As garotas Madalenas - Quem poderá salvá-las?

Page 1



V. S. ALEXANDER

AS GAROTAS MADALENAS QUEM PODERA SALVA LAS ?

R O M A N C E

TRADUÇÃO:

Nilce Xavier


Copyright © 2017 V. S. Alexander Copyright © 2019 Editora Gutenberg Título original: The Magdalen Girls Todos os direitos reservados pela Editora Gutenberg. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

editora responsável

capa

Rejane Dias

Kensington Publishing Corp. (sobre imagem de Sandra Cunningham / Trevillion Images)

assistente editorial

Andresa Vidal Vilchenski

adaptação de capa

Diogo Droschi

preparação

Pedro Pinheiro

diagramação

Larissa Carvalho Mazzoni

revisão

Mariana Faria

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil

Alexander, V. S. As garotas Madalenas / V. S. Alexander ; tradução de Nilce Xavier. -- 1. ed. -Belo Horizonte : Editora Gutenberg, 2019. Título original: The Magdalen Girls. ISBN 978-85-8235-582-4 1. Ficção histórica 2. Literatura norte-americana I. Título. 19-24991

CDD-813

Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura norte-americana 813 Iolanda Rodrigues Biode - Bibliotecária - CRB-8/10014

A GUTENBERG É UMA EDITORA DO GRUPO AUTÊNTICA

São Paulo Av. Paulista, 2.073, Conjunto Nacional, Horsa I 23º andar . Conj. 2310-2312. Cerqueira César . 01311-940 São Paulo . SP Tel.: (55 11) 3034 4468 www.editoragutenberg.com.br

Belo Horizonte Rua Carlos Turner, 420 Silveira . 31140-520 Belo Horizonte . MG Tel.: (55 31) 3465 4500


PRÓLOGO

as freiras estavam reunidas perto da porta como um enxame de moscas negras. Algumas riam de nervoso, ansiosas. Outras agarravam o crucifixo que pendia de seus hábitos e encaravam as três jovens deitadas de barriga para cima diante delas. Irmã Anne, a Madre Superiora, as posicionara como no calvário, compondo uma cena muito parecida com a da crucificação representada em uma pintura renascentista. Uma punição nunca deve deixar hematomas ou provocar sangramentos, pois isso seria uma profanação ao corpo e traria desgraça às Irmãs da Sagrada Redenção. Não, era melhor fazer as penitentes reconhecerem seu erro através do amor de Cristo. Nenhuma mancha púrpura, roxa ou azul-celeste adornava as três pecadoras estendidas no chão da biblioteca. A composição fora artisticamente arranjada, com a transgressora que mais tinha do que se arrepender, no lugar de Jesus: a bela e loira Teresa. Sua cabeça estava acima das outras duas jovens à esquerda e à direita, suas compatriotas em pecado. A luz do sol da tarde infiltrou-se na antiga biblioteca do convento, iluminando as partículas de poeira que pairavam no ar como contas minúsculas de um colar invisível. Ver as moças em seus uniformes simples, com os braços abertos em súplica e os corpos tão rígidos quanto as tábuas em que deveriam ser pregadas, proporcionava à Irmã Anne um modesto prazer. Não queria machucá-las; queria que elas compreendessem quanta dor haviam provocado à Ordem. Não podia tolerar nem insubordinação, nem caprichosa camaradagem daquelas que haviam pecado. A reabilitação e a penitência nunca saíam de seus pensamentos, e o amor, muito menos. 5


