O LIVRO DA SABEDORIA ORIENTAL

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GARBHA PUBLICAÇÕES

O LIVRO DA SABEDORIA ORIENTAL Shihâboddîn Yahya Sohravardî


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Shihâboddîn Yahya Sohravardî

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O LIVRO DA SABEDORIA ORIENTAL

SOBRE A LUZ E SUA ESSÊNCIA SOBRE A LUZ DAS LUZES E O QUE DELA EMANA PRIMEIRO I A LUZ NÃO NECESSITA DE DEFINIÇÃO Se no ser há algo que não necessita definirmos nem explicarmos é o aparente (zâhir). Porém nada há que seja mais aparente do que a Luz. Assim, nada há mais independente de toda definição do que a Luz.

II PARA DEFINIR O QUE BASTA A SI MESMO Aquele que basta a si mesmo (ghanî) é aquele cuja ipseidade, sem que perfeição alguma lhe pertença, não repousa sobre outra coisa a não ser ele mesmo. O deficiente (fâqir) é aquele para quem algo, seja sua ipseidade, seja alguma perfeição que lhe pertença, repousa em outra coisa a não ser ele mesmo1.

III SOBRE A LUZ E AS TREVAS As coisas dividem-se entre o que é Luz e luminescência (daw') na realidade essencial de si mesmo e o que não é Luz nem luminescência na realidade essencial (haqîqa) de si mesmo. Luz e

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luminescência: o que entendemos por essas duas palavras possui somente um único e mesmo sentido, visto que de modo algum pretendo designar por “Luz” o que não pode ser considerado como tal senão em sentido metafórico, como, por exemplo, a luz que quer dizer o que é evidente para o intelecto, embora o que há nessa evidência nos reconduza, ao final das contas, a essa luz [sobre a qual queremos falar aqui]. Por sua vez, a Luz divide-se em Luz que é qualidade para outro além de si — é o caso da Luz incidental (nûr âriḍ) — e em Luz que não é qualidade para outro além de si, a Luz imaterial (nûr mujarrad), a Luz pura (maḥd)̣ . Quanto a tudo o que, na realidade essencial de si mesmo, não é Luz, dividimos entre o que é independente de um substrato (maḥall), a substância relativa à noite (ghâsiq)2, e o que é qualidade para outro além de si mesmo, a qualidade das trevas (zulmânîya). O barzakh é o corpo. Nós o descrevemos dizendo que é a substância à qual podemos nos dirigir por meio de uma indicação dos sentidos. Na verdade, considera-se que faz parte dos barzakhs tudo o que, quando a Luz se retira, continua a subsistir, mas em estado de trevas4. As Trevas (zulma) nada exprimem senão a ausência da Luz. Elas não são, portanto, uma dessas negações (a'dâm) nas quais se encontra a condição do possível (imkân)5. Com efeito, se supuséssemos que o mundo fosse vazio ou que fosse uma esfera na qual não houvesse Luz alguma, ele seria de trevas; a deficiência que exprime as Trevas lhe seria inerente e estaria lado a lado com a ausência de possibilidade da Luz6. Está assim estabelecido que tudo o que não é Luz nem luminescência é das trevas. O barzakh, desde que a Luz dele se retire, não tem necessidade de outra coisa para constituí-lo de trevas, pois todos esses barzakhs são substâncias noturnas. É preciso até considerar como barzakhs aqueles cuja Luz jamais se retira, como o Sol e outros astros. Estes últimos participam, com efeito, da condição de barzakh com os outros corpos dos quais a luminescência se retira; mas eles se distinguem destes por sua luminescência permanente. Porém, aquilo pelo qual esses barzakhs se distinguem dos astros é, igualmente, uma determinada Luz que se sobrepõe à sua condição de barzakh e que subsiste neste. Trata-se então de uma Luz incidental, cujo suporte é uma substância relativa à noite. Assim, cada barzakh é uma substância noturna. A Luz incidental e sensível não é em si mesma independente, senão ela não teria necessidade do que é noturno. Como então ela subsiste por meio disso, seu ser é deficiência, poder-ser. No entanto, a existência da Luz incidental não surge da substância noturna, senão ela lhe seria inerente e concomitante. Porém, não é assim. Como poderia ser, já que uma coisa não pode dar existência necessária ao que é mais nobre do que ela própria? É por isso que o que confere suas Luzes a todas as substâncias noturnas é outro, diferente de seu cerne de Trevas e de suas qualidades tenebrosas. 45


Tu aprenderás que a maior parte das qualidades das trevas 15 são elas mesmas causadas pela Luz, mesmo se se tratar de uma Luz incidental. Além disso, [essas qualidades tenebrosas] são ocultas: como dariam elas existência ao que não seria mais oculto do que elas mesmas ou até seria considerado igual? É preciso então que o Dator Luminum, que concede as Luzes aos barzakhs, não seja ele mesmo um barzakh nem uma substância noturna. Ele estaria submetido, ao contrário, à regra que se aplica ao conjunto dos corpos. Ele é então uma realidade extrínseca aos barzakhs e a tudo o que pertence à noite (al-ghawâsiq).

IV PARA EXISTIR, O CORPO TEM NECESSIDADE DA LUZ IMATERIAL1 As substâncias relativas à noite que possuem a natureza de um barzakh possuem certas qualidades das trevas, como a configuração material (ashkâl) e outros acidentes2, bem como certas propriedades que pertencem à expansão (miqdâr). Ainda que a expansão não seja algo que se sobreponha ao barzakh como tal, ela contém, no entanto, certa particularização, corte e limitação, pela qual uma expansão dada é isolada de outra expansão. Contudo, essas coisas 3 pelas quais os barzakhs se diferenciam não lhes pertencem por essência. Senão os barzakhs participariam todos de pleno direito das mesmas propriedades diferenciadoras. Nem é tampouco em razão de sua essência que eles recebem os limites dessa expansão dimensional, senão todos os barzakhs seriam iguais em expansão. Então, é a um outro, diferente de si mesmo, que o barzakh deve tudo isso4. Se, de fato, a figura [de um corpo material] ou qualquer outra das qualidades das trevas fosse para si mesma sua própria causa5, sua existência não teria como repousar sobre o barzakh [que é seu substrato]. Por outro lado, se a essência mesma que constitui a realidade do barzakh como tal bastasse a si mesma, se ela fosse necessária, ela não precisaria, para que sua existência concreta se realizasse, dessas particularidades [que a determinam], como as qualidades das trevas e outras6. Se abstrairmos os barzakhs de suas dimensões e de suas qualidades, é impossível então que eles formem uma multiplicidade, visto que faltaria esse fator de discriminação que constitui as qualidades que os distinguem entre eles e porque, por outro lado, é impossível que a essência de um seja individualizada pela de outro7. Portanto, não se pode dizer que as qualidades discriminadoras são inerentes às qualidades essenciais corporais, como se estas as exigissem necessariamente. Se assim fosse, essas qualidades não difeririam entre si nos barzakhs. Porém, é fato que elas diferem8.

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Todo espírito perspicaz julgará que as substâncias que são, no fundo de si mesmas, noite e morte não podem dar existência umas às outras, pois não pode haver aí prioridade concebível, considerando somente a realidade corporal inerte9. Tu aprenderás, por outras vias, que o barzakh não pode dar existência a outro barzakh. Então, nenhum barzakh nem qualquer de suas qualidades tenebrosas ou luminosas devem sua existência a um outro barzakh. Isso constituiria, com efeito, um círculo vicioso, pois é impossível que uma coisa esteja baseada em algo que já repouse nela, senão ela própria daria existência àquele que lhe deu existência. Ela anteciparia aquele que lhe dá existência antecipando a si mesma, o que é absurdo. Dado isso e, além disso, como os barzakhs não bastam a si mesmos10, todos têm necessidade de algo que não seja nem substância das trevas nem qualidade [corporal] luminosa ou noturna. Esse [outro de quem eles têm necessidade] é uma Luz imaterial11. A substancialidade da substância noturna é ela mesma puramente inteligível 12. Quanto à sua realidade noturna (ghâsiqîya), é uma negação pura ('adamîya). Por consequência, a substância noturna não existe concretamente como tal. Não, ela não existe senão acompanhada das propriedades que a particularizam15. Primeira regra geral: A Luz imaterial não pode ser objeto de uma indicação dos sentidos. Já que dizes que toda Luz que podemos mostrar é uma Luz incidental 16, se existe uma Luz pura17, não podemos mostrá-la. Ela não pode residir em um corpo e não possui, absolutamente, dimensão espacial18. Segunda regra geral: O que é Luz por si mesma é uma Luz imaterial19. A Luz incidental20 não é a uma luz por si mesma 21, pois ela existe por outro. Portanto, ela não é Luz senão por outro que não seja ela mesma 22. Mas toda Luz que é uma Luz por si mesma é uma Luz pura, imaterial.

V PROPOSIÇÃO GERAL: TUDO O QUE CONHECE A SI MESMO É UMA LUZ IMATERIAL Tudo o que possui ipseidade (dhât), da qual jamais se está ausente, não é um ser da noite 1, pois ele mesmo é revelado a si mesmo, nem é tampouco uma qualidade das trevas, imanente a alguma outra coisa, pois, se a própria qualidade luminosa já não é uma Luz para si mesma 2, por uma razão mais forte, a qualidade das trevas não o será. Portanto, o que jamais estará ausente de si mesmo é uma Luz pura, imaterial, que não podemos mostrar3. 45


VI EXPLICAÇÃO DETALHADA DA TESE PRECEDENTE1 Não é por uma imagem de si mesmo em si mesmo que um ser que subsiste por si mesmo e que conhece a si mesmo se conhece. Suponhamos, com efeito, que ele conheça a si mesmo seja por uma imagem (mithâl). Bem, a imagem da subjetividade pessoal (anâ'îya)2 é outra, diferente da própria subjetividade3. E essa imagem, com relação à subjetividade, é um objeto na terceira pessoa [um "ele", um “isso", huwa]4, ainda que o objeto conhecido fosse precisamente "isso". Concluir-se-ia necessariamente que o conhecimento da realidade do sujeito pessoal consistiria não no que o sujeito conhece a si mesmo, mas no que o sujeito (anâ) conhece a si mesmo como objeto impessoal [o "isso que é" (mâ huwa huwa )]5. Assim, seu conhecimento de si consistiria, como tal, em conhecer outra coisa que não é ele, o que é absurdo6. O mesmo não se pode dizer da percepção das coisas exteriores, pois, neste caso, a imagem e a realidade cuja imagem é a imagem são ambas um objeto, um "isso" (huwa)7. Além disso, no caso em que o conhecimento de si se produziria pelo intermédio de uma imagem, das duas, uma: ou o sujeito ignora que é uma imagem de si mesmo e, portanto, não conhece a si mesmo, ou ele sabe que é uma imagem de si mesmo, mas já conhece a si mesmo sem o intermédio dessa imagem! Portanto, de qualquer maneira, é inconcebível que uma coisa conheça a si mesma por uma realidade que se acrescente a ela, pois esse acréscimo será um de seus atributos. Quando o sujeito julga que todo atributo que se acrescenta à sua ipseidade — seja de um conhecimento ou de alguma outra coisa — "pertence à" sua ipseidade, ele já conhece a si mesmo, anteriormente a todos os atributos e independentemente deles. Assim, não é pelos atributos que se acrescentam à sua ipseidade que ele terá tido consciência de "si mesmo". Tu não te ausentas de ti mesmo nem do conhecimento que tens de ti. No momento em que não é possível que o ato de conhecer (idrâk) se produza por uma forma (ṣûra) ou por algum acréscimo [ao sujeito], não tens necessidade, para conhecer a ti mesmo, de outra coisa que não seja essa própria ipseidade, revelada a si, ou seja, que não está oculta a si. É preciso então que o conhecimento que tu tens de ti mesmo seja um conhecimento que se produz em razão de si mesmo tal como ele é. Isso implica, igualmente, que tu jamais estejas ausente de ti mesmo nem de uma parte de ti mesmo. Se ocorrer então que tua ipseidade esteja ausente — por exemplo, os órgãos, como o coração, o fígado, o cérebro ou ainda o conjunto dos barzakhs e das qualidades tenebrosas e luminosas —, nada disso é o que é, em ti mesmo, o sujeito conhecedor 45


(mudrik); pois o que é em ti o sujeito conhecedor não é nem um órgão físico nem uma coisa corporal. Senão tu jamais estarias ausente, visto que tens uma consciência contínua, ininterrupta de tua ipseidade. Quanto à natureza substancial (jawharîya), se a compreendermos como a perfeição da essência da ipseidade ou que o termo seja utilizado para significar a ausência de suporte ou de substrato, ela não será algo autônomo que será tua própria ipseidade. Se, enfim, entendermos como natureza substancial um conceito que escapa ao conhecimento e que tu conheces a ti mesmo com um conhecimento contínuo, sem o intermédio de algo que se acrescente a ti, então, a natureza substancial que está oculta para ti não é nem a totalidade de teu eu nem uma parte de ti mesmo. Se tu refletires bem, nada encontras como constituindo isso pelo qual tu és tu mesmo (mâ anta bi-hi anta) além disto: algo que conhece a si mesmo. E isso é sua subjetividade pessoal. Nesse sentido, tens como associado (sharîk) tudo o que conhece a si mesmo e sua própria realidade de sujeito pessoal. Assim, a realidade do sujeito conhecedor (mudrakîya) nem é algum atributo nem algo que se acrescenta [à ipseidade do sujeito conhecedor], qualquer que possa ser o sujeito. Não é simplesmente uma parte de tua subjetividade pessoal, pois então a outra parte ficaria ignorada, visto que essa outra parte estaria além da realidade do sujeito conhecedor e além da realidade do sujeito consciente (shâ’irîya). Ela seria, com efeito, ignorada. Ela não faria parte de tua ipseidade, cuja consciência de si não é algo que se sobrepõe a si mesma. Aqui está então demonstrado, dessa maneira, que o fato de constituir uma realidade (shay'îya) não é algo que se sobreponha ao sujeito consciente. Pois o sujeito consciente é aquele que é manifesto a si mesmo por si mesmo, sem que intervenha, além disso, alguma propriedade, de modo que essa epifania a si mesmo seria somente um estado acidental. É por isso que ela é Luz por si mesma e, portanto, Luz pura. O fato de conheceres outras coisas é consequência de tua ipseidade. Do mesmo modo, a aptidão para te tornares um sujeito conhecedor é somente algo acidental para tua ipseidade. Pois se tu supuseres tua ipseidade como uma realidade que conhece a si mesma, de modo que a ipseidade dessa existência fosse anterior ao ato do conhecimento, então essa existência seria [pura e simplesmente] ignorada, o que é absurdo. Logo, o sujeito que conhece a si mesmo nada é além do que dissemos. Quando quiseres dispor, com relação à Luz, de uma regra constante, que ela seja a seguinte: Regra: A Luz é o que é manifesto em razão de sua própria essência e o que, por si mesma, faz aparecer tudo o que é diferente de si mesma. Portanto, ela é, em si mesma, mais manifesta do que tudo cujo estado manifesto permite que essa manifestação se sobreponha à sua própria essência (haqîqa). Quanto às luzes incidentais, sua manifestação não se deve a algo que se sobreponha a si mesmas, como se, então, em si mesmas, elas devessem começar por serem obscuras. Não, sua 45


manifestação tem como causa sua própria essência. É falso imaginar que uma Luz exista e que, depois, ela tenha como consequência ser manifesta, como se, sendo assim, ela já não fosse uma Luz e fosse necessário que alguma outra coisa a manifestasse. Não, a Luz é manifesta, e sua manifestação é a sua própria natureza de Luz (nûrîya). Não seria menos falso imaginar esse estado de coisas, dizendo: "É a nossa visão que revela a luz do sol". Não, sua manifestação é sua própria natureza de Luz, e mesmo se todos os homens e todos [os animais] que possuem o sentido [da visão] desaparecessem, sua natureza de Luz, contudo, não seria eliminada. Eis ainda outra indicação. Não convém que digas: "Minha própria subjetividade é algo ao qual se junta o fato de ser revelada, ainda que esse algo começasse por subsistir em si mesmo como algo oculto". Não, ela consiste precisamente em ser revelada e em ser Luz. Assim, reconheces que possuir certa essência (shay'îya) faz parte dos predicados lógicos (mahmûlât) e atributos inteligíveis, do mesmo modo que o faz para o existente ser uma realidade essencial (ḥaqîqa) e uma essência (mâhîya). Tu percebes, finalmente, que não ser oculto ('adam al-ghayba) é uma negação pura (amr salibî) que não constitui tua essência. Nada resta, portanto, [como constituinte de sua subjetividade], além disto: manifestação (zohûr) e luminescência (nûrîya). Assim, tudo o que conhece a si mesmo é uma Luz pura, e toda Luz pura é revelada a si mesma e conhece a si mesma. Esse é um dos dois caminhos [que vamos seguir como fundamento de nossa proposição]. Sentença: A respeito do fato de que a consciência que um ser tem de si é sua manifestação a si mesmo, isso não é a separação da matéria, como é o ensinamento dos Peripatéticos. Insistamos ainda no que dissemos anteriormente e digamos então isto: se supusermos um sabor (ta'm) existente separadamente do corpo e das matérias corporais, segue-se simplesmente que ele é um sabor por si mesmo, nada além disso. Quanto à Luz, quando nós a supomos no estado separado, conclui-se que ela é uma Luz por si mesma. Conclui-se que ela é revelada a si mesma, e isso é o conhecimento em ato (idrâk). Por outro lado, de modo algum se conclui que o sabor, em estado separado, seja revelado a si mesmo. Não, ele é um sabor [em si] e por si, nada além disso. Se, para que uma coisa seja consciente de si, bastasse que ela fosse separada da matéria e dos barzakhs — e este é exatamente o ensinamento dos Peripatéticos —, então a própria matéria (hayûla), tal como a concebem os Peripatéticos, seria consciente de si mesma. Com efeito, ela não é uma qualidade com relação a alguma outra coisa; longe disso, sua essência lhe pertence. Além disso, ela própria é separada de toda outra matéria, pois não há matéria da matéria. Tampouco ela está ausente de si mesma, se entendermos por "ausência" (ghayba) a distância da qual a matéria estaria 45


com relação a si mesma. Se, por outro lado, entendermos por "não ausência" a consciência de si, bem, é falso que, nas substâncias separadas (mufâriqât), a consciência de si reconduza à simples [condição negativa] de não-ausência. Não! A não ausência é, acima de tudo, uma simples metáfora, uma maneira figurada de designar a consciência de si, dado que, segundo os Peripatéticos, o fato de que algo esteja separado da matéria, não ausente de si mesmo, constitui seu ato mesmo de conhecer. Por outro lado, a própria matéria, segundo os Peripatéticos ao ensinar a natureza própria (khuṣus), é constituída de certas qualidades. Bom, concordemos com que a matéria impede essas qualidades de conhecerem a si mesmas. Mas o que impediria a própria matéria de conhecer a si mesma? Ainda mais que eles ensinam que a matéria não tem particularização concreta (takhaṣṣuṣ), a não ser pelas qualidades que eles chamam Formas, e que, quando as Formas se tornam reais em nós, nós as conhecemos. Por outro lado, [segundo a opinião deles], a matéria em si mesma nada é, a não ser uma certa coisa geral, uma certa substância que imaginamos abstraindo todas as dimensões particulares e o conjunto das qualidades. Embora nada exista que, em sua própria definição, apresente um estado de simplicidade mais perfeito do que a matéria. Além disso, particularmente, segundo sua concepção da substância, a substancialidade da matéria consiste em não ter substrato. Por que a matéria não conheceria a si mesma, já que ela assim está separada? E os suportes (hawâmil)? E as partes [que os constituem] (ajzâ')? E por que não perceberia ela as Formas que estão nela, dado o que nós explicamos com relação à substancialidade e à concretização 1, ou seja, que todas as coisas desse tipo são puramente os aspectos sob os quais o intelecto considera as coisas (i'tibârât 'aqliya) [sem existência in concreto]? Por outro lado, os Peripatéticos declaram que o Princípio de todas as coisas nada é senão o Ser separado. Porém, quando perguntamos sobre a matéria, segundo sua doutrina, o resultado somente conduz precisamente ao próprio ser, pois a particularização concreta, como chamamos anteriormente, ocorre somente graças às qualidades substanciais. No entanto, nada existe, senão a própria essência no estado absoluto. Não, o que é dado positivamente é uma particularização, de modo que dizemos: "É uma essência", ou então: "É um existente". Agora, a matéria [segundo os Peripatéticos] subsiste somente como uma certa essência em geral ou uma certa existência em geral. Então, se a necessidade, onde ela existe com relação às Formas, prende-se ao fato de ela ser um certo existente em geral, bem, este será precisamente o caso do Ser Necessário (wâjib al-wojûd). Ele, Altíssimo por ser assim! E como o Ser Necessário apreende a si mesmo e apreende as coisas em razão dessa própria simplicidade do Ser, a mesma consequência se imporia com relação à matéria, pois ela é ser puro. A inutilidade dessa proposição é evidente. 1

Reité

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Acha-se então estabelecido que o que conhece a si mesmo é uma Luz por si, e vice-versa. No caso da Luz incidental, se a supusermos no estado imaterial, ela será igualmente revelada em si por si mesma. O que então constitui a realidade essencial é o ser que em si é revelado a si. Sua própria realidade essencial é a realidade essencial da Luz, estabelecida como separada [da matéria]. O sujeito é aqui o predicado (al-huwa huwa). Ele tem a reciprocidade perfeita. VII SOBRE AS LUZES E SUAS CATEGORIAS A Luz divide-se em: Luz que é em si e por si e em Luz que é Luz em si ao mesmo tempo em que é Luz por um Outro. Tu dizes, de fato, [já] que a Luz incidental é uma Luz por um Outro, por isso, embora ela seja uma Luz em si, não é uma Luz por si mesma, pois ela existe por um outro que não é ela. A substância noturna (ghasîq) não é revelada nem em si, nem por si, segundo o que tu [já] dizes. Porém, a vida é o Conhecedor-Agente. O conhecimento, tu [já] dizes o que é. Quanto ao ato, igualmente, que pertence à Luz, ele é manifesto, pois, por essência, a Luz é expansiva. É por isso que a Luz pura é viva e, vice-versa, tudo o que vive é Luz pura. Quanto ao obscuro (ghasîq), se conhecesse a si mesmo, seria uma Luz por si mesma; assim, ele não seria uma substância noturna. Se, por outro lado, o barzakh ou qualquer realidade noturna enquanto tal postulasse a vida e o conhecimento, tudo o que disso participa exigiria a mesma coisa. Porém, de modo algum é assim. Se, por outro lado, supuséssemos que a substância noturna possuísse vida e conhecimento em razão de uma certa qualidade que se acrescentasse [à sua essência], ocorreria como anteriormente. Além disso, não há dúvida de que a própria qualidade também não seria revelada a si mesma em virtude do que precede. Tampouco ela é revelada ao barzakh, pois este é obscuro em si. Como, na verdade, algo lhe será revelado? Na verdade, que um ser tenha consciência de alguma outra coisa que seja implica que ele conheça, primeiramente, a si mesmo. Pois o que quer que não tenha consciência de si em primeiro lugar é radicalmente incapaz de ter consciência de qualquer outra coisa. Assim, portanto, o barzakh não é revelado a si mesmo, nem a qualidade é revelada a si mesma, nem o barzakh à qualidade, nem a qualidade ao barzakh. Não se pode, absolutamente, resultar dos dois algo que seja revelado a si mesmo. Por outro lado, como a qualidade existe somente por algo além dela, não se pode resultar, dela e do barzakh, algo que subsista por si. Longe disso, se há nas duas algo que subsista por si mesmo, esse é o barzakh. É por isso que, se uma dessas duas coisas devesse conhecer a si mesma, ela não 45


poderia ser aquela que possui seu próprio eu, ou seja, o barzakh. O barzakh e a qualidade, portanto, são duas coisas bem distintas, não uma única e mesma coisa. Porém, tu já aprendeste que o barzakh de modo algum é revelado a si mesmo. Outra explicação. Nós dizemos: é possível que uma coisa revele algo a um outro que não seja ela, como é o caso da Luz incidental com relação a [seu] substrato. Mas sua manifestação por um outro que seja não tem, absolutamente, como consequência necessária sua manifestação a si mesma. Por outro lado, quando uma certa coisa revela algo a um outro além dela, isso implica que esse outro seja revelado a si mesmo para que algo em geral esteja em si mesmo no estado manifesto. Isso estando bem estabelecido, nós dizemos: não é possível que uma certa realidade revele algo a uma segunda coisa, como se ela fosse suficiente para fazer essa segunda coisa tornar-se revelada em si mesma. Com efeito, nada é mais próximo de si do que si mesmo. Porém, [essa segunda coisa] está oculta a si. E se ela mesma está oculta para si mesma, é precisamente por causa de si. Logo, nada há, em geral, que possa revelar-se a si mesmo. Como isso seria possível, já que, se o outro se revela a vós, isso implica que vós sejais vós mesmos, sempre, revelados a vós? Porém o barzakh está ocultopara si por causa de si mesmo. É então impossível que alguma outra coisa o torne revelado a si. Do mesmo modo, seguindo outro caminho. Se algo o fizesse ser revelado a si mesmo, seria a Luz que o revelaria, e todo barzakh que recebesse assim a Luz seria revelado a si mesmo. Este seria então um Vivo. Porém, de modo algum é assim. Nenhuma propriedade que surja no barzakh por causa de qualidades das trevas tem como consequência uma Luz torná-la revelada a si mesma. Achase assim estabelecido, por outro caminho, que isso que é revelado a si mesmo deve a si mesmo sua própria revelação; em caso algum, deve a certa qualidade [acrescida à sua essência], nem a alguma substância noturna (jawhar ghâsiq). Tese: O corpo não dá existência a outro corpo. Quando dizes que és em ti mesmo uma Luz imaterial e que, no entanto, não és forçado a dar existência a um barzakh, então, como há mesmo a Luz substancial, viva e ativa, que não tem a capacidade de dar existência ao barzakh, a fortiori, o barzakh inerte é incapaz de dar existência a um outro barzakh. VIII QUE A DIFERENCIAÇÃO ENTRE AS LUZES INTELIGÍVEIS IMATERIAIS TEM COMO CAUSA A PERFEIÇÃO E A DEFICIÊNCIA, MAS NÃO É UMA DIFERENÇA EM ESPÉCIE

