Desenho, registro e memória visual: ideias preliminares sobre saberes

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Desenho Registro e Memória Visual: Ideias Preliminares Sobre Saberes

Prof.a Dr.a Lysie Reis Oliveira, lysie60@hotmail.com

Universidade Estadual da Bahia, UEBA

Universidade Estadual de Feira de Santana, UEFS

Prof.a Dr.a Gláucia Trinchão, gaulisy@gmail.com Universidade Estadual de Feira de Santana, UEFS

O assunto abordado aqui representa um esboço e, ao mesmo tempo, uma ampliação de uma discussão sobre a pesquisa em Desenho que se iniciou em 1998, quando começamos a esquematizar as ideias em torno do que viemos a chamar de Desenho, Registro e Memória Visual. Os frutos da pesquisa nessa grande área de concentração, que agora integra o Mestrado em Desenho, Cultura e Interatividade da UEFS, representam a compilação de onze anos de estudo e pesquisa voltados para o Desenho. Falar dos primeiros passos para a construção dessa obra é voltar ao passado, resgatar nossas histórias acadêmica e profissional e adotar o nosso próprio depoimento como fonte documental de nossas inquietações e argumentações sobre como entendemos esse campo do conhecimento. Quando pensamos e organizamos nossas ideias sobre esse saber, científico e técnico, artístico ou escolar, partimos de dois mundos distintos, porém convergentes.

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Falamos, portanto, de visões de mundo acadêmico distintos, porém de áreas afins, interligadas pelo Desenho. Trabalhamos, com duas ideias de Desenho, que explicaremos a seguir. Quando nos reportamos ao nosso entendimento individual, partimos do “lugar de onde falamos”, e a nossa forma distinta de entender e trabalhar, oriunda de nossa formação e atuação profissional: uma, professora licenciada em Desenho e Plástica, e a outra, profissional liberal, formada em Arquitetura e Urbanismo e, posteriormente, em Educação. Havia e há entre nós uma ideia em comum: que o Desenho existe para além de sua instrumentalidade.

Em nossa formação profissional, tivemos acesso a um entendimento do Desenho como conhecimento que visava a habilitação técnica profissionalizante, logo, primava pelo rigor instrumental e técnico. A base da nossa alfabetização gráfica estava na conquista da precisão e beleza do traço. Educamos nossas mentes, nossos olhos e nossas mãos com vista para uma postura profissional, com base na organização, limpeza, rigidez e qualidade no traçado, que tinha um único fim. O Desenho era a linguagem entre o arquiteto, o engenheiro e o mestre de obras, mas, ao mesmo tempo, se constituía também em mercadoria — obra de arte, projeto arquitetônico ou desenho decorativo.

Hoje, na condição de profissionais da educação e pesquisadoras, acreditamos no Desenho enquanto área de conhecimento,

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fundamento e conteúdo da tecnologia e não simplesmente um instrumento para a livre expressão ou um auxiliar na didatização de outras disciplinas. Percebemos o caráter multi e interdisciplinar e sua aplicação técnica, artística e científica.

Foi com nossas experiências na pós-graduação, entretanto, que, embora em áreas diferentes, apostamos no Desenho como matriz e linguagem. Primeiro no mestrado, quando, apesar de concluirmos o curso no mesmo programa, Arquitetura e Urbanismo, tratamos de temas distintos.

O estudo sobre o monumento urbano — Elevador Lacerda, Salvador, BA — levou uma de nós, Gláucia, a entendê-lo como materialização no espaço, de uma ideia enquanto projeto, linguagem tridimensional e conteúdo documental que interferiu na paisagem e modificou os fluxos urbanos. Nessa análise, o Desenho e seus agentes entram como elementos-chave na leitura da transformação do desenho urbano, da arquitetura e da dinâmica da cidade. E a outra, Lysie, estudou e ainda perscruta os vários (re)desenhos impostos ao centro antigo da Cidade do Salvador, conduzidos pelo ideário de transformar a paisagem local em cenário turístico.