Da porta, as freiras esticavam o pescoço para terem uma visão melhor de tudo. Já tinham visto outras punições aplicadas pela Irmã Anne, mas essa era uma reviravolta. Algumas mal conseguiam conter o prazer antecipado perante a reprimenda que as três penitentes mereciam. A Madre Superiora pairou sobre elas como o Espírito Santo, maravilhada com o pensamento de uma onda de amor jorrando de si sobre as pecadoras. Ela fez o sinal da cruz. – Penitência – pronunciou a palavra lentamente, frisando cada uma das sílabas, embora num tom quase inaudível às garotas. Começou a abaixar o corpo alto e magro, ajoelhando-se diante do rosto de Teresa. A garota olhou fixamente para o teto e então fechou os olhos. Monica, a de cabelos escuros, à direita de Teresa, espumava de raiva, com o olhar cheio de ódio. Lea, pálida e esbelta, à esquerda, já estava em oração. Irmã Anne não queria punir Lea, porque, entre as três, ela era a boa menina. No entanto, precisava quebrar o laço que unia essas jovens irmãs. – Vocês sabem porque estão aqui – disse Irmã Anne. Seus olhos cintilavam de irritação. – Não falem. Apenas escutem. Vocês nos desrespeitaram, prejudicaram nossa Ordem com suas palavras e atitudes. Não podem difamar o Senhor nem ir contra a Sua vontade. Ela se perguntou se as penitentes estavam prestando atenção. Das três, julgou que Monica fosse a mais atenta, mas só porque esta estava com raiva. Por que essas garotas a desafiavam tanto? – Permanecerão deitadas aqui, na posição da cruz, até que aprendam a lição – prosseguiu a Madre Superiora. – Vocês precisam entender o que Jesus padeceu. Não irão comer, beber, nem aliviar suas necessidades corporais. – Ela se colocou de pé. – Quando o mal tiver sido expurgado de seus espíritos, poderão se juntar a nós novamente. O que eu faço é um ato de amor, para que vocês conheçam Cristo e Seus caminhos. Teresa nada disse. Lea murmurou uma prece. Monica cuspiu na direção da Madre Superiora. O cuspe acertou o hábito da abadessa, e as freiras perderam o ar momentaneamente. A religiosa pediu uma toalha; uma de suas obedientes irmãs correu até ela e limpou o fluido ofensivo. – Você ainda tem muito a aprender – disse Irmã Anne entredentes. Ela se ajoelhou junto a um dos braços estendidos de Monica e retirou um alfinete do cinturão do hábito. Os olhos da garota congelaram de terror à medida que a lâmina metálica descia em direção à sua palma. – Não se atreva! – Monica bradou, sentando-se. A Madre Superiora chamou a Irmã Mary-Elizabeth, que veio em seu auxílio. 6


– Segure as mãos dela no chão. – Monica lutou, mas a freira era tão robusta quanto as rochas de granito que erguiam o convento. Exausta, desistiu de lutar. A Madre Superiora riscou uma cruz na palma da mão de Monica com a ponta afiada do alfinete. – Se eu te odiasse, enfiaria isso aqui na sua carne para te mostrar o que Cristo sentiu. Seus perseguidores o insultaram. Queriam que Ele sofresse, e Ele de fato sofreu. Eu não quero que você morra no pecado. Quero que ressuscite no paraíso. – Ela agarrou seu crucifixo. – Irmã, fique com elas. Está quase na hora das orações. As freiras ao pé da porta se dispersaram. Irmã Mary-Elizabeth sentou-se em uma cadeira perto da janela e ficou vigiando as três jovens sob seu encargo. – Lembrem-se de minhas palavras. Eu amo vocês – disse Irmã Anne antes de lhes dar as costas e desaparecer de vista, com o barulho de seus sapatos ecoando pelo corredor.

7


CAPÍTULO 1

a rosa vermelha presa no vestido de Teagan Tiernan parecia deslocada. Ela remexeu no botão fechado, evitando os galhinhos espinhosos que a mãe havia cortado do caule, e o reposicionou no ombro esquerdo. A flor ficou dependurada ali por um momento, exalando uma fragrância suave, mas logo em seguida caiu sobre seu peito. Após uma hora na casa de Padre Matthew, a rosa estaria tão murcha quanto o corpo da garota estaria suado, e não eram nem 3 horas da tarde ainda. Ela ficou tentada a jogar o botão na cama, junto do suéter que a mãe queria que ela levasse à recepção. Não faria a menor falta naquele dia excepcionalmente quente. Teagan pensou em um milhão de coisas que preferia fazer em uma tarde de domingo a ir a uma reunião na casa paroquial para dar as boasvindas ao novo padre. Poderia dar uma volta na moto de Cullen Kirby, seu namorado, ou passar a tarde com ele no Rio Liffey, curtindo a brisa fresca à beira d’água. A mãe tinha escolhido um vestido branco de cetim. Teagan protestou, alegando que ele a deixava com a aparência de uma colegial, muito imatura para uma garota de 16 anos, mas a mãe insistiu que ele era ideal para uma reunião da igreja. – Vamos logo, vocês duas, ou vamos nos atrasar! – Os passos ansiosos de Cormac, o pai da jovem, ecoaram lá embaixo. Suas palavras eram dirigidas a Teagan e a Shavon, sua mãe. – Meu uísque já está morno e não vai ter mais ponche quando chegarmos. Quando aquela multidão começa a beber, ele evapora! – E qual é o problema? – Teagan suspirou. Seu pai sempre levava consigo o próprio frasco de bebida aos eventos sociais, independentemente 8


