi, levaram a gente para o mato onde iriam soltar os dois garrotes. Era uma mata fechada cheia de pé de mandacaru, e de espinho nos galhos. Subimos nos cavalos que eram dos cangaceiros e eles soltaram os garrotes que saíram cortando vento. Meu irmão não perdeu tempo e correu atrás do mais gordinho, e eu fui atrás do mais magro.

O cavalo parecia voar de tão rápido que estava indo. O meu irmão sempre foi bom em pegar garrote, então não me preocupei com ele, e fui atrás do peste do garrote ligeiro que sobrou pra mim. Ele entrou no meio dos espinhos e mesmo sem gibão fui atrás, era melhor me cortar todo do que morrer. Quanto mais eu corria atrás dele, ele corria mais rápido de mim, até que ele foi cansando e consegui chegar perto Já estava quase com a mão em seu rabo, quando apareceu uma árvore na minha frente e o cavalo foi pra um lado e o garrote pra o outro

Nessa hora a raiva tomou conta de mim, eu dei uma “chamada” no cavalo, que ele correu virado na peste atrás do garrote, até que vi ele no meio do mato e fui para cima correndo. O garrote entrou em um corredor de aveloz, que fiquei sem espaço para puxar o rabo dele No desespero, temendo a morte, coloquei os pés em cima da cela do cavalo e pulei em cima do garrote, abracei ele, tirei minha camisa e usei para tentar domar ele, mas a camisa escorregou e caiu no chão, assim, olhei pra frente e tinha um espinhal. Não pensei duas vezes, coloquei meu braço direito do lado esquerdo do pescoço dele, joguei minha perna esquerda pra o lado direito do corpo do animal, com o meu peso em cima da cabeça do bicho ele caiu, mas infelizmente quebrou o pescoço com a queda e caiu se contorcendo e mugindo, e eu que já estava todo cortado por não usar gibão me embolei no meio da terra e das pedras. Quando fui ver, o garrote estava gemendo de dor e agonia, então, puxei minha peixeira e enfiei no seu pescoço para acabar com o seu sofrimento.

Procurei o cavalo que estava ali por perto, encontrei e levei até onde estava o garrote. Levou tempo, mas consegui colocar o garrote em cima do cavalo. Quando cheguei no acampamento, perto do meiodia, meu irmão já estava vestido de cangaceiro. Eu sabia que ele era um bom vaqueiro, ele não tinha um arranhão sequer, e eu estava cheio de cortes nos braços e nas costas, ele ainda trouxe o garrote vivo, e eu com minha acrobacia acabei por matar o animal, pelo menos carne o bando ia ter por uns dias.

E né que o peste conseguiu mermo! falou o homem.

Só que o garrote morreu falei preocupado.

O destino de todos é a morte, a única diferença é a causa disse o homem.

O meu nome é Capitão Juazeiro, esse aqui é Cabôco, foi o que encontrou vocês no tanque.

Então a gente entrou? perguntei. E ele respondeu:

Se não tivesse entrado, cê já tava morto. Como cês diz que já sabe atirá, eu num vô perdê tempo ensinando, se tiver uma precisão e cê num sabê, aí o azá é seu de ir vê o cão mais cedo.

Então, fiquei aliviado e feliz, tomei banho, limpei as feridas, e vesti a roupa de cangaceiro que tanto queria. Na hora veio o sentimento de que meu pai Bié estava comigo e que eu iria vingar a minha mãe.

Anos depois, quando eu e meu irmão já estávamos mais velhos, com quase vinte anos de idade, estávamos indo à fazenda de um senhor muito rico, um tal de Coronel Castro. Ele e o Capitão se conheciam há muito tempo e nós, às vezes, realizávamos serviços para estes Coronéis, pois pagam muito bem.

Estava eu, meu irmão, Minininho, Batista e Caçula indo na frente do resto do bando para tomar conta de algum perigo, como uma onça, armadilha ou algo do tipo. Minininho se aproximou e conversou comigo, sobre o Coronel Castro.

Me disseram que ele é um homi rico e poderoso pros lado de Sergipe, Bahia e tal. Já ouvi dizê que ele comprou todas as terra ao redor do Rio Real, só pra dizer que o rio é dele.

Um homi desse aí deve ser doido disse Caçula.

Coronézinho disse Cosme.

Mas o que ele tem de rico tem de ruim Cê conhece Capitão Juazeiro, né? Ele já é bruto, e mesmo com a brutidade dele, ele tem medo do Coroné

Oxe, e por que esse medo todo?

Cê vai vê, o veio é o cabrunco de ruim!

Caçula se aproximou de mim e falou.

Rapaz, será que... O olho de Caçula explodiu e o seu sangue quente voou em meu rosto ao mesmo tempo que eu ouvi um som de rifle à minha esquerda.

CANGAÇEIROS, FIO DO CABRUNCO! Um homem gritou.

Todos os cangaceiros que ficaram vivos se jogaram no chão e foram pra trás de um pé de barriguda que tinha ali, sem entender nada ainda, e os tiros continuaram, pelo que parecia eram três homens, atirando na gente.

Mata eles! Gritou.

Puxei meu papo amarelo, eles estavam atrás de umas pedras e um pé de mandacaru. O terreno era plano, aberto, mas tinha algumas inclinações para onde eles estavam, o que trazia vantagem pra eles, e desvantagem pra gente. Porque poderia ter mais deles e a gente não viu e nessas horas os cavalos já estavam longe por conta dos tiros

Damião, atire neles que eu arrodeio e pego eles de costa falou Cosme.

Assim fiz, atirei mesmo de forma aleatória, Batista e Minininho também. Batista tomou um tiro de raspão, que pegou no braço direito. Cosme correu pra baixo de onde estávamos, para entrar dentro do mato e fazer com que eles o perdessem de vista. Continuei atirando mesmo sem ver eles direito, até que acabou as balas de Batista, e Minininho falou.

Corra pra baixo que eu atiro neles pra cê corrê e chamar o resto do bando.