Em nosso doutoramento, apesar de ser realizado em campos distintos — Educação e História —, as nossas ideias se consolidaram. Gláucia buscou a História do Desenho como objeto de ensino em espaços escolares luso-brasileiros oitocentistas, o livro didático

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foi tratado como suporte de memória e os saberes e agentes foram analisados criticamente. Lysie trouxe à tona, com a pesquisa sobre os inusitados gradis de residências de Feira de Santana, o registro de desenhadores anônimos na caracterização da paisagem local e também mergulhou no passado quando se propôs a identificar as mãos que traçaram e executaram a arquitetura de Salvador do século XIX, cidade, hoje, condecorada com o título de patrimônio cultural da humanidade.

Nossas inquietações se ampliaram, mais ainda, ao percebermos que muitos dos professores de Desenho ainda viam esse conhecimento até o limite de sua instrumentalização. Guardamos isso como provocação, pois tínhamos consciência dos limites que nos impôs nossa alfabetização gráfica para atuar profissionalmente. Talvez por termos guardado inconscientemente esta informação, ela tenha retornado, com mais intensidade, quando nos deparamos com o desenvolvimento de novas pesquisas em torno do desenhismo, dos desenhistas, desenhadores e desenhantes, trazidas pela luz dos conceitos desenvolvidos por Luiz Vidal Gomes.

Nesse momento, urgia a necessidade de publicar nossas inquietações, quase todas em torno do vínculo entre Desenho e História.

E assim foi que o texto “A história contada a partir do Desenho”, publicado em um evento científico gestado aqui na UEFS, o Graphica98, foi socializado amplamente e passou a ser considerado como

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marco e referência de nosso pensamento acadêmico, filosófico, científico e metodológico sobre esse precioso tema. A partir daí, o Desenho e a História passaram a ser categorias de nossas pesquisas que, entrelaçadas, buscaram no Desenho o caráter de registro. Preferimos não nos comprometer em fazer uma História do Desenho já que, pelo menos por enquanto, não saberíamos dizer em qual das “histórias” do Desenho estas ideias estariam inseridas, pois é compreensível que, enquanto matéria, haja uma história específica para cada espectro definido de um vasto universo, que engloba a projetação e a representação de produtos artísticos e industriais dos campos da Engenharia, Arquitetura e Desenho industrial/Design. Esta particularidade impõe, para nós, que a grafia da palavra “desenho” seja em letra maiúscula, posto que é um termo geral, polissêmico, logo, impreciso quando fora de contexto. Toda a produção de objetos materiais, dos quais dependeu e depende a humanidade, leva a conceber a História do Desenho como um campo de estudos cujas fronteiras não são nítidas e, mais, estão em plena expansão. Nesta, o desenho composto de linhas gráficas, foi a base para a construção de objetos dos quais as outras histórias dependem para serem História, seja da Arte, da Tecnologia ou do Design. No entanto, entendemos que a história do desenho, escondida nas formas finais dos produtos originários de processos gráficos, ainda aguarda nossas interpretações. Não

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nos referimos ao lampejo criativo do desenhador ou a forma do produto final, pois para nós o que está em aberto é o estudo dos estágios do meio, métodos, processos e as técnicas do desenho, bem como a história de seus agentes. É em busca de preencher esta lacuna que lançamos nossas provocações aos pesquisadores que se vêm agregando a nossa pesquisa. Este campo está aberto aos estudiosos de todas as áreas do conhecimento, inclusive àqueles que não tiveram alfabetização gráfica.