da ocasião. Ela pegou a escova e alinhou os fios rebeldes, conferiu a aparência no espelho da penteadeira e então afofou o cabelo atrás das orelhas. Lá fora, nuvens pesadas se arrastavam em direção ao sol. Teagan semicerrou os olhos para a esfera brilhante como uma lâmpada incandescente em um teto muito azul. Se ao menos pudesse desligar o astro-rei e acabar com aquele calor... Mas não tinha mais poder sobre o sol do que tinha de escapar daquela reunião. Pegou o suéter sobre a cama e abriu a porta do quarto. A mãe a puxou pelo braço no corredor. – Deixe-me ver como você está. Dê uma voltinha. Teagan girou sobre os saltinhos brancos dos sapatos, revirando os olhos. – Nada de fazer cara feia – a mãe a preveniu, enquanto espanava um fiapo imaginário dos ombros da filha, inspecionando-a da cabeça aos pés. – Você parece uma princesa, meu amorzinho. Seu pai vai ficar tão orgulhoso. Ela se desvencilhou da mãe. – Pareço uma menina mimada. Tenho mesmo que ir? Nós já fomos à missa hoje de manhã. Eu preferia dar um passeio pelo rio. – Você não vai conseguir escapar desta – respondeu a mãe, alisando as lapelas de seu terninho novo. – E eu sei por que você quer caminhar pelo rio. Aposto que tem algo a ver com Cullen Kirby. Hoje ele terá de esperar. Agora vamos. É importante conhecer o novo padre, e não queremos deixar seu pai bravo. Teagan olhou para o vestido que usava. Morreria de vergonha se Cullen ou algum de seus colegas a vissem daquele jeito. Parecia que estava vestida para um baile de gala. O único ponto positivo era que o vestido valorizava seus seios. Ela os achava muito pequenos, mas o tecido justo os deixava arrebitados, acentuando sua silhueta delgada. A garota nunca teve a presunção de competir com a mãe, que estava invariavelmente muito charmosa, sóbria e elegante, não importava se ia ao mercado ou jogar bridge. Hoje não era diferente. O terninho caía como uma luva em seu corpo, em um contraste perfeito com a pele muito clara. Os cabelos estavam presos em um coque baixo, para acomodar o chapéu. – Pelo amor de Deus! – ecoou a voz do pai. – Será que eu vou ter de subir aí e arrastar vocês duas até o carro? Elas começaram a descer, Teagan na frente, seguida por Shavon. Cormac encarou as duas, girando o chapéu fedora que tinha na mão. Pegou o lenço e limpou as gotas de suor que brotavam em sua testa. 9


– Não aguento mais essa onda de calor. Se já não bastasse estar quente como o inferno, ainda por cima estamos atrasados. Eu até entendo que minha filha não tenha respeito pelos bons costumes, considerando como é essa juventude de hoje em dia, mas você, a mãe, deveria dar o exemplo. Ele usava um terno azul, um pouco pesado demais para aquele dia; no entanto, era sua roupa favorita, que ele reservava para ir a eventos do trabalho e à igreja. – Vai ter bebida o bastante, não precisa se preocupar – respondeu a mãe com acidez. – Você vai encher seu copo. Padre Matthew garantirá que ninguém fique sem. Agora você podia, pelo menos, elogiar sua filha. Cormac resmungou, em seguida gesticulou impaciente para que a esposa e Teagan saíssem de casa e então trancou a porta. As mulheres o seguiram até a vaga apertada onde o sedã preto estava estacionado, diante da fileira de casas idênticas. As janelas estavam fechadas e o interior do veículo parecia um forno. Teagan começou a entrar no banco de trás e foi imediatamente golpeada pelo calor cáustico. Cormac estava mais irritado do que nunca, e não parecia ser só por causa do clima. Ela se perguntou se o pai e a mãe realmente eram felizes, mas logo cortou as asas desse pensamento. Tinha sorte por morar na porção sul de Dublin, longe da pobreza e dos conjuntos habitacionais do lado norte. Shavon, todavia, não gostava de Ballsbridge e sempre lamentava que viviam muito perto de Donnybrook e seus bairros operários. Ela não tinha muito contato com o mundo exterior. O pai proibia praticamente tudo que era divertido; era um burocrata, um colarinho branco, e embora Teagan tivesse uma vaga ideia do que ele fazia como assessor na Leinster House, o parlamento irlandês, nunca tinha estado em seu escritório. Costumava imaginar que ele tinha uma vida agitada, lidando com pessoas importantes, mas suas queixas sobre o trabalho e o salário baixo eram incessantes. Mesmo assim, as freiras da escola paroquial lhe diziam para agradecer aos céus. Tinha uma boa casa, comida na mesa e um carro na família, quando pouquíssimos em Dublin gozavam de semelhantes luxos. O carro se afastou do meio-fio e virou a norte em direção à igreja St. Eusebius; era um trajeto de cinco minutos. O ar ainda estava quente dentro do carro, arruinando o penteado de Teagan. Pelo menos as árvores ao longo da rua proporcionavam um caminho sombreado. A mãe se remexeu no banco da frente, ajustando seu novo chapéu pillbox, enquanto o pai acendia um cigarro com a mão livre. 10


