Global Brasil 08

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Creio que a Venezuela vive uma conjuntura política complexa, que muitos denominam como transição ao socialismo. Esse processo deveria evitar o risco de se reproduzir no “curto-prazo” a terceira internacional (KOMINTERN), que só serviu para restabelecer o sistema capitalista, aprofundando suas marcas mais cruéis. Veja o que é a velha União Soviética: um país dominado por burocratas que se transformaram em magnatas capitalistas exploradores do povo russo, cujo ícone mais patético é o diretor da velha KGB, Vladimir Putin, presidente da Rússia. Desequilíbrio contra a queda Qual a sociedade que queremos em um socialismo do século XXI? Somos os que não crêem na utopia? Será que este foi um sonho moderno para que nos interessássemos permanentemente pelo futuro, descuidando de nosso presente? Utopia se associa à perfeição, e o ser humano é humano por ser imperfeito. Como afirma Jose Luis Pardo, o ser humano é um ser que pode cair, pois o que o sustenta não é o equilíbrio e sim o desequilíbrio. É esta possibilidade de cair que nos une. Vivemos para não cair. Inclino-me, com Foucault, pelas heteropias. Conhecer a queda não nos faz pensar com o cérebro, mas com o ombro, para poder usar o outro para que não caia. A sociedade que aspiramos é

aquela em que os espaços são compartilhados não como entregas, mas como diálogos. Essas heteropias poderiam se alimentar de um ideal ecologista. Nós deveríamos deixar os purismos modernistas e mergulhar nos ensinamentos de nossos nativos. Nossos irmãos Incas deram-nos o “Pachamama”, a mãe-terra à qual devemos adoração e empatia. Resgatemos nela o valor genuinamente revolucionário que Marx conceituou para nós: o valor de uso. Para isto seria necessário ultrapassar a racionalidade instrumental e nos colocar em uma visão cosmológica – somos do mesmo sangue que circula pela natureza, em toda sua abundância. Para potencializar este ideário, seria necessário enfrentar radicalmente o mecanismo desumanizador do capitalismo: o valor de troca, que ele concebe como desmatamento, como destruição de um rio, como abstração simples que derivará em mercadoria. A desmaterialidade do mundo construiu uma perversa metafísica em que a natureza tornou-se um corpo vazio de sua abstração. Esse processo sacrificou a felicidade da humanidade, polarizando ricos e pobres. A produção está a serviço de uma sofisticação que ostenta brilho e que esconde as profundas desigualdades.

Mudar o nome das coisas Romper com essa cultura de troca implica mudar os nomes das coisas. É necessário parar de falar de clientes e falar de cidadãos. Será necessário revisar a palavra privada e remover sua força predadora. É necessário também repensar o Estado e apagar sua lógica anuladora. Que este seja o motor do que é público e que não coisifique o ser, convertendo-o em simples ficha das ideologias. Que a democracia seja fim e meio ao mesmo tempo. Que o protagonismo seja uma concreção, não um teatro proselitista. Uma democracia não é a soma de todos, nem a síntese de todos, mas sim uma rede de diálogos que não procura um consenso estéril e sim o sangue da diversidade. Sobretudo, o Socialismo tem de ser ético. O que implica que seu mais caro desejo deve ser criar seres humanos livres e responsáveis. A liberdade em sua dimensão absoluta é uma perversidade, porque se alguém tem liberdade ilimitada, em algum momento se apropria da liberdade dos outros. A ética é essencialmente a ação que dota o ser humano de capacidade para atuar sem coerção. Para isto, é necessário um profundo processo educativo que conceba o ser humano não como uma máquina aprendiz e sim como um ser que se forma. A partir dele, o Estado Socialista deveria desescolarizar a escola, dotá-la de um clima ecologizante que permeie sua formação por todos os espaços físicos e espirituais do ser humano. Esta ética socialista tenderia a priveligiar a política. Por último, quero reafirmar que a luta contra o capitalismo deve ser dirigida essencialmente contra sua racionalidade, sustentada na submissão da sociedade pela lei do valor de troca. Essa transição tem de se ocupar em radicalizar a deslegitimação do capitalismo. Não se trata de preparar um aparato propagandístico que venda o socialismo como uma mercadoria ideológica. Trata-se de planejar um mundo exemplarmente, onde o sentido desumano do capitalismo se evidencie. Não é uma prédica contra os ricos, mas uma desconstrução do modo de enriquecimento que gera material e pobreza espiritual.

Tradução Geo Britto Conexões Globais 31 GLOBAL


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