Luiz Vidal Gomes (1994; 1998) nos fala da área dos Desenhos que, junto às áreas das Ciências e das Humanidades, formam os três pilares do conhecimento humano. Nesta, há o Desenho Voluntário ou Espontâneo, desenvolvido naturalmente, livre da vontade e sem qualquer tipo de educação formal ou cultural; o Desenho Expressional, enunciador de pensamentos e ideias por meio de gestos desenhados ou palavras escritas/faladas no intuito de demonstrar a intensidade dos sentimentos ou o estado moral de quem desenha, e o Desenho Industrial que, assim como o Expressio-nal, é resultante da concepção, projetação e ideação do desenhador, sendo, sobretudo, voltado para as exigências da cultura material humana.

Também aceitamos, no dizer desse autor, que o desenho é o ato de debuxar e o de colorir; a fantasia, a invenção, a criatividade; a imaginação e a habilidade de representar através da expressão

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gráfica; a circunscrição e a inscrição de valores do desenhador e da sociedade à qual ele pertence, aos elementos que ele desenha para montar sua cultura material; a tecnologia que se insere na geometria da forma e na qualidade da função dos produtos desenhados; uma atividade que é regida pelas características de uso, pelo planejamento econômico e pelo conhecimento estético envolvidos em um produto; uma atividade que se formaliza quando se torna possível equacionar vários fatores projetuais em um produto. Em suma, acreditamos que desenho é, simples e puramente, Desenho! Nós, entretanto, acrescentamos que o Desenho é ciência, é técnica, é forma, é composição, é arte, é método, é registro, é documento e, acima de tudo, é linguagem e conhecimento.

Há limites entre a Arte e o Desenho?

Há nessa questão um mito, que até hoje nos faz examinar qual a diferença entre o desenho e a arte, se é que há. No latim, ars é a definição de habilidade, modo e método. A palavra arte vem daí e foi, no passado, usada para distinguir dois campos profissionais, o das artes liberais e o das artes mecânicas. Segundo Carlos José da Costa Pereira (1957, p. 34), a “[...] discriminação das artes em liberais e mecânicas surgiu com conceito de Aristóteles, considerando mecânicas todas as artes que alteram as inclinações naturais do corpo e todos os trabalhos que são mercenários”.

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A dicotomia foi concebida na Idade Média, quando as artes liberais se estruturavam na divisão formal do Trivium, no qual se inseria o estudo da Gramática, da Dialética e da Retórica e do Quadrivium, composto da Aritmética, da Geometria, da Astronomia e da Música. À margem destas, as artes mecânicas englobavam a fabricação de armas, a medicina, a caça, os lanifícios, a navegação, a agricultura e as artes cênicas. Para a cultura do século XIX, as “artes liberais” eram vistas como

a tradução rigorosa da expressão dada pelos antigos àquelas que o homem livre podia exercer sem decair, por oposição às “artes mecânicas” ou “manuais”, destinadas aos escravos. São fruto da imaginação,... do sentimento, e podem ser dirigidas para o espírito, ou para o sentido estético formal. (JACKSON apud LEAL, 1996, p. 77, nota 1).

A nosso ver, para as duas direções conceituais da arte, a criatividade foi a mola propulsora e, mesmo quando em voga, esta divisão não esteve imune às justaposições impostas pelo devir da sociedade. A própria expressão “artes mecânicas” revela o quanto suas realizações, embora de ordem “mecânica”, não eram dissociadas da intervenção criativa. Associados a estes campos, os profissionais se distinguiam em mecânicos, também chamados artífices, e liberais, reconhecidamente os artistas. De certo, o artista diferencia-se à medida que a modernidade do século XIX lhe confere o status de

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criador e, identificado por suas faculdades criadoras, passa a gozar de condição social mais elevada que o artífice.