– Merda! – Ele deu um tapa no volante conforme se aproximavam da igreja. – Vamos ter que estacionar a um quarteirão de distância, e nesse calor. É isso o que acontece com quem se atrasa. Mas que inferno! Quem é que organiza uma recepção bem no meio de julho? Teagan protegeu o cabelo com as mãos, tentando manter seu penteado alinhado, e olhou pela janela. Uma fileira de veículos parados ao longo da rua, as pinturas metálicas refletindo o sol impiedoso. O estacionamento da igreja já estava lotado. – Olhe a boca, Cormac – Shavon repreendeu enquanto eles estacionavam a alguns quarteirões da igreja. – Teagan, pegue seu suéter. Ela olhou para a peça e fez uma careta. – Está tão quente. Vou parecer uma idiota. – Leve-o no braço. Uma dama sempre deve estar prevenida. Bons modos, você sabe. – Ora, deixe isso aí no carro – Cormac riu com desprezo. – Bons modos não vão te levar ao paraíso. Raramente o pai ficava do lado dela, mas, em respeito à mãe, Teagan levaria o suéter; afinal, elas se entendiam. Não que a jovem odiasse o pai, mas até onde conseguia se lembrar, ela e a mãe tinham construído um laço. Elas apoiavam uma à outra quando Cormac ficava bêbado, ou quando dava ordens estritas que sobrecarregavam o clima familiar. Pegou o suéter e o levou no braço. A menina sentiu o estômago embrulhar quando saíram do carro. Não queria estar ali – poucos eventos sociais aos quais acompanhava os pais eram agradáveis. Já sabia como a tarde se desenrolaria. Seu pai beberia demais, a mãe criticaria a bebedeira olhando para ele de cara feia. Teagan teria de ficar de conversa fiada com um monte de gente que mal conhecia e não fazia a menor questão de conhecer. Que pena que Cullen não era católico. Como protestante, ele não podia vir a essa recepção. Os pais não aprovavam seu namorado, mas Teagan não se importava. Ela o encontrava sempre que podia, na maioria das vezes quando conseguia dar uma escapadela. Sua relação com Cullen não era da conta de ninguém. Se conseguisse sobreviver a essa reunião angustiante, talvez pudesse ligar para ele mais tarde, quem sabe até conseguissem dar uma volta. Ir a St. Eusebius duas vezes no mesmo dia era demais – primeiro a missa e agora isso. A distância, o prédio da igreja erguia-se como uma prisão de granito. Teagan sempre achou que ele não tinha nada de mais, 11


exceto pelo grande campanário. Naquela tarde quente, a igreja parecia proibitiva e sufocante. Seu pai ia na frente, ávido para chegar à poncheira. Teagan e a mãe vinham atrás, se abanando. Ele seguiu pela entrada norte, atravessando uma alameda repleta de árvores altas que forneciam alguma sombra. Já dava para ouvir as risadas ecoando pelas portas abertas da paróquia. Teagan respirou fundo antes de mergulhar na multidão. A sala estava tão lotada que quase não dava para se mexer. Sentiu o bafo quente de tantos corpos reunidos assim que entrou. Cormac acenou para um grupo de homens em pé do outro lado da sala e foi abrindo caminho até a mesa de bebidas. A mãe se juntou a um grupo de mulheres que estava perto da porta. Teagan viu Padre Matthew, o clérigo da paróquia, junto à mesa onde estavam o ponche e várias garrafas de vinho abertas. Um retrato do Papa João XXIII estava pendurado na parede; o Papa, vestindo uma batina carmim e o solidéu branco, sorria para a festividade. Padre Matthew ficou vermelho após fazer uma piada com os fiéis que formavam fila para pegar bebidas. Teagan ouviu o pai pedindo um copo de ponche; assim que foi servido, Cormac se afastou, de costas para os presentes. Teagan sabia o que o pai estava fazendo. Viu seu cotovelo se dobrar depois que ele alcançou algo no bolso. Cathy, uma garota que ela conhecia da escola, chamou por ela do outro lado da sala. Mesmo com vergonha do vestido que usava, Teagan acenou de volta e então também se serviu de um copo de ponche. Mal tinha começado a ir em direção à turba quando um homem no centro da sala chamou sua atenção. Ele só podia ser o novo sacerdote. Estava vestido como um, usando a gola de padre, camisa e calças pretas, mas, ao contrário do Padre Matthew, era jovem, bonito e tinha ombros largos e braços fortes, como os garotos atléticos da escola. As mulheres da paróquia, das mais jovens às mais velhas, rodeavam-no como pombas disputando alpiste. Elas ouviam atentamente cada uma de suas palavras. Quando ele sorria, dava para ver que tinha covinhas. Ele riu e passou os dedos nos cabelos escuros e ondulados, e seus olhos de um azul-celeste deixaram Teagan momentaneamente paralisada. Era imaginação dela ou ele a tinha olhado com uma expressão de interesse? Algumas mulheres a encararam. Uma em especial, a Sra. O’Brian, parecia estar particularmente atenta ao novo sacerdote. Mas ele estava olhando para ela enquanto a garota seguia na direção dele. Teagan não tinha imaginado. 12