Ele concordou, mas os homens foram mais ligeiros do que ele poderia imaginar, quando Batista se levantou pra correr já caiu duro no chão com um tiro na nuca. Minha cara era de espanto, os tiros passavam zunindo onde eu estava, até que o juízo voltou para a minha cabeça, me levantei escorado na árvore, virei-me para à direita rápido, mirei, atirei e acertei a cabeça daquele filho da puta Os tiros pararam, Cosme havia matado todos eles Cosme arrodeou pela esquerda entre a caatinga, e pegou eles de lado, eram três miseráveis que queriam a recompensa por matar cangaceiros. Depois de matar os dois que sobraram, Cosme gritou.

Matei os macaco, pode sair daí.

Não vou negar, saí dali outro homem. Quando você mata um homem é uma sensação muito estranha, principalmente quando é para sobreviver. Era como se não fizesse diferença de ter matado um simples garrote, acho que foi isso que o Capitão Juazeiro quis dizer quando falou que o destino de todos são iguais, todos vão parar no mesmo lugar. Talvez o sentido da vida seja a morte, porque é nessa hora que saberemos se nossa vida valeu a pena ou não.

O enterro de Caçula e Batista foi rápido, porém muito triste. As covas ficaram no topo de uma serra, para o sul de Poço Redondo, perto da fronteira com a Bahia, apenas duas cruzes e dois chapéus de cangaceiros marcam o lugar.

Seguimos para a fazenda do Coronel Castro. Depois de quase um dia de viagem, paramos para descansar e comer algo. Então, Cosme mostrou algumas coisas que ele conseguiu dos patifes que nos atacaram. Um relógio pouco desgastado, dois rifles pouco enferrujados e uma pistola parabélum, uma pistola alemã. Cosme ficou com a pistola como prêmio e entregou os rifles ao capitão Juazeiro.

Amanhã cedinho a gente vai pra fazenda do Coroné, então se arrumem falou o capitão.

E assim foi, todo mundo acordou cedinho e seguimos o caminho. Após meio dia de viagem, o sol já estava torrando nosso couro, e a tristeza de ter perdido dois amigos estava tomando nosso peito. Adiante, perguntei ao Capitão:

Capitão, esse Coroné Castro é tão rico como dizem?

Rapaz, é o mais rico que conheço.

Dizem que ele é ruim também, é verdade?

Tão ruim que eu acho que quando ele morrer o cão vai puxar ele pra o inferno antes do corpo dele chegar no cemitério.

Ave Maria, e o que ele já fez pra ser assim?

Uma vez ele soube que um vaqueiro que trabalhava pra ele tava roubando o gado dele, ele amarrou o sujeito de cabeça pra baixo, enfiou uma faca no pé da barriga e rasgou até o pescoço. O que tinha de bofe e tripa o caboco botô pra fora. E mais, ele olhava pra o vaqueiro agonizando e ria dizendo que ele parecia um porco. Aí virou as costas, e foi pra uma seresta que tava teno numa cidade perto.

Deus é mais! Falou um cangaceiro chamado Sabiá.

Se cês já conheceram homi ruim antes, esse é o próprio diabo.

Aquelas palavras entraram no meu ouvido e penetraram minha espinha, me perguntava o que levava um homem a ser tão cruel e mau assim. Mas, estava prestes a descobrir, porque já avistava a fazenda do Coronel, no meio daquela terra seca, amarela, cheia de mandacaru e macambira.

A cancela estava aberta, como se estivessem esperando a gente, então entramos. Era uma fazenda gigante, tinha uma pequena estrada calçada de pedra que ia reto e formava um círculo e dentro desse círculo tinha um pequeno jardim onde havia flores de todas as cores. À esquerda, se via pequenos casebres brancos com as portas e janelas azuis, provavelmente onde os criados dormiam; passei por uma casa simples e uma senhorinha estava costurando algo, ela olhou para mim e sorriu; duas crianças estavam correndo uma atrás da outra. E à nossa direita, tinha uma igreja de uma única torre, também branca com as portas e janelas azuis, e do lado da igreja havia um terreiro grande, com cadeiras e algumas mulheres conversando e catando feijão. Em nossa frente, no centro da entrada da fazenda, havia uma casa de dois andares, uma casa espaçosa, e que era branca, com as portas e janelas azuis, mas não era como as outras, aquela casa era bem pintada, era como se acabasse de ter sido reformada.

Na varanda da casa estava um homem sentado, bem-vestido, fumando um cachimbo, já com uma certa idade, porém, bem calmo Ao seu lado estava um homem um pouco mais novo que eu, sentado no batente da varanda, junto deles estavam alguns homens armados conversando.

Nos aproximamos, o homem que estava sentado fumando apagou o cachimbo, e tossiu. Um dos homens que estavam conversando olhou para nós sério e falou.

Até que enfim chegaram.

Aconteceu um imprevisto no caminho falou Capitão Juazeiro.

E que imprevisto foi esse Juazeiro? perguntou o homem velho com uma voz rouca e grossa

Um bando de infeliz matou dois dos meus homi.

Mas cês pegaram os fi da peste?

Sim, tão tomando café com o cão uma hora dessa.

O homem velho riu.

Coroné, mandou me chamar? perguntou Juazeiro.

O homem velho se levantou e falou.

Entre, que a gente conversa aqui dentro falou com uma voz rouca e grossa.

Amarramos os cavalos e ficamos ali dentro da varanda, enquanto o capitão Juazeiro entrou sozinho na casa para conversar com o Coroné. Ficamos então conversando ali fora.

Rapaz, me diga uma coisa, você é cego e atira? perguntou o jovem rapaz, que estava sentado no batente da varanda. Ele tinha cabelo loiro e o olho castanho.

Oxe, é o que mais faço respondi.

2

Outra coisa, cê é parente desse que tá do seu lado? perguntou se referindo a Cosme.

Sim, nois é irmão. – Respondeu Cosme.

Entendi falou o jovem Como cê ficô cego?

Nessa pensei no que falar e respondi sorrindo.

Briguei com um pé de mandacaru e ele ganhou.

O rapaz riu e falou

Pelo menos o seu outro olho é azul, e engraçado, o do seu irmão não.

Todo mundo fala a merma coisa falei, rindo, enquanto o resto dos cangaceiros conversavam de coisas aleatórias, alguns falavam de armas, outros de cavalos, e outros de aventuras que presenciaram, e entre esses um homem do Coronel começou a rir e falou.

Já vi nego mentiroso, mas como você tá pra nascer viu

Quando entendi o que estava acontecendo, era Sabiá contando uma de suas histórias.