No entanto, no Brasil, o uso corrente dos dois termos fez com que eles permanecessem imbricados e a imprecisão vigorasse ao longo do século XIX, seja pela dificuldade de especialização dos indivíduos ou pela constatação de que os artífices executores eram também os criadores. Acreditamos que um dos motivos para esta sobreposição esteja no fato de, mesmo ao artífice, era cobrado, como afirma, em 1789, o dicionarista Antonio Moraes (1789) “[...] conhecimento de regras e preceitos, além de perícia adquirida pelo uso e exercício”, o que não o impedia de se adequar às mudanças na forma do produto, um processo envolvendo arte e técnica, do qual ele participava. A afirmação de Manoel Querino, na abertura do seu livro As Artes na Bahia (1913, p. 1), de que “a arte é a expressão de uma necessidade e não de um capricho”, talvez seja a que melhor explicite que esta divisão não era tão clara.

Se o parâmetro para distinção entre artista e artífice for o ensino formal, no caso da experiência brasileira do século XIX, poucos poderiam receber a qualificação de artista, haja vista a escassez de instituições de ensino destinadas às artes. Além disto, os currículos de instituições educacionais voltadas para a formação do artífice evidenciam, no conjunto das disciplinas oferecidas, a intenção de dotá-lo de uma capacidade tanto técnica quanto artística.

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Segundo Maria Helena Ochi Flexor (1974, p. 55), em 1822, no Rio de Janeiro, “[...] combatia-se a distinção entre ‘mechanicos’ e os ‘liberais’ considerando que ‘todas as artes uteis sam tanto mais nobres quanto mais necessárias para a mantença da sociedade’”.

O ensino do Desenho permeou ambas as formações, sua inserção como conhecimento era tida como necessária à formação do indivíduo. Assim, foi estimulado por estudiosos que surgiram em momentos de transformações sociais significativas. Esteve presente na longa transição do feudalismo ao capitalismo das décadas iniciais do século XIX, em um momento de liberalismo humanista em contraponto com a sociedade produtora de mercadoria. No caminho dos incentivos e propostas para a consideração e inserção do conhecimento em Desenho no âmbito escolar, surgiram diferentes vertentes para a compreensão e didática dessa disciplina: na educação utilitária, de Comenius; na educação naturalista, de Rousseau; na educação humanista de práticas racionalistas, de Pestalozzi e, por fim, na educação naturalista voltada para a prática intuitiva, de Froebel.

Nesse caminho, os critérios para o bom desempenho do que chamaremos de arte do Desenho, ora seguiam os propósitos da educação da visão e da mente, ora em busca da justeza do olho e da flexibilidade da mão, ora pela precisão do pensamento e da observação, ora de forma natural, por esta ser uma atividade inerente ao indivíduo.

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Na compreensão de Luiz Vidal Gomes (1994, 1998), os “desenhadores” são os agentes da prática de projeto em Desenho industrial, enquanto que os “desenhantes” são os pensantes de teorias que facilitam a ação educacional e o aprendizado profissional do Desenho. Neste contexto, cabem ainda os “desenhadouros”, isto é, as escolas onde se desenvolvem ensinamentos de Desenho para serem aplicados na Arte ou na Indústria; e os “desenhatórios”, ou seja, os espaços nos quais se projetam os desenhos e se desenham os projetos de produtos industriais para a cultura material. Analogamente, podemos dizer que, em tempos passados, um estaleiro era um “desenhatório” no qual o carpinteiro de naus se apressava em imaginar um novo arranjo do tabuado para solucionar um vazamento que, se não estanque, levaria a embarcação ao fundo. Vamos além, por vezes, o “desenhadouro” foi um fundo de um quintal, onde se encontravam uma vista atenta e as mãos velhas e ágeis na tessitura de uma renda que, apressadamente, era desenhada nos movimentos dos bilros.

Outras gerações sobreviveram ao vender seus bordados. Os exemplos são propositalmente de tempos, lugares e situações diferentes, mas nos convencem de que há um desenho interno, que é sentido e percebido, do qual emana uma visiblidade que é primeira do desenhante e, depois, se oferece ao mundo das coisas materiais. Não há necessariamente o papel, nem o lápis, tampouco

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outros instrumentos que os desenhistas conhecem, há inúmeros casos em que a forma se clarifica durante o modus operandi já que tem, na memória, um centro de ação.