A Sra. O’Brian analisava cada movimento de ambos com olhos ávidos de águia. O padre sorria conforme Teagan serpenteava em meio à multidão, abrindo caminho até chegar à roda, ignorando Cathy por um momento. Será que ele estava sorrindo para ela? Um arrepio percorreu todo o seu corpo. Gostava daquela sensação, especialmente quando vinha de um homem tão bonito. Algo nele – não sabia exatamente o quê – a excitava. Seria a empolgação por conhecer alguém jovem e importante? Ou seria a boa aparência dele? Ela se juntou ao círculo, mantendo-se perto o bastante para ouvi-lo responder às perguntas sobre seus novos afazeres, mas não se apresentou. Alguém acidentalmente trombou nela por trás e Teagan esbarrou no padre; os pelos de seus braços ficaram completamente eriçados ao contato. – Me desculpe – ela disse, sem olhar diretamente para ele. – Alguém me empurrou. Os olhos do sacerdote estavam radiantes. Ao que tudo indicava, ele já estava acostumado com multidões de adoradoras. – Não precisa se desculpar – ele disse, e retomou a conversa com as demais. Sentindo o embaraço dominá-la, Teagan se afastou. Cathy agarrou seu braço quando conseguiu alcançá-la. – Ele não é lindo? – A menina quase engasgou de entusiasmo. – Você chegou perto dele. O que ele falou para você? – Cathy ajeitou os óculos para que pudesse focar melhor no sacerdote. – Padre Mark – disse languidamente –, eu adoraria me confessar com você. – Isso se você conseguir vencer o mar de mulheres ao redor dele – Teagan zombou. – Só faltam os outros apóstolos, Padre Luke e Padre John, para completar o cenário. Risadas ecoaram do canto onde o pai de Teagan estava com os colegas. A essa altura, certamente já estava no segundo uísque. – Acho que Padre Mark gostou de você – disse Cathy. – Eu vi o jeito como ele estava te olhando. – A amiga a fitou de cima a baixo. – Mas, uau, olha só pra você, toda embonecada hoje. – Minha mãe me obrigou a usar esse vestido... E trazer esse suéter. – Teagan suspirou. – Eu falei que era ridículo, mas ela nem me deu ouvidos. E você é uma boba. Padre Mark tem idade para ser meu pai; ele tem pelo menos 30. E mesmo que gostasse de mim, que futuro eu teria com um padre? Nenhum. 13