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A realidade essencial da Luz em todo o seu conjunto diferencia-se em si somente pela perfeição, pela deficiência e por certas coisas extrínsecas. Se a luz fosse constituída de duas partes e nem uma nem outra fosse em si uma Luz, cada uma das duas seria ou uma substância noturna ou uma qualidade das trevas. O conjunto resultante não poderia ser em si uma Luz. E se supuséssemos que uma fosse a Luz, enquanto a outra não o fosse, esta última não teria então acesso à realidade essencial da Luz, esta sendo exclusivamente a primeira dessas partes. Aliás, tu aprenderás mais adiante qual é o diferencial (fâriq) entre as luzes. Por outro caminho, nós dizemos: as Luzes imateriais não se diferenciam quanto à essência. Se suas essências diferissem, teríamos em cada Luz imaterial a luminescência (nûrîya) e alguma outra coisa. Então, ou essa outra coisa seria uma qualidade dentro da Luz imaterial, ou esta é que seria uma qualidade para a outra coisa. Ou ainda, cada uma das duas subsistiria por si mesma. Se essa outra coisa fosse uma qualidade dentro da Luz imaterial, ela seria extrínseca à sua essência (haqîqa), pois a qualidade não poderia ser percebida nessa luz senão depois da percepção desta pelo intelecto como uma essência autônoma. Nesse caso, não é por essa outra coisa que seria diferenciada a essência da Luz. Agora, se fosse a Luz imaterial uma qualidade nessa outra coisa, ela não seria uma Luz imaterial. Não, essa outra coisa seria uma substância noturna na qual haveria uma Luz incidental. Porém, por hipótese, tratar-se-ia de uma Luz imaterial. Temos aqui então um absurdo. Se, enfim, cada uma dessas duas fosse subsistente por si mesma, bem, nesse caso, uma não poderia ser o substrato da outra, nem uma partilhar do substrato da outra, pois elas não seriam dois barzakhs que poderiam se misturar ou se associar. Assim, não haveria nenhuma codependência entre uma e outra. As Luzes separadas da matéria não são diferenciadas quanto à suas essências (haqâ'iq). Outro esclarecimento: como foi colocado em evidência que a realidade de teu eu pessoal (anâ'îya) é uma Luz imaterial conhecendo a si mesma e que as Luzes imateriais não se diferenciam entre elas quanto à essência, é preciso então que todas se conheçam, pois o que é necessário a uma coisa o é igualmente a tudo o que participa com ela da mesma essência. Esse é um outro caminho. Mas para que tu aprendas o que precedeu, podes prescindir desse método. Tese: Aquele que dá existência aos barzakhs é um ser que conhece a si mesmo. Como o que dá à totalidade dos barzakhs sua Luz e seu existir é uma Luz imaterial, então, esse que dá existência é um Vivo conhecendo a si mesmo, pois é uma Luz por si mesma. IX SOBRE A LUZ DAS LUZES 45


Admitindo que a Luz imaterial contivesse alguma deficiência em sua essência, o que refletiria essa deficiência não poderia ser a substância noturna destituída de vida. Esta, na verdade, não tem aptidão alguma para conceder existência a algo que seja mais nobre e mais perfeito do que si mesma e que não possua dimensão sensível. Como o que contém em si mesmo a noite concederia a Luz? Se a Luz imaterial tem necessidade de algo para se encontrar manifesta, [é] de uma Luz subsistente por si mesma. Sendo aceito isso, a série das Luzes subsistentes (al-anwâr al-qa'îma) forma uma hierarquia de graus; não se perde no infinito. Uma prova demonstrativa já te ensinou que todo o conjunto serial simultâneo implica um limite. Porque é necessário que o conjunto das Luzes — Luz subsistente e Luz incidental — forme um conjunto finito, é necessário que culmine, assim como os barzakhs e suas qualidades, em uma Luz além da qual não existe outra Luz. Essa Luz é a Luz das Luzes. Ela é Luz circundante (muḥît). Ela é a Luz [substanciadora], eternamente subsistente (alqayyûm), a Luz sacrossanta (al-muqqadas), a sublime e suprema Luz (al a'zam al-'a'lä). Ela é a Luz todo-vitoriosa (al-qahhâr). Essa Luz das Luzes é aquela que basta absolutamente a si mesma, pois nada há além dela. Porém, é inconcebível que existam duas Luzes imateriais autárquicas (ghâni). Com efeito, elas não se diferenciariam uma da outra quanto à essência, pelas razões expostas anteriormente. Evidentemente, não é pelo que elas têm em comum que elas se distinguiriam uma da outra. Tampouco poderia ser por algo que suporíamos ser inerente à essência da Luz, pois esse [ser] inerente deveria ser então comum a uma e à outra. Nem por um algo estranho incidental ('ârid ghârib), fosse de trevas, fosse luminoso, pois [por definição] não existiria além de ambas um princípio qualquer de particularização (mukhaṣṣiṣ). Suponhamos agora que uma particularize a si mesma ou particularize sua companheira. Assim, isso implicaria que ambas, antes dessa particularização, existissem como duas individualidades determinadas, sem que isso se devesse ao princípio de individuação, [o que é perfeitamente absurdo], pois é inconcebível que a individuação determinada (ta'yîn) e a dualidade existam, a menos que, precisamente, houvesse um princípio dessa individuação. É por isso que a Luz imaterial, autárquica é única e é a Luz das Luzes. Tudo o que lhe estiver abaixo dela necessita para sua existência. A Luz das Luzes não tem igual nem semelhante. Ela reina vitoriosamente sobre todas as coisas. E, por outro lado, nada pode vencê-la nem lhe resistir, pois todo poder de dominar (qahr), toda força, toda perfeição são um dom que provém dela. Enfim, não é possível à Luz das Luzes não existir ('adam). Pois se seu não ser fosse possível, sua existência também teria a natureza do possível. Nesse caso, ela não deveria a si mesma sua 45


própria realização, segundo o que dizes. Mas então, ela não seria em verdade autárquica. É por isso que é necessário algo que baste absolutamente a si mesmo [para ser], e isso é precisamente a Luz das Luzes, pois é preciso que a série [dos graus do ser] seja um conjunto finito. Por outro caminho: [nenhuma coisa] supõe seu próprio não ser, senão ela nem surgiria . A Luz das Luzes é una e única (waḥdâni). Sua essência não está submetida a condição alguma, e tudo o que é diferente dela está sob sua dependência. Como ela não está submetida a condição alguma e como ela não tem contrário, nada há que possa impedir seu ser (mubṭil). Ela é, então, subsistente e eterna (dâ'im). Por outro lado, nenhuma qualificação se associa à Luz das Luzes, quer seja uma qualidade luminosa ou uma qualidade relativa às trevas. Não é mesmo possível, de maneira alguma, que ela possua um atributo (ṣifa). Como primeira explicação geral, diremos isto: se a qualidade das trevas imanasse da Luz das Luzes, deveríamos concluir que, em sua própria essência, há uma dimensão das trevas que ela mesma implicaria. Sendo assim, ela seria composta e não seria Luz pura. Quanto à qualidade luminosa, ela existe somente em algo que, por ela, ganha um aumento de Luz. Se, então, a Luz das Luzes se tornasse luminosa por uma certa qualidade, sua essência (dhât), que é autárquica, tornar-se-ia luminosa pela Luz deficiente e incidental, da qual precisamente ela torna por si mesma o ser necessário, pois, acima dela, nada existe que possa dar-lhe uma qualidade luminosa. [Portanto, essa qualidade não poderia ser necessária nela senão por algo inferior a si], o que é absurdo. Uma outra razão geral [dessa impossibilidade de que uma qualidade própria luminosa habite na essência da Luz das Luzes] é a seguinte: a fonte luminosa possui mais Luz do que a que empresta a Luz (al-mustanîr), se nos referirmos ao ato de conceder essa Luz. É por isso que, [na hipótese], a qualidade luminosa que aqui dispensaria a Luz seria mais luminosa do que a Luz das Luzes, que a receberia. Aqui novamente deparamos com o absurdo. Outro método (analítico): se a Luz das Luzes tornasse necessária uma certa qualidade, ela seria, ao mesmo tempo, ativa e passiva. Porém, a dimensão da atividade é diferente da dimensão da receptividade. Se a dimensão da atividade fosse idêntica à dimensão da receptividade, cada paciente seria então agente do que recebe, enquanto cada agente seria o paciente do que agiu, pelo simples fato da ação em si. Bem, não é assim. Seria necessário então que eles tivessem, na Luz das Luzes, uma dupla dimensão: uma dimensão que implicasse a ação e uma dimensão que implicasse a receptividade (qabûl). Como a regressio ad infinitum é impossível, terminaríamos em uma dupla dimensão na Luz das Luzes.

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Continuação: nenhuma das duas dimensões seria uma luz autárquica, pois, como sabes, não é possível haver duas Luzes que bastem a si mesmas; nem uma seria uma Luz autárquica enquanto a outra fosse uma Luz deficiente. Pois, se essa deficiência for uma qualidade dela, será preciso recomeçar o mesmo raciocínio. Mas se ela não for uma qualidade, é porque ela é autônoma (mustaqill); ela não pode, então, "estar dentro" da Luz das Luzes. Porém, a hipótese era a de que ela seria uma dimensão em si. Logo, tudo isso é impossível. É impossível, igualmente, supor que uma das duas seja Luz, enquanto a outra seria uma qualidade das trevas, porque o mesmo raciocínio recomeçará do mesmo modo. Não há mais como supor que uma das duas fosse uma substância noturna enquanto a outra seria uma Luz imaterial, porque cada uma das duas seria independente da outra, quanto mais a substância noturna não estivesse mais na essência da Luz das Luzes, menos autônoma poderia ser a Luz deficiente. Assim, está estabelecido que a Luz das Luzes é separada de tudo o que é diferente de si mesma. Nada lhe pode ser anexado. E não podemos reconhecer que exista algo mais belo do que ela. Enfim, como o conhecimento que uma coisa tem de si retorna, ao final das contas, ela é ela mesma revelada a si. E como a Luz das Luzes é a luminescência pura cuja epifania não se deve a nada diferente de si mesma, nesse caso, nem a vida nem o conhecimento que a Luz das Luzes tem de si são algo acrescentado à sua essência. Do mesmo modo, a prova foi dada anteriormente a respeito de toda Luz imaterial.

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LIVRO II

SOBRE O SISTEMA DO SER I QUE DO UNO ESSENCIAL, ENQUANTO TAL, NÃO É POSSÍVEL EMANAR MAIS DO QUE UMA CAUSA ÚNICA É impossível que da Luz das Luzes surja, ao mesmo tempo, uma Luz e as Trevas opostas à Luz e que essas Trevas sejam substância das Trevas ou, simplesmente, uma qualidade das trevas. De fato, o requisito para haver Luz (iqtiḍâ' al-nûr) é diferente do requisito para haver Trevas. Concluir-se-ia então que a essência da Luz seria composta de algo que requer a Luz e de [algo] que requer as Trevas. A impossibilidade disso desde já é evidente para ti. Ao contrário, as Trevas não podem surgir da Luz das Luzes sem um intermediário (wâsiṭa). Por outro lado, se a Luz, enquanto Luz, implica necessariamente [alguma outra existência], com certeza, ela não pode implicar algo que não seja Luz. Não é possível ainda que duas Luzes surjam dela. Uma dessas Luzes seria, na verdade, diferente da outra, tanto que o requisito para uma seria diferente do requisito para a outra. Haveria, então, duas dimensões na Luz das Luzes. Porém, nós já demonstramos a impossibilidade disso. Nossa prova basta igualmente para estabelecer a impossibilidade de que duas luzes, quaisquer que sejam, surjam ambas da Luz das Luzes. Para entrar em detalhes, acrescentaremos ainda que, em tal caso, seria preciso, necessariamente, um diferencial (fâriq) entre as duas coisas. O raciocínio, então, vai recomeçar com aquilo a que se deveriam, entre as duas coisas, o comum (ishtirâk) e a diferenciação (iftirâq). Logo, isso resultará necessariamente em duas dimensões na essência da Luz das Luzes, o que é absurdo. II QUE O PRIMEIRO SER QUE PROCEDE DA LUZ DAS LUZES É UMA LUZ IMATERIAL ÚNICA

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Se supusermos a existência das Trevas [surgindo da Luz das Luzes], não é possível, ao mesmo tempo em que surgem as Trevas, surgir dela uma Luz. Senão, pelo que foi mostrado anteriormente, não haveria uma multiplicação das dimensões da Luz das Luzes. Porém, a multiplicidade das Luzes imateriais, conhecedoras e incidentais, é manifesta, mas, se da Luz das Luzes emanassem Trevas, elas seriam únicas. Nenhuma das Luzes existiria, nem Trevas. O universo do ser testemunha a nulidade da hipótese. Como é inconcebível que da Luz das Luzes, em razão de sua unidade, surja uma multiplicidade, e como não há possibilidade de que dela emanem Trevas (seja uma substância noturna ou uma qualidade das trevas) nem de que dela emanem duas Luzes, então, o Primeiro que dela emana é uma Luz imaterial única. Ela não se distingue, por outro lado, da Luz das Luzes por alguma qualidade das trevas que ela receberia da Luz das Luzes, pois isso postularia uma multiplicidade de dimensões na Luz das Luzes. A isso se acrescentaria o fato de que as Luzes, sobretudo as Luzes imateriais, de modo algum diferem entre elas em essência. Resta que a distinção entre a Luz das Luzes e a primeira Luz que dela emana não pode existir senão pela perfeição de uma e pela imperfeição da outra. Do mesmo modo que, nas realidades do mundo sensível, a luz recebida não é igual em perfeição à luz doadora, assim é no caso das Luzes imateriais. Quanto às luzes incidentais, sua imperfeição e sua debilidade podem diferir por causa da fonte doadora, embora o receptáculo e sua aptidão permaneçam constantes. É, por exemplo, o caso de um mesmo muro que recebe a luz sucessivamente do sol e da lâmpada, ou ainda como os raios do sol que uma superfície de vidro reflete no solo. É bem evidente que o que recebe diretamente do sol é mais perfeito do que o vidro reflete ou recebe da lâmpada. Não escapa a ninguém que a diferença em perfeição e imperfeição entre as duas aqui não tem outra causa senão a diferença das fontes luminosas. Mas ocorre, por outro lado, que o agente seja único e que a perfeição ou a imperfeição da radiação (shu'â') difiram por causa do receptáculo — semelhante ao raio do sol que recai sobre o cristal, sobre o azeviche ou sobre o solo. Pois o que recebem o cristal e o azeviche é mais perfeito do que o que recebe o solo. Quanto à Luz imaterial, ela não possui receptáculo. Assim, a perfeição e a imperfeição de todas as Luzes abaixo da Luz das Luzes têm como causa a classe de seu agente. A perfeição da Luz das

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Luzes não tem causa. Não, ela é a Luz pura, na qual nem deficiência nem imperfeição estão misturadas. Questão: Como a essência luminosa enquanto tal não implica a perfeição, sua particularização (takhaṣṣuṣ) pela Luz das Luzes é algo não necessário e causado? Resposta: A essência luminosa é universal (kullîya) e ideal (dhihnîya). Logo, ela não é particularizada por algo exterior. O que existe in concreto é uma coisa única, não é um princípio (aṣl), e sim uma perfeição que aí se acrescenta. Além disso, isso não tem existência, senão no pensamento que sustenta as relações puramente lógicas, que não são transponíveis para a realidade concreta. Quanto à afirmação de que "o que subsiste por si mesmo não é suscetível nem à perfeição nem à imperfeição", isso é um julgamento ao qual nós já referimos anteriormente. Certamente, devemos convir que a diferença entre as Luzes incidentais e as Luzes imateriais — Luzes às quais nos referimos antes — deve ser explicada de duas maneiras: tanto pela classe do agente, quanto pela do receptáculo. Encontra-se bem estabelecido que o Primeiro [Ser] produzido pela Luz das Luzes é único. É a Luz Mais Próxima, a sublime Luz, aquela que alguns dos antigos persas (ba'd al-fahlawîya) chamam Bahman. Mas essa Luz Mais Próxima é por si mesma deficiente. É somente pela Primeira que ela possui suficiente razão de ser. Agora, a existência de uma Luz que emana da Luz das Luzes não consiste em que algo se separe dela. Tu já aprendeste que a disjunção (infiṣâl) e a conjunção (ittiṣâl) são as propriedades dos corpos, mas a Luz das Luzes lhes é transcendente. Tampouco isso consiste em que algo seja transferida para fora da Luz das Luzes, pois as qualidades não se transferem. Assim como tu já foste informado da impossibilidade de atribuir qualidades à Luz das Luzes, nós lhe traremos à memória um capítulo que indica que a irradiação produzida pelo sol nada é senão a própria maneira pela qual ele existe, nada além disso. É importante que saibas que é a mesma coisa com relação ao que diz respeito à Luz que se levanta (shâriq), seja ela incidental ou imaterial, e que não podemos conceber nela nem uma transferência de acidente nem uma disjunção de um elemento corporal. III SOBRE A CONSTITUIÇÃO DOS CORPOS Sabe que as orientações (ishârât) com relação ao conjunto das direções espaciais têm limites. Nós demonstramos que todo conjunto de coisas, corpóreas ou incorpóreas, que forma entre elas um 45


sistema de graus é necessariamente um conjunto finito. Portanto, se não houvesse um corpo envolvendo a totalidade dos corpos que não fosse passível de alguma disjunção, ocorreria que o movimento e a orientação, que permeiam o conjunto dos corpos e passam para fora, alcançariam um nada (lâ shay'). Porém, não imaginemos que haveria uma orientação possível em direção ao nada ('adam). Isso valeria igualmente, fosse no caso em que o corpo que engloba o Todo poderia sofrer um deslocamento, fosse no caso em que ele seria constituído de vários corpos reunidos. No último caso, seria inútil pressupor que cada um desses corpos não pudesse, em si mesmo, ser dividido, pois ele não deveria, contudo, formar a parte de um conjunto. Mas se fosse possível a esses corpos se encontrarem reunidos, ser-lhes-ia igualmente possível ser dispersos. [Sendo efetiva essa dispersão,] o movimento se precipitaria em direção a um nada e seria totalmente desorientado, o que é absurdo. Seria preciso, por outro lado, que esses corpos diferentes existissem isoladamente antes de entrar na composição do conjunto. Mas o que é simples é apontado como um só e mesmo corpo de um só corpo. Somente depois ele é dividido em ato, se for algo que pode sofrer divisão. É preciso então que o corpo que envolve, que é indivisível, simples, homogêneo, seja algo que não possamos supor com partes, senão pelo pensamento, e do qual não possam surgir, enquanto tal, duas dimensões diferentes. Como ele é simples e homogêneo, não é possível dar existência senão a uma única dimensão, que é a altura. Tudo o que se encontra próximo será o alto. Inversamente, o que está mais abaixo não está em outro lugar, senão no limite extremo do distanciamento com relação a ela, ou seja, o centro. Eis então o que é o corpo que envolve. Como prova da indivisibilidade daquilo pelo qual existe a dimensão — e que apontamos por hipótese que é único a determiná-la, excluindo qualquer outro —, temos isto: suponhamos que o corpo-limite seja divisível e que o móvel se dirija em direção ao alto. Ou ele se move, depois da passagem da parte mais próxima, em direção ao alto — o alto é somente a parte mais distante — ou ele se move a partir do alto, e a dimensão do alto é somente a parte mais próxima. Nas duas hipóteses, é somente uma parte desse conjunto que se supunha ser a dimensão que se torna a dimensão; a outra parte não pode ser incluída. Porém, nosso raciocínio diz respeito ao que constitui aquilo mesmo pelo qual há a dimensão, ou seja, aquilo com o qual não poderíamos tomar simultaneamente o que não pode ser incluído na dimensão. Não é como o de baixo, que é definido pelo que está no centro do corpo-limite. Aqui, quando o imóvel chega a seu termo, ele toma, por causa da porção de espaço que lhe cabe no conjunto, a posição totalmente abaixo.

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Toda coisa se relaciona a um espaço. Enquanto ela estiver nesse espaço, seu espaço será diferente dela mesma e diferente de suas partes. Uma mudança das partes dessa coisa que está assim em um espaço — mudança com relação às partes que se pressupõe existir —, é admissível no caso em que é impossível para essa coisa migrar totalmente para fora de seu espaço, por exemplo, para as esferas celestes [por causa de sua forma específica]. Ou ainda, ao contrário, é a transferência total que é admissível, como quando se trata de outra coisa diferente das esferas. Assim, o espaço é a superfície interna do que contém imediatamente o corpo, e o que não tem receptáculo tampouco possui espaço. IV ONDE EXPLICAMOS QUE O MOVIMENTO DAS ESFERAS CELESTES É UM MOVIMENTO VOLUNTÁRIO E COMO O MÚLTIPLO EMANA DA LUZ DAS LUZES O corpo animado não se move circularmente por si mesmo. De fato, nada do que possua uma meta em direção ao qual tenda, que a alcance [em um momento dado] e dela se separe [em outro momento], é inanimado; pois, quando o inanimado tende por si mesmo e pela natureza em direção a algo, ele não se separa do objeto ao qual ele tendia [uma vez atingido]. Senão se concluiria que ele aspirou por natureza a algo que ele evitava igualmente por natureza, o que é absurdo. Porém, de cada ponto ao qual tendem os corpos superiores eles se separam quando os atingem. Por outro lado, nada lhes obriga, pois o inferior não exerce poder algum sobre o que é superior. Eles não fazem mais pressão (muzâhim) um sobre os outros, pois como nenhuma força repulsiva intervém entre o que envolve e o envolvido, nenhum dos dois se separa de seu próprio local (mawḍu'). Como, além disso, dado que possuem movimentos respectivamente diferentes, eles participam em comum dos mesmos movimentos diurnos? O próprio movimento diurno não é um movimento por obrigação. Essa obrigação, na verdade, não poderia resultar em outro movimento. Por outro lado, o corpo, quando seu estado permanece o mesmo, não pode, por si mesmo, mover-se segundo dois movimentos diferentes. É preciso, então, que um movimento das esferas seja o movimento por acaso e que haja um movimento que eles possuam por essência. É como alguém que caminha sobre um barco ao contrário do movimento do barco, [ele está submetido a um duplo

