Feliz aniversário, Clarice

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O filho do pai Raimundo Neto

Não pude impedir, disse ela, e a derradeira piedade pelo homem estava na sua voz, o último pedido de perdão que já vinha misturado à altivez de uma solidão já quase perfeita. “A imitação da rosa”, Clarice Lispector

O cabelo comprido era uma invenção recente para caber no que o marido sabia sobre o passado de ambos. Tudo muito escorrido, lavado, esticado, alguma cor, o cabelo, o vestido, os cílios colados, as lentes cristalizantes abertas inquietas arrebentando algumas palavras que um deles não conseguia esconder: Você me chama do que eu quiser, Patrício, e vibrava no eu quase mastigado depois que o outro dizia Teu cabelo não é de verdade, eu comprei, te dei, inventei esse corpo, todo acolchoado, quando te enchi de desejo, tirei teus pelos enroscados na calcinha, te entreguei palavras ao dizer traços femininos no que tu nasceu para resistir. E olha isso, apontava para o volume entre as pernas, olha como eu fico só de te olhar usar esse vestido sem medo gritando Hey Queen, e teus cílios, essas asas, e teus brincos, os sapatos. Lá fora, alguém sempre dizia que era preciso pelo menos uma criança em casa até a casa dos trinta. Patrício imaginava 63


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