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ENTREVISTA
ENTREVISTA
Como os Estados Unidos atingiram sucesso na pecuária leiteira?
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por Larissa Vieira
Girolando
Quem responde essa pergunta é João Durr, um brasileiro que conhece a fundo o assunto e já atuou na Europa, Canadá, Brasil e, atualmente, é o diretor presidente do CDCB (Council on Dairy Cattle Breeding).
Nesta entrevista exclusiva para a revista Girolando, ele explica como funciona o CDCB, instituição sem fins lucrativos formada pela cooperação de quatro setores envolvidos na pecuária leiteira nos Estados Unidos; fala sobre os trabalhos na área de genômica, controle leiteiro e por que a pecuária daquele país é referência mundial em melhoramento genético do Holandês. Confira:
Girolando
Quais os principais desafios para a evolução de um programa de melhoramento genético?
João Durr
Como em qualquer atividade, o ponto de partida de um programa de melhoramento genético é decidir aonde se quer chegar. A palavra “melhoramento” refere-se a objetivos de seleção que se estabelece. Por exemplo, o objetivo de seleção promovido pelo CDCB em parceria com o USDA [Departamento de Agricultura Americano] para as raças leiteiras norte-americanas é maximizar a lucratividade vitalícia das vacas. Para tal, publicamos o índice vitalício de mérito líquido (Lifetime Net Merit) que promove a seleção balanceada de todas as características de importância econômica disponíveis. Em outras palavras, a vaca leiteira mais lucrativa não é apenas a que dá mais leite, mas aquela que se mantém saudável e longeva, produz bezerros todo ano, processa alimentos de forma eficiente e produz o leite com a composição que supre as necessidades da indústria de laticínios. Uma vez que se sabe o que quer, pode-se estruturar o programa de melhoramento em torno do objetivo escolhido. E essa estruturação depende fundamentalmente dos registros de desempenho individuais coletados de forma acurada e consistente. Só é possível selecionar se tiver uma base de dados representativa da população. Mesmo na era genômica o bem mais valioso num programa de melhoramento é a informação fenotípica.
Girolando
Como o CDCB atua nos Estados Unidos e como o produtor rural beneficia-se desse trabalho?
João Durr
O CDCB é uma instituição sem fins lucrativos formada pela cooperação de quatro setores envolvidos na pecuária leiteira nos Estados Unidos: as associações de controle leiteiro, os centros de processamento de dados leiteiros, as associações de raça e as empresas de inseminação artificial. O CDCB mantém a base de dados leiteiros nacional, composta por dados genealógicos, registros de desempenho e eventos, e dados genômicos dos animais genotipados. A partir dessa base de dados se realiza pesquisa de ponta liderada pelos pesquisadores do USDA e são prestados os serviços de avaliação genética de todas as raças leiteiras realizados pelo CDCB. A estrutura é mantida com taxas de serviço cobradas por animal recebendo avaliação genômica e eventuais excedentes arrecadados são investidos em pesquisa e inovação. Hoje em dia bezerras nascidas são imediatamente genotipadas em um número crescente de rebanhos, e com base nos resultados do CDCB os produtores decidem se a fêmea será inseminada com os melhores touros genômicos para gerar a próxima geração de vacas do rebanho, se será inseminada com um touro de corte para suprir machos para o abate ou se será descartada imediatamente para minimizar custos. Ou seja, as avaliações genômicas do CDCB além de ser a base para o programa de melhoramento de touros de inseminação artificial, se tornaram uma ferramenta de manejo diário nos rebanhos leiteiros.
Girolando
Quais estratégias para captação de fenótipos têm sido adotadas pelo CDCB para a inclusão de mais informações nas avaliações?
João Durr
A principal estratégia de captação de fenótipos segue sendo as associações de controle leiteiro. Não existe milagre. Os dados têm que ser coletados de forma consistente e essa estrutura requer muito trabalho e comprometimento de parte dos produtores. No Brasil ainda falta essa consciência em muitas regiões e o motivo é simples: muita gente pensa que os produtores têm que fazer controle leiteiro para poderem selecionar touros e vacas. Esse não pode ser o objetivo do programa, pois não apresenta nenhum benefício imediato aos produtores que estão investindo na coleta de dados. A grande razão para o controle de desempenho é a profissionalização do manejo diário do rebanho. Não há como planejar e administrar qualquer atividade econômica sem informações sobre inventário, custos, vendas, produtividade, projeções, estoques e tudo mais que afete o negócio. O produtor tem que basear suas decisões em dados concretos e isso tem de vir do programa de controle leiteiro. Uma vez que os dados são coletados regularmente e o produtor faz uso desses dados na sua função de gestor, um benefício adicional vem da disponibilização desses dados para uma base centralizada de todos os rebanhos que irá viabilizar programas de melhoramento genético.