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movimento]: um que ele deve a si mesmo e outro que ele sofre por intermédio daquele no qual ele se encontra. Assim, o movimento diurno — do qual participa em comum o conjunto dos corpos celestes — não provém senão de uma [esfera] circundante, enquanto cada um possui seu movimento [próprio e essencial]. O motor de cada um desses corpos é um vivo que possui a vida por si mesmo. Logo, é uma Luz imaterial. Consequentemente, deve estar claro para ti que os barzakhs são dominados pelas Luzes. As esferas são protegidas da corrupção, das paixões carnais e da raiva. Seu movimento não se produz, portanto, em vista de um propósito material (barzakhî); ele possui como causa uma meta de Luz. Aos sete planetas foram designados os movimentos múltiplos. Portanto, é necessário que eles disponham de corpos múltiplos. Porém, nenhum deles basta a si mesmo. É preciso, tanto para a sua realização (taḥaqquq), como para suas perfeições, uma Luz imaterial. Como nada além da Luz “mais próxima” surge da Luz das Luzes e como, na Luz “mais próxima”, não poderia haver várias dimensões — pois toda multiplicidade nela reconduziria a uma multiplicidade de dimensões no que postula seu ser e, assim, chegaríamos à multiplicação da Luz das Luzes, o que é absurdo —, enquanto nos barzakhs há multiplicidade, assim, se a Luz “mais próxima” produzisse um barzakh único, sem que surgisse dela outra Luz, o ser se deteria com esse barzakh. Porém, de modo algum é assim, pois [nós constatamos] uma multiplicidade nos barzakhs, do mesmo modo que nas Luzes regentes (anwâr moabbira). Do mesmo modo, suponhamos que emanasse uma Luz imaterial da Luz “mais próxima”, e nada mais, e que daquela, por sua vez, emanasse uma outra Luz imaterial: jamais chegaríamos à existência dos barzakhs. Enquanto cada uma persistisse como Luz, seria impossível que a substância noturna emanasse dela, por causa de sua luminescência. Portanto, é necessário que, pela Luz “mais próxima”, advenha simultaneamente um barzakh e uma Luz imaterial. Em si essa Luz possui deficiência; mas, por causa do Primeiro, ela tem como se bastar no ser. Nesse caso, ela possui a intelecção de sua deficiência, e isso é para ela uma qualidade das trevas. Ela contempla a Luz das Luzes e ela contempla a si mesma, pois não há véu entre si e a Luz das Luzes: pois é nos barzakhs, nas realidades obscuras, nas distâncias que existe [algo como] o véu. Porém, nem a Luz das Luzes nem a Luz totalmente imaterial contêm dimensão ou distância (bu'd). Mas, contemplando a Luz das Luzes, ela descobre contendo em si mesma uma noite e as trevas com relação à Luz das Luzes. Pois a Luz todo-perfeita domina a Luz menos perfeita. Assim, por essa revelação a si mesma de sua deficiência, pelo fato de que, contemplando a majestade da Luz 45


das Luzes, ela reconhece a noite de sua própria essência com relação a essa Luz, dela surge uma sombra, que é o barzakh supremo, aquele que nenhum outro barzakh supera. Trata-se da esfera circundante da qual se falava. Por outro lado, na medida em que seu ser é necessário para a Luz das Luzes e ela tem como se bastar no ser, na medida em que contempla sua própria majestade e sua própria sublimidade, ela emana de si uma outra Luz imaterial. Assim, o barzakh é sua sombra, enquanto que a [nova] Luz subsistente é uma irradiação que dela emana. Sua sombra tem como causa as Trevas que constituem sua deficiência. Nós entendemos aqui, por Trevas nada além do que aquilo que não é em si mesmo e por si mesmo uma outra Luz. Tese sobre a modalidade da multiplicação. Como não há véu entre a Luz inferior e a Luz superior, a Luz inferior contempla a Luz superior e esta difunde sobre ela sua claridade. Assim, uma irradiação da Luz das Luzes causa claridade sobre a Luz “mais próxima”. Se objetarmos: segue-se uma multiplicação da Luz das Luzes, pois ela confere ao mesmo tempo a existência e a claridade, é preciso responder: é impossível — o que implicaria essa multiplicação — que surjam dela, imediatamente, duas coisas a partir de sua essência imaterial. Porém, de forma alguma se trata disso aqui. Quanto à existência da Luz "mais próxima", ela tem como causa a essência da Luz das Luzes. Quanto à claridade (shurûq) dessa Luz sobre a Luz "mais próxima", ela tem como causa, ao mesmo tempo, a aptidão desse receptáculo, seu amor por essa Luz e a ausência de véu. É aqui que aparecem as dimensões múltiplas, uma causa receptiva e certas condições. Consequentemente, é por causa da diversidade dos receptáculos e de sua multiplicidade que é possível que as coisas múltiplas e diferentes surjam de uma única e mesma coisa. Tese sobre a generosidade da Luz das Luzes. A generosidade consiste em satisfazer um desejo sem esperar algo em troca. Aquele que busca glória e recompensa não é mais do que um mercenário. Do mesmo modo é aquele que assim busca escapar à culpa ou a qualquer coisa semelhante. Nada é mais generoso do que a Luz na realidade constitutiva de seu ser, pois a Luz se epifaniza e se derrama por si mesma sobre todo o receptáculo [que se ofereça]. O rei, no verdadeiro sentido, é aquele que possui a essência de todas as coisas, mas cuja essência não pertence a nenhuma dessas coisas; é a Luz das Luzes. Tese sobre a visão.

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Já que sabes que a percepção visual não tem como causa a impressão da forma do objeto no olho e que, tampouco, ela se produz pela saída de algo do olhar, ela ocorre, então, somente pelo encontro face a face do objeto iluminado com o olho são, nada além disso. Quanto à imagem (khayâl) e às formas (mothol) que ocorrem nos espelhos, o caso vai mais longe, pois elas produzem o objeto de outra grave questão. O caso do "face a face" reconduz ao caso da ausência de véu entre o sujeito que olha e o objeto olhado. A proximidade excessiva impede a visão, pois é uma condição para o objeto dessa visão que ele receba luz ou que ele seja em si mesmo uma luz. Portanto, é preciso, necessariamente, uma dupla luz: luz que olha e luz olhada. No instante em que a pálpebra pisca, é inconcebível que ela seja iluminada pelas luzes exteriores. Por outro lado, a luz do olho não tem um poder luminoso suficiente para iluminá-lo. Portanto, o objeto está invisível, por não estar iluminado. Assim é no caso de toda proximidade excessiva. Inversamente, a distância excessiva é causa do velamento, por causa da debilidade do "face a face". Consequentemente, quanto mais próxima for a luz ou o objeto que recebe a luz, mais é possível a visão, enquanto houver luz ou um objeto iluminado. Última tese oriental: A visão da luz é outra coisa, diferente da iluminação da radiação dessa luz sobre o que a contempla. Sabe que há para teu olho um ato de visão e o surgimento de uma irradiação diferente do ato da visão. A irradiação, com efeito, recai sobre o olho, lá onde ele está, enquanto a visão do sol, [por exemplo], não contempla o sol lá onde ele está, senão segundo o intervalo pelo qual o olho se encontra a uma distância considerável do local do sol. Vimos anteriormente a indicação. Supondo que a pálpebra fosse luminosa ou que o sol tivesse uma determinada proximidade da pálpebra, a irradiação aumentaria; e a visão, igualmente. V QUE CADA LUZ SUPERIOR DOMINA A LUZ INFERIOR E QUE ESTA POSSUI AMOR PELA LUZ SUPERIOR A Luz inferior não contém a Luz mais elevada, pois a Luz mais elevada a domina. Contudo, a Luz inferior não deixa de contemplá-la. Quando as Luzes se multiplicam, cada Luz mais elevada 45


exerce domínio sobre a Luz inferior, enquanto cada Luz inferior experimenta desejo e amor (shawq wa'ishq) pela Luz de classe mais elevada. É por isso que a Luz das Luzes é dominadora com relação a todos os outros seres. De modo algum ela possui amor por outro que não seja ela mesma. Ela ama a si mesma, porque sua própria perfeição lhe é manifesta e porque ela é o mais belo, o mais perfeito do seres. Ao mesmo tempo, sua manifestação a si mesma supera qualquer manifestação de um ser que exista com relação a outro ser ou com relação a si mesmo. Porém, a bem-aventurança (ladhdha) nada é senão a consciência de uma perfeição que existe em ato, enquanto perfeição e enquanto ato. É por isso que aquele que é inconsciente (ghâfil) da realidade presente de uma perfeição não experimenta bem-aventurança alguma desta. E toda bem-aventurança, para aquele que dela experimenta, é proporcional à perfeição deste e à percepção que ele pode ter de sua perfeição. Porém, nada é mais perfeito nem mais belo do que a Luz das Luzes. Nada, além dela, é mais manifesto a si mesmo e a outro do que ela. É por isso que nada é mais agradável do que ela, para si mesma e para outro. É assim que a Luz das Luzes é amante de si mesma, nada além disso. Mas ela é, ao mesmo tempo, amada por si mesma e pelos outros. É no princípio (sinkh) da Luz imperfeita que existe amor pela Luz superior, enquanto que, no princípio da Luz superior, há domínio com relação à Luz inferior. Do mesmo modo que a revelação da Luz das Luzes a si mesma não é algo que se acrescente à sua essência, igualmente não o são sua bem-aventurança e seu amor. E do mesmo modo que a luminescência de qualquer outra Luz não lhe pode ser comparada, igualmente, nem a bem-aventurança de outra Luz nem o amor de outra Luz são compatíveis com a bem-aventurança que a Luz das Luzes causa a si mesma e o amor que ela experimenta por si mesma. Incomparáveis também são o amor que os seres podem experimentar por outra coisa que não seja a Luz das Luzes e a bem-aventurança que eles podem obter disso e o amor que eles podem experimentar por ela e a bem-aventurança que disso eles obtêm. Assim, a totalidade do ser ordena-se segundo o amor (mahabba) e segundo o domínio (qahr). Tudo isso será perfeitamente explicado mais adiante. E quando as Luzes imateriais se vão multiplicando, a ordem mais perfeita lhes é inerente. VI O AMOR QUE CADA LUZ INFERIOR EXPERIMENTA POR SI É DOMINADO PELO QUE ELA EXPERIMENTA PELA LUZ SUPERIOR

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A Luz da mais alta classe contempla a Luz das Luzes. Desta surge uma iluminação [constante] sobre ela, e ela, simultaneamente, experimenta amor pela Luz das Luzes e por si mesma. Seu amor por si mesma é subjugado pelo domínio de seu amor pela Luz das Luzes.

VII AS ILUMINAÇÕES QUE AS LUZES IMATERIAIS IRRADIAM SOBRE AS OUTRAS NÃO CONSISTEM EM UMA FRAGMENTAÇÃO A iluminação da Luz das Luzes sobre as Luzes imateriais não consiste em que um fragmento se separe dela, como já te expliquei. Não, é uma Luz irradiada que se produz da Luz das Luzes na Luz imaterial, a exemplo do que foi descrito anteriormente sobre as iluminações do sol sobre o receptáculo. A contemplação é outra coisa, como nós te demos o exemplo. A Luz surgida na Luz imaterial a partir da Luz das Luzes é aquilo ao qual é dado particularmente o nome de "Luz superveniente". Esta é uma Luz acidental; pois a Luz acidental abrange duas categorias: aquela que advém aos corpos materiais e aquela que advém às Luzes imateriais. VIII SOBRE A MANEIRA COM A QUAL A PLURALIDADE EMANA DO UNO MONÁDICO E SOBRE A ORDEM GRADUAL DESSA EMANAÇÃO Refutação à doutrina professada sobre esse ponto pelos Peripatéticos Da Luz “mais próxima” surge um barzakh e uma Luz imaterial. Desta surge uma outra Luz imaterial e um novo barzakh e assim por diante, até que tenham surgido nove céus e o mundo elementar (al-âlam al-'unsurî). É preciso, necessariamente, tu o sabes, que o encadeamento dessas Luzes, que formam um sistema hierárquico, tenha um fim. Essa série (tartîb) termina então em uma Luz da qual não surge mais nenhuma outra Luz imaterial. Por outro lado, em cada um dos barzakhs dos mundos etéreos, constatamos [a presença] de um astro. Na esfera dos [Astros] Fixos, nós constatamos os astros em número tão grande, que não está sob o poder do homem enumerar sua multidão.

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Sendo tal a multidão dessas coisas, é necessário que elas requeiram os números e as dimensões que tampouco estarão sob nosso poder contar. Compreendemos que o céu dos Fixos não pode surgir da Luz “mais próxima”, pois não há nela suficientes dimensões para causar a existência da multidão dos astros fixos. Além disso, se supusermos que esse mesmo céu poderia surgir de uma das Inteligências Supremas, [seria necessário observar] que esta não contém, tampouco, múltiplas dimensões [que possam dar conta dessa multidão]. Essa objeção vale mais ainda com relação à doutrina de quem reconhece em cada Inteligência somente uma dimensão de necessidade e uma dimensão de possibilidade, nada além disso. Mas, então, se o Oitavo Céu surgisse de uma das Inteligências inferiores, como conceber que [o que por hipótese seria um barzakh inferior] seja, contudo, maior do que os barzakhs das Inteligências superiores e situado acima deles? Como conceber que os astros sejam mais numerosos do que os astros destes últimos? Somos então conduzidos a esses absurdos. É por isso que a gradação, que era a teoria dos Peripatéticos, não resiste a essa hipótese. Todo astro na esfera dos Fixos contém uma certa particularização (takhaṣṣuṣ) que pressupõe que esse astro contém um requisito e uma indicação que lhe sejam absolutamente próprios. É por isso que as Luzes vitoriosas, ou seja, as Luzes separadas dos barzakhs, totalmente independentes com relação a estes últimos, são em número bem mais elevado do que 10, 20, 100 ou 200. Entre essas luzes, existem aquelas que não emanam de barzakh autônomo, pois o número das unidades numéricas dos barzakhs autônomos é inferior ao número dos astros. E essas Luzes Arcangélicas formam uma hierarquia. Da Luz “de classe superior” surge uma segunda Luz. Da segunda, uma terceira, uma quarta, uma quinta, até um total enorme. Cada uma dessas Luzes contempla a Luz das Luzes, enquanto sobre cada uma recai a irradiação da Luz das Luzes. As Luzes Arcangélicas refletem a Luz umas sobre as outras, tanto é que cada Luz superior ilumina o que lhe é inferior em grau e cada Luz inferior recebe a irradiação da Luz das Luzes, sem intermediários. Uma segunda vez ela a recebe por causa da Luz “de classe superior”. A terceira Luz recebe quatro vezes [a iluminação que emana da Luz das Luzes]: a dupla iluminação recebida por sua companheira reflete-se sobre ela. Há, por outro lado, o que ela recebe da Luz das Luzes, sem intermediário, e o que ela recebe da Luz "de classe superior". A quarta Luz a recebe oito vezes: quatro vezes pelo reflexo sobre ela de sua companheira; duas vezes pela dupla iluminação da segunda Luz. Ela recebe uma da "de classe superior" e, sem intermediário, uma da Luz das Luzes. As Luzes supervenientes vão-se desdobrando até alcançarem um total enorme. 45


As Luzes imateriais superiores não constituem, de fato, o véu entre as Luzes inferiores e a Luz das Luzes, pois o véu é uma propriedade das dimensões e funções dos barzakhs. É dado, por um lado, que cada Luz arcangélica contempla a Luz das Luzes. Por outro lado, como tu já o sabes, a contemplação difere da iluminação (shorûq) e da efusão da irradiação (fayd al-shu'â). Assim, do mesmo modo com que se vão desdobrando as Luzes supervenientes [que irradiam] da Luz das Luzes, a contemplação de cada Luz superior e a iluminação (ishrâq) de sua Luz sobre cada Luz inferior, sem intermediário e com intermediário, continuam, igualmente, sem cessar, a desdobrar-se por reflexo.

Sabe que, quando as irradiações dos barzakhs recaem sobre um barzakh, a Luz intensifica-se no corpo em razão do número. Então, encontra-se concentrado em um substrato único algo cujo número não podemos distinguir, a não ser distinguindo-lhe as causas — como os raios de várias lâmpadas sobre o mesmo muro, pois poderá cair a sombra de uma, enquanto a outra subsistirá. Porém, isso não é comparável à intensificação que se produz por um princípio único, para não falar de dois princípios. E continua a existir a intensidade mesmo depois que esses dois princípios cessam. Tampouco isso é comparável às partes que compõem a causa de um causado único, qualquer que seja. Ocorre, por outro lado, que sejam reunidas várias iluminações em um substrato único, à maneira de dois desejos por duas coisas diferentes. Contudo, o barzakh não tem consciência desse crescimento que resulta de cada iluminação, diferentemente do que se passa quando as múltiplas iluminações deparam com um vivo que não está oculto a si mesmo e que não é inconsciente das iluminações que advêm e do crescimento da Luz que resulta [para ele] de cada uma.

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Ele emana uma multidão de Luzes Arcangélicas, formando uma hierarquia que surge umas das outras por causa das "mônadas" de sua contemplação e da influência prodigiosa de irradiações perfeitas. São elas as Luzes Arcangélicas Primordiais, aquelas que são os princípios supremos. Dessas Fontes, depois, por causa das composições entre as "dimensões" e de suas correspondências, surge uma multidão [ilimitada de Luzes]. Por exemplo: a consociação (moshâraka) da dimensão da deficiência com as irradiações e, com elas, a consociação da dimensão da autarquia (istighnâ), a consociação da dimensão de dominação (qahr), a consociação da dimensão do amor (maḥabba); igualmente, pela consociação das irradiações de cada Luz arcangélica umas com as outras, pelas consociações das irradiações e das contemplações das Luzes Arcangélicas, as consociações de seus seres substanciais (dhawât jawharîya), as consociações de certas irradiações de uma com certas irradiações da outra. Assim, segundo as consociações das irradiações de todo o conjunto — sobretudo as que, no conjunto, são débeis e descendentes —, com a dimensão da deficiência, surgem os astros fixos e sua esfera, junto com suas constelações, cujas proporções correspondem à consociação das irradiações umas com as outras. Por outro lado, de acordo com as consociações das irradiações com a dimensão da autarquia, do domínio e do amor e pelas combinações maravilhosamente proporcionadas entre as irradiações intensas e perfeitas e as outras, surgem as Luzes Arcangélicas que são os "Senhores dos Ícones" (arbâb al-aṣnâm) das espécies celestes, teurgos das naturezas simples e dos compostos elementares e de tudo o que existe abaixo da esfera dos Fixos. Assim, o princípio de cada uma dessas teurgias é uma Luz arcangélica, que é o arcanjoteurgo. É a espécie subsistente no estado de Luz pura. E, na medida em que os arcanjos-teurgos (ârbab al-tilisma) caem nas categorias do amor, do poder dominador e da proporção igual entre os dois — que pertencem a seus princípios —, eis então que se diferencia, nos astros e nos outros corpos, o que é causa de uma influência benéfica, de uma influência maléfica ou de uma influência ambivalente. As espécies luminosas arcangélicas são anteriores a seus indivíduos, ou seja, anteriores no sentido de onde está uma Inteligência. Do mesmo modo, o postulado da possibilidade superior (al-imkân al-asharaf) implica existência dessas espécies luminosas, separadas da matéria. As próprias espécies não são, em nosso mundo, o resultado de circunstâncias acidentais (alittifâqât). Jamais, com efeito, provém do homem outra coisa senão o homem, ou do trigo outra coisa senão o trigo. As espécies que se perpetuam assim em nosso mundo não resultam nem de circunstâncias acidentais nem da simples representação que formariam as Almas motoras da esfera 45


celeste ou dos objetivos [que elas perseguiriam]. É por essa razão que as representações dessas Almas resultam de causas que estão acima delas, pois essas representações pressupõem necessariamente as causas. Porém, do que os Peripatéticos nomeiam pronnoîa nós mostraremos mais adiante a inutilidade. É falso dizer que as formas das espécies são impressas nas Luzes Arcangélicas imateriais em correspondência com o que está abaixo delas, pois elas não poderiam sofrer pelo que lhe é inferior. Por outro lado, as formas acidentais em certas [Luzes] não poderiam advir de formas acidentais das outras Luzes. Com efeito, se fosse assim, chegaríamos à pluralização da Luz das Luzes. É necessário, por consequência, que sua espécie seja um ser subsistente por si mesmo no mundo da Luz, de modo permanente e imutável. Seria inconcebível que as Luzes Arcangélicas que são iguais entre si surgissem simultaneamente da Luz das Luzes, pois é inconcebível que a multiplicidade surja imediatamente da Luz das Luzes. São necessários, então, os intermediários que formam uma hierarquia longitudinal. Porém, as Luzes Arcangélicas Primordiais, essas que formam uma hierarquia, não são os "Senhores dos Ícones" iguais entre si. É preciso então que esses arquétipos das espécies, reciprocamente iguais, surjam das Luzes Arcangélicas Primordiais e que eles se multipliquem segundo certas relações de irradiação entre as Luzes Primordiais. Se imaginarmos certa excelência, ou certa deficiência, nos anjos-teurgos em razão da perfeição ou da imperfeição das irradiações, a correspondência encontra-se nas [espécies que são] as teurgias, de modo que uma espécie predomina sobre a outra: mas somente em sentido determinado, e não em sentido absoluto. Se, por outro lado, as gradações de volume nas esferas celestes proviessem das Luzes Arcangélicas Primordiais que formam a hierarquia longitudinal, Marte seria mais nobre do que o Sol, de modo absoluto, e do que Vênus. Porém, não é assim: uns são superiores quanto ao astro; outros o são quanto à esfera e, sob outros pontos de vista, há igualdade entre eles. Logo, é evidente que seus Senhores (arbâb), ou seja, os "Senhores dos Ícones", são igualmente assim entre eles. As superioridades constantes e permanentes e todo outro efeito ou estado de mesma qualidade não repousam sobre simples acasos, mas sobre os próprios graus das causas. [As classes de Luzes] Assim então as Luzes imateriais se distribuem em: - Luzes Arcangélicas - não possuem nenhuma ligação com os barzakhs, nem ali se encontrando impressas, nem para os governar.

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Entre as Luzes Arcangélicas, existem as Luzes dominadoras supremas e as Luzes Arcangélicas formadoras, "Senhores dos Ícones". - Luzes que governam os barzakhs, embora não sejam impressas nos barzakhs. Elas surgem de cada Senhor de espécie em sua sombra corpórea em função de uma dimensão superior que é sua dimensão de Luz, enquanto os barzakhs resultam de uma dimensão de deficiência; isso quando seu barzakh é capaz de receber uma alma que o governe. A Luz imaterial não é suscetível de união nem de divisão. Com efeito, embora a divisão seja somente a ausência da união, só se pode falar do que é suscetível de união. As dimensões de deficiência nas Luzes Primordiais manifestam-se no barzakh comum (albarzakh al-mushtarik). As dimensões de deficiência das Luzes Primordiais manifestam-se igualmente nos anjos das teurgias pela dimensão de deficiência que consiste em um decréscimo de seu grau de Luz. Mas a deficiência nas Luzes inferiores é mais grave do que nas Luzes Primordiais. Necessariamente, há fim na série de graus. É por isso que não é possível que de cada Luz arcangélica resulte, sem limite, outra Luz arcangélica; nem de cada pluralidade de dimensões, uma pluralidade; nem de cada irradiação, uma irradiação. O enfraquecimento termina por alcançar um ponto a partir do qual absolutamente nada mais é produzido como ser, embora imaginemos que seja de uma multiplicidade que deva surgir uma multiplicidade e que é de uma Luz arcangélica que deva surgir uma Luz arcangélica. Como as esferas celestes são seres vivos e possuem Almas que as governam, essas Almas que as governam não são suas causas, pois a causa que é Luz não recebe perfeição alguma da substância noturna. Por outro lado, a substância noturna não poderia dominar sua causa luminosa submetendo-a ao elo da dependência corporal. (La substance nyctiphore ne saurait subjuguer sa cause lumineuse em la soumettant au lien de la dépendance corporelle. É por isso que a Luz que a governa é dominada, em certo sentido, por essa ligação. Assim, a Luz que nos governa é uma Luz imaterial. É ela que nós denominamos LuzEspahabad. Essa é a via reta que te conduz a isto: como do Primeiro Ser obtêm sua origem as duas "dimensões" primordiais do domínio e do amor e, nas Luzes Arcangélicas, existem duas "dimensões" — um aspecto noturnal (istighsâq), no qual elas reconhecem sua dependência, e um estado de Luz (istinâra) —, por conseguinte, essas categorias entram em composição, reencontrando-se em suas causas. Estas, consequentemente, se produzem assim: Existe a Luz na qual predomina o poder dominador; Existe a Luz na qual predomina o amor; 45


