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Uma carta

Uma carta

Stella Maris Rezende

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Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. “Amor”, Clarice Lispector

Ele empurrou o portão. Foi andando até o tanque de azulejo do jardinzinho da frente da casa. Inclinou-se, molhou os braços, as mãos, o rosto. Com uma folha de imbé, retirou toda a goma do lodo, esfregando as mãos, o rosto e os braços. Depois, enxaguou os braços, as mãos, o rosto. Caminhou até a porta da casa. Os dois se olharam bem de perto. Ele sorria, com o rosto ainda molhado. Ela sorria, trêmula de frio.

Tinha estrela. Tinha frio. Tinha escuridão.

Certa hora da vida tudo é mais perigoso. Certa hora da vida, olha-se o mundo profundamente, como se olha o que não nos vê.

Eles, que apaziguaram tão bem a vida, naquele instante sabiam que tudo iria explodir. Não mais queriam adormecer dentro de si mesmos, há tanto tempo sonhavam com pequenas surpresas, um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas, um susto que os levaria ao olhar mais belo de cada um.

Porque amar exige beleza de alma.

Tinha estrela. Tinha frio. Tinha escuridão.

Como você está? Ele quis saber, com um olhar inquieto. Ela entrelaçou as mãos uma na outra. E disse, estou criando alma nova, ele sorriu, ela perguntou, e você, como vai, estou muito assustado ainda, ele respondeu, mas tenho sentido coisas que antes nem existiam para mim. Álvaro, você está diferente. Você também está mudada, Marta. Como vai a nossa mãe de criação, ela perguntou, e ele gostou do “de criação”, porque chegara o momento de tudo ficar bem claro e muito bem minudenciado.

A nossa mãe de criação está um pouco mudada também, ele disse. Ela ficou brincando com as pontas do cabelo anelado, puxando-as com a mão esquerda e embaraçando entre os dedos da mão direita. Ele jogou os ombros para trás e enfiou as mãos nos bolsos do casaco de lã. Nós dois, ela começou a dizer, e ele continuou, nós dois precisamos dar um basta na tirania dela.

A palavra tirania trouxe o horror das lembranças mais cruéis e eles precisavam, com urgência, do bom e humano coração de qualquer pessoa, conhecida ou desconhecida, precisavam das linhas do destino da alma humana, da possibilidade súbita do amor.

Não somos irmãos de sangue, ele disse, soubemos disso desde sempre, mas a nossa mãe consagrou uma vida de proibições, decidiu por nós, quase nos matamos por causa disso, mas agora, basta, agora atravessaremos a escuridão, com frio, mas também com as estrelas.

Nós nos amamos de modo diferente de como ela gostaria que fosse, ela completou, e ainda disse, num sorriso calmo, quando tem estrela, mais frio, mais escuridão, toda vez que

uma noite tem as três coisas juntas, a escuridão, o frio e a estrela, todo amor impossível deixa de ser impossível.

Desde criança ouvimos essa história de estrela, frio e escuridão, ele reiterou. É uma lenda bonita, ela ergueu as sobrancelhas ao dizer. Ele fixou os olhos nos olhos dela. Então os dois se abraçaram com força. Aos poucos, os rostos se aproximaram e as bocas se procuraram.

Marta Regina e Álvaro Augusto! Esganiçou dona Arminda, parada em frente ao portão. Saiam dessa casa! Determinou. Eu já te perdoei, viu, Marta Regina? Vamos voltar para a nossa casa no alto do Morro Palhano e esquecer o desmonte do seu juízo.

Álvaro se afastou de Marta e baixou os olhos. Mordeu os lábios, contrafeito. Marta balançou a cabeça, não querendo acreditar que mais uma vez ele se renderia à tirania da mãe de criação. E Marta disse, hoje em dia a minha casa é esta, vou entrar, então Álvaro se aproximou de novo, com os braços trêmulos, Marta, me desculpa, não tenho o seu brio e o seu vigor. Boa noite, Álvaro, ela disse, estou compreendendo com muita clareza, você vai voltar para a sua casa, vai continuar morando com quem pensa que manda em você pelo resto da vida.

