Delírios e divagações da miúda Ronaldo Cagiano
Ai que esquisita estava. No sábado à noite a alma diária perdida, e que bom perdê-la, e como lembrança dos outros dias apenas as mãos pequenas tão maltratadas... “Devaneio e embriaguez duma rapariga”, Clarice Lispector
Com a pachorra herdada de uma tarde soalheira, contemplava o movimento da rua como a perder de vista a noção do tempo. Da Baixa, que a rapariga antevia de sua sacada do terceiro esquerdo, um mundo de gente num fluxo divergente de corpos e carros, cena que ela de esguelha acabava por ver reproduzida no velho espelho andaluz que guarnecia seu psiché.1 Voltou-se para o quarto ainda metida em sua camisola, quando ouviu o ruído de algo romper-se após uma queda. Não se espantou nem se inculpou por ter deixado o telemóvel,2 que tinha levado até à janela enquanto se imiscuía macambúzia na paisagem, cair na área, onde ao rés do chão habitava, com favores da habitação social, um casal de reformados. Como explicaria aos pais aquele descuido? Américo e Eponina já fartos dos tantos quinaus com a filha, eles que 1
Psiché: nome de um móvel, como se fosse uma cômoda.
2
Telemóvel: celular. 23