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Um olho

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Amor reloaded

Amor reloaded

Um olho

Jeosafá Fernandez Gonçalves

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De pura afobação, a galinha pôs um ovo. “Uma galinha”, Clarice Lispector

O neto o empurrou com sofreguidão pelo quintal. O menino era pequeno; o avô, desajeitado, e a cadeira de rodas, trôpega, insistindo em encalhar nos buracos e nos pedriscos dispersos. A poalha vermelha levantada por uma motocicleta barulhenta que passara havia pouco na rua de terra se depositara no corpo paralisado sobre o assento incômodo até de olhar. O menino largou por um instante o entrevado em sua cadeira-túmulo, foi até a porta da cozinha, ao fundo da casa, chutou-a com força, correu de volta, deu partida no esquife do avô e conseguiu atravessar o batente antes que a porta se fechasse. Movendo o único olho em parte salvo, observou o menino sumir pela outra porta rumo à parte da frente da casa. Pronto, sumiu. Imóvel ao lado do fogão apagado, ele próprio uma espécie morta de fornalha, esperou o que imaginou serem horas, moveu com dificuldade o braço parcialmente preservado, despojo de um AVC precoce, e, como uma ave a quem tivessem cortado as asas e uma das pernas, abriu a

porta pela qual entrara na cadeira de rodas empurrada pelo menino que vagamente imaginava ser seu neto. Atirou-se no chão e, arrastando-se com um vigor patético, atravessou a soleira, lanhando-se nas britas do calçamento roto da tapera.

Não foi fácil, mas conseguiu virar o corpo com o impulso daquele braço atrofiado e descolar do chão o olho por meio do qual o mundo lhe comunicava suas claridades e sombras, não mais que isso. Do chão sujo, atingiu o primeiro degrau da escada de três que dava para a rua dos fundos, cujo trajeto margeava o morro no topo do qual ficava a casa da qual partira. Quem não considerar épica a subida desses três degraus é um ser sem coração.

Deixemos esse velho imprestável aí, no patamar externo, meio corpo na calçada, meio pendurado na escada, e vamos ver onde foi parar o traste do seu neto.

Não adianta entrar pela casa a procurá-lo, pois o vimos abandonar o avô e escapulir para a rua principal pela porta da frente. Melhor é contornar a parede externa pelo quintal e ir direto ao assunto: ele está no fim da ladeira com outros meninos chutando bola e falando palavrões. O sol vespertino lhe descai sobre o rosto, é uma cena bonita, e se o olho meio cego do avô pudesse alcançá-lo nessa hora, seria uma bênção.

Voltemos ao avô, cadê ele? Pela lógica, não pode estar longe, lá está, arrastando-se pelo outro lado do morro, sabe-se lá com que propósito. Adiantemo-nos por curiosidade. Quem diria que do ponto a que chegou lhe é possível observar os meninos brincando. Lá estão eles, cá está o avô de um deles, enxergando pouco, porém ouvindo claramente as vozes agudas subindo em coro a encosta.

Voltemos ao menino, que divisa o avô no topo do barranco. Decidido, não se sabe se assustado ou irado, sobe correndo

a buraqueira, agarra o avô pelo braço que o movera até ali e o arrasta como pode de volta ao ponto em que o deixara, qual seja: a cadeira de rodas tortas. A porta bateu com força na perna inválida do homem, que pelo olho meio estragado botou uma lágrima perfeita, não pela dor, pois esta não lhe alcançava mais o corpo em nenhuma parte, exceto o coração, de maneira que fica mal explicada essa lágrima solteira ou viúva, tanto faz.

A tarde estava perdida, e o menino ia ter de ficar na cozinha preso com o cadeirante até os pais voltarem do lugar para onde tinham ido, o qual ninguém sabia onde ficava. O menino viu a gota escorrer no rosto enrugado, comoveu-se, enxugou-a e colou os lábios inocentes na testa macerada do avô, o qual, com esse beijo inusitado, se converteu em rei para todo o sempre.

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