Eu te amo, ele disse. É apenas um fogo de palha no seu caso, Álvaro. Não fala assim, Marta. Eu te amo e vou te amar sempre, você sabe. Você vai voltar para a nossa casa, Marta Regina, gritou dona Arminda, avançando pelo jardinzinho, você vai continuar morando comigo e com o seu irmão, ela acrescentou, e se deteve junto a ramagens e flores.

Marta ficou de costas para os dois. E parada diante da porta, disse, ninguém nunca mais me tira a liberdade, muito menos uma pessoa cega, surda e muda em matéria de amor. Que liberdade qual o quê, sua romântica! Longe da casa no

alto do Morro Palhano, você só tem falta de pudor e falta de dinheiro.

Marta se manteve de costas. Parada diante da porta. Álvaro começou a caminhar em direção a dona Arminda, encurvado, titubeante, sombrio. Mas, subitamente, não havia como fugir. Seu coração se enchera com a melhor vontade de viver. A vida arrepiava-o, como um frio. Quantos anos levaria até ser jovem de novo? Ele estancou os passos e levantou o rosto. Virou-se para Marta e correu até ela, puxando-a para junto de si, e disse, eu sou o seu namorado, vou ficar aqui com você o tempo que a gente quiser. Nós temos muito o que conversar. Você sabe, Marta, eu tenho a escuridão de um sonho e o frio da angústia, mas já passa da hora de ter a estrela da coragem.

Ela acatou as palavras na crueza do mundo e na aleia de uma pequena esperança, deixou-se balançar numa rede tocada por mãos perversas, recusou-se a ter medo, o amor é assim mesmo, seu coração se enchera com a melhor vontade de viver.

Então ele lhe tomou o rosto entre as mãos e a beijou na boca. Diante do olhar petrificado de dona Arminda. O beijo foi longo. E outro beijo começava. Dona Arminda foi saindo do jardim, olhando de través, afastando ramagens e flores.

Dona Arminda fechou o portão. Palmeou as pedrinhas do muro. Fincou as unhas nas mais ásperas, até a gastura ficar insuportável. Depois, andou pela calçada. Sentou-se no meio-fio. Ergueu a gola do paletó marrom-escuro acima do coque torneado em trança. Enrilhada de frio, exausta, quis enxergar o outro lado da calçada. Estendeu a barra do paletó sobre as pontas dos sapatos. Viu um menino catando gravetos. O menino escarafunchava gravetos no quintal de pareio com uma casa pequena, sem reboco, porta e janela em pintura descascada.

Dona Arminda acompanhou os movimentos ágeis do menino lidando no escuro e na friagem, esses e aqueles detalhes de meticulosa preparação, até ele erigir o rosto fúlvido, todo o rosto iriado pela quentura tremulante das chamas de uma pequena fogueira. Então ela quis ver as estrelas no céu. Cravou os olhos nas três-marias luzindo altas. Luzindo frias. As três-marias.

Dona Arminda agora atravessa a rua e a calçada. Vai entrando no quintal de pareio com a casa pequena e abandonada. Lembra-se do poema que diz que amor é fogo que arde sem se ver. Corre para si mesma e se vê ainda muito moça e toda radiante com uma carta que acabara de chegar. Era dele, do moço que ela amava. Na cozinha, a irmã mais velha mostra a carta, faz questão de ler o nome do remetente e constatar, no olhar da irmã mais nova, que ela precisa da carta para continuar vivendo, então a irmã mais velha sorri e em seguida rasga a carta, rasga, rasga. Para que não reste possibilidade alguma de que a irmã mais nova imagine qualquer frase, a irmã mais velha joga as tiras de papel nas chamas do fogão a lenha.

Dona Arminda volta do que foi e sorri para o menino. Agacha-se ao lado dele, estira o rosto, fixa os olhos na fogueira, deixa de propósito a barra do paletó marrom-escuro encostar em ciscos, cinzas, carrapichos, folhas, gravetos, faíscas. O menino sopra e atiça o fogo.

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