Existe o obscuro (ghasîq), no qual predomina o domínio das substâncias luminosas entre os astros; Existem os seres obscuros, desprovidos de Luz, nos quais predomina o poder dominador — são as naturezas etéreas que escapam à corrupção e exercem uma influência. Existem, enfim, os seres obscuros nos quais predominam o amor e a submissão. São as naturezas elementares, que, submissas às [influências das esferas e dos astros] amam seu brilho e são tomadas de baixeza se um véu lhes privar de sua irradiação. Quanto ao fogo, como ele está próximo das realidades etéreas, um poder dominador sobre o que está abaixo dele é-lhe igualmente inerente. Daremos mais adiante a explicação disso, se isso agradar a Deus. [Sizígias ou hierogamias] Sabemos que toda a causa luminosa experimenta em relação a seu causado, ao mesmo tempo, amor e poder dominador, enquanto o causado experimenta em relação a ela o amor que implica a submissão. É por isso que o ser inteiro se encontra distribuído segundo as divisões do luminoso e do obscuro, do amor e do domínio, do poder inerente à dominação exercida sobre o que é inferior e da docilidade inerente ao amor experimentado com relação ao que é superior, ambas formando uma dupla, assim como disse Deus Altíssimo: "Em todas as coisas, nós criamos os pares. Talvez vós vos recordais?". IX COMPLEMENTO DA EXPOSIÇÃO SOBRE OS ASTROS FIXOS E SOBRE CERTOS ASTROS Assim, se o sistema dos [Astros] Fixos não é o resultado de um acaso, ele é a sombra de um sistema inteligível (tartîb 'aqlî). Do mesmo modo, nesses sistemas, ou seja, nos astros que estão entre os Fixos, existem as coisas que uma ciência humana não pode abarcar. As maravilhas do mundo celeste, as relações das esferas — determinar seu número com alguma certeza é bastante difícil. Além disso, de forma alguma é impossível que, além da esfera dos Fixos, existam outras maravilhas, bem como, na própria esfera dos Fixos, as maravilhas que não percebemos. E sabe que nada há de morto no mundo celeste. A autoridade real (sulṭân) das Luzes regentes superiores, bem como sua energia (quwwa), comunica-se às esferas por intermédio dos astros, e é a 45


partir destes que são emitidas as energias. O astro é, por assim dizer, o órgão principal e absoluto. Hûrakhsh é a teurgia de Shahrîr (Shahrîvar), Luz de brilho poderoso, autor do dia, Príncipe do Céu, a quem a tradição de Ishrâq impõe que se renda um culto. Ele não supera somente os astros pela única dimensão e pela proximidade, mas pela intensidade, pois os Fixos que o veem durante a noite, bem como os outros planetas, formam, todos reunidos, um total incomparavelmente superior ao sol. Apesar disso, todos reunidos não podem produzir a luz do dia! X EXPLICAÇÃO SOBRE A CIÊNCIA DIVINA SEGUNDO O QUE É A DOUTRINA DE ISHRÂQ Está bem estabelecido que a percepção visual não possui como condição a impressão de alguma forma exterior, nem de alguma emanação [fora do olho]. Não, basta ausência de véu entre o sujeito que percebe e o objeto percebido. Segundo as exposições anteriores, a Luz das Luzes é manifesta a si mesma. A outra além dela mesma lhe é igualmente revelada, pois "nem nos céus nem na terra, o peso de um átomo Lhe escapa" (34: 3), pois nada lhe esconde nada. Assim, sua ciência e sua visão (baṣar) são uma única e mesma coisa. Sua luminescência é seu próprio poder, pois a Luz difunde-se dela mesma. Quanto aos Peripatéticos e a seus adeptos, eles professam isto: a ciência do Ser Necessário não se acrescenta a ele próprio; mas é sua própria não ocultação à sua essência imaterial. Eles sustentam, por outro lado, que a existência das coisas resulta do conhecimento que ele dela possui. Que lhes façamos observar isto: Se Deus conhece e desse conhecimento se segue algo, o conhecimento antecipa as coisas. É preciso então que ele antecipe mesmo a não-ocultação ('adam al-ghayba) às coisas, pois esta não pode ocorrer senão depois de sua realização. Do mesmo modo que o que é causado pelo Ser Necessário é diferente da essência do Ser Necessário. Igualmente, o conhecimento que o Ser Necessário possui de seu causado é diferente do conhecimento que possui de si mesmo. Quanto à proposição que apresentamos — "o conhecimento que [o Ser divino] possui do que lhe é inerente (lâzim) está implicado no conhecimento de si" —, é sem alcance algum. De fato, para aquele que sustenta essa proposição, o conhecimento divino seria puramente negativo. Mas então, como o conhecimento que Deus possui das coisas entraria na negação? 45


A imaterialidade é uma negação. A não ocultação é, igualmente, uma negação. Consequentemente, é impossível que a ausência da ausência volte a significar a presença positiva. A coisa aqui não poderia, com efeito, ser presente a si mesma; pois o que seria presente seria outro que não aquele em quem há a presença. É por isso que não se pode dizer isso senão no caso de duas coisas. Ou entendemos algo mais geral? Mas como o conhecimento do outro entraria na negação pura? [Nós dizemos, por outro lado:] o fato de rir difere do fato de ser um homem. O conhecimento que temos difere, por consequência, do conhecimento do fato de ser um homem. Conhecer o fato real do rir não é, segundo nós, implicado pelo fato de conhecer a realidade humana. Esta não lhe remete como um conteúdo correlativo ou implícito, mas, ao contrário, por uma indicação extrínseca. Assim como nós temos do rir um conhecimento em ato, nós temos necessidade de uma nova representação. À falta desta, o fato de rir não nos é conhecido, senão em potência. Quanto aos exemplos que demos com relação à diferença entre conhecimento detalhado de certas questões e conhecimento geral dessas mesmas questões, que é então conhecimento em potência, e, enfim, o fato de que, ao pretender expor uma questão, alguém possa espontaneamente descobrir um conhecimento da resposta, essa distinção é feita por puro desperdício. Na verdade, o que o homem descobre espontaneamente ao pretender expor certas questões é um conhecimento em potência. Ele descobre espontaneamente um habitus (malaka) e uma aptidão para responder às questões tratadas. Porém, essa potência está mais próxima [do ser real] do que ela estava antes de a questão ser colocada. Pois a potência possui graus. Mas o homem não conhece [em ato] a resposta para cada uma das questões em particular, tanto que não há nele a forma de cada uma, uma por uma. Porém, o Ser Necessário está isento dessas coisas. Por outro lado, quando C é diferente de B, como uma negação qualquer seria conhecimento de C e de B? Como C seria a presciência ('inaya) da modalidade que devia necessariamente apresentar C e B em sua ordem? E se seu conhecimento resulta a posteriori das coisas, então estão eliminadas a idéia de uma presciência que antecipe as coisas e a idéia de uma presciência em si. Portanto, a verdade nessa questão da ciência divina é o ensinamento do ishrâq (qâ'idat alishrâq), seja porque o conhecimento que o Ser Necessário possui de si mesmo consiste no que é Luz por si mesma e manifesta a si mesma, enquanto que seu conhecimento das coisas consiste no que elas lhe são reveladas, seja por elas mesmas, seja por seus concomitantes (mota'allaqât), que são os locais onde os situa a consciência permanente que possuem as [almas] regentes [das esferas]. Isso é uma relação [positiva], enquanto a ausência de véu é simplesmente algo negativo. E o que mostra que a relação epifânica é suficiente é que, produzindo-se a visão somente pela relação da 45


manifestação da coisa ao sujeito que vê, dada a ausência de véu, assim a relação do Ser Necessário, com tudo o que lhe é revelado, é para ele visão e conhecimento, sem que a multiplicação das puras relações intelectivas conduza à pluralização em sua essência. A presciência disso não resulta a posteriori. Quanto à ordem maravilhosa [que reina no cosmos], ela decorre do sistema maravilhoso e das relações que nascem das substâncias separadas, bem como de suas irradiações que se vão refletindo umas às outras, como vimos anteriormente. É em nome da presciência divina que os Peripatéticos negam as teses dos sábios que afirmam os arcanjos dos teurgos de Luz, enquanto essa presciência, [tal como a entendem os Peripatéticos,] não existe. Uma vez estabelecida essa inexistência, torna-se perfeitamente claro que o sistema dos barzakhs decorre do sistema das puras Luzes e de suas iluminações, que penetram nesse descenso das causas, que cessa quando chega aos barzakhs. Sabe que o branco parece mais próximo quando há algo negro e algo branco sobre uma superfície. É que o branco parece mais com algo que é [abertamente] aparente, que se parece com a proximidade. O negro parece, ao contrário, mais distante, pela razão contrária ao que acabamos de dizer. É por isso que, no mundo da Luz pura, cuja transcendência exclui a distância das distâncias, toda Luz mais elevada na hierarquia das causas é, ao mesmo tempo, Luz que descende mais em direção aos mais humildes, em razão da potência de sua manifestação. Glória então à Mais Distante Mais Próxima, à Mais Elevada Mais Próxima, e como ela está muito próxima, ela está igualmente presente quanto à influência exercida sobre todo ser e sobre sua perfeição. Pois a Luz é o amante magnético (maghnâṭîs) da aproximação. XI SOBRE A TESE DA POSSIBILIDADE PREEMINENTE SEGUNDO A TRADIÇÃO DO ORIENTE DAS LUZES Entre as teses orientais, há esta: se o possível inferior existe, sua existência implica que já existe o possível preeminente. Se a Luz das Luzes tornasse imediatamente necessário o inferior de trevas por causa de sua unidade (waḥdânîya), não haveria mais nela a causa que torna necessário o possível preeminente.

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Assim como se suporia que o preeminente existe, ele requereria uma causa que, tornando necessária a sua existência, seria ela mesma mais eminente do que é a Luz das Luzes, o que é absurdo. Nós demonstramos a existência das Luzes imateriais que são os regentes do ser humano. A Luz arcangélica, ou seja, a Luz totalmente independente da matéria, é mais eminente do que a Luz regente. Ela é mais distante do que esta das ligações com as Trevas. Essa é a própria razão de sua preeminência e é por isso que é necessário, igualmente, que sua existência seja primeira. Logo, é necessário que tu ensines, com relação à "Luz mais próxima", às Luzes Arcangélicas, às esferas celestes e às Almas que as governam, o que é preeminente e superior, depois de sua possibilidade. Como elas estão fora do mundo das contingências, na verdade, nada torna impossível a essas realidades o que há para elas de mais perfeito. Por outro lado, as maravilhas da ordem [do ser] encontram-se no mundo das Trevas e dos barzakhs. Porém, as relações entre as nobres Luzes são mais eminentes do que as relações que reinam no mundo das Trevas. As relações entre Luzes são então necessárias, anteriormente às relações entre Trevas. Contudo, o grupo dos Peripatéticos reconhece as maravilhas da ordem dos barzakhs. Porém, eles limitam o número das Inteligências a dez, embora, segundo suas próprias teses, é preciso, necessariamente, que o mundo dos barzakhs apresente uma ordem mais maravilhosa, mais nobre e mais rica e que a Sabedoria ali seja mais abundante. Mas tudo isso é falso. Com efeito, a inteligência pura (al-'aql al-ṣarîh) conhece, de conhecimento sapiencial, que a Sabedoria, no mundo da Luz, nos refinamentos dessa hierarquia e nas maravilhas das relações [intelectivas], apresenta-se com uma complexidade que supera o que ela é no mundo das Trevas; esta, ao contrário, é a sombra. Os anjos das espécies, eles mesmos sendo Luzes vitoriosas, contemplaram essas Luzes Arcangélicas — o próprio princípio do Todo, sendo ele próprio Luz —, que se desmaterializaram desnudando-se repetidas vezes de seu habitáculo corpóreo. Em seguida, eles se preocuparam em estabelecer provas relativas disso, por causa dos outros. Quem não admite semelhante coisa não é visionário ou extático. A maior parte das alusões dos Profetas e dos Pilares da Sabedoria refere-se a isso. Platão e, antes dele, Sócrates, por exemplo, e, anteriormente ainda, Hermes, Agathodaimon e Empédocles — todos tiveram essa visão. A maior parte deles declarou explicitamente que é no mundo da Luz que eles a contemplaram. Platão relatou, a partir de sua própria experiência, que ele se desnudou das Trevas [de seu habitáculo corporal] e teve a visão direta. 45


Os sábios da Pérsia e da Índia são unânimes nesse ponto. Pois, em matéria de astronomia, levamos em consideração as observações feitas por uma ou por duas pessoas. Como não levaríamos em consideração as declarações explícitas dos Pilares da Sabedoria ou da Profecia em relação a algo do qual eles tiveram visão direta durante suas observações espirituais (arṣâd rûḥânîya)? O autor destas linhas foi ele mesmo um vigoroso defensor da doutrina dos Peripatéticos no ponto em que ela nega essas realidades, pois ele sentia por ela forte inclinação. E ele teria perseverado nesse caminho se não tivesse visto a prova de seu Senhor (burhan rabbi-hi). Se alguém não der crédito a essa afirmação e essa prova não bastar, que inicie, por sua vez, exercícios espirituais (riyâḍât) e ingresse na escola dos mestres da contemplação mística (aṣḥab almoshâhada). Talvez, então, chegará, em um êxtase, a ver a Luz que se difunde no mundo do Jabarût e verá com os anjos do Malakût as Luzes que Hermes e Platão contemplaram, as labaredas celestes, fontes da Luz de Glória (khorra). É delas que nos informa Zoroastro. É em direção a elas que um êxtase conduz o verdadeiro soberano, o bem-aventurado Kay Khosraw, que teve então a visão direta. Os sábios da Pérsia são unânimes nesse ponto, de modo que, segundo eles, a água possui um anjo no Malakût; eles o chamam "Khordâd". O das plantas eles chamam "Mordâd"; o do fogo eles chamam "Ordibehesht". E essas são as mesmas Luzes às quais Empédocles aludiu, e vários outros além dele. Não suponhas que esses homens, eminentes em capacidade e saber, tenham ensinado que houve para a humanidade uma Inteligência que foi sua forma universal e que essa Inteligência existia, por si mesma, nos múltiplos indivíduos. Como, na verdade, teriam concordado com que algo não tinha ligação com a matéria e existia na matéria? Além disso, como teriam eles concordado com que uma mesma coisa existiria nas múltiplas matérias e nos indivíduos em número indefinido? Tampouco eles pensavam que o anjo da espécie humana, por exemplo, existia por causa do que está abaixo dele, como se este tivesse servido de "molde" (qâlib) para ele. Na verdade, eles foram aqueles que tiveram o maior cuidado em afirmar que o que está no alto não tem por razão de ser o que está embaixo. Se isso tivesse sido seu ensinamento, eles teriam sido levados a afirmar como arquétipo (mithâl) outro arquétipo e assim por diante, até o infinito. Não suponhas tampouco que eles ensinavam que os anjos das espécies são compostos, como se estivéssemos justificados ao dizer que, necessariamente, então, em determinado momento, eles devessem dissolver-se. Não, eles são as essências simples, feitas de Luz, embora não possamos conceber suas imagens a não ser compostas. Não é requerido, para que haja imagem, que haja semelhança traço a traço. Os peripatéticos concordam com que a humanidade, no pensamento, corresponde aos múltiplos indivíduos, que ela é 45


uma determinada imagem do que existe nos indivíduos concretos, embora essa humanidade que existe no pensamento esteja separada da matéria e que aquela que existe nos indivíduos concretos não seja imaterial, apesar também de a primeira não ser quantificável e não possuir substância, diferentemente daquela que existe concretamente. Portanto, não é obrigatório que haja semelhança total para que haja correspondência. Tampouco os antigos sábios se deixaram levar a dizer que a realidade animal possuía uma Imagem-Arquétipo (mithâl), e que, por sua vez, a realidade do bípede possuía uma. Não, somente cada coisa autônoma em sua existência possui, no mundo espiritual, ImagemArquétipo que lhe corresponde. Não há Imagem-Arquétipo para o perfume do almíscar e outra para o próprio almíscar. Não, há determinada Luz arcangélica no mundo da Luz pura. Ela possui certas qualidades de Luz, que são as irradiações. Outras consistem no amor, bem-aventurança, influência soberana. Quando sua sombra recai sobre este mundo, eis que sua Imagem começa a existir. É o almíscar com seu perfume ou o açúcar com sua doçura ou, então, a forma humana com a complexidade de seus órgãos. Tudo isso segundo as homologias descritas acima. Nos discursos dos antigos sábios, falava-se em semelhanças. Eles não negavam que os predicados (maḥmûlât) são coisas de puro pensamento (dhihnîya) nem que os Universais (kullîyât) possuem existência somente mental. Quando eles declaram que "existe no mundo do Intelecto um Homem Universal (insân kullî)", o sentido é de uma Luz arcangélica que contém uma diversidade de irradiações proporcionais, cuja sombra, no mundo da expansão, é a forma do homem. E essa Luz é um Universal, não no sentido de que ela seria um predicado, mas no sentido de que ela está com os seres em número de igual relação de emanação: como se ela fosse o Todo, ou seja, a origem (aṣl). Portanto, esse Universal de modo algum é aquilo cujo conceito imaginamos que não exclua a participação de vários. Pois os antigos sábios ensinavam que [essa Luz] possui uma essência individualizada (mutakhaṣṣaṣa) e que ela é consciente de si. Então, como ela poderia ser um conceito geral? E quando eles denominavam uma Esfera nos Céus como "universal" e outras como "particulares", eles entendiam isso como sendo a Universal que é mencionada em lógica. Logo, faz tu a aplicação desse ensinamento. Quanto à argumentação à qual recorre determinado [filósofo] para provar a existência das Imagens-Arquétipos e que consiste em dizer que a humanidade enquanto tal não é múltipla, mas una, é uma argumentação incorreta. Pois a humanidade enquanto tal não postula nem a unidade nem a multiplicidade; ao contrário, um e outro lhes são aplicáveis. Porém, se a unidade fosse uma condição do conceito de humanidade, não se poderia dar “vários” como predicado a essa humanidade.

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Por outro lado, se a humanidade não postula a multiplicidade, não pressupor multiplicidade não é, como tal, pressupor unidade. O contrário da multiplicidade é a não multiplicidade (lâ-kathira), e não pressupor multiplicidade de modo algum é pressupor a não multiplicidade. O contrário de "pressupor a multiplicidade" é "não pressupor a multiplicidade". É então possível que ela seja verdadeira ao mesmo tempo em que seja verdadeiro não pressupor a unidade". Além disso, a humanidade única atribuída a todos se encontra no pensamento. Não é necessária outra forma para lhe atribuir. Quanto à proposição corrente: "Que os indivíduos são corruptíveis e que a espécie perdura", não poderia ter como consequência a Imagem-Arquétipo ser uma realidade universal subsistente por si mesma. Melhor dizendo, cabe ao adversário sustentar então que a espécie que subsiste é uma forma [universal] existente no intelecto e nos princípios supremos. Tais argumentos são somente argumentos prováveis. Porém, a convicção de Platão e dos sábios visionários não estava baseada nas probabilidades, mas em alguma outra coisa. Platão afirma: "Eu vi, em estado de isolamento, os céus de Luz". E esses céus de Luz que Platão mencionou são os mesmos céus superiores que contemplaram certos homens em sua ressurreição (qiyâma), "O Dia em que a terra não será mais a terra e os céus não serão mais os céus e em que eles aparecerão perante Deus, o Único, o Vitorioso" (14: 49 [48]). Como prova do que eles ensinavam, que o Princípio do todo é Luz e que esse é também o mundo do Intelecto2, há aquilo que explicitamente declararam Platão e seus discípulos, ou seja, que a Luz pura é o mundo do Intelecto. Platão relatou sobre si mesmo que lhe ocorreu, às vezes, experimentar um estado no qual ele estava desnudado de seu corpo e separado da matéria. Então, nele mesmo, ele contemplou a Luz e a Beleza. Pois ele se elevava em direção à Causa divina que abrange o Todo. Parecia então que ele estava como que desnudado nela, suspenso nela. E ele contemplava a sublime Luz na altura do local divino. Isso é somente um resumo de suas palavras até a passagem em que ele afirma: "Mas eis que a reflexão discursiva acabou por interpor um véu entre mim e essa Luz". O legislador dos árabes e dos persas afirmou: "Deus possui 77 véus de Luz. S e eles fossem levantados perante Sua Face, as glórias de Sua Face abarcariam tudo o que percebesse seu olhar". E Ele revelou ao Profeta: "Deus é a Luz do Céu e a da Terra" (24: 35), e Ele disse: "O Trono é feito da Luz".

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Intelecto entendido neste contexto como o Nous, e não a capacidade de raciocínio do ser humano. (NR)

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E eis, reunida entre outras, uma invocação profética: "Ó Luz da Luz, sem tua criação, tu permaneces velada, pois nenhuma Luz pode apreender tua Luz. Ó Luz da Luz, os Celestes são iluminados por tua Luz, e é por tua Luz que se iluminam os Terrestres. Ó Luz de toda a Luz! Perante tua Luz, cada Luz perde seu brilho". E entre as invocações que nos transmitiu a tradição: "Eu te invoco pela Luz de Tua Face, que preenche as colunas de teu Trono". Eu não cito aqui essas coisas para que elas sejam uma prova [racional]. Não, eu gostaria de provocar com elas um redespertar. Os testemunhos que nos chegaram dos Livros e aqueles que guardamos das proposições dos Antigos Sábios são inumeráveis. Tese: Como o simples pode proceder do composto. É possível que emane da Luz arcangélica, se a considerarmos do ponto de vista de suas irradiações, algo que não lhe seja semelhante. Ou, melhor dizendo, emane o que surge de determinadas Luzes superiores, em razão de sua própria essência, se considerarmos as Luzes múltiplas cuja irradiação termina nela. Consequentemente, essas próprias Luzes tornam-se como uma parte da causa, e é do conjunto que surge o causado, diferente dela. O causado recebe em seguida, por sua vez, as irradiações diferentes daquelas recebidas por sua causa e um acréscimo de irradiações com relação à sua causa. É assim que se produzem as múltiplas diferenciações nas Luzes Arcangélicas. Podemos admitir que de um conjunto emane algo diferente do que emanaria de seus elementos, [considerados em estado isolado]. E é possível que um ser simples emane de várias coisas diferentes. Tese: Sobre as categorias dos "Senhores dos Ícones". Entre as Luzes Arcangélicas situadas num plano inferior (al-qawâhir al-nâzila), existem as que são muito próximas das Almas. Do mesmo modo, entre as Almas, existem as que têm necessidade do intermédio do pneuma psíquico (al-rûḥ al-nafsânî), existem outras que delas não têm necessidade, como, por exemplo, a alma dos planetas. Da mesma forma, entre os minerais, existem aqueles que estão próximos do modo de ser da planta, como, por exemplo, o coral. Do mesmo modo, entre os vegetais, existem aqueles que se aproximam do animal, como, por exemplo, a palmeira. E, da mesma forma, entre os animais, existem aqueles que são próximos do homem quanto à perfeição da faculdade interna e outras, como, por exemplo, o macaco e alguns outros. Assim, o grau inferior de cada categoria superior está próximo à categoria inferior e, viceversa, o grau superior em qualquer categoria inferior, entre o conjunto dos existentes, é limítrofe da categoria superior. Igualmente, entre as Luzes que governam os seres humanos, algumas estão muito 45


próximas de ser uma Inteligência arcangélica e, no sentido do descenso, existem aqueles que estão muito próximos de ser como certos animais ferozes. Assim, entre as Luzes Arcangélicas descendentes, existem aquelas que estão muito próximas de uma Luz regente e não podem mais dar existência, abaixo delas, a uma nova Luz imaterial que governe [o corpo], por causa de uma deficiência em sua própria substância. Ainda que, a cada grau inferior da hierarquia das Luzes Arcangélicas, a claridade aumente em dobro, contudo, a debilidade na substância não é compensada pela Luz emprestada, sobretudo porque essa Luz pertence às Luzes superiores. É por isso que as Luzes Arcangélicas das quais emanam os Elementos exerce diretamente sua providência ('inâyâ) sobre eles. Ou seja, não há entre elas e seu ícone (ṣanam) outro intermediário, a não ser a Luz regente. Isso ocorre por causa de sua deficiência e porque elas não possuem mais força para emitir uma nova Luz imaterial e também por causa da inaptidão de seu ícone. Isso vale ainda, além dos Elementos, para os compostos dos minerais. XII ONDE MOSTRAMOS QUE OS EFEITOS PRODUZIDOS PELAS INTELIGÊNCIAS SÃO ILIMITADOS, ENQUANTO QUE OS PRODUZIDOS PELAS ALMAS SÃO LIMITADOS Não vás supor que as Luzes imateriais — Luzes Arcangélicas, bem como Luzes regentes — são providas de uma extensão dimensional (miqdâr), pois tudo o que é provido de uma extensão possui a natureza de um corpo (barzakhî) e não pode conhecer a si mesmo, pelas razões ditas anteriormente. Não, elas são as Luzes simples, que não admitem composição de tipo algum. Todas participam da realidade-essencial da Luz, como tu aprendeste. Sua diferenciação recíproca consiste em perfeição e em deficiência. A deficiência em realidade de luz termina no que [não possui a força de] subsistir por si mesmo, mas é uma qualidade em algo diferente. A teoria vergonhosa daqueles que afirmam que a Luz é simplesmente uma modalidade e um acaso não tem valor algum. Como a Luz subsistiria por si mesma? Porém, basta que uma única Luz seja independente de um substrato para que todas o sejam. Essa teoria é então desprovida de todo fundamento, já que a autonomia (istighnâ') da Luz tem como causa sua perfeição e que sua perfeição partilhe do mesmo que constitui sua substância.