Desenho, o código

Pontuada nossa posição de que o Desenho não é somente um instrumento que auxilia as disciplinas a ele relacionadas, nem tampouco mera ilustração, fomos analisar o Desenho e sua multidisciplinaridade nos campos de conhecimento em que o fio condutor é a História. Consideramos que o ato de desenhar não somente é uma forma de expressão ou um método de transcrição de ideias, como também traz em si a vocação de perpetuar. Por outro lado, já é notório que a História não pode ser compreendida como um continuum homogêneo de fatos. A História, à espera das articulações da nossa memória, está aberta à análise do registro gráfico, pictórico, fílmico, fotográfico, enfim, é possível transformálo em documento das tantas Histórias quantas o historiador quiser, inclusive Histórias do Desenho, logo, tanto a História quanto o Desenho não estão restritos a uma única versão.

A história realça o caráter imagético do Desenho — registro e ambos carregam uma espessa camada de acontecimentos que sempre aguardam, do futuro, uma releitura crítica. Os registros são fragmentos e seguirão sendo, já que o passado, tal como ele

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foi um dia, é irreversível. Como disse Rodin: “o tempo não pára”, assim entendemos que haverá tantos registros imagéticos e tantas interpretações quanto houver historiadores falando de lugares distintos.

O Desenho é imagem e é linguagem, portanto tem intento e propósito. Enquanto registro histórico, está relacionado com as preexistências e condensa imagens e significados multifacetados. É um sistema complexo, e a condição para ser analisado é a revisão antecipada de dois processos: o de sua execução e o de sua transmissão. Assim, mais uma vez reiteramos que os registros visuais permitem uma construção histórica, no entanto esta deve tanto aceitar as lacunas, quanto apontá-las ao leitor, permitindo que este também dialogue com temporalidades distintas. O Desenho, em uma de suas variadas formas de representação tem, na história da humanidade, um papel fundamental. É quem traduz a experiência criativa de conformar a imagem desejada ou imposta. Se, por um lado, os desenhadores e as condicionantes sócio-econômicas e culturais esboçam, e depois definem, o que podemos chamar de imagem visual, esta também se levanta, ganha vida e demonstra ser um organismo mutante e transitório, capaz de revelar aparências diversas aos seus observadores.

Na concepção de Henri Bergson, para quem memória é a duração, o hábito, condicionado por um presente que recomeça a cada

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instante, e a memória verdadeira, coextensiva à nossa existência, estão vinculados e têm um lugar: o corpo, ou o Ser. Este, sim, é o lócus da passagem dos movimentos recebidos e devolvidos, sede do fenômeno sensório-motor. O ser humano é gregário e volta-se para a comunicação entre os seus, ele inventa a capacidade de se comunicar. O desenho é também sua linguagem, como diz Ana Leonor Madeira Rodrigues (2000, p. 93),

“O desenho, registro gráfico que tem frequentemente uma intenção estética e uma intenção de guardar informação para comunicar, radica na necessidade que os organismos têm de ‘comunicar a informação adquirida”.

Assim é que o ato de desenhar/desejar, voluntária e involuntaria-mente, vai formando e transformando a imagem. Para entender suas transformações, o desenho torna-se o aparato metodológico fundamental. Através dele, temos a possibilidade de caracterizar a imagem em boa parte de suas configurações. A imagem decodificada, compreendida pelo repertório de signos que o cotidiano expõe, possibilita a ideografia e sua visibilidade extrapola a aparência. Por esse método, podem ser registradas, através do Desenho, as intervenções que os não-autores fazem no Desenho alheio. Habilitados para tal exercício, somos capazes de levantar os signos formais, os linguísticos, os de propaganda, os indicadores

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de direção, os estéticos, as características estilísticas, os elementos contextuais e os signos usuários. Todas as transformações nas imagens correspondem a uma sociedade que desenvolveu suas próprias capacidades técnicas, artísticas e seus próprios hábitos, os quais têm uma dimensão visual, uma vez que a visão, precoce ou tardia, espontânea ou formada no museu, em todo o caso, não aprende senão vendo, não aprende senão consigo mesma.