Mentiroso? Me respeite cabra, tô falando a verdade, por essa luz que me alumeia, eu vi um cavalo correndo por cima do Rio São Francisco, tô te dizeno, oxe!

E que cavalo do cabrunco é esse? perguntou o mesmo homem.

Ouvi dizer que era um da Paraíba falou Sabiá.

E tinha alguém em cima desse cavalo? perguntou o jovem rapaz

Tinha um homi magro, o cavalo tava correno tão rápido que não deu pra vê direito, ele segurava na rédea com uma mão e segurava o chapéu com a outra.

Você viu mermo? perguntou um dos homens do Coronel.

Vê, vê num vi, mas me contaram.

Todos que estavam ali riram Quem já viu um cavalo correr tanto assim? Nem se fosse bento. Todos sabiam que Sabiá era um inventor de histórias, e além de ser um péssimo mentiroso era um ótimo sanfoneiro, tocador melhor o cangaço não tinha.

Sabiá conta uma história de um homem que tinha morrido, que a procissão já estava no meio da rua quando apareceu um bando de cangaceiros pra invadir a cidade e saquear O que tinha de homem, mulher, velho e menino correndo de medo não era pouco O susto foi tão grande que até o morto ressuscitou e saiu correndo no meio do tiroteio. Era bala comendo e o povo correndo, o coitado do padre levantou a batina, deixou a bíblia no chão e saiu correndo tão rápido que as sandálias batiam na bunda. Aí um cangaceiro que estava atacando a cidade gritou.

OXENTE, PADRE, QUÉ VÊ DEUS, MAS NUM QUÉ MORRÊ?

Quando o Capitão Juazeiro voltou apresentou aquele senhor para nós.

Pessoal, pra quem não conhece, esse aqui é o Coroné Castro.

Era um homem branco, tinha o cabelo e a barba loira, com alguns fios grisalhos, e os olhos azuis, com pés de galinhas. Vestia o que me parecia uma camisa social com um colete de couro bordado e tinha uma pistola na cintura.

Acho que já conheceram meu filho, Antônio. Se precisarem de alguma coisa, falem com ele, que ele resolve. O capitão de vocês vai conversar sobre um serviço que cês vão fazê pra mim. O homem retornou para a casa.

O Capitão contou sobre o serviço. Nós iríamos buscar uma carga de armas da Bahia e trazer para o Coronel, e ainda teríamos outros serviços para realizar, caso necessário. Nós sairíamos dali em dois dias. Então, montamos nossas barracas e eu me sentei para conversar com meu irmão.

Cosme, o que cê tá achano disso tudo?

Rapaz, eu acho que a gente tá dano dinheiro pro Capitão e não fizemo o que a gente prometeu fazê.

Como a gente vai descobrir quem matô mainha?

Oxe, vamo atrás de parente homi!

Como? Quem?

É só ir aonde a gente morava, quando ela morreu, e perguntar sobre ela ao povo.

É porque Carira é pequeno pra nois ficar perguntando de um em um.

Você se lembra de uma veinha que ajudou nois quando nois tava com fome?

Dona Marica?

Ela merma, certeza ela sabe alguma coisa.

Rapaz, tem quanto tempo que ela ajudou a gente? A gente sabe nem se ela ainda tá viva.

A gente vê isso quando achar ela.

Quando a gente voltar desse serviço a gente vai lá.

Certo. Depois da conversa, me deitei em minha tenda e dormi.

No outro dia acordamos cedo e fomos conhecer a fazenda. Quando chegamos no curral, onde ficavam os cavalos, lá estava Antônio vendo os vaqueiros tentando domar um cavalo bravo, e quando ele percebeu que estávamos olhando ele gritou perguntando:

SABEM DOMAR CAVALO?

Meu irmão assentiu, e eu fiquei quieto, pois ele era muito melhor que eu. Então Antônio o desafio para domar aquele cavalo. Meu irmão entrou no curral, pegou uma corda e laçou o bicho, que se mexia de um lado para o outro. Cosme foi acalmando o bicho até que ele conseguiu subir no animal, parecia mágica. Todos ficaram espantados. Antônio bateu palmas e eu só sentia orgulho. Meu irmão já estava montado no cavalo e ele não expressava perigo algum. Quando, de repente, uma cobra que saiu do mato mordeu o cavalo e o assustou. O cavalo saiu correndo e jogou Cosme em cima da cerca de madeira que tinha ali, a força foi tão grande que quebrou a cerca e a perna do meu irmão. Corremos para onde Cosme estava, nessa hora o cavalo já tinha ganhado o mundo.

Cosme gritava de dor e muita gente correu pra ajudar. Levaram ele para dentro de uma das casas dos peões, onde a velhinha que vi ao chegar na fazenda morava. Ela era a rezadeira de lá. Ela correu, e amarrou uma corda na perna dele para que não saísse muito sangue. Eu estava muito preocupado e não sabia o que fazer. Ele gritava muito, então colocaram um galho em sua boca para ele morder, enquanto ela colocava o osso de volta no lugar. Adiante, colocou uma tábua pra deixar reto, costurou o corte e amarrou com uma corda. Nessa hora, ele não gritava mais, tinha desmaiado de dor.

Logo após isso, levaram ele para uma cidade próxima onde havia um médico. Eu queria ir junto, mas não podia, tinha o serviço para fazer com o bando, mas não poderia deixar meu irmão sozinho, então conversei com a senhora que nos ajudou e pedi pra ela cuidar dele por mim, e quando eu voltasse pagaria a ela, mas ela não aceitou e fez de graça.

Na noite antes da nossa partida, chamei o Capitão Juazeiro para conversar sobre o serviço, nos sentamos em uma mesa de madeira marrom fora da tenda, as luzes dos candieiros e a brisa fresca do verão traziam lembranças de seu Bié e de dona Maria, quando nos sentávamos para ouvir as suas histórias de quando era do cangaço. Fiquei pensando se eu teria essa mesma conversa com meus filhos e talvez netos, ou essa vida de cangaceiro tiraria minha vida como aconteceu com os meus colegas. Amanhã pode ser minha última viagem ou pode ser uma grande história.

Queria falá comigo? perguntou o Capitão.