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O máximo de sua imperfeição tem como causa sua natureza acidental ('araḍîya) e a relação com o substrato. Contudo, mesmo se uma coisa for imperfeita, a imperfeição não se prende necessariamente a tudo o que lhe está associado de certo modo. Consequentemente, a diferenciação pode ter como causa a extensão do dimensional, o número, a intensidade e a perfeição. Como a dimensão do suporte para a luz da lâmpada é menor do que o suporte que recebe sua irradiação e os suportes de sua irradiação são mais numerosos, não é menos constante e real que a luz da lâmpada produz necessariamente a irradiação em qualquer hipótese que criemos. A diferença de luminescência ocorre somente com mais intensidade e com perfeição. É por isso que a intensidade da Luz das Luzes, a perfeição de sua luminescência, é infinita. Nada, portanto, pode dominá-la englobando-a. Se ela nos está velada, isso ocorre por causa da perfeição de sua Luz e da debilidade de nossas faculdades; de modo algum porque ela própria esteja oculta. Por outro lado, a intensidade da Luz das Luzes não está particularizada em um determinado limite além do qual não poderíamos imaginar que ainda haveria a Luz. Desse modo, ela teria um limite, uma particularização, o que demandaria um princípio de particularização que, consequentemente, a restringiria. Não, a Luz das Luzes é o que domina, por sua Luz, todas as coisas. Seu conhecimento é sua própria luminescência; sua potência é, igualmente, sua luminescência e seu domínio sobre as coisas. Sua realidade de sujeito agente (fâ'ilîya) é uma propriedade característica da Luz. Quanto às Luzes Arcangélicas que são os "Anjos da mais alta classe" (al-moqarrabûn), suas Luzes são limitadas, se entendermos por limitação que há, além da coisa considerada, algo mais perfeito do que ela mesma. Mas elas são de uma intensidade infinita, se entendermos que elas estão aptas a que emanem delas os efeitos ilimitados. Pois nós demonstraremos mais adiante a perpetuidade contínua das Esferas celestes e dos movimentos circulares e que esses movimentos são em número infinito. Por outro lado, os efeitos da Luz regente têm necessariamente um limite. De fato, se ela possuísse uma energia infinita, ela não seria mantida cativa nos entraves das Trevas, nos seres finitos, cuja potência de atração e força do desejo natural são igualmente limitados. O interesse pelos corpos não a desviaria do mundo luminoso. Assim, esses movimentos eternos que as Esferas celestes devem às suas Luzes regentes são possíveis somente por uma assistência dispensada pelas Luzes Arcangélicas, que possuem a energia infinita, perfeição própria à sua luminescência. Como assim é, a Luz das Luzes supera o que é infinito por algo infinito.

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Pode ocorrer que uma diferenciação se produza no infinito, como demonstramos anteriormente. Cada uma das Luzes que têm de exercer uma regência sobre os barzakhs é auxiliada por sua companheira, a Luz vitoriosa que é o Anjo da Espécie, sem que essa própria Luz tenha de receber um auxílio renovado da Luz das Luzes. Como nós te mostraremos mais adiante, a renovação (tajaddud) é inconcebível no mundo dos seres de pura Luz (âlam al-qawâhir). Sabe que a multiplicação dos atos de iluminação se produz tão necessariamente quanto a multiplicação de suas relações. De modo algum pretendo que a totalidade das relações [inteligíveis] se limite àquelas que eu mencionei. Não, lá há as maravilhas que as inteligências humanas são incapazes de compreender enquanto elas têm de reger no seio das Trevas. Todas as maravilhas que nós podemos imaginar aqui são lá mais maravilhosas e em estado mais sutil. E como prova de que tudo lá é mais maravilhoso, há o fato de que nós o conhecemos na medida em que nós o conhecemos. Se essa medida fosse lá essa mesma medida, sem nada além disso, nós teríamos abarcado, enquanto nós ainda estamos enterrados nas Trevas, a regência (tadbîr) da Luz das Luzes pelos nossos raciocínios analógicos e nossas descobertas. Porém, isso é uma suposição absurda. Longe disso! O fato de estarmos nas Trevas impede que tenhamos a contemplação e a visão (rû'ya) das maravilhas. O que nós mencionamos aqui é um simples exemplo. Sabe enfim isto: não podemos imaginar que, na presença de uma Luz que a domine, uma Luz mais fraca conserve a autonomia na ação que ela produz sem que essa Luz perfeita não domine a Luz imperfeita na mesma proporção desse efeito. Assim, a Luz das Luzes é o Agente predominante (alfâ'il al-ghâlib) com e por cada uma das Luzes mediadoras. É ela que, através de todas, permanece o sujeito que realiza sua ação e se eleva, como sua origem, acima de cada emanação de Luz. Ela é, portanto, o onicriador incondicionado (al-khallâq al-motlaq), criando com intermediário e sem intermediário. Desse modo, é somente por um tipo de concessão que atribuímos a operação a outro além dela.

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LIVRO III SOBRE O MODO DE ATIVIDADE DA LUZ DAS LUZES E DAS LUZES ARCANGÉLICAS. COMPLEMENTO DA EXPOSIÇÃO SOBRE OS MOVIMENTOS CELESTES

I ONDE MOSTRAMOS QUE AS LUZES AGEM EM TODA A ETERNIDADE E QUE O MUNDO EXISTE AB AETERNO Não é possível que algo venha a ser produto da Luz das Luzes e das Luzes Arcangélicas, após não tê-lo sido, senão em um sentido que indicaremos adiante. Se algo, qualquer que seja, é condicionado por outra coisa, tão logo essa outra coisa exista, a primeira deve necessariamente existir. Caso contrário, tratar-se-ia de algo cuja existência é impensável, o que dependeria de algo diferente do que se suporia ser sua causa e que não seria, portanto, o que lhe condiciona a existência, enquanto que, por hipótese, a existência da coisa dela dependia. Nós caímos assim no absurdo. Porém, como tudo o que é diferente da Luz das Luzes dela surge, nada existe que repouse em outra coisa senão ela, ao contrário das nossas próprias ações, das quais umas podem depender do momento (waqt); outras, do desaparecimento de um obstáculo ou da existência prévia de uma determinada condição. Todas essas coisas possuem, na verdade, um papel em nossas ações. Por outro lado, não existe um instante contemporâneo à Luz das Luzes que seria como que anterior a tudo o que é diferente dela mesma, pois o próprio instante é uma das coisas que são diferentes da Luz das Luzes. Consequentemente, como a Luz das Luzes e tudo o que os Sifâtîya supuseram ser um atributo são eternos (dâ'ima), aquilo que disso resulta é ele próprio eterno, pela eternidade do conjunto. De fato, este não é mantido em suspenso por algo que ainda estaria por vir, e no não ser puro é impossível supor uma inovação qualquer que seja (tajaddud), dado que, qualquer inovação que advenha, é necessário recomeçar o raciocínio sobre isso. Consequentemente, as sombras projetadas (zilâl) da Luz das Luzes e das Luzes Arcangélicas, bem como suas irradiações imateriais, são eternas.

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Tu sabes bem que a irradiação sensível provém do luminar; e não o luminar, da irradiação. Dado que o luminar é eterno, eterna também é a irradiação, o que de modo algum impede que essa irradiação dele derive. II ONDE MOSTRAMOS QUE O UNIVERSO EXISTE AB AETERNO E QUE OS MOVIMENTOS DAS ESFERAS SÃO AS REVOLUÇÕES COMPLETAS Todo modo de ser cuja estabilidade não podemos conceber é movimento. Tudo o que, num determinado tempo, não foi e, em seguida, existiu é evento (ḥadith). O que condiciona todo evento, quando ele ocorre, é ele próprio um evento, pois o evento não postula sua própria existência, já que é preciso uma razão preferencial (murajjah) para todos os possíveis. Por outro lado, se sua razão preferencial fosse coeterna do conjunto do que entra na determinação suficiente do evento, a coisa seria eterna, ela não seria evento. Como ela é evento, o que condiciona esse evento é ele próprio evento, e o mesmo raciocínio deve ser retomado com relação a essa coisa. Nós nos encontramos, inevitavelmente, em uma regressão ao infinito. Porém, uma série infinita de coisas coexistentes em ato é impensável. O que se impõe, por outro lado, é uma série infinita, cujas unidades (âhâd) não coexistam e que sejam contínuas. Seria necessário, de outro modo, recomeçar o raciocínio com o primeiro evento que se seguiria ao rompimento. É preciso que exista então o evento que se renova com uma continuidade ininterrupta. Contudo, o que implica em si mesmo renovação por causa de sua própria essência é o movimento. Mas os movimentos retilíneos possuem um limite, pois é inconcebível que sejam formados barzakhs infinitos. Nós sabemos, por outro lado, que, por sua natureza, o barzakh se move somente no caso em que ele perdeu algo que lhe convém. Quando ele o alcança, ele se imobiliza, de modo que, no caso em que é dado, com o barzakh, tudo o que lhe convém e tudo em direção ao qual tende sua existência, ele não se move de modo algum, pois não tem de buscar aquilo em direção ao qual sua existência não se inclina. Quanto aos movimentos que se operam por limitação (qasrîyât), isso ocorre por causa da natureza ou por causa de uma vontade. Tu saberás que nada que, sob o Céu da Lua, é suscetível de ter movimento voluntário pode comportar um movimento durável. Nem persistência (baqâ') eterna para os barzakhs, pois, inevitavelmente, essas composições devem se dissolver. É por isso que a totalidade dos movimentos do que está sob as esferas sofre uma interrupção. Porém, como é necessário que persista um 45


movimento eterno e ininterrupto, é preciso que esse seja o movimento das esferas. Esse movimento é um movimento cíclico. Portanto, a perpetuidade (dawân) dos suportes desse movimento é colocada em evidência. Às vezes atribuímos às esferas (em função do suposto começo, do término de seus movimentos e das relações destes) direita, esquerda e outras direções, do mesmo modo como determinamos um dos pontos [geométricos] das relações. Observação. Quando o sol desaparecer no ocidente, sabe tu que ele não volta a seu oriente senão pela realização de um movimento cíclico. Se ele voltasse [ao oriente] antes de um movimento de revolução completo, ele se levantaria então a seu ocidente. Porém, tu sabes que o dia não designa nada a não ser o nascer do sol. Haveria, portanto, uma duplicação do dia. No entanto, as coisas não se passam assim. Tu conheces, por outro lado, a existência da esfera-limite e tu sabes que o baixo é definido como centro e que a Terra está no centro. Se ela atravessasse o centro, por qualquer direção que supuséssemos, ela tenderia para o alto; porém o alto não convém à Terra. A modalidade da coisa será explicada mais adiante. Todos os eventos que ocorrem entre nós são os efeitos dos movimentos das esferas, que são, portanto, a causa do surgimento dos eventos. Mas as esferas não são, elas mesmas, submetidas à geração e à corrupção nem à composição dos elementos simples. Seguir-se-ão senão as soluções de continuidade, a impermanência dos movimentos, um surgimento que postularia a anterioridade de outros movimentos e de outros corpos abrangentes e permanentes. Sabe tu agora que as esferas, em seus movimentos, nas proporções de seus movimentos, nas oposições de seus astros e as outras relações, imitam as proporções existentes entre as realidades espirituais (al-'umûr al-qudsîya) e entre as irradiações das Luzes Arcangélicas. Como não é possível às esferas totalizar simultaneamente o conjunto das posições, e como uma parte de cada um dos astros permanece velada ao outro, não é possível que haja oposição (moqâbala) entre todos os astros nem desvelamento nem proporção (munâsiba) entre todos, assim como não o é no mundo das Luzes Arcangélicas, pois, nos barzakhs, existem as distâncias e os céus. Assim é, sucessivamente, que as esferas observam essas [puras proporções inteligíveis], de modo que, durante os ciclos e os períodos, elas são levadas a produzir a totalidade das proporções possíveis, por via sucessiva e recomeço. Aquilo que realmente são os movimentos das esferas não está de acordo, de modo algum, com a tese que professa o grupo dos Peripatéticos. Estes pretendem que cada uma das esferas, em seus movimentos múltiplos, emite somente uma única e mesma Inteligência. Na verdade, as esferas são múltiplas, seus movimentos são diferentes e seu término, segundo o que eles declaram, é o 45


movimento dos astros. Porém, os astros ora se movem de modo retilíneo, ora voltam, ora vão ao seu ápice, ora à sua posição mais baixa. Como imitariam eles então uma só e única realidade? Os Peripatéticos não reconhecem as iluminações como a causa da multiplicidade das proporções luminosas. A verdade é que os movimentos dos astros, considerando-se a multiplicidade de seus estados, existem somente respondendo às proporções das irradiações e de Luzes que preexistem nas Amadas (ma'shûqât). As relações dos astros uns com os outros somente seguem as relações de suas Amadas, umas com as outras, de modo que os astros progridem, durante seus períodos e seus ciclos, obedecendo às relações entre as Inteligências arcangélicas, pelo menos aquelas que lhes é possível imitar. Em seguida, eles recomeçam. Em relação a essa questão das imitações (tashabbûhat), os Peripatéticos fazem uma confissão típica de sua oposição aos antigos Sábios. Um indício que prova a multiplicidade das Amadas [arcangélicas] é o seguinte: se o objeto de amor das esferas, em seus movimentos, fosse idêntico para todos, seus movimentos seriam idênticos. No entanto, não é assim. Tu sabes, enfim, que, se os corpos celestes fossem causa uns dos outros, os causados pareceriam em seus movimentos às suas causas, sendo os amantes dessas causas. Contudo, não é assim.

III COMPLEMENTO DA EXPOSIÇÃO SOBRE AS LUZES ARCANGÉLICAS DA ORDEM LONGITUDINAL E DA ORDEM LATITUDINAL SOBRE A PRÉ-ETERNIDADE DO TEMPO E SOBRE A POSTERNIDADE As Luzes Arcangélicas desfrutam todas de uma mesma Luz, que é a Luz das Luzes. Em razão da deficiência que lhes é comum, dessas Luzes surge um barzakh único. Por outro lado, as Luzes Arcangélicas que tornam necessários os corpos elementares ocupam uma classe inferior na hierarquia com relação às Luzes Arcangélicas superiores, que são os Senhores dos barzakhs celestes. Porém, dessas [Luzes de classe inferior] surgem os barzakhs que são submissos aos barzakhs superiores e deles sofrem, naturalmente, a influência. Todos eles possuem uma matéria comum que recebe as diferentes formas. Todos os movimentos [das esferas] possuem em comum a periodicidade, pois as esferas buscam imitar um mesmo Amado, que é a Luz mais elevada. Mas esses movimentos se diferenciam em suas direções, pois eles possuem Amadas diferentes, que são as Luzes Arcangélicas. Com efeito, 45


as participações correspondem às participações, nos céus e na terra. As diferenciações correspondem às diferenciações. Enfim, às realidades diferenciadas correspondem igualmente as realidades diferenciadas. As dimensões da emanação são, assim, multidão e formam, todas, um sistema de correspondências. É preciso saber que a anterioridade das Luzes Arcangélicas, umas com relação às outras, é uma anterioridade inteligível, e não uma anterioridade cronológica (zamânî). O ser humano é incapaz de calcular sua quantidade ou de precisar os graus de sua hierarquia. A ordem longitudinal não absorve sozinha sua quantidade toda. Há ainda, entre as Luzes Arcangélicas, as que estão em um grau igual de existência (mutakâfi'a). Pois é possível que emane das Luzes Arcangélicas superiores a existência de Luzes Arcangélicas iguais entre elas, dada a multiplicidade ou a afinidade que lhes faz participar umas das outras. Se não fosse isso, não existiriam tampouco as espécies iguais entre elas. A procissão das Luzes Arcangélicas a partir das Luzes Arcangélicas superiores tem como causa a contemplação da Luz das Luzes por essas Luzes. Toda [Luz inteligível] superior é mais nobre do que aquela cuja procissão tem como causa a irradiação iluminadora. Mas esta, por sua vez, contém os graus e as ordens. De fato, entre as Luzes Arcangélicas, há igualmente as Fontes longitudinais, que possuem poucos mediadores das irradiações e das substâncias. São elas que chamamos "Mães" (ommâhât). Por outro lado, entre as Luzes Arcangélicas, existem as Fontes de uma ordem latitudinal, que resulta das iluminações da ordem longitudinal superior , iluminações mediadas pelos graus múltiplos. Sabe tu agora que o tempo é o número (miqdâr) do movimento, quando se opera no intelecto a síntese do número daquilo que precede o movimento com aquilo que o segue. O tempo é regulado pelo movimento diurno, pois é o mais aparente dos movimentos. Para que tu sejas deixado para trás em algo — aquilo que conduz ao desaparecimento do que havia sido estipulado anteriormente —, tu compreendes então que algo te colocou no passado. Isso é o tempo. Tu reconheces que o tempo é o número do movimento quando tu observas do ponto de vista das distâncias e da ausência de repouso ('adam al-thibât). O tempo não pode ser finito (a parte ante), no sentido de que uma ruptura resultaria para ele do fato de ter ele mesmo um começo, pois se assim não fosse, haveria um "antes" que jamais poderia entrar em uma síntese com seu "depois". [Esse "antes" não poderia significar] que lá o tempo "não existiria mais", pois a negação de uma coisa vem depois [dessa coisa]; isso não é uma realidade positiva que possa estar ligada a essa coisa. Assim, esse "antes" marcaria ainda uma anterioridade temporal. Antes da totalidade do tempo, seria necessário então que houvesse ainda algum tempo, de modo que o tempo não possui começo. 45


Por uma outra via: tu sabes que os eventos requerem causas ao infinito, cuja síntese jamais pode ser dada em ato. Portanto, eles exigem um movimento eterno. Porém, esse movimento é o do céu-limite, cuja eternidade tu já conheces por uma outra via. O tempo não pode mais possuir um fim, pois se seguiria que ele teria um "depois". Porém, esse "depois" não poderia constituir a negação do tempo, pois "não-mais-ser" é uma negação pura, e não algo positivo, como lembramos mais acima. Depois da totalidade do tempo, seria necessário, então, que houvesse ainda um tempo, o que é absurdo. É com relação ao "agora" puramente imaginário e instantâneo que se deve compreender a anterioridade e a posterioridade. O tempo é o que envolve o "agora". Assim, das partes do passado, aquela que é a mais próxima do "agora" é o que ocorreu "depois", e aquela que é a mais distante é o que ocorreu "antes". E para o porvir é o inverso, senão as partes do tempo, sendo homogêneas, viriam a se confundir. A emanação perdura pós-eternamente, pois o Agente jamais se torna outro e jamais deixa de ser. Assim, o mundo perdura eternamente por sua eternidade. Alguns pretendem que, se a emanação fosse eterna, ela equivaleria então a seu Princípio. Mas isso é uma consequência falsa. Tu bem sabes que o luminar é anterior à irradiação. Como existe a irradiação, desde já é anunciada a existência do luminar como anterior ao raio, do mesmo modo que o desaparecimento do luminar precede ao desaparecimento da irradiação, onde isso é possível. O que em si mesmo é necessitado não pode ser igual àquilo do que ele necessita, mas dele provém e existe somente por ele. Objetamos ainda que "o conjunto dos movimentos forma um todo finito, porque, para que cada um desses movimentos comece a ser, é necessário também que a existência do todo tenha tido um começo". Neste caso também, a argumentação é sem valor. Com efeito, como os movimentos formam uma sucessão, eles jamais podem se apresentar como uma totalidade acabada. É por isso que constatamos neles a ausência de fim. Eles jamais podem se apresentar como um todo, pois, do mesmo modo que sua existência começa, ela também cessa. Quanto à prova da necessidade de um fim, tu compreendes que ela vale para aquilo cujas unidades [componentes] podem formar um todo acabado, o qual apresenta determinada ordem sistemática (tartîb). Mas os movimentos não existem nesse caso. Fazemos então uma absurda suposição, por edificar sobre seu absurdo uma tese da qual nosso ensinamento já te permitiu reconhecer a nulidade. Quanto às causas que requerem um fim, elas são as puras Essências emanadoras eternas. Objetamos enfim isto: "Se os movimentos fossem desprovidos de fim, seguir-se-ia que a produção de cada um desses movimentos deveria repousar na existência presente (ḥoṣûl) de algo infinito, o que voltaria a dizer que sua existência presente seria impossível". Esse ainda é um 45


sofisma. De fato, colocando o caso do que deveria repousar sobre o infinito em ato, cuja impossibilidade é admitida, podemos dizer duas coisas: Ou consideramos que a sucessão dos graus, sendo infinita, [o que deveria repousar sobre ela] jamais chegaria à realidade depois [dessa sucessão]. Assim o que repousa nela jamais tornaria a existir. Ou então consideramos que o infinito já é passado e que o evento deve inevitavelmente ocorrer depois dele. É o que constitui o próprio cerne do debate. Quanto à afirmação que propomos — "O 'agora' é o fim do passado e, consequentemente, o passado é finito" —, se entendermos com isso que não haveria outro fim depois dele [que é o fim], a proposição é completamente frívola. Por outro lado, se entendermos por isso que o "agora" é um fim e que, depois dele, haverá outros ciclos, dos quais cada um será o fim do que o precede, o raciocínio é justo, pois "agora" é o fim deste passado e o começo do que ainda está por vir, quando supomos esse "agora" como um initium. Dos dois lados, cada tempo do tempo, ou seja, o passado e o futuro, é infinito. No que diz respeito ao conjunto, a maior parte dos contraditores julga baseando-se nos julgamentos que se referem a cada caso em particular. Isso equivale a dizer: "Cada um dos movimentos, tomados um a um, é precedido de sua não existência". E disso resultaria que o todo seria assim. Porém, tu compreendeste que isso nada prova. Pois tu possuis, certamente, o direito de dizer que cada um dos estados da cor negra pode ser atualizado por seu substrato em determinado momento do tempo, mas não te é possível sustentar que a totalidade é assim. Consequentemente, do julgamento com relação a cada caso isolado não pode resultar um julgamento que diga respeito à totalidade como tal. IV QUE OS CÉUS TENDEM, POR SEUS MOVIMENTOS, A ALGO SANTO E AGRADÁVEL Tendo estabelecido [a natureza d]os movimentos celestes e tendo provado que esses movimentos provêm das Luzes imateriais regentes, ao mesmo tempo, nós mostramos que elas são inferiores às Luzes Arcangélicas, cuja santidade transcende toda ligação com as Trevas. Como a Luz inferior é uma Luz que se aproxima das Trevas, o que é mais próximo das Trevas é também mais distante das perfeições luminosas. Sabemos igualmente que os barzakhs superiores não se movem em vista do que está abaixo deles, nem tampouco que seu movimento não pode tender a algo que seria alcançado de uma vez por 45


todas nem a algo que jamais seria acessível. Com efeito, os dois casos terminariam com a cessação dos movimentos, pela satisfação ou pela desesperança. Os movimentos celestes tendem então a um fim luminoso que as Luzes regentes obtêm das Luzes Arcangélicas. Esse fim é uma Luz incidental ao mesmo tempo em que é uma irradiação sacrossanta. E se, na Luz que exerce sua regência sobre os barzakhs superiores, não houvesse algo pelo qual perdurasse a renovação (tajaddud), não haveria tampouco, nos barzakhs, o movimento perpetuamente renovado. De fato, o que é estável por si mesmo não implica alteração alguma. Por outro lado, o que se renova nas Luzes regentes não é algo das Trevas, como provamos anteriormente. É por isso que ele deve ser de natureza luminosa, provindo das Luzes Arcangélicas, e se renovar. Isso não são as formas do conhecimento (suwar 'ilmîya), pois essas Luzes regentes já existem em ato por seus conhecimentos que abrangem a totalidade das coisas que, abaixo de si, são os causados por seus movimentos. Assim é, igualmente, para o conhecimento do que está acima delas, pois, como tu compreenderás mais tarde, os princípios (ḍawâbiṭ) que regem os existentes gerados no porvir são um conjunto unido e, necessariamente, se repetem. As relações entre os existentes que formam a hierarquia arcangélica são, igualmente, um conjunto finito, embora elas sejam uma multidão, pois as causas e os efeitos devem apresentar um conjunto finito. Porém, os movimentos dos céus são infinitos. Consequentemente, seu movimento deve-se somente a uma realidade infinita e em renovação, ou seja, essas irradiações sacrossantas e agradáveis que mencionamos. Os movimentos preparam as iluminações [inteligíveis], e as iluminações, por sua vez, conduzem a novos movimentos. Mas o movimento provocado como resultado de tal iluminação [determinada] deve ser [numericamente] diferente do movimento preparatório para essa iluminação, de modo que nós temos aqui um círculo vicioso. É por isso que o movimento não deixa de ser condição da iluminação, e a iluminação, por sua vez, conduz ao movimento que vem depois dela e assim por diante, perpetuamente. Em sua totalidade, movimento e iluminação são governados por um amor ('ishq) constante e um desejo (shawq) eterno. Os movimentos seguem-se segundo uma mesma série (nasaq) contínua nos céus, como as Luzes incidentais se sucedem segundo uma mesma série nas Luzes regentes. Cada céu e seu autor são semelhantes quanto a seus estados. É por isso que a figura (shakl) de cada céu é uma forma homeômera 3. Porém, nenhuma forma apresenta correspondência recíproca na posição das partes que o pensamento a supõe, senão a forma esférica. É por isso que cada barzakh é simples. 3

Que é formada de partes semelhantes.