Girolando
Essa coleta de dados inclui informações que são mais caras e difíceis de mensurar em um rebanho leiteiro, como consumo alimentar?
João Durr
Sim. Além dos dados tradicionais provenientes do controle leiteiro, o CDCB também investe na coleta de dados em características alternativas, que demandam uma estrutura especial para serem coletados. A tecnologia genômica nos possibilita fazer previsões confiáveis para a população como um todo, baseados no monitoramento de um número limitado de animais. O melhor exemplo é a eficiência alimentar, cuja coleta de dados é realizada em rebanhos experimentais de universidades e do USDA, onde equipamentos capazes de medir consumo individual de matéria seca de forma precisa são instalados, além do controle regular de peso corporal, produção e composição do leite, e composição da dieta. Esse tipo de informação possui um grande valor para a pecuária leiteira, mas sua obtenção em rebanhos comerciais é praticamente inviável. Por isso, o CDCB investe diretamente na coleta de dados.
Girolando
E, em relação aos dados qualitativos do leite, como proteína e gordura, e também à contagem de células somáticas, como essas informações têm sido trabalhadas dentro da raça e qual o seu impacto no melhoramento genético do rebanho? Há uma boa adesão dos produtores na coleta dessas análises?
João Durr
Como eu já mencionei, o controle leiteiro é a ferramenta de manejo mais importante em uma fazenda leiteira. Esse controle de desempenho inclui a análise periódica da composição do leite e da contagem de células somáticas. Sem esse controle não se pode fazer o ajuste fino da nutrição nem tampouco o manejo racional das mastites subclínicas. Na maioria dos rebanhos americanos realiza-se esse monitoramento. Como o pagamento do leite ao produtor é baseado na produção de sólidos no leite (gordura e proteína) e não no volume de leite fluido, essas duas características recebem o maior peso econômico nos índices de seleção. Eles determinam a receita gerada pela operação e, portanto, devem receber prioridade.
Girolando
Que outros ganhos a genômica trouxe para o progresso genético do rebanho norte- -americano?
João Durr
Por meio da seleção genômica foi reduzido drasticamente o intervalo entre gerações de animais selecionados e, com isso, a taxa de progresso genético aumentou significativamente. Assim é possível melhorar o mérito genético de um rebanho ou da população como um todo em poucas gerações de seleção. Quando associada a tecnologias reprodutivas como: transferência de embriões, inseminação in vitro e sexagem de sêmen, a avaliação genômica acarreta um progresso genético sem precedentes na história da produção animal.
Girolando
O Sumário de Touros e Vacas Girolando de 2021 está trazendo pela primeira vez a PTA para Longevidade. Na raça Holandesa, como essa característica vem sendo trabalhada e quais os resultados já alcançados?
João Durr
O CDCB trabalha com Vida Produtiva, que na verdade é a combinação das observações diretas da longevidade da vaca com características correlacionadas que permitem que previsões sejam feitas em animais jovens que ainda não tiveram a oportunidade de demostrar a característica. Vida Produtiva é uma das características com maior valor econômico nos índices de seleção publicados pelo CDCB, e receberá ainda mais ênfase a partir de agosto de 2021. Graças à inclusão dessa característica, que é altamente correlacionada à eficiência reprodutiva, foi possível reverter uma tendência negativa na performance reprodutiva da raça Holandesa.
Girolando
Em relação às tendências mundiais de mercado, a produção sustentável é um ponto importante para atender as exigências dos consumidores?
João Durr
Sim, essa é a nova fronteira do melhoramento. Até recentemente tinha-se uma visão quase exclusivamente focada nos desafios que a pecuária leiteira enfrenta dentro da fazenda. Aumentar a produção, melhorar o desempenho reprodutivo, prolongar a vida produtiva, reduzir os problemas de parto etc. Hoje estamos cientes das demandas do mercado consumidor que priorizam o bem-estar animal e a sustentabilidade. Por isso, o CDCB e outros centros de avaliação genética em diferentes países têm investido pesado em avaliações genômicas para resistência a doenças, eficiência alimentar, redução das emissões de carbono, resistência ao calor e muitas outras características funcionais. Muitas delas já são publicadas regularmente.