A garota afundou os ombros ao pensar nisso, mas ficou feliz por saber que Cathy a achava interessante o bastante para atrair o olhar do Padre Mark. Cathy olhava para o jovem sacerdote com as pálpebras franzidas. – Talvez você consiga convencê-lo a abandonar os votos de celibato. – Não seja tola – disse Teagan, abanando o rosto com as mãos. – Como está quente! Queria que tivéssemos ar-condicionado aqui como minha tia Florence nos Estados Unidos. Ela vive falando para a minha mãe de todos os luxos que tem lá em Nova York. – Vamos até a mesa para ficarmos perto das escadas – Cathy propôs. – Escadas? – Padre Matthew tem uma adega de vinho. Eu ajudei ele e Padre Mark a trazer algumas garrafas aqui para cima. As garotas se dirigiram à mesa e então para a escada. Shavon tinha se juntado ao grupo de senhoras reunidas ao redor do novo sacerdote. No canto, Cormac estava encostado em um de seus amigos, dividindo com ele o conteúdo de seu cantil. Estavam ali havia poucos minutos quando Padre Mark atravessou a multidão e foi até elas. Cathy cutucou as costelas de Teagan. – Prepare-se, ele está vindo. Teagan deu um tapinha na mão da amiga. – Pare com isso. Não quero que ele repare em mim. Ele parou diante das duas e estendeu a mão para Teagan. – Já conheço Cathy, mas ainda não tive o prazer de conhecer você. Ele não tinha sotaque irlandês, e Teagan se perguntou de onde ele seria. Estendeu a mão e apertou a dele, quente ao toque. Um arrepio percorreu todo o seu corpo, e então ela puxou a própria mão. A garota sustentou o olhar do padre. Ele preenchia a batina como nenhum outro sacerdote que ela já conhecera. Uma pergunta ecoava em sua cabeça: por que um homem tão bonito se tornou padre? – Está muito quente, e vim procurar uma garrafa de vinho específica – ele disse. – Creio que um gole ou dois vão me fazer bem. – Teagan pode te ajudar – Cathy ofereceu e imediatamente recebeu um olhar fulminante da amiga. – Tenho certeza de que Padre Mark consegue se virar sozinho. – Nada disso, vá em frente – Cathy insistiu. – Não me importo de ter companhia – ele disse, conforme passava por Cathy e começava a descer as escadas. Cathy empurrou Teagan atrás dele. 14


Ela olhou feio para a amiga, agarrou o suéter e foi se apoiando na parede à medida que descia. Parecia que era criança novamente, pensou, tentando evitar aquela sensação de que estava fazendo algo proibido ao seguir aquele homem atraente. Ele era tão diferente de Cullen. Seu charme e sua maturidade eram fascinantes. Padre Mark sumiu por alguns momentos. Um clarão inundou as escadas, e ela o viu no meio do salão, iluminado pelo brilho de uma lâmpada incandescente. O cômodo tinha cheiro de uva e de inúmeras gerações de paredes úmidas. Várias cadeiras velhas estavam em um canto, perto de uma escrivaninha com a perna quebrada. Um grande baú de viagem com uma pilha de livros em cima jazia no outro canto. Padre Matthew esquadrinhou as garrafas de vinho em uma estante de madeira encostada na parede. Pegou uma delas, leu o rótulo e, sem se virar, perguntou: – Qual é o seu nome? – Teagan Tiernan. – Um belo nome. – Ele se virou e fixou o olhar nela, medindo-a dos pés à cabeça com aqueles olhos azuis. – Seus pais são membros da paróquia? – Sim, há muitos anos. – A intensidade do olhar dele a deixava nervosa, mas a própria Teagan também não conseguia desviar os olhos. Algo semelhante a tristeza perpassou a fisionomia do sacerdote, mas logo desapareceu. Ele girou a garrafa no ar e a agarrou com firmeza. – Era isso que eu estava procurando. Um bom claret. É quase um pecado beber isso em um dia tão quente. – Ele estendeu a mão livre na direção dela. Teagan instintivamente ergueu o suéter diante de si. – Me desculpe. Eu só queria ver a rosa vermelha no seu vestido. Eu amo rosas. Elas simbolizam a pureza, sabe, especialmente as brancas. Ela concordou com um gesto de cabeça e levou a mão até a flor, que tinha caído para a frente. A rosa estava perto de seu seio esquerdo, acentuado pelo vestido. Seus nervos estavam à flor da pele. – Acho melhor voltarmos lá para cima. – Em um minuto. – Padre Mark sorriu. – Estou cansado de apertar mãos e responder a perguntas. Deixe-me fazer algumas. – Ele se recostou na estante de vinhos. – Está absurdamente quente para carregar um suéter. – Coisa da minha mãe. Ela sempre diz que uma dama nunca deve sair sem um suéter, não importa o calor que faça. 15