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Como as Luzes regentes dos corpos celestes não estão submissas aos elos das faculdades concupiscente e irascível nem há nada que lhes possa desviar do mundo da Luz, elas recebem as múltiplas iluminações. Por causa do que as Luzes regentes recebem da Luz das Luzes e em razão de sua comunhão [na recepção dessas Luzes incidentais], seus movimentos desfrutam de uma comunhão análoga em sua natureza periódica (dawrîya). Inversamente, em razão da diferença das iluminações [que se difundem sobre elas], diferença que corresponde à de suas causas, os movimentos [que as Luzes regentes transmitem a seus corpos] diferem. Embora a Luz Regente surja de uma das Luzes Arcangélicas supremas e embora elas recebam uma multidão de iluminações, ela não é igual, quanto à perfeição da substância, a uma Luz arcangélica. Com efeito, a Luz arcangélica faz emanar a Luz imaterial regente, por intermédio dos Senhores dos Ícones, proporcionalmente à perfeição do corpo. Como inclui o governo do corpo, ela é investida de uma potência finita. Isso ocorre para que se possa consolidar seu elo com o corpo. Tese. [É a essência, e não a existência, que é instaurada.] A existência é um simples modo de compreensão (i'tibâr 'aqlî). Assim, aquilo que a coisa mantém da causa que a faz emanar é sua ipseidade (huwîya). O possível jamais se torna independente da causa que dá à sua existência a preponderância sobre a sua não existência, senão, da existência possível em si, ele se converteria em existência necessária por si mesmo. Evidentemente, entre os seres que são gerados e corruptíveis, às vezes, uma coisa desaparece enquanto perdura a causa da qual ela emana. Essa própria coisa repousa em outras causas, e estas são efêmeras. Às vezes, uma mesma coisa possui duas causas diferentes: uma é a causa de sua gênese (ḥudûth); a outra, a causa de sua duração (thibât). Um exemplo é o ícone. A causa de sua produção é seu autor, e a causa de sua duração será, por exemplo ainda, a secura (yabs) do elemento. Às vezes, ao contrário, a causa da duração e a causa da gênese são uma única e mesma causa; por exemplo, o vaso que dá à água sua própria forma. Porém, a Luz das Luzes é a causa da existência da totalidade dos existentes e causa de sua duração. E o são, igualmente, as Potências arcangélicas entre as Luzes. Quanto aos barzakhs celestes, como eles não são gerados nem corruptíveis, suas Luzes regentes jamais os deixam, mas permanecem eternamente ligadas para governá-los.

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LIVRO IV SOBRE AS DIVISÕES DOS BARZAKHS, SOBRE SUAS QUALIDADES, SUA COMPOSIÇÃO E ALGUMAS DE SUAS FACULDADES I SOBRE A DIVISÃO DOS BARZAKHS Cada corpo é monádico, e como tal é aquilo no qual não há a composição de dois barzakhs diferentes, ou diádico, e como tal é o que se compõe assim. Quanto a todo corpo monádico: ou ele não é sutil e é o que obstrui totalmente a luz; ou ele é sutil (latîf), ou seja, ele não opõe qualquer obstáculo à Luz; ou, enfim, ele possui um meio-termo e opõe à Luz somente uma resistência imperfeita, contendo graus. Em cada céu, o que causa obstáculo [à travessia da Luz] é o astro (mustanîr); mas, além disso, a própria massa do céu é sutil. Os céus exercem seu poder. Eles não podem nem se corromper, nem ser aniquilados, conforme nós te expusemos quanto à eternidade dos movimentos, em razão de seu substrato. O barzakh que é receptáculo (qâbis) é aquele que está abaixo deles. O barzakh monádico que é receptáculo não sai das três categorias [mencionadas anteriormente], pois é um receptáculo não sutil, como a terra; ou intermediário, como a água; ou sutil, como o espaço cósmico (faḍâ'). Entre nós e os barzakhs nada há que não seja sutil, nem mesmo que seja semitransparente. Senão as Luzes superiores nos seriam veladas. Nada há senão o espaço. As nuvens e as brumas que vemos são de uma semitransparência cujo grau é variável. A natureza da água é a semitransparência, a menos que algo que a perturbe se misture a ela. Quanto aos corpos compostos, cada um deles depende igualmente de uma dessas três categorias, segundo a predominância neles de uma ou da outra. Quando os compostos que são receptáculos são de uma sutileza mediana — por exemplo, o cristal —, eles devem essa semitransparência à predominância neles do elemento simples que apresenta essa semitransparência, ou seja, a água. [Os Peripatéticos] afirmam que os princípios (uṣûl) dos receptáculos são em número de quatro: o frio-seco, ou seja, a terra; o frio-úmido, ou seja, a água; o quente-úmido, ou seja, o ar; o quente-seco, ou seja, o fogo. A característica da qualidade úmida, segundo eles, é a aptidão para receber as formas, para abandoná-las e delas se separar facilmente. A característica da qualidade seca é, por outro lado, a de dificilmente sofrer [essas metamorfoses]. Mas a realidade contradiz essa [doutrina]. 45


Com efeito, ou os Peripatéticos entendem o fogo no sentido em que o entende o vulgo, pelo que a luz entra no conceito do fogo, ou eles o tomam num sentido técnico diferente. Se seu argumento para provar a existência do fogo no céu consiste em dizer que "o que está em nosso mundo tende para o alto", ele é bastante fraco. Com efeito, esse fogo se converte em ar, e seu barzakh não permanece com a intensidade (shadda) de seu estado sutil (talaṭṭuf), pronto para a epifania da Luz nele. Assim, o domínio do calor cessa igualmente para ele, e o fogo permanece ar. Porém, tornar sutil é uma propriedade do calor. Se ele continuasse a subsistir como fogo ou como o calor que estivesse nele, ele incendiaria então o que o recebesse em linha reta. Porém, esse não é o caso. Se, por outro lado, a argumentação [dos Peripatéticos] tende a mostrar que o céu, por seu movimento, aquece o ar que dele se aproxima, conclui-se com tudo isso não que isso seja do fogo, mas simplesmente do ar que é aquecido. E se eles querem argumentar invocando o fato de que os cometas e os meteoros são gerados pela combustão da fumaça no momento em que ela alcança a proximidade com o céu, isso é um erro. A combustão, de fato, não é uma propriedade exclusiva do fogo. Ambos o ferro vermelho, bem como o ar intensamente quente queimam. Se [os Peripatéticos] argumentam, enfim, com o que vemos na lâmpada por um orifício aberto em seu bico — isso é pura e simplesmente o ar. Todas as vezes, com efeito, em que a ignição é mais forte, mais potente ainda ela é para fazer passar a matéria para o estado aéreo, tornando-a sutil (bi'l-talṭîf). Se, por outro lado, ela é débil demais para tornar sutil a matéria, a fumaça será mais forte. Assim é o que está próximo do pavio ou de toda outra coisa semelhante que é tornada sutil, que passa para o estado aéreo por causa da força do fogo e com o qual certo calor continua a subsistir. [O estranho é que os Peripatéticos] reconhecem precisamente que o seco é o que não recebe nem abandona uma forma com facilidade. Porém, o que se passa no caso do pavio de modo algum corresponde a isso. Muito pelo contrário, ele se metamorfoseia sem dificuldade. O mesmo se pode dizer do que está próximo ao céu. Isso não se distingue do ar senão por um calor variável em intensidade ou em debilidade. É, pura e simplesmente, o ar quente. Quanto a dizer que "o fogo é seco porque ele seca as coisas", isso nada vale tampouco. A secagem (tajfîf) é devida, na verdade, à eliminação da umidade, e a eliminação da umidade é devida à sublimação (taṣ'îd) e à sutilização. Não é que o fogo seja, em si mesmo, algo seco. Nem é tampouco que o fogo faça desaparecer a umidade. Ou seja, segundo essa concepção, ele a torna mais úmida, pois ele a transforma em vapor e em ar. É preciso então que ela se torne mais úmida e mais intensamente líquida. Portanto, os princípios são em número de três: o não-sutil, o semissutil e o sutil.

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Sabe agora que a perfeição do calor não é uma condição do sutil, pois quanto mais a realidade-sutil (luft) está distante, mais o calor diminui nela. É por isso que podemos constatar pelos sentidos que existe água que é mais quente do que o ar. Logo, as formas são somente qualidades externas, como já mencionamos. Se decidirmos designar "fogo" a parte do ar cujo calor é mais intenso, estamos de acordo. Neste caso, o sutil dividese em duas categorias, correspondendo à intensidade ou à debilidade de uma modalidade única. Outra tese afirma que "se o fogo fosse quente e úmido, ele seria o ar. Neste caso, ele não buscaria obter um lugar mais elevado, mas permaneceria neste". A argumentação, contudo, é incorreta; pois caberá ao adversário retorquir: quanto mais ardente é o calor do ar, mais intenso também é seu movimento ascensional (irtiqâ). A razão não é, então, que o ar mude de realidade, mas que ele adquire outra sutileza (laṭafâ). Portanto, a causa para o movimento ascensional tornar-se mais sutil não implica que ele se torne fogo. Quem, decerto, viu o fogo se elevar realmente? Responderemos que, na concavidade da esfera, não há fogo, mas simplesmente o ar que é aquecido pelo movimento da esfera. O admirável é que [os Peripatéticos] pretendem que, nos compostos [materiais], haja um elemento ígneo. Porém, tu sabes que o fogo que eles imaginam existir próximo à esfera [da Lua] não poderia descer em direção a nós forçadamente se a esfera não o repelisse — e essa não é a hipótese. Se ele descesse por causa do frio [da noite], isso não seria fogo, ainda que o fogo que nós conhecemos em nossa casa seja um fogo que torna sutil e que calcina. Portanto, nada mais ocorre às naturezas mistas senão um calor, perfeito ou imperfeito. Quanto à água, sua liquidez, igualmente, deve-se ao calor. Quando ela passa para o estado sólido devido ao fogo nel, ou ainda que nela se solidifique o frio do próprio ar que dela se aproveita, ela se torna gelo, ainda que permaneça mais próxima do estado líquido do que a terra. Assim o calor lhe é estranho. [Ele não depende da essência da água,] mas provém da Luz, ou do movimento causado pela Luz [regente]. O frio completo não tem como causa somente o corpo elementar, mas, ao mesmo tempo, esse corpo e a não existência de um calor. De fato, se a frialdade fosse causada pela água, em virtude de sua essência, poderíamos imaginar que uma influência negativa viria a fazê-la cessar nela. É por isso que a frialdade se deve, ao mesmo tempo, ao próprio corpo elementar e à ausência de toda influência negativa do calor ou de seus efeitos. O frio possui, contudo, uma existência positiva, pois o gelo esfria o que está abaixo dele e o que está próximo. Em resumo, o que é inerente à água em cada um desses estados, aquecimento ou congelamento, é sua natureza intermediária (iqtiṣâd), a menos que algo não se misture a ela. Ocorre que o ar se converte em água, como podemos constatar pelas gotículas que se formam nos copos virados sobre o gelo. Podemos supor que essas gotículas se formam infiltrando-se. 45


É claro que elas não podem ser senão o ar que, sob a violência do frio, torna-se água. Objetaremos que "são as partes aquosas disseminadas no ar que se encontram atraídas em direção ao copo"? Se fosse assim, elas seriam atraídas principalmente para bacias de grande dimensão. Porém, não é assim, de modo que, mesmo se o copo estiver virado sobre o gelo em bacias ou em tanques, ele não se torna nem mais nem menos coberto de orvalho do que se não estivesse em uma bacia e, igualmente, em todo lugar, no qual suponhamos haver vapor abundante ou escasso. Que a água se converte em ar é o que constatamos com a evaporação intensa, tanto que a semitransparência da água acaba dando lugar a um estado de total sutileza. A transmutação da água em terra observa-se, igualmente, na solidificação (istijḥâr) da água no momento em que ela sai da fonte (fî'l-ḥâl). Enfim, a transmutação do ar em fogo, cuja essência é luminosa (dhât nûrîya), pode-se observar ao se esfregar o acendedor ou acionando potentes foles que transformam o ar em um fogo, cuja essência é luminosa. Quando está estabelecida a transmutação de um determinado elemento em outro, o segundo transmuta-se necessariamente no primeiro. Senão, ao longo de ciclos sem fim, realidade alguma se manteria. Do mesmo modo, sendo admitida a transmutação, a relação do suporte com dois elementos é igual em possibilidade. Quanto ao fogo, existe a Luz por essência e sua nobreza depende precisamente de sua luminescência. Nesse fogo os Antigos Persas concordavam em ver a teurgia do arcanjo Ordibehest, ou seja, da Luz arcangélica que se difunde sobre ela. Essas realidades se transmutam umas nas outras; elas possuem uma matéria comum. E a matéria é o barzakh. Tomado em si mesmo, nós o chamamos "barzakh"; entendido com relação às qualidades, nós o chamamos "suporte" ou "substrato" e, com relação a esse conjunto que resulta dele próprio e das qualidades, a espécie composta, nós o designamos pelo termo de "matéria". Isso segundo a terminologia que nos é própria. A matéria dos céus, por outro lado, não é comum, nesse sentido de que as próprias qualidades dos barzakhs são estáveis e duradouras. O conjunto que elas formam com os corpos jamais sofre alteração. II QUE TODOS OS MOVIMENTOS POSSUEM POR ORIGEM AS LUZES SUBSTANCIAIS OU AS LUZES INCIDENTAIS É importante que saibas que a causa primeira (superior e luminosa) de todos os movimentos é: ou uma Luz regente imaterial, para os barzakh superiores, para o homem e para os outros [seres

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vivos], ou a irradiação que gera o calor, que é motriz para o que está em nosso mundo, como podemos constatar pelos vapores e as fumaças. Sabe, em seguida, que o movimento do mineral em direção ao baixo não se deve somente à sua natureza separada, pois ele se encontra em seu lugar natural, não se move. Não, seu movimento tem como causa a tensão. Quanto ao agente dessa tensão, ou ele conduz a uma Luz regente imaterial ou a algo causado por um calor que gera essa coisa. A queda das chuvas, igualmente, deve-se a essa razão. De fato, o que, em nosso mundo, resulta da sublimação ou da sutilização das coisas secas é a fumaça; e o que resulta da sublimação do úmido que passou para o estado sutil é o vapor. A razão de todos [esses processos] é o calor. Assim, todos os movimentos se reduzem à Luz ou, pelo menos, a um movimento causado por uma Luz imaterial ou por uma Luz incidental. Em seguida, quando o frio triunfa sobre o vapor, este recai sob a forma de água. A razão de sua queda não é outra, senão um movimento que tem por origem o calor, como podemos constatar nos banhos quentes, observando a ascensão das gotículas por causa do calor, depois sua condensação pelo frio. Quando o vapor se condensa na atmosfera e se torna nuvem, ele mantém prisioneira nela a fumaça que busca se libertar. Sob a violência do choque e da resistência produzidos por esse esforço libertador, faz-se um tremor que chamamos trovão. E esse tremor não tem outra causa senão o calor. Às vezes, a fumaça se separa e torna-se fogo. É disso que resultam o raio e os outros [meteoros]. A fumaça atingida pelo frio torna-se pesada e desce ou é finalmente repelida pelas partes elementares (qawâbis) que, nas proximidades do céu, voltam de um movimento circular em uníssono com esse céu. A fumaça então pesa com força sobre o ar e o dispersa. É desses modos que os ventos nascem. Em todos esses casos, a causa primeira é, igualmente, o calor. Há, em nosso mundo, calor que vem da irradiação dos luminares celestes ou aquele que produzem os fogos devidos à nossa fabricação. Este é fraco, mas a produção dos fogos pelo acendedor não emanam menos das Luzes regentes que são as nossas. Do mesmo modo, o movimento das águas em direção ao seu lugar natural, seu brotamento nas fontes, tudo isso se deve aos vapores. Do mesmo modo, os terremotos. E a causa dos vapores é como vimos anteriormente. Assim, então, todos os movimentos têm como causa a Luz. Quanto aos movimentos nos barzakhs celestes, embora eles preparem as iluminações [inteligíveis], não é somente das Luzes Arcangélicas que surge a iluminação. A iniciadora do movimento é a Luz regente. É por isso que aqui a causa é a Luz imaterial ao mesmo tempo que a Luz incidental. Porém, o movimento é mais próximo da natureza da vida e da luminescência. Ao contrário do repouso, o movimento exige uma causa que seja uma existência positiva e de natureza luminosa. De 45


fato, o repouso é puramente negativo. Basta-lhe que a causa do movimento não exista. Sendo negação pura, o repouso é semelhante às trevas, cuja realidade é a da morte. Se neste mundo não houvesse nenhuma Luz subsistente por si mesma, nem pelo menos Luz incidental, não haveria, absolutamente, movimento algum. Assim, então, ocorre que as Luzes são causa dos movimentos e do calor, e todo movimento, assim como todo calor, é uma epifania da Luz. Não que, uma vez mais, o movimento e o calor sejam a causa da Luz, mas eles preparam o receptáculo para que seja produzida neles uma Luz que emana da Luz arcangélica, que, por sua substância, difunde-se sobre os receptáculos que lhes são preparados, o que corresponde ao grau de sua preparação. É a Luz que concede existência ao movimento e ao calor. É ela que, sendo ela própria origem (sinkh), faz advir um e outro. Pois a Luz difunde-se sobre si mesma. Ela própria efetua sua essência. Nenhum instaurador a coloca no ser. A causa das irradiações astrais são os próprios astros. De fato, cabe à Luz perfeita ser em si mesma a causa da Luz imperfeita. É uma necessidade própria ao triângulo possuir senão três ângulos. Como, por outro lado, a triangularidade é uma qualidade, não há por que recuar diante do fato de que uma Luz incidental seja uma causa que concede necessariamente existência a uma outra Luz incidental. Calor e movimento, cada um dos dois chama seu companheiro naquilo que possua perfeita aptidão para recebê-los. Os efeitos da Luz se diferenciam e se multiplicam pela diversidade dos receptáculos [corpóreos] e conforme o grau de preparação alcançado por eles. O movimento e a Luz formam um par inseparável nos barzakhs celestes. Por isso, a conjunção (ṣoḥba) que formam juntos o movimento e a luz é mais perfeita do que a conjunção de um dos dois com o calor. Depois de ter examinado cuidadosamente todas as coisas, nada encontras além da Luz que age sobre o próximo e sobre o distante. Porém, a aspiração do amor e o poder que domina vêm da Luz. E o movimento e o calor são também causados por ela. É por isso que o calor, essencialmente, faz parte dos desejos, das paixões e das iras, e tudo isso termina, para nós, pelo movimento. Do mesmo modo, todos os desejos ardentes geram os movimentos. É da dignidade do fogo ser o mais elevado em movimento, o mais perfeito em calor, o mais próximo da natureza da vida. É a ele que pedimos socorro em meio às Trevas. Ele é mais perfeito em domínio. Ele é, por sua luminescência, o que mais parece com os Princípios. Ele é, enfim, o irmão da Luz-Espahabad humana. É por esses dois que se realizam os dois califados: o califado menor e o califado maior. Por ser o fogo assim é que, nos tempos passados, os persas prescreviam que se voltasse em sua direção. Pois é preciso honrar as Luzes, todas as Luzes, obedecendo a uma prescrição (shar') da Luz das Luzes. 45


III QUE A MUDANÇA DE ESTADO É ALTERAÇÃO NA MODALIDADE, MAS NÃO NAS FORMAS SUBSTANCIAIS Se o calor é gerado pelo movimento, não é, como pensam alguns, que o calor já exista em estado latente e que o movimento não faz senão revelá-lo, o que eles explicam tomando o exemplo da água que ferve. É tanto o exterior como o interior da água que são aquecidos; antes um e outro estavam frios. Se o calor viesse a se produzir fora do interior, precisaria então que esse interior esfriasse. Por outro lado, pensamos que não é água que é esfriada pelo fogo. Não, seriam as partes ígneas já contidas nela que seriam difundidas e, ao mesmo tempo, o calor. Porém, isso é falso, porque, se [o aquecimento da água] se devesse a essa difusão, a água contida em um vaso de argila deveria aquecer-se mais rápido do que a água contida em uma panela de ferro ou de cobre, conforme a relação da consistência desses recipientes e a proporção de sua existência à difusão. Porém, não é assim. Como, além disso, as partes ígneas estariam contidas no vaso cheio até a borda? Não sobraria lugar nele onde algo pudesse se difundir. Quando os três receptáculos se misturam, isso gera os [três] reinos. Quanto à mistura, ela é a modalidade (kayfîya) intermediária, que resulta das modalidades contrárias que pertencem aos corpos reunidos, agindo recíproca e homogeneamente no conjunto das partes. Tendo sido instruído de que as formas [específicas] que imaginam [os Peripatéticos] não possuem realidade alguma, [tu compreenderás] que, para a constituição dos mistos, não há outra mediação senão as modalidades. O que faz a diferença entre a mistura e a corrupção é que a corrupção é uma modificação total, enquanto a mistura é o intermediário entre as modalidades que chegam a encontrar. Dessas composições resultam os três reinos: os animais, os vegetais e os minerais. Entre os minerais, tudo o que possui um corpo luminoso (barzakh nûrî) e permanece com essa luminescência é semelhante aos corpos celestes e às suas Luzes, como o ouro e o jacinto. São objetos de amor para as almas; elas se regozijam com eles. Eles são preciosos pela perfeição de sua estabilidade e porque seu brilho fulgurante é da mesma natureza que o amor. O que domina nessas realidades é a própria substância da terra, pois elas têm necessidade de que as formas (ashkâl) e os poderes sejam conservados. É por isso que Esfandârmoz, a Luz arcangélica cuja Terra é a teurgia, estende sobre elas sua providência múltipla. Como o ícone [desse arcanjo] é passivo, dada sua classe na descida dos graus, seu papel é o da "dona de casa" 45


(kadbânû'îya), é a própria situação de Esfandârmoz com relação aos Senhores dos Ícones. Quando consideramos a natureza de qualquer coisa que seja, fazendo abstração de suas modalidades, trata-se da Luz cuja coisa é o ícone, como vimos anteriormente. A mistura mais perfeita é aquela que é própria ao homem. Ele reclama então, por parte do Doador, (al-wâhib) o dom de uma perfeição. Quanto às Luzes Arcangélicas, tu já sabes já que é impossível que elas sofram alteração. De fato, sua alteração suporia uma alteração de seu autor, ou seja, da Luz das Luzes. Porém, isso é impossível. Portanto, nenhuma alteração pode alcançar nem a Luz das Luzes nem as Luzes Arcangélicas. Com certeza, é de algumas dentre elas que surgem as coisas cuja procissão depende de um estado de preparação que surge com o retorno (tajaddud) dos movimentos eternos. É possível que o agente seja realidade acabada e que a ação, contudo, dependa da preparação do receptáculo, pois é na medida de seu "temperamento" (i'tidâl) que o receptáculo recebe essas qualidades (hayât) e essas formas (das quais nós já falamos a propósito das relações inteligíveis que existem nas Luzes Arcangélicas e nas Luzes incidentais com relação às posições dos astros fixos), o que corresponde [a seu grau de preparação]. De uma dessas Luzes Arcangélicas, aquela que é o arcanjo teurgo da espécie, ou seja, Gabriel, nosso parente imediato dentre todos os arcanjos da hierarquia das potências arcangélicas, o Doador das almas, o Espírito-Santo, Doador do conhecimento e da assistência (ta'yîd), Dispensador da vida e da excelência — desse arcanjo emana, sobre a mistura bastante perfeita que constitui o homem, uma Luz imaterial que governa a cidadela humana. É a Luz regente, a Espahabad da realidade humana (nâsût), que designa a si mesma pela capacidade de ser um "eu". Essa Luz não preexiste ao corpo. [Primeiro argumento]. Cada indivíduo (shakṣ) possui uma essência que conhece a si mesma e que conhece seus estados, os quais permanecem ocultos aos outros. Portanto, as Luzes regentes humanas não são uma, senão o que conhece uma delas seria igualmente conhecido de todas. Porém, não é assim. Se essas Luzes preexistissem ao corpo, não poderíamos conceber sua unidade, pois ela não poderia vir a se fracionar em seguida. Com efeito, ela não possuiria nem a extensão quantitativa nem a natureza corpórea (barzakhîya) necessárias para que lhe fosse possível sofrer uma divisão qualquer. Quanto à sua multiplicidade, também é difícil concebê-la. De fato, antes [de serem transferidas para suas] cidadelas (ṣiyâṣin), essas Luzes separadas nada teriam para se distinguir umas das outras segundo o grau de intensidade ou de debilidade, pois cada grau de intensidade ou de debilidade é algo não numerável. [Elas não poderiam tampouco se distinguir] por um acidente estranho, pois elas não estariam então neste mundo dos movimentos particulares. Nem sua 45


multiplicidade, nem sua unidade sendo possíveis, antes que elas fossem transferidas para o governo das cidadelas, sua existência [pré-corpórea], então, é impossível. [Segundo argumento]. Se as almas preexistissem às cidadelas, nem véu nem perturbação alguns chegariam a distraí-las do mundo da Luz pura, pois não há contingência (ittifâq) nem modificação. Já sendo perfeitas, seria sem motivo que elas confiariam o governo da cidadelas corpóreas. Não haveria entre elas, por outro lado, precedência alguma na ordem da essência, pois esse corpo seria dado a tal alma e não a outra. Quanto às contingências — eu quero falar primeiramente da necessidade (wojûb), do rigor nos movimentos —, elas ocorrem no mundo das cidadelas corpóreas, que são conduzidas pelos movimentos ao estado de aptidão para receber uma Luz. No mundo da Luz pura, nenhuma contingência se produz que possa determinar uma atribuição como essa em partilha. Dizermos que "as almas podem ser tomadas por um estado que tem como consequência sua queda (suqûṭ) e sua degradação" é um raciocínio inútil, pois não há nenhum porvir (tajaddud) para o que não está no mundo dos movimentos e das modificações, como sabes. [Terceiro argumento] Na hipótese de que as Luzes regentes existam anteriormente aos corpos, nós diremos: se houver entre elas quem não governe de modo algum, elas não são regentes, e sua existência é sem propósito (mu'aṭṭal). Se, ao contrário, nenhuma estivesse privada dessa regência, um instante chegaria, necessariamente, em que ocorreria a conjunção da totalidade [das almas com os corpos]; não restaria mais, depois disso, a Luz regente. Porém, o instante (waqt) dessa conjunção (waq') seria produzido na preeternidade. Não haveria mais a Luz regente no mundo, o que é absurdo. [Quarto argumento] Como sabes que os eventos não possuem fim e que a ideia de uma transferência em direção à realidade humana é absurda, se as almas não começassem a existir [com seus corpos], elas seriam então infinitas. Elas postulariam, então, as razões infinitas nas [substâncias] separadas, o que é impossível. IV SOBRE OS CINCO SENTIDOS EXTERNOS Para o homem, como para outros seres vivos que possuem vida animal perfeita, cinco sentidos foram criados. São o toque, a gustação, o olfato, a audição e a visão. As realidades sensíveis ao sentido da visão são as mais nobres, pois são as Luzes que vêm dos astros ou de outros. Contudo, é do sentido do toque que os animais mais necessitam; contudo, o que serve mais não é o que há de 45


mais nobre. De outro ponto de vista, as realidades audíveis são mais sutis do que as percebidas pela visão. V QUE CADA ATRIBUTO DA ALMA POSSUI SEU SEMELHANTE NO CORPO EM VIRTUDE DA CORRESPONDÊNCIA ENTRE O MICROCOSMO E O MACROCOSMO A Luz, tu o sabes, difunde-se por si mesma. Ela implica, em sua substância, amor por sua origem (sinkh) e, ao mesmo tempo, poder dominador sobre o que está abaixo dela. É por isso que, por causa da Luz-Espahabad, em razão de seu poder dominador, ocorre na cidadela relativa à noite que ela governe uma faculdade irascível. Por outro lado, pelo intermédio do amor que está nela, ocorre uma faculdade concupiscente. A Luz-Espahabad contempla as formas corporais; ela as interpreta e produz as formas universais luminosas, que são conforme à sua própria substância, como quando, vendo Zayd e 'Amr, abstraímos, por causa de [sua] humanidade, uma forma universal que lhes é atribuída, assim como a outros. Surge na cidadela uma faculdade nutritiva que transforma todos os alimentos diferentes em uma substância semelhante àquela com a qual ela se nutre. À falta disso, o corpo do homem se dissolveria. Não podendo se renovar, sua existência não duraria. Do mesmo modo que, em seu princípio, caberia à Luz perfeita ser a geradora de uma nova Luz, igualmente, da Luz [Espahabad] surge na cidadela uma faculdade capaz de dar nascimento a uma nova cidadela, a qual, por sua vez, se associará a uma Luz. Trata-se da faculdade de procriação. É por ela que a perpetuação da espécie é assegurada, a espécie do indivíduo cuja perpetuidade não poderíamos imaginar. Ela intercepta certa quantidade de matéria e cria a origem de um novo indivíduo. Do mesmo modo que, em seu princípio, cabe à Luz crescer pelas Luzes que lhe advêm e alcançar sua perfeição pelas qualidades de luz e do mesmo modo também com que ela passa da potência ao ato, igualmente, pela Luz-Espahabad, sua cidadela possuiuma faculdade que lhe permite aumentar segundo as três dimensões (fî’l-aqṭâr) e em medida correspondente à sua natureza. É a faculdade de crescimento. Por outro lado, quatro forças estão a serviço da faculdade nutritiva: uma força atrativa (jâdhiba) que lhe fornece reforço; uma força assimilativa (mâsika), que o guarda para dele dispor no