Girolando
Como tem sido sua trajetória na pecuária leiteira, tanto com relação à experiência no Brasil quanto nos Estados Unidos?
João Durr
Eu me formei em agronomia na UFRGS [Universidade Federal do Rio Grande do Sul], em Porto Alegre, e fui direto para Montreal, Canadá, fazer meus estudos de mestrado e doutorado em melhoramento animal na Universidade McGill. Como Quebec é a mais tradicional província leiteira do Canadá, me especializei em genética de gado de leite trabalhando com dados do controle leiteiro oficial. De volta ao Brasil fui contratado com professor na UPF [Universidade de Passo Fundo] e voltei minha atenção no sentido de desenvolver um programa de controle leiteiro e de qualidade do leite para o Rio Grande do Sul nos moldes da experiência norte-americana. Foi um período de muito aprendizado pela intensa interação com as cooperativas de produtores e as indústrias de laticínios. Quando começamos a trabalhar no Serviço de Análise de Rebanhos Leiteiros da UPF, o primeiro desafio foi introduzir a contagem de células somáticas como ferramenta de manejo. Como era o primeiro laboratório na região, o teste era desconhecido até mesmo dos técnicos e extensionistas. Isso nos proporcionou a oportunidade de investir em formação de recursos humanos em todos os níveis e ampliou rapidamente a adoção da tecnologia. A questão da baixa qualidade do leite processado no Brasil também motivou a formação da RBQL [Rede Brasileira de Laboratórios de Análise da Qualidade do Leite] para servir de suporte a uma legislação mais moderna, implementada pelo Mapa [Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento]. No mesmo momento surgiu o CBQL [Conselho Brasileiro de Qualidade do Leite], criado para servir como um fórum acadêmico que facilitasse a divulgação de conceitos técnicos sobre mastite e qualidade do leite entre os vários elos da cadeia produtiva. E se avançou muito naqueles anos, mesmo que às vezes sejamos tentados a enxergar mais o que ainda precisa mudar.
Depois de onze anos em Passo Fundo fui convidado a dirigir o Centro Interbull, na Suécia, que congrega 35 países num esforço de padronizar e validar avaliações genéticas nacionais das raças leiteiras, prestando serviço fundamental a um setor que é altamente globalizado, como o da genética leiteira. Minha chegada ao Interbull coincidiu com o início da revolução genômica, constituindo-se num privilégio, para mim, estar no centro das discussões mundiais sobre essa tecnologia que veio transformar profundamente a pecuária leiteira e as outras cadeias de produção animal. Após seis anos de Escandinávia fui desafiado a liderar a transição das avaliações genéticas americanas do setor público para o setor privado, e assim estruturar o CDCB na forma como hoje atua.
Girolando
Em sua opinião, quais os pontos fortes da seleção genética leiteira dos Estados Unidos?
João Durr
Os Estados Unidos seguem sendo a pecuária leiteira mais avançada do mundo e vêm se reinventando rapidamente na última década, em função de uma série de fatores. Observa-se uma forte tendência de concentração e consolidação em vários elos do setor produtivo e os próprios rebanhos estão aumentando de tamanho numa proporção nunca concebida antes. A automação de rebanhos grandes é diferente do que ocorre na Europa, por exemplo, mas certamente está avançando rapidamente e gerando uma quantidade de dados que ainda estamos aprendendo a interpretar. A pecuária leiteira de precisão veio para ficar, ainda que não estejamos no patamar já alcançado pela produção vegetal. Finalmente não posso deixar de mencionar o aumento significativo do cruzamento entre raças leiteiras nos Estados Unidos, motivado pelas tendências de mercado. O conhecimento genômico também abriu fronteiras nessa área em que a comunidade Girolando tem muito a nos ensinar.
O acesso à informação hoje está muito facilitado, mas a quantidade e a qualidade dos materiais são um desafio para quem deseja se manter atualizado. Meu melhor conselho é definir rígidos critérios para a seleção de fontes confiáveis e se manter fiel a elas. E podem incluir o CDCB nessa lista, pois nosso compromisso é trabalhar para o benefício do produtor de leite de forma transparente, independente e baseados no mais avançado conhecimento científico disponível.