Vladimir Safatle
O circuito dos afetos gostaria de fornecer a filosofia necessária para uma teoria política da transformação.Transformações políticas efetivas não são apenas modificações nos modelos de circulação de bens e de distribuição de riquezas. São modificações na estrutura dos sujeitos, em seus modos de determinação, nos regimes de suas economias psíquicas e nas dinâmicas de seus vínculos sociais. Pois uma transformação política não muda apenas o circuito dos bens. Modifica também o circuito de afetos que produzem corpos políticos, individuais e coletivos. Por isso, se quisermos ver a força de transformação de acontecimentos que começam novamente a se fazer sentir, é necessário que nos deixemos afetar pelo que pode instaurar novas corporeidades e formas de ser.
O circuito dos afetos
Para falar de tais ações, o livro insiste que teorias que compreendem o medo, a segurança e a esperança como afetos políticos centrais (os interlocutores principais são Hobbes e Spinoza) não nos permitem atualmente pensar experiências políticas realmente transformadoras. Para tanto, é necessário se voltar a Freud e desdobrar sua ideia de que o desamparo é o afeto político central, não apenas por ser o afeto que nos abre às relações sociais, mas por ser uma espécie de afirmação da contingência e da despossessão. Tal desdobramento é, por sua vez, a condição primeira para um segundo movimento presente no livro, a saber, a tentativa de recuperar conceitos da filosofia de Marx (como proletariado e a crítica do trabalho) e de Hegel (como tempo e história), a fim de propor uma renovação dos modos de compreensão do processo de formação de sujeitos políticos. Desta forma, um peculiar “freudo-marxismo” aparece como condição para pensarmos o processo de constituição de sujeitos agentes com forte potencial de transformação. Segue-se daí também uma crítica a teorias hegemônicas do reconhecimento (como as de Axel Honneth), muito vinculadas aos limites das exigências de reconhecimento da individualidade e de suas exigências identitárias. Por fim, tal movimento que nos leva para fora de nossa condição de indivíduos é fundamentado em uma filosofia da natureza ligada a uma recuperação ampla do conceito de “vida”, em diálogo com a filosofia de Georges Canguilhem e com teorias contemporâneas da biologia. Maneira de afirmar que a recuperação contemporânea da capacidade especulativa da filosofia política passa por restabelecer novas articulações entre teoria do sujeito, filosofia da história e filosofia da natureza.
Vladimir Safatle O circuito dos afetos Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo
ISBN 978-85-8217-871-3
9 788582 178713
2a edição revista
Sociedades são, em sua dimensão fundamental, circuitos de afetos. Elas constroem vínculos através da maneira com que corpos são afetados, objetos sentidos e desejos impulsionados. Há uma gramática de afetos que organiza toda e qualquer sociedade, que fornece a ossatura de nossas formas de vida. Mas há também esses momentos raros nos quais acontecimentos nos fazem ser, ao menos por um instante, afetados de outra forma. Eles quebram os circuitos de afetos que imperavam até então, nos despossuindo de nossos trajetos, nos desamparando de nossos ritmos e, principalmente, decompondo o corpo político que até então existia. Contra tal decomposição, há os que procuram fazer de tudo para dar vida a corpos políticos em estado terminal. Melhor seria se começássemos a pensar outras formas de corporeidade política. Formas à altura desses acontecimentos que tiveram a força de nos desamparar. Por isso, o objetivo central deste livro é pensar as dinâmicas da ação social e da desconstituição de identidades, sejam individuais, sejam coletivas, a partir de uma teoria dos afetos. Argumentar que a filosofia contemporânea está, em larga medida, dependente de uma perspectiva que elevou o indivíduo, seus afetos, interesses e estruturas identitárias a horizonte de regulação para a racionalidade das ações sociais. Tal dependência representa uma profunda limitação e um empobrecimento, pois nos impede de pensar a possibilidade de ações que não são simples expressão de indivíduos, mas ações nas quais indivíduos aceitam ser despossuídos de seus atributos e predicados, permitindo com isso a configuração de formas outras de sujeitos políticos. Tópico baseado em apropriações da psicanálise de Jacques Lacan, ele demonstra como uma constituição de nossa liberdade passa, atualmente, por sermos capazes de nos abrir a afetos que nos despossuem de nossa condição de indivíduos.