Sim, sinhô, queria saber pra onde a gente vai amanhã e fazer o quê?

A gente vai pra as bandas da Bahia, trazê uma encomenda pro Coroné.

E a gente vai demorar pra voltá?

Oxe, se num quizé ir é só dizê.

Quero, sim sinhô. Pois eu tinha que conseguir dinheiro para ajudar meu irmão e para ir atrás de quem matou nossa mãe.

E esse aperreio é o quê?

Nada não, sinhô, só um dizê que veio na cabeça.

Trate de dormi, que amanhã a gente vai cedinho.

Sim, sinhô.

Nessas horas meu irmão já tinha sido atendido e já estava melhor, então não estava tão preocupado com ele, mas em como descobrir quem matou minha mãe e o porquê. Fiquei pensando no que Cosme falou, perguntar as pessoas que moravam perto de onde a gente morava. Mas, deixei para pensar nisso um outro dia, pois estava com sono e havia trabalho para fazer

No dia seguinte acordei antes do sol, fui no tanque perto do nosso acampamento, tirei a roupa e pulei de cabeça na água, depois de ter tomado meu banho voltei pra o acampamento na fazenda, tomei café, vesti minha farda de cangaceiro, meu chapéu de couro, coloquei o rifle nas costas, peguei a parabélum do meu irmão Já que ele não iria usar e para que ninguém roubasse. Às seis em ponto da manhã saímos para a viagem, e que viagem.

Levamos dois dias para chegar até à Bahia. Passamos por lugares que eu nunca tinha pensado que iria ver Grandes serras, terras vermelhas, amarelas, teve um lugar que achei interessante perto do Rio Real Uma fazenda que tinha um poço que ficava verde ao seu redor o ano todo, e pensei durante horas, “Como peste isso acontecia?”. Até que, enfim, chegamos na Bahia, mais precisamente às margens do Rio Itapicuru Estávamos com pouca comida e muita munição, então o Capitão me mandou ir a uma cidade próxima para olhar se havia muita polícia, se passando de aleijado, como eu já era cego, era bem fácil.

Troquei de roupas, peguei uma cuia, coloquei a pistola dentro das calças, um chapéu de palha e fui a caminho da cidade, o que mais tinha no caminho era macambira, saruê e poeira Muita poeira Depois de umas 3 horas andando, eu achei uma casinha. Bati palma e chamei.

Boa tarde!

Saiu um homem preto com um bigode bem grosso, e um chapéu de palha como o meu.

Boa tarde disse o homem.

Vosmicê tem uma aguinha dormida aí?

Se arruma.

Lá vem o homem com um caneco d’água.

Aguinha saloba essa aqui hein?

É, esses pé de serra é tudo assim.

É verdade que mais na frente tem uma cidade? perguntei.

Sim, sinhô. Bem ali na frente, é só andar pareado nessa cerca aí.

Rapaz, nessas banda não passa cangaceiro não?

Oxe, passa nada, eles num são besta.

Me chamou de besta.

E por que não? O povo é valente assim?

Mininu, cê num viu foi nada, até criança tem arma naquela cidade.

Eita cabrunco, então o povo é bruto.

Ave Maria! Até demais, esses dias uma cobra mordeu o rapaz ali, fio de Anistô das Onça, e a cobra caiu dura, que parecia uma vara de futucá boi.

Vigi Maria! Vou lá, Deus te abençoe e brigado pela água!

Vá com Deus!

Fui pensando: como “cabrunco” um velho poderia mentir tanto? Mas, não me importei, fui pensando que se todo mundo fosse armado como ele falou, seria difícil invadir. Quando cheguei na cidade percebi que ela era pequena, a primeira coisa que vi foi uma igreja no meio de uma pracinha, e ao redor ficavam as casas e do lado da pracinha havia um bar, onde vários homens bebiam. Na praça da igreja crianças corriam umas atrás das outras, muitas árvores de figo na praça. Deixei isso tudo de lado e fui ver onde ficava a delegacia, ficava um pouco longe da praça, mas que poderiam chegar rápido, se não fosse bem pensado. Arrodeei a cidade e encontrei um pequeno rio onde uma jovem pescava. Retornei à cidade e fiquei na porta da igreja pedindo esmola, até que uma senhora passou pela praça.

Cê merece mais é uma pisa e tomar vergonha na cara de tá pedino coisa aos oto

Mas eu num te fiz nada, só pedi uma coisinha pra num morrê de fome.

A senhora saiu xingando, só porque lhe pedi dinheiro. Será que dinheiro é tão importante assim para as pessoas humilharem os outros? Não sei. Comecei a pensar que aquele rapaz que parei para tomar água estava certo, e que aquela cidade o povo era bruto. Então, entrei na igreja e vi um padre, com uma batina preta bem costurada, três anéis de ouro e uma corrente com uma cruz de prata no peito

Seu pádi, me ajude, por favor.

Não tenho, meu filho. – Disse ele.

Precisa dinheiro não pádi, uma cuia de farinha já é bom.

Meu filho, eu tô quase indo pedir esmola com você, aqui não tem nem pão pra comer com café.

Tá certo, seu pádi.

Saí revoltado, e lembrei dos ensinamentos de dona Maria. Se Deus soubesse que seu nome era comerciado e que os homens vendiam ingressos para entrar no céu, ele nunca teria mandado seu filho para a cruz para nos salvar. Mas, sei que Deus é justo e vai me mostrar o caminho para tudo.

Cheguei no bar e pedi um copo de água e o homem que estava no balcão falou rindo.

Quer água? vá pro tanque, marrapáis!

Tá certo, sinhô. Baixei a cabeça e saí.

Os homens que ali estavam riram, enquanto bebiam, fumavam, peidavam e jogavam baralho. O homem no balcão era gordo, com uma barba malfeita, usava uma regata verde manchada de noda e tinha um pano branco sobre o ombro esquerdo que já estava amarelo de tanto limpar mesas sujas. Então, saí mais uma vez e fui olhar o movimento da delegacia. E fiquei besta quando cheguei lá e vi a folga que os policiais estavam. Eles ficavam sentados, quase deitados na cadeira com o chapéu na cara, alguns dormindo e outros fumando cachimbo.