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que deve ser disposto; uma força digestiva (hâḍima), que o transforma e o torna apto para ser utilizado; uma força repulsiva (dâfi'a), que rejeita o que é inassimilável. Essas potências são as emanações da Luz-Espahabad no interior de sua cidadela, e esta é o ícone da Luz-Espahabad. Essas potências são acionadas pela [Luz-Espahabad] por analogia [com as dimensões que estão] nela e com a participação dos estados corpóreos. O indício da diversidade dessas potências é que umas preexistem às outras e que algumas, inversamente, surgem depois das outras. Outros indícios são a diversidade dos efeitos que elas produzem e o fato de que a perturbação (ikhtilâl) de umas pode coexistir com a perfeição das outras. O ser humano totaliza as faculdades dos animais e das plantas.

VI SOBRE A CORRESPONDÊNCIA ENTRE A ALMA PENSANTE E O PNEUMA VITAL A Luz-Espahabad governa o barzakh somente por intermédio de certa correspondência (munâbasa) do que lhe é próprio com essa substância sutil que chamamos pneuma (rûḥ). Sua fonte é a cavidade esquerda do coração. Há nele certo equilíbrio (i'tidâl), um distanciamento dos contrastes, à semelhança dos barzakhs celestes. Essa moderação (i'tiṣâd) que está nele é algo no qual se manifesta a forma imaginal (mithâl). De fato, o que é moderado e límpido possui essa propriedade. Mais ainda, entre as realidades elementares pode surgir um local de aparição (mazhar) para as formas imaginais por seu intermédio. Semelhantemente, o que o pneuma contém de opacidade (ḥâjizîya) é um receptáculo para a Luz. O pneuma a conserva, do mesmo modo que ele conserva as figuras e as formas. Do mesmo modo ainda, esse pneuma contém uma sutileza e um calor que correspondem à Luz, assim como, enfim, o movimento que está nele corresponde a essa Luz incidental. A estabilidade não é considerada como própria de uma espécie que não seja a desse pneuma. De fato, ele é bastante rápido para se dissolver, sendo dada sua sutileza e a predominância do calor [nele]. É por isso que sua espécie dura somente por um auxílio [contínuo]. Com isso tudo, parece que o pneuma apresenta todas as analogias com a Luz. De fato, o espaço aéreo (faḍâ') não forma um receptáculo para as irradiações [luminosas]. Ele corresponde, contudo, à Luz por seu calor e pela rapidez com a qual recebe o movimento. É por isso que ele se 45


eleva para o mundo da luz dos barzakhs, cujo movimento dura eternamente. Ele se aproxima dela e a ama ardentemente. O que é opaco forma um receptáculo para a Luz irradiante e a conserva. Desse ponto de vista, ele corresponde, portanto, à Luz. Quanto ao que é semissutil, ele conserva as irradiações e se torna o local epifânico das formas imaginais iluminadoras (nayîr) e iluminadas (mustanîr). Ele se opõe, contudo, à correspondência à Luz pelo frio e pelo que lhe é semelhante. Esse pneuma, no qual existem essas múltiplas correspondências, está expandido no conjunto do corpo. É esse pneuma que é o suporte das faculdades luminosas e é por seu intermédio que a LuzEspahabad governa o corpo e lhe concede a Luz. O que ela recebe de Luz incidental das Luzes Arcangélicas reflete-se, por ela, nesse pneuma. O pneuma, pelo qual existe a sensibilidade e o movimento, é o que sobe em direção ao cérebro. Ele recebe o Rei de Luz (al-sulṭân al-nûrî). Esse pneuma volta em direção ao conjunto dos órgãos (a'ḍâ'). Pela correspondência, a alegria responde à Luz. Tudo o que é gerado como pneuma de Luz (rûḥ nûrânî) — e penso aqui no que pode libertar-se como pneuma luminoso do conjunto dos alimentos — alegra. E pela correspondência das almas à Luz, elas têm aversão às Trevas e se dilatam à visão das Luzes. Todos os animais buscam a luz na escuridão, pois eles amam apaixonadamente a luz. Embora a Luz-Espahabad não seja espacial (makânî), não possua dimensão, as Trevas que estão na sua cidadela lhe obedecem docilmente.

VII QUE OS SENTIDOS INTERNOS NÃO SÃO LIMITADOS AO NÚMERO DE CINCO Sabe que, quando o homem esquece algo, pode ser-lhe difícil voltar a se lembrar, a ponto mesmo de precisar empregar grandes esforços, sem consegui-lo. Depois, às vezes, acontece de ele se lembrar dessa mesma coisa, por si mesma. O que ele se lembra, portanto, não se encontra em nenhuma de suas faculdades corporais, senão isso não permaneceria oculto à Luz regente depois do esforço expendido em sua busca. Nem é tampouco, como alguns supõem, que [a coisa esquecida] esteja "guardada" em alguma das faculdades corporais, mas que um obstáculo a torne inacessível. Pois, enfim, o buscador é aqui a Luz regente [do corpo], que, não sendo corpórea (barzakhî), não pode se ver impedida por um obstáculo [à consciência] de algo que estaria guardado em uma das faculdades de sua cidadela. Porém, no estado de ignorância de uma coisa, o homem não possui

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consciência de nada que lhe seja conhecido, nem em si mesmo, nem em nenhuma das faculdades de seu corpo. É por isso que o ato de se lembrar (tadhakkur) não pode vir senão do Mundo do Memorial ('âlam al-dhikr), ou seja, das regiões do Rei das Luzes-Espahabad celestes, pois elas nada esquecem. Bem semelhantemente, é uma posição totalmente vã a de sustentar [com os Peripatéticos] que as formas apreendidas pela imaginação são conservadas na imaginação passiva. Se essas formas existissem nesta, elas estariam presentes na Luz regente, e esta as conheceria. Não! Quando o homem está ausente do estado que consiste em imaginar Zayd, não se encontra em si mesmo absolutamente nada que possa apreender Zayd. É somente quando o homem possui o sentimento de uma coisa que apresenta uma analogia com Zayd ou reflete sobre o que tem com ele certa correspondência que sua reflexão se transporta em direção a Zayd. O que ocorre então a esse homem é estar preparado para receber a forma de Zayd, como um dom que lhe chega do Mundo do Memorial. E o que experimenta esses favores do Mundo do Memorial é a Luz regente. Alguns entre eles [os Peripatéticos] afirmam que o ser humano possui uma faculdade estimativa (wahmîya), que julga no domínio das representações particulares (juz'îyât), e outra faculdade, a imaginativa (mutakhayyila), que tem como função realizar análise (tafṣîl) e composição (tarkîb). A essas duas faculdades eles atribuem como local a cavidade mediana do cérebro. Se filósofos como esses declaram admitir que a estimativa, em si mesma, não é outra senão a imaginativa, que julga as realidades particularizadas e também divide e compõe, que faz tu [perguntar-lhes-emos nós] de tua argumentação sobre a diversidade das faculdades? De um lado, [pretendes] que uma das faculdades possa desaparecer, e a outra continue a subsistir. Mas é impossível pretender que a imaginativa subsista perfeitamente sã sem que exista lá algo que julgue as realidades particulares e que, segundo tu, é a faculdade estimativa. A diferença dos locais das faculdades é reconhecida como a consequência necessária do fato de que uma das faculdades é afetada em razão da perturbação de seu local. Porém, reconhecemos que ambas possuem seu local na cavidade mediana do cérebro. Como nenhuma das duas pode ser perturbada, sua companheira permanece em perfeita saúde, e o mesmo vale para o local de uma e de outra. Quanto à multiplicidade das operações, não é possível concluir sobre a multiplicidade das faculdades por causa da multiplicidade das operações, pois é possível que uma mesma faculdade, sob dois aspectos diferentes, suporte duas operações. O sensorium, de seu próprio testemunho, embora seja um, não conhece o conjunto das coisas sensíveis cujo conhecimento, no entanto, provém evidentemente dos cinco sentidos? Isso quer dizer que isso se encontra reunido nele como a síntese

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das realidades sensíveis, de modo que disso ele tem conhecimento por uma intuição direta (moshâhada). Se não fosse assim, não seria possível julgar que tal coisa branca é precisamente aquela coisa doce ao paladar, tratando-se de duas [sensações simultaneamente] presentes. De fato, o sentido externo isola-se em uma das duas, mas o que julga tem necessidade da presença simultânea das duas formas para pronunciar sobre elas um julgamento. Tão logo é admissível que uma única e mesma faculdade tenha conhecimentos múltiplos, é necessário admitir, em relação a essa mesma faculdade, que ela produz as operações múltiplas, embora o julgamento estimativo não se oponha às operações da faculdade imaginativa. O surpreendente é que entre eles existem aqueles que dizem: "A imaginativa age, mas ela não conhece". Sua opinião, contudo, é a de que o conhecimento ocorre pela forma. Mas se não existe forma na imaginativa e se ela não conhece, perguntamos que tipo de coisa ela poderia compor e analisar. Quanto à forma que estaria em outra faculdade, como a imaginativa poderia realizar a síntese ou a análise? Como não há nem integridade para a imaginativa nem possibilidade de ela formar seus julgamentos sem as formas, não é mesmo possível dizer que a imaginação (khayâl) ou seu local possam ser perturbados enquanto a imaginativa estaria preservada, ou seja, persistiria nessas operações. A verdade é que essas três faculdades são uma única e mesma coisa, uma única e mesma faculdade que interpretamos segundo três significados diferentes. O que prova que essa faculdade difere da Luz regente é que, neste caso em que nos prendemos a uma firme certeza, nós descobrimos, contudo, em nós algo que nos impele a fugir. Nós devemos reconhecer que aquilo que luta para assegurar a firmeza é diferente daquele que busca se salvar. Do mesmo modo que o que reconhece existência de certas coisas é diferente daquele que a nega. Assim, quando nós descobrimos em nosso corpo algo que contradiz a nós mesmos deste modo, necessariamente, é algo diferente daquilo no qual consiste a realidade de nosso eu (anâ'îya). Portanto, trata-se de uma faculdade que deriva da Luz-Espahabad na cidadela [do corpo]. E porque essa faculdade é relativa às trevas, sendo impressa no barzakh, ela nega as Luzes imateriais e não reconhece senão as realidades dos sentidos. Ocorre mesmo que ela renegue a si mesma. Ela contribui com as premissas, mas quando ela chega à conclusão, ela faz meia volta negando, a ponto de renegar uma afirmação com a qual havia concordado de início. Quanto ao ato da reminiscência (tadhakkur), embora consista em [fazer voltar] do mundo das esferas celestes, podemos admitir que exista uma faculdade da qual depende certa aptidão para essa reminiscência.

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VIII SOBRE A REALIDADE DAS FORMAS REFLETIDAS PELOS ESPELHOS E PELA IMAGINAÇÃO

Já sabes que a impressão das formas no olho é impossível, do mesmo modo em que é impossível que as formas sejam impressas em um local do cérebro. A verdade sobre as formas refletidas nos espelhos e as formas imaginativas (suwar khayâlîya) é que elas não são impressas, mas são as "cidadelas em suspenso" (mu'allaqa) que não possuem substrato. Elas possuem os locais de epifania, mais não estão dentro desses locais. Assim, o espelho é o local epifânico das formas que ali são vistas, e elas estão "em suspenso", não em um espaço nem tampouco em um substrato. Do mesmo modo, a phantasis (takhayyul) é o local de epifania das formas da imaginação representativa (khayâl), e estas são as formas "em suspenso". Tão logo admitimos a existência de uma Imagem imaterial cuja natureza é plana, sem profundidade nem superfície (como uma imagem própria ao espelho), que subsiste por si mesma, por outro lado, aquilo do qual provém essa Imagem é um acidente. Autêntica é a existência de uma essência substancial, que possui uma Imagem acidental, e a Luz imperfeita é como uma Imagem da Luz perfeita. Compreende! Do mesmo modo em que todos os sentidos se reduzem a uma faculdade sensível única, que é o sensorium, a totalidade das [faculdades corporais] reduz-se, na Luz regente, a uma faculdade única, cuja essência é ser Luz e difundir-se por si mesma. Embora as visões (abṣâr) tenham como condição o face-a-face [do objeto visto] com o olhar (baṣar), o que está no ato da visão é o sujeito que vê (bâṣir), é a Luz-Espahabad. Esta, no entanto, não vê as coisas [do outro mundo] antes da separação [do corpo]. Pois as coisas se apresentam a ela, distraindo-a daquilo que sua condição própria exigiria precisamente que ela olhasse. E o que distrai é da mesma ordem daquilo que vela.

Certamente, os mestres do êxtase espiritual (aṣḥâb al-‘urûj)

experimentaram uma contemplação sem mistura, mais perfeita do que se pode oferecer à visão sensível, em estado de intenso desnudamento fora de seu corpo. Nesse estado, eles conhecem de modo seguro que as coisas que contemplam não estão impressas em nenhuma de suas faculdades corporais, a contemplação visionária persistindo com a Luz regente. Quem realmente se esforça em direção a Deus e consegue subjugar as Trevas contempla as Luzes do mundo superior em uma

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contemplação mais perfeita do que a contemplação dos espetáculos daqui de baixo. Assim, a Luz das Luzes e as Luzes Arcangélicas são as realidades visíveis para a Luz-Espahabad do mesmo modo que são visíveis para a visão umas das outras. Todas as Luzes imateriais são assim "videntes", mas sua visão não se reduz a seu conhecimento. É, ao contrário, seu conhecimento ('ilm) que se refere à sua visão (baṣar). É por isso que todas essas faculdades que estão no corpo são uma sombra do que está na Luz-Espahabad. E o templo [o corpo] é a sua teurgia, de modo que a imaginação é, ela também, um ícone da faculdade de julgar (ḥâkima) da Luz-Espahabad. Se a Luz regente não possuísse os julgamentos por si mesma, não poderia julgar que possui um corpo que lhe é próprio, uma phantasis (takhayyul) particular e uma faculdade imaginativa própria. Porém, essas coisas não estão ocultas à Luz-Espahabad, mas lhes são reveladas em certo grau. Contudo, a phantasis não percebe sua própria forma, pois ela julga as realidades sensíveis e o que se segue. Mas a Luz-Espahabad abrange [o corpo e seus poderes] e julga que possui as faculdades particulares. Cabe-lhe então julgar por si mesma. Ela é o sentido do conjunto dos sentidos, e o que se distingue no conjunto do corpo retorna à Luz-Espahabad para alcançar uma coisa única. A Luz-Espahabad ilumina as Imagens configuradas pela imaginação (mothol al-khayâl) e as outras [faculdades] próximas a ela. Ela ilumina a visão que não possui necessidade da forma. E faremos um resumo geral dizendo que essa iluminação da imaginação é semelhante à iluminação da visão. Senão, se fosse a única imagem da imaginação, se ela percebesse que ela é a imagem da realidade exterior, conheceria essa realidade exterior, que está oculta, sem imagem, e não teria necessidade de imagem. Porém, isso é impossível, em virtude de que o objeto exterior imaginado terá desaparecido por causa do ser imaginado. Quanto à visão, como sua percepção consiste em ser um sentido luminoso (ḥâssa nûrîya) com aquilo que não possui véu entre si e a coisa iluminada, a ausência de véu e a luminescência são mais perfeitas nas realidades imateriais, manifestas por essência. Eis porque elas são, ao mesmo tempo, videntes e visíveis para as Luzes.

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LIVRO V

SOBRE O RETORNO, AS PROFECIAS E OS SONHOS

I O QUE É A TRANSMIGRAÇÃO?

É a mistura corporal que postula a Luz-Espahabad, por sua receptividade que lhe reclama a existência. A Luz-Espahabad possui então certa afinidade com sua cidadela corporal, pois esta reclama sua existência. Sua ligação com o corpo, por outro lado, possui como causa a deficiência dessa Luz em si mesma, enquanto ela contempla [as entidades espirituais] que estão acima dela, em razão de sua própria luminescência. E a cidadela é um local epifânico para as atividades da LuzEspahabad, um alforje (ḥaqîba) para suas Luzes, um vaso para os efeitos que ela produz, um campo para suas faculdades. Como as faculdades relativas às trevas possuem amor por ela, elas se aglomeram nela por uma ligação que possui a natureza do amor e a atraem para seu mundo, desviando-a do mundo da Luz pura, a qual não contém interferência alguma das Trevas corporais. Assim seu ardente desejo (shawq) encontra-se apartado do mundo da Luz pura [desviado] para as Trevas. A cidadela humana é criada perfeita. É por ela que é produzido o conjunto das operações. Ela é a primeira morada da Luz-Espahabad, segundo o ensinamento dos teósofos orientais (ḥokamâ' al-mashriq), no mundo dos barzakhs. E se a substância noturna, por sua natureza, possui a nostalgia de uma Luz incidental que a manifesta e de uma Luz imaterial que a governa e lhe concede vida, é porque esse ser obscuro saiu da dimensão da deficiência na região das Luzes Arcangélicas. E do mesmo modo que o deficiente possui a nostalgia da capacidade de bastar a si mesmo (istighnâ'), o obscuro possui a nostalgia da Luz.

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O Buddha (Bûdhâsaf) declara aqui, e antes dele certos Orientais: o Portal dos Portais para a vida de todas as cidadelas [dos corpos] elementares é a cidadela humana, qualquer que seja o comportamento que predomine na Luz-Espahabad, qualquer que seja a modalidade das trevas que se implante nela e que a ela se confie. Isso torna inevitável que o elo da Luz-Espahabad, depois da decomposição de sua cidadela, seja transferido para outra cidadela que tenha relação com essa qualidade das trevas, dentre os animais que andam com a cabeça curvada para o chão. Pois, quando a Luz-Espahabad se separa da cidadela humana sendo das trevas, ela aspira às Trevas. Ela nada sabe de sua raiz e do mundo da Luz, e as modalidades corrompidas são implantadas nela. É por isso que ela se inclina para os corpos de cabeça inclinada dos outros animais e as Trevas a arrastam. Eles dizem: a compleição (mizâj) mais nobre é a da cidadela do corpo humano. Ela possui então prioridade para receber da Luz arcangélica a nova efusão de uma Luz-Espahabad. É por isso que uma Luz-Espahabad não transmigra de outra cidadela para a cidadela humana. Isso exige do Doador uma Luz que a governe, e isso não é uma Luz transferida que se vai unir à cidadela humana, pois disso resultariam, em um único e mesmo homem, duas subjetividades capazes de conhecer; e isso é absurdo. Eles dizem: se a cidadela humana exige da Luz arcangélica uma Luz-Espahabad, isso não implica, absolutamente, que a cidadela silenciosa exija igualmente da Luz arcangélica uma LuzEspahabad. Portanto, quando o corpo humano se dissolve, enquanto a Luz-Espahabad é tomada de amor pelas Trevas, ela não conhece seu refúgio, de modo que, na própria medida do seu desejo, é atraída para o abismo dos abismos (asfal sâfilîn). Os corpos voltados para o chão e para o mundo dos barzakhs são igualmente sedentos. É por isso que, inevitavelmente, [a Luz-Espahabad] é atraída para outra cidadela. De fato, a exigência de sabedoria que fez com que a Luz-Espahabad fosse associada aos elos do corpo material, pois ela tem necessidade de realizar sua perfeição, persiste depois da separação. Porém, a Luz não pode tornar-se completa por algo diferente de uma Luz. Por um lado, nenhuma Luz se eleva das cidadelas silenciosas até o homem. Por outro lado, [uma Luz] desce das cidadelas humanas até as cidadelas silenciosas por causa de suas qualidades. A cada criação, as cidadelas correspondem — "para cada Portal, há um grupo separado" (15:44). Acontece que nós dizemos: "O número dos [corpos] em geração não está de acordo com o número dos [corpos humanos] em dissolução." Esse é um argumento sem importância. De fato, as

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Luzes regentes que se obscurecem no curso da longa sequência de tempo são múltiplas, e é gradualmente que elas realizam sua descida. E os avatares [por exemplo] não se associam às cidadelas corpóreas das formigas a não ser depois de estarem separados das cidadelas de múltiplas espécies, que diferem quanto à medida e aos elos. Portanto, dessas cidadelas, nenhuma [Luz] se eleva em direção ao homem, porque disso resultam as dificuldades na concordância entre as cidadelas humanas, pouco numerosas, mas de vida longa, e a multidão das cidadelas efêmeras, mas que abundam em número. Os elos [corpóreos] são agitados pela agonia, pela violência da morte e pelas provas. E, para cada grau [humano], existem [as espécies animais] grandes, medianas e pequenas. Para cada agremiação, há uma comunidade de silenciosos cujo ethos e o tipo de vida lhes são semelhantes. Eles são transferidos, primeiramente, para as espécies animais maiores, depois passam por uma multidão de graus, em direção às medianas e, enfim, em direção às menores. Tudo isso no curso de um tempo bastante longo. Segundo os Ishrâqîyûn, quando [os Peripatéticos] declaram que "toda compleição exige da Luz arcangélica uma Luz que a governe", é uma proposição cuja validade não se impõe absolutamente, pois ela não se sustenta em outro caso a não ser o da cidadela humana. Eles dizem ainda: “Não há continuidade necessária alguma entre o instante em que se dissolve uma cidadela humana e aquele em que se forma uma cidadela silenciosa." Esse argumento, por sua vez, não deve ser levado em consideração, pois as coisas são reguladas pelas configurações astrais, que nos são ocultas. Poderíamos comparar com o modo no qual é preciso que a ruína de um homem seja, ao mesmo tempo, o enriquecimento de outro, de forma que, entre os dois, a fortuna não fique abandonada. Do mesmo modo, pela morte de uma das cidadelas pode haver a vida de outra. Este é o ensinamento dos Orientais. Sem dúvida, eles admitem a possibilidade de que, além da espécie humana, haja transferência de um indivíduo a outro da mesma espécie, pois disso não resultaria essa acumulação [de duas subjetividades], como para o homem, por causa da aptidão para receber a emanação [de uma alma]. Quanto aos Peripatéticos, eles declaram: "Todas as compleições exigem, pelas propriedades específicas de sua estrutura, as almas que as governem. Por isso é preciso aplicar em seu caso o que vós [Orientais] declaram a propósito do homem". Esse é o ensinamento dos Peripatéticos. Quanto a Platão e aos Sábios seus predecessores, eles ensinam a transmigração (naql), embora haja divergências com relação ao modo de compreender essa transmigração.