– Você entende alguma coisa de vinho? Teagan fez que não. – Meu pai bebe vinho de vez em quando, mas prefere uísque. – Dê uma olhada. – Padre Mark lhe estendeu a garrafa. Ela pôs o suéter sobre os livros no baú, pegou a garrafa e a examinou. – Não significa muito para mim. – Passou a garrafa de volta para ele. Vozes estridentes e risadas ecoavam lá de cima. Teagan se perguntou se sua mãe estaria procurando por ela. Sentia um frio na barriga só de pensar que estava sozinha ali com o padre, por mais que não estivesse fazendo nada de errado. O que aconteceria se fosse pega no porão com ele? O sacerdote não parecia muito preocupado com essa possibilidade. – De onde você é? – ele perguntou. – Ballsbridge, perto de Donnybrook – ela respondeu, mas se sentiu constrangida. – Eu sou de Dublin, porção norte – ele disse, pragmaticamente. – Não parece. Seu sotaque é diferente, pelo menos das pessoas da porção norte que conheci. – Estudei em Londres. E treinei bastante para me livrar do meu sotaque arrastado. Eu tinha vergonha do lugar onde cresci... Ela conhecera poucas pessoas que viviam a norte do Rio Liffey, mas sabia que a vida lá era diferente – Não deveria ter. Você se deu bem. – Eu aprendi – ele inclinou a cabeça – que não dá para apagar o passado, não importa o quanto você tente. O sacerdote olhou para Teagan com uma doçura que a surpreendeu. Ela olhou para baixo. – Seu cabelo é muito bonito – ele disse. – É quase loiro, raro aqui na Irlanda. Teagan tentou não ruborizar. – Minha avó do lado materno era alemã. Não me lembro dela... Morreu pouco depois do meu nascimento. – Teagan... Teagan? A conversa deles foi interrompida pela fala arrastada de Cormac. Ele chamava o nome da filha insistentemente; cada “Teagan” mais alto que o anterior. – Bem, foi um prazer, Srta. Tiernan. Creio que é melhor subirmos. – O Padre Mark puxou a cordinha da lâmpada, e o porão mergulhou na escuridão. 16


A voz do pai dela reverberava em rompantes violentos, e um calafrio percorreu todo o seu corpo. – Deixe-me ir na frente. – Ele passou por ela com a garrafa de vinho na mão. Teagan o seguiu. O padre parou diante do pai dela, que estava rodeado pelos amigos. Os olhos vermelhos de Cormac brilhavam, abastecidos por uma raiva embriagada. Ele se desviou do sacerdote e agarrou a filha pelo braço. Todos os presentes se calaram no mesmo instante. – Eu estava te procurando – disse o pai, com a fala arrastada. Ela sabia que ele estava bravo quando seu sotaque ficava carregado por causa da bebida. – Pare com isso, Cormac – a mãe interveio, pousando a mão no ombro dele. – Não faça uma cena. – Uma cena? Eu estava procurando a minha filha! – Ele tirou a mão da esposa de seu ombro com um safanão e berrou: – O que um homem deve fazer quando não consegue encontrar a carne da sua carne, o seu próprio sangue? Padre Mark pôs a garrafa sobre a mesa e estendeu a mão, mas o gesto de gentileza não foi retribuído. Cormac encarava o sacerdote com ódio. O padre recolheu a mão. – Receio ter sido o culpado, Sr. Tiernan. Pedi que Teagan me acompanhasse ao porão para ler o título de alguns livros sagrados. Não enxergo bem sem meus óculos. Cormac tremeu quando o padre sorriu para ele. Apontou o dedo para Teagan. – Ela é boa de leitura, mas lerda para aprender sobre a vida. – Papai, por favor! – disse Teagan. Ela usou o único termo carinhoso que sabia que podia apaziguar a raiva do pai. – Sim, filhinha, seu “papai” é que diz por favor – ele cuspiu as palavras e trombou na mesa. Padre Mark o amparou antes que ele derrubasse a poncheira e o vinho. – Tire suas mãos de... – Cormac empurrou o sacerdote e se segurou na beirada da mesa. Padre Mark cambaleou para trás. Shavon pegou sua bolsa e, furiosa com o marido, disse: – Acho melhor irmos embora. – Foi um prazer conhecê-la – o jovem padre cumprimentou Shavon. Padre Matthew, que confraternizava com alguns dos membros mais 17