Pensei comigo mesmo: “Invadir essa cidade vai ser mais fácil que dá tapa em bêbado”. Escureceu e uma missa aconteceu, a fome em mim apertou, então, rodei a mata perto da cidade e comi macambira e fruta de palma, voltei para a cidade pra assistir à missa e receber a benção de meu Deus, antes de invadir essa cidade. O padre estava dando o sermão, mas ele estava diferente, uma roupa branca, sem anéis de ouro nem corrente de prata.

Meus filhos, a vida é um presente de Deus, e em quem nele crer terá a vida após a morte ao seu lado, vida eterna. Mas, o próprio Jesus Cristo, nosso senhor, disse que é mais fácil um camelo passar por uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus, ajudai os pobres e os necessitados.

Quando começou a recolher o dízimo, a mesma mulher que me destratou foi a primeira a entregar, em seguida o povo todo que estava na missa entregou o dízimo. Fiquei olhando e prestei atenção que a igreja tinha uma torre que dava visão para a delegacia, era tudo que eu precisava para armar um plano de invadir aquela cidade, e sabia exatamente o primeiro lugar onde atacar. Porém, continuei ali ouvindo e observando as pessoas dentro da igreja, enquanto eu estava do lado de fora vendo a missa por uma porta que tinha no lado da igreja. Me deitei e fiquei ouvindo, daí os olhos foram pesando.

Até que avistei do outro lado da praça um velho senhor com as roupas rasgadas e sujas, sentado no chão com um cachorro do seu lado, então me aproximei.

Já era noite, me sentei ao lado daquele senhor e perguntei.

O sinhô num tem um pedaço de pão pra dá pra esse fio de Deus não?

Fiquei besta quando o homem tirou de dentro de um saco um prato de cuscuz com buchada e disse que eu poderia comer todo. O cuscuz brilhava como ouro, quando peguei o prato em minhas mãos, senti que estava quente e quando olhei de volta para o homem ele me apontou uma pistola e atirou

Quando cai no chão, acordei assustado, e falei para mim mesmo: “Oxe, e é o cabrunco é? Vá matar o cão de susto”. O padre ainda estava dando o sermão, as pessoas ainda estavam ali, o bar estava fechado, as luzes das velas e das lâmpadas com energia de motor clareavam a praça.

Me levantei, e segui andando pela cidade para ver se encontrava alguém de bom coração, até que, na frente de uma humilde casa, tinha um homem magro, com roupas bem humildes. Parei e conversei com ele. Ele me tratou bem e perguntou sobre mim, como eu não poderia dizer quem era, contei que sou um viajante em caminho ao sul, o que era normal naquela época, pois a fome vinha, a seca não perdoava e a única escolha que um sertanejo tinha era o de arriscar a vida indo pra o sul.

Como é o nome dessa cidade e de vosmecê? perguntei ao homem.

Jerimum, e meu Nome é João, mas pode chamar de Calango, que eu atendo. Riu o homem, e eu também.

E o nome do sinhô?

É Damião.

Já cumeu?

Não, sinhô.

Oxe, entre aí, e vamo cumê.

Cadece não... – Me interrompeu o homem.

Oxe cabra, bora cumê, que saco vazio num para impé Rimos de novo.

A simplicidade e a humildade daquele homem era uma coisa diferente. Ele já tinha os seus quarenta e tantos anos, o seu rosto queimado do sol e com a marca do tempo deixava isso claro. Quando entrei, havia quatro crianças Algumas pequenas e outra maiorzinha. Era uma casinha bem simples, não tinha reboco nas paredes, a iluminação era no candieiro e tinha apenas um quarto e não tinha banheiro. Cheguei na cozinha, tinha uma panela de cuscuz e outra de feijão no fogão a lenha.

O homem dividiu o cuscuz com os filhos, molhou com o caldo do feijão e os meninos comeram, depois a gente comeu o feijão e ficamos conversando.

Perdoe a pergunta seu João, e a mãe dos mininu?

Morreu, quando pariu o mais novo.

Naquela hora olhei para as crianças e me vi ali, e na minha mente veio Seu Bié e Dona Maria.

Seu João, como eu agradeço pela comida?

Oxe, rapaz, e tem precisão?

Tem sim, sinhô.

Um aperto de mão já tá bom. Nosso senhor Jesus Cristo disse pra a gente dividi o pão, num foi?

O sinhô vai pra igreja?

Não, o povo dessa cidade acha que Deus é cego, e que ir pra igreja nas novena compra lugá no céu.

Sabia que eu penso assim, seu João?

Marmininu Murmurou

Rapaz, me diga, esse tapa olho seu é porque cê é cego ou é pra ganhar dinhêro?

Não sinhô, quando eu era mininu trupiquei e cai num pé de mandacaru.

Vigi Maria!

Pense numa dô da peste.

Deus é mais!

Após aquela conversa, agradeci a seu João e fui embora, mas quando eu estava saindo ele me falou.

Damião, amanhã é dia de feira. Vou botar barraca pra vender umas coisinha e se cê me ajudar eu te dou um negocinho.

Oxe, venho sim, sinhô.

Assim foi, rodei a cidade de noite e não tinha um sinal de polícia. Era uma cidade pequena, então levou pouco mais de meia hora para dar a volta. A cidade era colorida, cheia de flores e de pés de mandacaru. A praça brilhava, as casas eram pequenas e o sereno da noite caia, até que resolvi voltar para a praça e dormi lá mesmo. Acordei e fui para a casa de seu João. Ele já estava indo para feira, então o ajudei a levar algumas coisas. Montamos a barraca e começou a chegar gente. Na feira tinha de tudo, roupas, comidas, tecidos, fumo, boneco de barro e tinha uma pintura engraçada numa barraca de uma senhora chamada Tarsila, era uma pessoa nua sentada do lado de um pé de mandacaru, tinha a cabeça pequena e o pé grande, eu ri muito quando vi.

Estava tudo normal. O barulho das pessoas negociando, tinha um sanfoneiro muito bom, perguntei o nome dele para seu João e ele me respondeu dizendo que aquele ali era o melhor sanfoneiro do mundo, Sr. Januário. Com um zabumbeiro tocando um baião e o sanfoneiro rasgando o fole, a feira estava muito animada. Ah! A nossa barraca vendia chapéu de couro, tinha chapéu de couro grande, pequeno, tinha um de cangaço que gostei muito, ele era escuro com uns detalhes brancos, com um desenho de cruz branca no meio, quando eu vi, pedi a seu João como forma de pagamento pelo dia de serviço e ele disse que iria pensar. Até que o filho mais novo de seu João veio correndo com uma maçã na mão e se escondeu embaixo da barraca, e atrás dele veio a polícia.