Como nos diz Merleau-Ponty (2006, p. 25) “O olho vê o mundo, e aquilo que falta ao mundo para ser quadro, e o que falta ao quadro para ser ele próprio, e sobre a paleta, a cor que o quadro espera, e vê, uma vez feito, o quadro que responde a todas estas faltas, e vê os quadros dos outros, as respostas outras a outras faltas”.Essas capacidades e hábitos visuais tornam-se parte integrante do meio de expressão de quem propõe uma imagem que, da mesma forma, dá acesso às capacidades e aos hábitos visuais e, através destes, à experiência social típica de uma época. O ponto comum entre as significações diferentes da palavra imagem (imagens visuais/ imagens mentais/ imagens virtuais) parece ser, antes de tudo, o da analogia. Material ou imaterial, visual ou não, natural ou fabricada, uma imagem é algo que se assemelha a outra coisa.

Não se deve esquecer que qualquer imagem traz consigo o sentido de representação. Se essas representações são compreendidas por outras pessoas além das que as fabricam é porque

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existe entre elas um mínimo de convenção sóciocultural. Em outras palavras, elas devem boa parcela de sua significação a seu aspecto de símbolo ou alegoria. Assim, passamos a aceitar, sem restrições, a imagem enquanto documento histórico que, como tal, possibilita a construção do tempo não vivido através das memórias e experiências visuais.

Para tanto, consideram-se os objetos preexistentes e a gama de elementos representados através do Desenho, seja ele gráfico, fotográfico, pictórico, esculturado, midiático etc. Envolto em uma trama de acontecimentos sociais dos quais não se separa, o Desenho vem impregnado pelas práticas culturais e hábitos visuais dos diferentes momentos históricos. O pesquisador é aqui entendido como aquele que constrói a trama que envolverá os fatos, utilizando-se da fala, do corpo, da escrita, da música, do desenhar e de tantos outros recursos que desejar, como método de registrar e socializar seus dados e assim construir suas histórias. Caso um pesquisador desconsidere os registros imagéticos como fonte documental e investigativa, poderá incorrer no erro de negligenciar a experiência visual, ao não aceitá-la como subsídio válido para a construção da História. O historiador, seja ele gráfico ou verbal, intervém no passado, dá o seu testemunho, o recria e o oferece à sociedade. Ele também redesenha e assim invoca nossa memória, invade nosso inconsciente e nos chama a participar da construção

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de sua história. O historiador reanima ou destrói o seu objeto.

Ao se utilizar do Desenho como narrativa, o historiador transforma-o em registro histórico, documental ou científico e a si mesmo em historiador gráfico, que atua de forma diferente de outros que grafaram o cotidiano. Ao revisitarmos as aquarelas de Jean-Baptiste Debret, os desenhos nas cadernetas de campo de Teodoro Sampaio, o retrato falado nos relatórios policiais, as fotografias de Pierre Verger, ao ver as esculturas dos orixás feitas por Tatti Moreno e que hoje conferem ao Dique do Tororó, em Salvador, o nome de ‘Dique dos Orixás’, ao buscar saber mais sobre o ferreiro que, anônimo na sua oficina escola, desenha a fachada das casas desta cidade, estamos lidando com sujeitos, seus saberes, processos e produtos. Mesmo sem saber, eles fazem história gráfica de si, do seu mundo e do mundo que os acolhe.

O Desenho-registro recebe interpretações e releituras posteriores, que ora velam o passado que se quer esquecer ou revelam o passado jamais vivido. No entanto, o Desenho permanece e aguarda ser interpretado por análises que podem refletir, expressar e/ou ocultar as contradições da trama histórica..

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Referências

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