antigos da paróquia do outro lado da sala, veio até o novo sacerdote, de olhos arregalados. – Sim, vamos embora – o pai concordou. – Mas antes vou tomar outra dose de uísque – disse, fazendo gesto de um pouquinho com os dedos. – Acho que você já bebeu o bastante por uma tarde, Cormac – disse Padre Matthew, com um forte rubor se espalhando pelas bochechas. – Tudo bem, então – Cormac soluçou, tentando se equilibrar. – Sinto muito – Teagan sussurrou ao Padre Mark. – Às vezes ele bebe demais. – Não precisa se desculpar – ele respondeu. – Vá para casa em segurança. O pai resmungava palavras incompreensíveis e, escorado na esposa, deixou o salão. A mãe se ofereceu para dirigir, mas ele foi inflexível, declarando que estava “sóbrio como a congregação em dia de missa”. O percurso de volta para casa foi tranquilo, exceto por uma ou outra fungada ocasional da mãe de Teagan. Cada vez que ela assoava o nariz, o pai dava um soco no volante. Ele parecia notoriamente sóbrio apesar da quantidade de drinques que havia tomado. Teagan já tinha ouvido um amigo falar de “bêbados funcionais”; ele era um desses, com muita frequência. Quando chegaram em casa, Cormac explodiu: – Como você ousa nos envergonhar daquele jeito? Desaparecendo no meio da festa com um padre! Por tudo o que é mais sagrado, no que você estava pensando? Ele mal conseguia se manter em pé, com o rosto vermelho e brilhante, avançando para cima dela. O bafo azedo de uísque queimava as narinas de Teagan, que só desejava estar em qualquer outro lugar menos em casa. Por que não tinha ido passear com Cullen na beira do rio? Seu pai estava tão furioso que ela achava que nunca mais poria os pés para fora de casa de novo. Ele ergueu a mão, como se fosse bater na jovem. Ela já tinha apanhado quando era criança, mas nunca tinha sido ameaçada com algo tão brutal quanto um tapa no rosto. A mãe tremia no sofá. – Não foi minha culpa, papai – Teagan suplicou. – Foi como o Padre Mark falou. No entanto, ela sabia que o padre tinha mentido sobre os livros sagrados e se perguntou o porquê. Talvez ele não quisesse que o pai dela 18


soubesse que tinham ido ao porão pegar vinho; afinal, ela não tinha idade para beber. Suspeitou que ele estava lhe dando cobertura para evitar que ficasse encrencada. O pai avançava contra ela, salivando de raiva e espalhando perdigotos em seu rosto a cada palavra que dizia. – Não minta para mim. Sei no que você estava pensando. Esse seu comportamento de vagabunda ainda vai te colocar em apuros, guarde bem o que estou te dizendo. Está me ouvindo? Teagan acenou em concordância, morrendo de vergonha e com os olhos cheios de lágrimas. – Eu não fiz nada errado. Mamãe, fale para ele! Cormac levantou a mão novamente, mas foi interrompido pelo grito de Shavon: – Pare! Ele ficou momentaneamente desconcertado com o grito estridente, e Teagan aproveitou para sair correndo para o quarto. – E não desça até que esteja disposta a se desculpar! – ele berrou. – Jesus amado, minha própria filha tentando um homem de Deus! Teagan se jogou na cama, abraçou o travesseiro e chorou até ficar sem ar. O quarto estava quente e abafado. Ela não tinha feito nada além de ser gentil com o padre. O que havia de tão errado nisso? Jogou o travesseiro na parede, sentou na cama e olhou pela janela. Se ao menos estivesse com Cullen em vez de estar ali banida em seu quarto... As cortinas floridas nem se moviam, nem uma brisa soprava para amenizar o calor. Após refletir sobre o que deveria fazer por cerca de uma hora, decidiu que devia pedir desculpas ao pai – não porque estava errada, mas para manter a paz no seio familiar. Ceder era mais fácil que enfrentá-lo. A cada ano que passava, seus problemas com a bebida só pioravam e ele se tornava cada vez mais irracional sob efeito do álcool. Ela sabia que todos sairiam perdendo. Algumas vagas lembranças lhe vieram à mente – lembranças que ela não fazia a mínima questão de recordar –, discussões que terminavam em gritaria e com a mãe aos prantos. Desde que era criança, essas cenas eram recorrentes, mas Teagan sempre procurou enterrar essas memórias dolorosas. A mãe jamais fora capaz de confrontar o pai quando ele estava bêbado, pois temia tanto quanto ela que um embate pudesse destruir a família. Hoje, pelo menos, ela conseguira gritar em vez de permanecer inerte no sofá. Teagan pensou no Padre Mark. Será que ele também estava pensando nela? 19


Levantou-se e se olhou no espelho. Seus olhos estavam vermelhos e inchados; seu penteado, completamente bagunçado. A rosa estava murcha e com o caule partido. Ela levou as mãos atrás do pescoço e abriu os ganchinhos do vestido branco, então afundou na cama novamente. O suéter! Tinha esquecido o suéter no porão do Padre Matthew. Sua mãe ficaria possessa com seu desleixo, sem falar do gasto de comprar um novo. Será que conseguiria recuperá-lo? Teria de pedir ao Padre Mark para devolvê-lo, e para isso teria de ligar para ele. Ela precisaria ser muito cautelosa para se aproximar dele. Mas Teagan queria vê-lo de novo, nem que fosse apenas para descobrir por que ele tinha mentido para seu pai.

20



www.editoragutenberg.com.br twitter.com/gutenberg_ed www.facebook.com/gutenberged


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.