Cadê aquele peste? perguntou o major.

Como é homi? disse seu João Esse peste que cê tá falando é meu fio!

Além de peste é ladrão, roubou a maçã da barraca do cunhado do major.

Seu João sem saber o que fazer e com medo do filho pequeno sofrer alguma consequência, pois sabia como tudo funcionava ali, disse:

Roubou, mas foi porque eu mandei, se for fazer alguma coisa faça comigo.

Pois, não. Prendam esse cabra, e ainda deem uma pisa pra ele aprender a não falar alto com autoridade.

Vai prender só por uma maçã? perguntei sem nem entender nada.

Vou, sim! E cale a boca pra cê não ir junto, cabra safado falou o policial que estava prendendo seu João.

Ele gritava dizendo que não poderia deixar os filhos sozinhos.

Então, corri, desmontei a barraca com a ajuda dos meninos, guardei a mercadoria, deixei os meninos na casa deles e mandei não saírem e que o pai deles iria voltar à noite. Peguei aquele chapéu preto escuro que gostei, e segui a estrada de volta para o acampamento “De todo jeito eu ia embora hoje mermo” pensei, mas não ia deixar um amigo que me deu comida quando eu estava com fome na mão. Então, voltei para o acampamento.

Quando estava perto, fui visto pelos cangaceiros e eles pularam do mato e perguntaram.

Quem é você cabra?

Passo um dia fora e já esquecem de mim? respondi rindo.

Era Cabôco e Sabiá, ao chegar no acampamento, vesti minha roupa azul, meu colete de couro, coloquei a cartucheira no peito, amarrei um lenço vermelho no pescoço, botei meu rifle nas costas, e coloquei o chapéu que peguei na casa de seu João. Muitos admiraram o chapéu por ser bonito e diferente, até que o Capitão falou.

Damião, o que acha? Vamo agora?

Não eu disse Eu tenho um plano.

Após horas de conversas, planos e ideias, e após horas convencendo o Capitão a aceitar a minha estratégia de como invadir a cidade, ele percebeu que o plano era bom e aceitou fazer do meu jeito Esperamos a tarde virar noite e partimos em direção à Jerimum. A única luz que tem no sertão à noite é a luz do céu, as estrelas e a lua. E de vez em quando dá para pensar sobre a vida observando as estrelas. Eu acredito que Deus colocou uma missão em minha vida, colocou um destino, pois não há sentido em simplesmente ele mandar um filho para viver de maldade e sofrer de agonia. Mesmo que às vezes eu pense que ele não exista por presenciar tantas desgraças, eu tento apegar o resto de esperança que me resta na sua existência, para que haja sentido nas coisas que eu faço, e espero que exista alguma coisa depois que a luz do meu olho apagar Nada que Deus fez é em vão pra mim, pois a minha vida é a continuação da vida da minha mãe, e por isso vou vingá-la, ou apenas penso que estou fazendo isso

Ali! falou Capitão Juazeiro.

Assenti com a cabeça, e então começamos o nosso plano. O nosso grupo de dezesseis cangaceiros foram divididos em dois grupos de cinco e um grupo de seis. Um grupo de cinco veio comigo, os outros se posicionaram de maneira estratégica dentro do mato próximo à praça. Um entrou pelo rio para ficar atrás da igreja, enquanto eu e meu grupo seguíamos por dentro do mato em um silêncio, que nem gato nos ouvia Até chegar perto da delegacia, e então esperamos até os policiais irem dormir, coisa simples, e foi assim que aconteceu. Quando os policiais dormiram, nos aproximamos silenciosamente Entrei na delegacia e tinha um policial sentado fumando um cigarro de palha de costas para mim, talvez por ser uma cidade pacata o policial não esperava nada de mais, no máximo uma discussão entre bêbados no bar, pois não estava nem armado. Entrei e coloquei minha pistola na sua nuca e falei:

Se você quiser terminar esse fumo, fique queto

Ele se assustou, mas não se apavorou, continuou calado e parado, então segui dizendo:

Quantos macaco tem aqui dento?

Quato falou o policial.

Me leve onde eles tão dormindo, caminhe!

Então o policial me levou no quarto onde os outros estavam dormindo, cada um dos cangaceiros pegou seu papo amarelo e apontou pra cabeça dos policiais que estavam ali e então eu segurei o policial que eu peguei de refém pelo cangote e gritei.

Vamo acordar macacada!

Todos os policiais se acordaram assustados, mas nada poderiam fazer contra cinco cangaceiros armados até os dentes e apontado suas espingardas para a testa de cada um sem medo ou remorso de explodir a cabeça de qualquer um que quisesse ser herói.

3

Fumaça, pegue a chave da cela com esse peste feio que tá se tremendo aqui e tranque esses fiote de muçego Menos aquele ali. Apontei para o policial que prendeu João e me ameaçou.

Assim foi feito, prenderam todos os policiais, e como nós estávamos de bom humor, deixamos todos nus dentro da cela e depois rimos. Avistei seu João numa cela, o rosto parecia que havia sido atacado por duzentas abelhas, estava muito inchado, o olho direito estava sangrando, e o corpo estava cheio de hematomas

Na hora fiquei espantado e então abri a cela, e perguntei o que tinha acontecido. Ele então falou que o mesmo policial que o prendera, o algemara, e com todos os policiais desceram e espancaram o coitado Depois que bateram, ainda pegaram um cabo de inchada e quebram no meio em uma lapada que deram no espinhaço do coitado.

Na hora a raiva tomou conta de mim, algemei o policial metido a valente que bateu em seu João e disse:

Lembra de mim? Fi duma égua. A sua sorte, fio do cabrunco, é que eu sou justo, então você vai tomar a mesma pisa que você deu no coitado ali.

