Revista Élégant 09 - Gianne Albertoni

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Crônica

Náufrago A

inda no divã, sentiu que o mundo desabara em sua cabeça, como muitas outras vezes, mas naquela manhã em especial, o pouco dos cacos de mundo que tinha juntado, desapareceu diante de si e o pouco de chão que o sustentava, sucumbia em seus pés. Há anos, desde quando nascera, clamava por ela, mas naquele dia descobriu de onde vinha a solidão de ser, despertara em si algo que lhe inquietava: não era nada, estava sem nada. Sabia que filho do acaso não era e seu destino talvez já estivesse traçado. Desceu o elevador, saiu atordoado, pernas bambas, trêmulo, ausente de muitas coisas que achava que já lhe pertenciam. Um sabor amargo vinha-lhe como bile viscosa e aquilo não era nada próximo de água-coração. Queria chorar, mas sua tristeza era feita de aridez e seca, como no sertão que nunca chove. Terra rachada. Frestas que delineavam sua alma esperando sem muita alegria por chuvas inesperadas, numa possível promessa de fechamento, cicatrização. Viver já era tarefa árdua, daquele momento em diante talvez, insuportável continuar. Sabia que estava condenado a sofrer com aquela ferida que não tinha nome nem remédio, talvez o tempo. Queria de-

André Mantovanni

Escritor e apresentador de rádio e televisão. Mestrando em Literatura e Crítica Literária (PUCSP) é especializado em Estudos Literários e formado em Artes Visuais. www.andremantovanni.com.br

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sistir, queria ir em frente, mas como? Passou o dia, trancado no quarto como quem passa uma noite insone e atormentada, dormiu. Dormiu pra não pensar ou fingir para si que estava por alguns instantes, morto – longe da vida que não queria, mas que o pertencia. Foi numa pancada só: viu como estátua de sal, uma espécie de mulher-sereia desfazer-se e tudo esvaziou-se, abismos do eu, as ilusões, os ideais todos os abandonara. A realidade lhe trouxe náuseas e tonturas provocadas por tudo o que não digeria dentro da alma e a verdade que parecia tão rara de encontrar o surpreendeu aparentemente num banquete de serpentes mortas. O vazio estava estabelecido. O caos. A falta. O abandono. A orfandade. Todas as ausências resumidas numa única dor: ela nunca esteve, não está, jamais estará onde um dia sonhou. Sentiu que estava naufragando e seu barco-divã talvez afundasse, mas as memórias e palavras permaneceram firmes, como âncora. Agarrado ao que lhe sobrou esperava, boiando sobre águas escuras, sozinho, sem pátria, sem norte, sem farol, sem pai, sem mãe, órfão de algo ou alguém ficou ali imóvel, quase afogado. Com esforço, diante do espelho enxergou a própria face, percebeu que era órfão de si mesmo. Grande revelação: guardava o tempo consigo , então, num lampejo de encantamento atrás de si, como reflexo, sombra ou anjo, viu a bela senhora com uma bacia de ágata nas mãos ofertando-lhe águas de maravilhamentos. Lavou os olhos, a face, o corpo e o coração como uma espécie de ritual humano e sagrado, renasceu. Abriu as janelas. O sol estava se pondo, o vento anunciava o tempo que estava indo e o tempo que estava chegando. O dia tinha amadurecido e o menino da manhã, anoiteceu homem grande. Ao chegar diante do mar, ouviu o chamado das águas, abraçou a si resgatando o que nunca teve e o canto das sereias lhe deu sinais de que era preciso viver.


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