Daí em diante, a lapada foi grande, foi tapa, murro, pedrada na rinhada, bicudo nas costelas, paulada na canela, o policial gritava, chorava e esperneava, enquanto os outros morriam de medo dentro da cela. E para ser justo com o peste, quebramos outro cabo de inchada no espinhaço dele, só que essa inchada o cabo era um pouco mais grosso que o outro, então findou quebrando o espinhaço dele, junto com o cabo. E para finalizar, não matei, mas dei uma lapada na testa com o cabo quebrado tão forte, que o macaco desmaiou. Depois disso, quebrei a máquina que eles usavam para se comunicar com a capital e com outras cidades, para ninguém saber o que aconteceu.

Segui para a igreja, a parte mais difícil e perigosa havia sido concluída, arrumar um jeito de não ser preso. Confesso que acho que passei um pouco da linha, mas apenas fiz justiça, poderia matar o covarde que espancou João, mas felizmente João ainda estava vivo, e como só tinha ele preso na delegacia, não tinham como culpar o coitado de nada. Foi apenas cangaceiros invadindo uma delegacia, e de recordação, levei a chave da cela dos policiais comigo, achei que fazer um colar seria bom para lembrar e mostrar ao meu irmão. Seu João foi embora, agradeceu por ter soltado ele, pedi desculpas pelo ocorrido.

Até que esse chapéu fica bom em você, Deus te acompanhe disse seu João, e então partiu para sua casa mancando

Quando cheguei na igreja, um homem estava na praça sozinho, de longe já apontei a minha espingarda pra ele e gritei mandando ele calar a boca. Um dos cangaceiros foi até a casa dele roubar comida e dinheiro. Quando o Capitão veio falar comigo, perguntando da demora, contei o que aconteceu a ele, na hora ele fez uma cara de raiva, mas não falou nada, acredito que ele teria feito igual.

Pegou as armas deles? perguntou o Capitão.

E eu sou minino? Tá tudo ali com Cabôco. Era quase nada, mas tinha uns negocinho bom.

Seguimos para dentro da igreja, batemos na porta e chamamos o padre. Ele abriu a porta com um shortinho e uma camisa regata branca, quando viu aquele monte de cangaceiros na sua porta tarde da noite arregalou os olhos e ficou da cor da camisa. Meti o pé na porta e o padre tentou correr.

Oxe, cê vai pra onde, seu pádi? Tá querendo vê Deus é?

O padre tremia mais que vara verde na mão de velho, e então ele virou e perguntou:

O que os senhores querem na casa de Deus, meus filhos?

O padre já era um senhor de idade avançada, mas não era velho, acho que tinha uns cinquenta e dois anos de idade, por aí, já tinha cabelos brancos.

Quero assistir à missa disse o Capitão, rindo.

Pelo amor de Deus, pádi, diga logo onde o sinhô guarda o dinheiro e a comida, que não vou fazer nada com vosmicê, que não gosto nem de matar dentro de igreja, nem de matar pádi.

Tá ali meu fio, o dinheiro. Apontou o padre pra uma foto de Jesus. Quem iria imaginar que atrás de uma foto do nosso Deus, um padre iria guardar um cofre com o dinheiro todo do dízimo?

O padre abriu o cofre e havia lá dentro um pingente de cruz de prata, e anéis de ouro, junto com sete mil contos de réis.

Rapaz, num é que o pádi tá bem de vida? Me responda aqui, seu pádi. Nesse negócio de missa, qual é a comissão que o senhor paga pra Deus?

O padre juntou as mãos e começou a rezar tremendo e chorando, quando um dos cangaceiros veio até mim e perguntou por onde subia na torre para saber se teria alguém vindo. Os outros estavam entrando de casa em casa, pra roubar comida, dinheiro e as armas dos metidos a valente que moravam na cidade. Já era tarde da noite, então todos estavam dormindo ou começando a dormir. Quando se escuta tiros atrás da igreja, um cangaceiro matou dois homens que estavam querendo ser heróis, depois disso todos da cidade sabiam que estávamos atacando. Essa era a nossa deixa, após dar uma boa encarada no padre que me recusou comida, dava pra sentir o medo em seu olhar.

Lembre de mim, seu pádi, do cangaceiro cego e de chapéu preto. E toda vez que cê pensá em negá de cumê pra quem precisa, o sinhô vai lembrar de meu olho cego e agradecer a Deus por ser padre Se não, o senhor já tinha conhecido Ele ou, no seu caso, o Diabo O padre tremia e segurava o choro de tanto pavor, então, gritei.

ENTENDEU?

Si Sim, sinhô.

Acho bom. Dei um murro tão forte no padre que senti seus dentes estralando, e ele caiu apagado, sangrando.

Saí dali e o que era de cangaceiro correndo, menino chorando, mulher gritando e homem apanhando nunca tinha se visto. Apontei a pistola do meu irmão para cima e atirei, o som dela era mais agudo que os das outras armas, então, como combinado em nosso plano, todos se juntaram no rio que era próximo à igreja por onde um dos grupos entraram e fomos embora, sumindo no escuro, deixando um rastro de maldade naquela cidade.

Quando todos nós chegamos em nosso acampamento, eu ainda estava com aquela descarga de adrenalina e a sensação do poder de Deus na mão. Eu decidi se um homem vivia ou morria Aquela sensação entrou nas minhas veias e tocou o meu coração, ali percebi que não era Deus que decidia quem ficava vivo ou quem morria, mas sim aquele que tem uma pistola na mão.

Todos os cangaceiros estavam animados, após o plano ter dado certo. Muitos contavam histórias que aconteceu com eles durante a invasão. Um falou que um homem rico, ao ver que sua casa tinha sido invadida por cangaceiros e ter seu filho de refém, pediu para que o cangaceiro levasse o dinheiro, mas deixasse ele em paz, não se importando com o seu filho. Outro disse que um bêbado pediu pelo amor de Deus para o cangaceiro matar ele, pois ele teria comprado uma blusa para a esposa e ela deu a blusa a outra. Então o cangaceiro falou:

Deixe de presepada, corno safado, e eu vou desperdiçar uma bala com uma qualidade de corno que nem você, seu cabra, oxe!

Todos os cangaceiros riram, e então contamos as coisas que tínhamos pegado. Oito revolveres velhos, quatro espingardas e algumas munições, fora a comida e o dinheiro, que era o suficiente por um tempo bom. Então fizemos uma pequena comemoração com cachaça e caju como tira gosto, para dar aquela acalmada nos ânimos.

Acendi um cigarro e quando senti que estava começando a ficar bêbado entrei em minha tenda e fiquei pensando nas coisas que fiz, a culpa começou a corroer meu peito. Não era aquilo que eu queria, bater e matar pessoas? Não, minha mãe não queria que eu fosse assim, pensei em meu irmão, será que estava bem? Será que a perna dele melhorou? Pensei em seu João, se ele estaria melhor da surra que tomou E ao pensar nisso lembrei o motivo que me fez fazer aquilo, que me fez deixar aquele policial aleijado para o resto da vida. A raiva se misturava com culpa e a preocupação ao mesmo tempo. Após minutos, talvez horas, consegui dormir.

Enquanto dormia senti uma sede forte e uma leve dor de cabeça que foi aumentando, até que acordei Eu estava em um lugar branco, olhava para os lados era como se não existisse parede, como se eu estivesse ao céu aberto, porém, o céu também era branco, olhei para o chão e me surpreendi, também era branco. Me virei e tomei um susto com o que vi, uma cobra estava parada me olhando, era escura, quase preta, e dava para notar um chocalho na ponta do seu rabo. Ela estava olhando no fundo dos meus olhos e por incrível que pareça ela conversava comigo, mas eu não escutava sua voz, ela me chamava para perto, dizia que poderia me ajudar, dizia que iria me contar o que aconteceu com a minha mãe. Eu me sentia hipnotizado como se algo me empurrasse para ela, eu não controlava minhas pernas, e quando eu estava bem perto dela, ela falou.

Chegue mais perto... ssssss!

Fui chegando e vi os seus olhos escuros encarando o meu, e de repente ela deu o bote.

Acorda Damião, vai dormir até meio-dia? disse Sabiá.

Acordei suando e agoniado. Aquilo era um sonho, ou um pesadelo. Coloquei meu tapa-olho, meu novo chapéu, começamos a desarmar as tendas e durante isto fomos conversando sobre coisas aleatórias.

Rapaz, como cê pensô nas coisa pra nois fazê onti, hein?

Nada, foi bem simples, qualquer um fazia isso.

Oxe, eu? Eu impurrava tiro cidade acima. Tenho paciência pra essas coisas, não.

Sabiá é tão apressado que antes da mãe dele durmi com o pai dele, ele nasceu disse Minininho, o cangaceiro mais novo do bonde.

Rimos e continuamos a tirar as tendas. Eu estava doido para que todo aquele serviço terminasse logo, para poder rever o meu irmão e saber do seu estado, se sua perna tinha melhorado.

Após alguns minutos arrumando tudo que estava faltando, partimos para encontrar com os vendedores das armas que o Coronel Castro estava esperando.

Me juntei ao resto do bando e partimos, ainda ao sul. Horas de cavalgada e caminhada fui lembrando das coisas que fazia quando era criança, fui pensando em Seu Bié, em Dona Maria, na nossa casa, será que Bié passou por todas essas coisas que eu passei? Ou ele apenas sobrevivia e o cangaço era a forma de sobrevivência que ele tinha? Bem, isso nunca vou saber, talvez deva achar a minha forma de viver, e é isso que eu quero? Viver usando a violência por dinheiro? Não, eu quero uma família, quando eu terminar isso tudo eu vou me casar, vou ter muitos filhos. Um leve sorriso apareceu em meu rosto.

Chegamos no local após quatro dias de viagem. Era um pequeno sítio, provavelmente era algo provisório, pois esse povo também vive viajando O lugar não era um dos mais bem cuidados, os matos estavam altos, muito secos, realmente era um lugar provisório Ao chegar lá encontramos alguns policiais e alguns capangas

Capitão Juazêro! Disse alto e alegremente um senhor que estava sentado na varanda da casa esperando.

Sua pele era negra e seu cabelo e barba eram brancos como as nuvens, deveria ter uns setenta anos. Estava bebendo licor, se levantou e falou com os homens dele. Ao desmontarmos dos cavalos, nos sentamos para beber água e fazer a negociação.

Tome, Juazêro, esse licor é importado, do jeito que vosmicê gosta falou rindo, o homem.

Sorrindo o Capitão pegou o copo, retirou o chapéu e bebeu. Achei estranho, pois o Capitão sempre que bebia algo ele dava uma mexida com a colher de prata dele, dizia que a colher mostrava se a bebida estava envenenada ou não, porém desta vez não fez.

O valor já está acertado? perguntou Juazeiro.

Sim, duzentos e cinquenta mil conto. Tá tudo aí? perguntou o homem.

Sim, sinhô, aqui. O capitão entregou um caixote pequeno de madeira para o homem.

Ele riu e disse.

Fiquei sabendo da bagunça que vosmicê fez em Jerimum. Prenderam os policiais, mataram duas pessoas, bateram em outras, alejaram um policial... Acharam que eu não ia saber?

Não, sinhô falou o capitão.

Zé Piló era o nome do polícia que tomou a pisa. Vocês quebraram o espinhaço dele, nunca mais ia andá, só que ele recebeu uma pancada tão forte na cabeça, que ficou amaçado e ele morreu no outro dia, saiu tanto sangue do nariz e do ouvido dele que eu acho que dava pra encher um balde. O homem falava olhando para mim.

Eu sei que foi vosmicê, inventaram até um nome, te chamam de O Diabo Cego O homi que vosmicê soltô, o nome dele era João Calango. No outro dia, entraram na casa dele e mataram ele na frente dos fio. O povo pensou que ele era um coitero

Ele falou aquilo olhando para mim, me julgando. O Capitão me olhou com o mesmo olhar, dizendo “Eu sabia que isso ia acontecer” João, a única pessoa que me ajudou naquela cidade, a única pessoa que fez o certo Morreu por minha culpa, quatro crianças ficaram órfãs Senti um formigamento na minha nuca subindo para a cabeça, minhas pernas ficaram fracas, senti calor e minhas mãos suavam frio. Um homem bom morreu por minha culpa, todos os meus sonhos de ter uma família e ser uma pessoa normal e feliz morreram naquela hora, dali em diante eu teria que carregar o peso e a fama de ser conhecido como O Diabo Cego.

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.