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Certos pensadores do Islã detiveram-se em versículos da Revelação, como: "Todas as vezes em que sua pele se secar, nós a substituiremos por outra" (4: 59), "Cada vez que eles quiserem sair, para ali serão conduzidos" (22:22; 32:20), "Não há animal sobre a terra nem pássaro voando com suas asas que não forme uma comunidade que não vos seja semelhante" (6:38). E múltiplos são os versículos sobre a zoomorfose (maskh) e os ḥadiths com relação ao fato de que os homens ressuscitarão em formas diferentes, segundo seu comportamento. Do mesmo modo, na Revelação, é mencionada uma história (ḥikâya) sobre os reprovados: "Senhor, tu nos fizeste morrer duas vezes e tu nos reanimaste duas vezes. Nós reconhecemos nossos pecados. Não há algum modo de sair daqui?" (40:11); ou ainda este versículo que diz respeito aos bem-aventurados: "Eles não provarão mais da morte depois da primeira morte" (44:56), etc. A maior parte dos Sábios voltou-se para esse ensinamento. Contudo, todos concordam ao admitir a libertação das Luzes regentes perfeitamente puras em direção ao mundo da Luz, sem transmigração. Mais adiante, nós diremos, em relação a tudo isso, de que consiste a experiência espiritual (dawq) da Sabedoria Oriental. Sabe que é inconcebível que a própria Luz imaterial regente seja eliminada depois da destruição (fanâ') de sua cidadela. De fato, a Luz imaterial não implica sua eliminação; senão ela não existiria. Por outro lado, aquele que lhe dá existência, ou seja, a Luz arcangélica, não pode eliminála, pois ela é inalterável. Como, além disso, uma coisa a destruiria espontaneamente (bi-dhâti-hi) o que é inerente à sua própria essência? Como a Luz poderia suprimir sua própria irradiação e seu próprio brilho? Além disso, entre as Luzes imateriais não poderia haver acumulação em um substrato ou em um espaço, pois elas transcendem um e outro. Elas não são imanentes às [substâncias] noturnas, para que sua existência seja condicionada por uma oposição qualquer ou por uma determinada aptidão do substrato. O Princípio das Luzes regentes é inalterável. Consequentemente, elas próprias não são como os epifenômenos (muta'allaqât) que resultam dos estados da única Luz regente ao mesmo tempo que de outras coisas, como, por exemplo, as formas vistas nas superfícies espelhadas (ṣaqâlîyât). Pois estas são condicionadas pela percepção visual de um sujeito vivo que vê. E a relação daquilo que, além da alma, é a causa ativa [dessas formas] com o que lhes pertence é como o substrato para as imagens retratadas, quer estas resultem do próprio substrato ou de alguma outra coisa. Quando então desaparece o estado do Princípio, essas coisas desaparecem também. O Princípio que torna necessária a Luz imaterial nunca é durável (dâ'im). Logo, ela própria nunca é durável.

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Se as Luzes regentes fossem suscetíveis de aniquilação, a causa seria as qualidades das trevas. Quanto mais, durante sua união com os elos corpóreos, a alma estiver em perigo de ser aniquilada, mais ela não poderá existir depois que a separação se tiver realizado. Quando a Luz imaterial se liberta das trevas, ela sobrexiste pela própria sobrexistência da Luz arcangélica que é sua causa. A morte do barzakh produz-se porque desaparece a compleição pela qual o corpo estava apto a receber as iniciativas (taṣar-rufât) da Luz regente.

II ONDE MOSTRAMOS A LIBERTAÇÃO DAS ALMAS PURAS QUE RETORNAM AO MUNDO DA LUZ

Quando as obsessões do barzakh não conseguem dominar a Luz regente, sua aspiração ao mundo sacrossanto da Luz vence sua aspiração às realidades obscuras (ghawâsiq). Quanto mais ela cresce em Luz e em brilho, mais cresce em amor ('ishq) e preferência (maḥabba) pela Luz arcangélica, mais também ela tem por que existir e mais se aproxima da Luz das Luzes. Se as Luzes regentes possuíssem capacidade de influência que fosse infinita, jamais a atração das obsessões dos barzakhs chegariam a lhe velar o horizonte da Luz. Quando as Luzes-Espahabad vencem as substâncias da noite, quando seu amor e seu ardente desejo pelo mundo da Luz se intensifica, quando elas resplandecem com o brilho das Luzes Arcangélicas e, enfim, o habitus de se associar ao mundo da Luz pura é estabelecido nelas, então, no momento em que se dissolve a cidadela de [seus corpos], elas não são conduzidas para outras cidadelas, tão perfeita é sua força e tão intensa a atração que lhes conduz para as fontes da Luz. A Luz, tornada forte pelo esplendor das auroras sublimes, plena de desejo por sua própria origem, é atraída para as fontes da vida. A Luz não é atraída para algo semelhante a essas cidadelas e não possui atração alguma por elas. Ela escapa para o mundo da Luz pura e torna-se sacrossanta, da mesma sacralidade da Luz das Luzes e das Luzes Arcangélicas sacrossantas. E como, com relação aos Princípios, não podemos imaginar uma proximidade local, mas uma proximidade que consiste

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nas qualificações (ṣifât), quanto mais os homens se separam das Trevas, mais também eles se aproximam dos Princípios. A aspiração conduz os seres dotados de conhecimento ativo para a Luz das Luzes. Daí, quanto mais um ser é perfeito em aspiração, mais sua atração e sua elevação para [o mundo da] Luz suprema são perfeitos. Quando tiveres compreendido que a bem-aventurança consiste em que o ser alcança o que lhe corresponde e em quanto esse ser percebe que alcançou isso e que, por outro lado, o sofrimento de um ser consiste em que ele tenha consciência de ter alcançado algo que está em discordância com ele mesmo e que ele percebe essa discordância, [quando, por outro lado, tu tiveres compreendido] que todos os atos de conhecimento vêm da Luz imaterial, pois nada há mais cognitivo do que isso, então nada haverá mais sublime nem mais agradável do que sua perfeição e do que estar de acordo com ela. Tu o compreenderás tanto melhor quanto souberes que todas as bem-aventuranças nas teurgias das Luzes imateriais vêm dessas Luzes e que essas teurgias são suas sombras. Aquilo que está em discordância com [essas Luzes imateriais] são as modalidades das trevas e as sombras noturnais que lhes afetam por causa de sua companhia com os barzakhs das trevas e porque ocorre a essas Luzes sentir desejo por essas [trevas]. As Luzes-Espahabad, enquanto dura com elas a ligação com a cidadela e as múltiplas preocupações corporais, não podem nem experimentar a doçura de suas próprias perfeições, nem sofrer as calamidades que lhes afetam. O mesmo vale para o homem no estado de forte embriaguez: que venha a se unir com o objeto de seu desejo ou, ao contrário, que venha a lhe atormentar uma calamidade qualquer, ainda que se debata em sua embriaguez, ele não perceberá o que o afeta. Mas aquele que é incapaz de experimentar alguma bem-aventurança nas iluminações das Luzes Arcangélicas e que, além disso, nega essa bem-aventurança verdadeira é semelhante ao impotente quando nega o prazer do coito. Há, para cada uma das faculdades de percepção dos sentidos, uma bem-aventurança e um sofrimento correspondentes em particular, à exclusão de cada uma das outras, em função da diferenciação de seus atos de percepção e de suas perfeições. O mesmo vale [para a bem-aventurança e o sofrimento correspondentes] à concupiscência (shahwa) e à raiva (ghadhab). Do mesmo modo, a perfeição da Luz-Espahabad consiste em que ela satisfaça seus dois poderes de dominação e de amor. A Luz exerce sua força dominadora sobre o que, por origem, lhe é inferior. Ela experimenta o amor pelo que, por origem, lhe é superior. É importante então que ela imponha sua força dominadora à cidadela das trevas e eleve seu amor em direção ao mundo da Luz. Quando está escrito que ela 45


deverá ser reprovada, então sua preferência e seu amor recaem sobre as realidades da noite, e são as Trevas que a dominam. O amor da Luz-Espahabad dirige-se, como convém, para o mundo da Luz quando ela conhece a si mesma e o mundo da Luz, a hierarquia do ser, quando ela conhece o Retorno e todas as coisas semelhantes, em toda a medida da possibilidade humana. Como o governo da cidadela corpórea e a providência com relação a ela se impõem, a mais excelente moral é a moderação nas coisas que suscitam a concupiscência e nas que suscitam o apetite de violência, bem como na dedicação do pensamento às preocupações do corpo. Não há libertação para aquele cuja preocupação maior (himma) não seja o outro mundo e cujo pensamento não esteja frequentemente presente no mundo da Luz. Quando a Luz-Espahabad brilha pelo conhecimento das realidades suprassensíveis (ḥaqa'îq) e pelo amor à fonte da Luz e da vida, quando ela é purificada da contaminação dos barzakhs, quando ela possui a visão direta do mundo da Luz pura, depois da morte do corpo, ela se liberta totalmente da cidadela. Então as iluminações que ela recebe infinitamente da Luz das Luzes se refletem nela, sem intermediário e com intermediário, como indicamos anteriormente aqui. Do mesmo modo, refletem-se nela aquelas que ela recebe infinitamente das Luzes Arcangélicas e aquelas que ela recebe das Luzes-Espahabad puras, infinitas nas pré-eternidades. De cada uma reflete sobre ela sua Luz, bem como a Luz que cada uma ilumina sobre ela pelos reflexos infinitamente. Ela desfruta assim de uma bem-aventurança que é em si mesma infinita. Cada Luz que se aproxima desfruta da bem-aventurança de todas as que a precederam, e aquelas que a precederam se regozijam por ela. Dela para cada uma e de cada uma para ela lançam-se infinitamente Luzes. Essas são as iluminações, os círculos espirituais de Luz, inclusas na brilhante beleza (rawnaq) das que se vão amplificando, na contemplação da Luz das Luzes e na iluminação que dela emana. Do mesmo modo que para aquele que percebe que a Luz imaterial, o ato de percepção e o objeto percebido não se comparam com os três homólogos que lhes correspondem no seres de Trevas, sua bem-aventurança não se compara com as deles e não poderia mesmo ser conquistada por eles neste mundo. Como compará-los, dado que toda bem-aventurança física (barzakhîya) se produz graças a algo que possui a natureza da Luz que emana sobre os barzakhs de modo que mesmo o prazer sexual é uma emanação (rashh) das bem-aventuranças verdadeiras? Aquele que busca este prazer não deseja o contato com o inerte. Ou melhor, ele não deseja senão uma tela (barzakh) e uma beleza na qual há uma mistura luminosa (shawb nûrî). Enfim, seu prazer torna-se completo pelo calor, o qual é um amante da Luz e uma de suas causas, e pelo movimento, que também é um amante da Luz e uma de suas causas. Seu duplo poder de amor e de 45


dominação coloca-se em movimento, de modo que o membro masculino (dhakar) quer se apoderar da parceira feminina. Cai então, do mundo da Luz, sobre o masculino, o amor acompanhado de força; e sobre o feminino, um amor acompanhado de doçura; a relação sendo análoga à relação entre a causa e o causado, como expusemos anteriormente. E cada um dos dois quer somente tornar-se um com seu companheiro, para que seja levantado o véu do corpo. E isso é, na Luz-Espahabad, a busca pelas bem-aventuranças do mundo da Luz, no qual não há véu. A união entre as Luzes imateriais é um estado de união espiritual, não material. Todo o tempo em que a Luz-Espahabad possui uma ligação com o barzakh e que a cidadela [de seu corpo] é o elo de sua aparição, ela se imagina estar dentro dessa cidadela, embora não esteja. Bem, do mesmo modo, quando as Luzes regentes se separam [do corpo], eis que, com as Luzes Arcangélicas superiores e com a Luz das Luzes, bem como por causa da amplitude de sua ligação de amor com elas, elas imaginam que são essas Luzes Arcangélicas. Quanto mais essas Luzes Arcangélicas se tornam as formas epifânicas para as Luzes regentes, mais esses corpos sustentam seu local de aparição. Neste mundo, mais aumenta o amor misturado com o poder, mais também aumenta a doçura e a bem-aventurança que experimentamos. O mesmo vale para o amor que se produz entre os animais. Isso vale para este mundo aqui. Então, o que dirás tu ao sujeito do mundo do amor real, perfeito, mundo do domínio perfeito e sem mistura, mundo que é inteiramente Luz, brilho e vida? Não suponhas que as Luzes imateriais se tornem, depois da separação [de seus corpos], uma única e mesma coisa. Pois duas coisas não podem tornar-se uma única, porque, se ambas subsistem, naturalmente, não há estado unitivo (ittihâd). Se ambas desaparecessem, não é possível ainda um estado como esse. E uma subsistir enquanto a outra desaparece está fora de questão. Além disso, nenhuma parte para outro local senão para os corpos materiais em que não haja ligação (ittisâl) e mistura. Além disso, as Luzes imateriais não poderiam ser aniquiladas. Elas se distinguem então umas das outras por uma diferenciação espiritual, por causa da consciência que cada uma possui de si mesma e por causa da consciência que elas possuem, bem como de sua individuação resultante do modo com que cada uma dispôs de sua cidadela. Ou seja, são as Luzes perfeitas que tornam seu local de aparição, do mesmo modo em que os espelhos são os locais de aparição para as imagens à semelhança das imagens. Eis que cai sobre as Luzes regentes a soberania (sultãn) das Luzes Arcangélicas. É por isso que elas experimentam uma bem-aventurança e um amor, um domínio e uma visão que não se comparam com bem-aventurança alguma. O poder dominador do Pleroma supremo é incorruptível, pois a natureza suscetível de cessar de ser não existe lá. Ou seja, esse

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domínio completa a bem-aventurança. As Luzes regentes que se tornam puras são, à semelhança das Luzes Arcangélicas, sacrossantas pela própria sacralidade de Deus. "Bem-aventurados sejam eles. A eles a mais bela das moradas." (3:28).

III SOBRE OS ESTADOS DAS ALMAS HUMANAS DEPOIS DA SEPARAÇÃO DO CORPO

Os bem-aventurados dentre os "medianamente avançados" e os ascetas dentre aqueles que adquiriram a pureza moral escapam para o mundo das Imagens "em suspenso" (al-mothol almo'allaqa) que possuem como local de aparição determinados barzakhs superiores. Suas almas têm de fazer existir as Imagens, e elas possuem poder para isso. Assim se tornam presentes certos alimentos deliciosos, as belas formas, os sons extraordinários, etc., do modo como desejam. E essas formas são mais perfeitas do que as que existem em nosso mundo, pois o local de aparição e os suportes destas últimas são imperfeitos, enquanto que [os locais de aparição] daquelas são perfeitos. E [os "medianamente avançados"] existem pela eternidade nos barzakhs [superiores], pois jamais é durável sua ligação com eles e determinadas Trevas, e os barzakhs superiores são incorruptíveis. Quanto aos reprovados, aqueles que estão "ajoelhados em torno da Geena " (19: 69), "aqueles que se encontram nas suas moradas, lá jazendo com a face contra a terra" (11:70, 97), que a transmigração seja verdadeira ou seja falsa, pois as provas em um sentido ou em outros são fracas, quando eles saem das cidadelas dos barzakhs, há para eles certas sombras entre as formas "em suspenso", na proporção do seu ethos. As formas "em suspenso" não são as Ideias de Platão, pois as Ideias de Platão possuem a natureza da Luz e são fixas, enquanto que, entre essas Imagens "em suspenso", existem as trevas e existe o que é luminoso; estas para os bem-aventurados, assim como nos regozijamos com um jovem e belo rosto, e aquelas para os reprovados, visões horríveis. E como essas cidadelas "em suspenso" não são imanentes aos espelhos ou a outra coisa e elas não possuem substrato, é possível que elas tenham um local de aparição neste mundo [sensível]. Pode ocorrer que elas transmigrem em seu

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local de epifania. Entre essas [formas], há uma variedade de djinns e demônios. Incontáveis testemunhos entre os habitantes de Derband e uma multidão igualmente inumerável entre os habitantes de uma cidade chamada Miyânj foram testemunhas dessas formas. A maior parte dos habitantes as via até reunidas durante uma assembleia considerável, e me é impossível rejeitar seu testemunho. Isso não aconteceu uma ou duas vezes, mas a cada instante que [essas formas] se manifestam, sem que as pessoas possam chegar a tocá-las com as mãos. Ocorre também que, dentre outras coisas, tornemos a experiência de certas cidadelas fortalecidas, mas impalpáveis. Não é o sensorium que é o local de sua manifestação; ao contrário, falta pouco para eles estejam encouraçados sob a totalidade do corpo, pois eles oferecem uma resistência ao corpo e lutam corpoa-corpo com as pessoas. De minha parte, eu próprio possuo experiências autênticas que me atestam que os mundos são quatro: em primeiro lugar, existem as Luzes Arcangélicas; depois há as Luzes regentes; em seguida, existe o duplo mundo dos barzakhs. Existem enfim as formas "em suspenso", das trevas ou da luz: nas primeiras, os reprovados encontram seu tormento. Dessas imagens "em suspenso" e dessas almas são produzidos os djinns e os demônios. Nelas se encontra a felicidade que corresponde à faculdade estimativa. Essas Imagens "em suspenso" são produzidas novamente, pois desaparecem, como ocorre com os espelhos e as representações da imaginação. As Luzes regentes dos céus as criam para que elas lhes sejam os locais de epifania perante os eleitos. Enquanto as Luzes regentes as criam, elas são luminescentes e são acompanhadas de magnanimidade espiritual. O modo como essas Imagens são vistas e o fato de que não têm relação com o sensorium mostram que o face a face não é condição da visão em geral. Ou ainda, é a percepção ótica que repousa nessa oposição, porque nela existe um tipo da eliminação do véu. Este mundo do qual falamos nós chamamos "o mundo das Formas imateriais de aparição". É por meio dele que se efetua a ressurreição dos corpos (ba'th al-ijsâd), que se realizam as aparições divinas e que se cumprirão os fins prometidos pela profecia. De certas almas medianas que possuem as Formas de aparição luminosas "em suspenso", ou seja, aquelas cujos corpos celestes são os locais de epifania, resultam as hierarquias dos anjos inumeráveis em correspondência com as ordens dos próprios céus, cada grau correspondendo respectivamente ao outro. Quanto àqueles entre os Sábios que experimentaram a divinização, que são os mais elevados em santidade, esses são mais elevados até do que o mundo desses anjos celestes.

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IV DO MAL E DA MISÉRIA

A miséria (shaqâwa) e o mal (sharr) derivam, no mundo das Trevas, dos movimentos, enquanto as Trevas e o movimento são duas consequências necessárias da dimensão de indigência que existe nas Luzes Arcangélicas e nas [Luzes] regentes. Quanto ao mal, ele acompanha necessariamente os intermediários (wasâ'iṭ). A Luz das Luzes não pode conter em si, absolutamente, qualidade alguma nem dimensão das trevas. Por isso dela não emana mal algum. A deficiência e as Trevas acompanham, necessariamente, os causados, assim como todos os concomitantes da essência, que é impossível negá-las. E não podemos imaginar a existência, a não ser como ela é de fato. O mal neste mundo é bastante inferior ao bem. Tese sobre o modo como os Reinos sem limites surgem das essências superiores. Como o poder das [Luzes] arcangélicas é infinito em ato, e a matéria, pelo fato de lhe ser receptáculo, possui o poder de lhes receber infinitamente e como, enfim, os movimentos [celestes] que predispõem [a matéria] são igualmente infinitos, a porta da realização das Bênçãos (barakât) é assim aberta, assim como a efusão das Luzes regentes infinitamente, século após século. As que são perfeitas dentre as Luzes regentes, depois da separação [de seu corpo], juntam-se às Luzes Arcangélicas. E assim o número das Inteligências santíssimas aumenta sem limite.

V SOBRE A CAUSA DOS AVISOS E DAS INFORMAÇÕES COM RELAÇÃO ÀS REALIDADES SUPRASSENSÍVEIS

As atividades dos sentidos externos às vezes diminuem. O homem então se liberta das preocupações cuja phantasis é a fonte e consegue ser informado de realidades suprassensíveis (mughayyaba). Ele dá testemunho de sonhos verdadeiros. Como a Luz imaterial não é velada nem corpórea, não poderíamos então admitir que houvesse véu entre ela e as Luzes regentes celestes, se 45


essas não forem as preocupações causadas pelos barzakhs. Para a Luz-Espahabad, o véu são as preocupações dos sentidos externos e dos sentidos internos. Logo, quando ela se liberta dos sentidos externos e desprende o sentido interno, a alma humana liberta-se em direção às Luzes que são as Espahabads dos barzakhs superiores. Assim ela consegue ser informada das "figuras" dos existentes, que são retratadas nos barzakhs superiores, pois essas Luzes conhecem as particularidades individuais dos seres, assim como conhecem os efeitos de seus próprios movimentos. Quando uma reminiscência (athar) dessas figuras permanece na lembrança (dhikr) como a alma as viu nas Tabuletas celestes de modo explícito, não há necessidade de interpretação (ta'wîl) nem de adivinhação (ta'bîr). Mas se a reminiscência não permanece na lembrança e a faculdade imaginativa, a partir do que alma conheceu, realiza transposições em direção a outras coisas semelhantes, opostas ou correspondentes, de um modo ou de outro, há necessidade de uma exegese (tafsîr) e de colocá-la em evidência (istinbâṭ). A partir disso, a faculdade imaginativa realiza uma transposição que chega a seu fim. Sabe que as figuras (nuqûsh) dos seres são, desde sempre e para sempre, registradas nos barzakhs celestes e passam necessariamente pela repetição. Se existissem nos barzakhs celestes figuras infinitas para os sucessivos eventos, existindo somente uma após a outra, elas fariam parte de séries simultâneas e sucessivas [ao mesmo tempo]. A demonstração apresentaria então uma contradição interna e cairíamos no absurdo. Se, por outro lado, neles existissem as figuras infinitas para os eventos futuros que formam uma sucessão, cada uma delas deveria surgir necessariamente em determinado momento. Chegaria então, necessariamente, um tempo no qual tudo ficaria completo. A série seria finita, porém a hipótese a suporia infinita. Isso é então absurdo. Se não ocorre o instante no qual o todo teria esgotado toda possibilidade de surgir, há nelas, portanto, algo que não ocorrerá jamais, algo que não faz parte dos seres que devem constituir o futuro. Porém essa seria a hipótese. Nós nos deparamos então com o absurdo. Essa prova não se aplica aos futuros contingentes, quaisquer que sejam. Eles não possuem, de fato, as formas particulares compreendidas e não formam um todo acabado. Não se pode imaginar que exista algo, entre os existentes passados e futuros, que não conheça [as Almas celestes]. Isso é desmentido, de fato, pelos sonhos, pelas adivinhações (kahânât) e pelas inspirações (akhbâr) proféticas, que avisam sobre o que advém e o que advirá, assim como,

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pela lembrança, sobre os estados passados. Pois a prova foi dada anteriormente de que a lembrança se realiza pelos barzakhs celestes e pelas Luzes que lhes são regentes. O sujeito que recebe os avisos pela profecia, adivinhação ou sonho autêntico não pode, nem em si mesmo nem por si mesmo, dar existência ao conhecimento que possui das coisas de modo coerente com o que ocorrerá. É claro que ele é incapaz e que sua espécie é incapaz. Tal capacidade não está tampouco sob o poder daquele que dorme, nem mesmo em si próprio, senão ele seria capaz de produzi-los mais ainda no estado de vigília. Se ele inventasse, por outro lado, a partir de si mesmo seu conhecimento do que está ainda por vir, seria necessário que ele conhecesse antes de conhecê-lo, para inventar um evento futuro de modo coerente. Porém, isso é impossível. O homem sabe também, em resumo, necessariamente, que os signos (a'lâm) surgem de algo diferente [dele]. Assim, existe nas realidades superiores uma compreensão que abrange o presente, o passado e o futuro. Se supomos que os Senhores dos barzakhs superiores recebem o conhecimento de outra realidade que está acima deles e das quais eles recebem assistência, o raciocínio remontará a essa realidade da qual provém a dispensação e a assistência. É preciso então que essas regras se repitam necessariamente. Falando da necessidade da repetição das regras, não entendemos que o que não existe mais (ma'dûm) retorne [pura e simplesmente]. Pois o que discrimina as qualidades do que é comum a uma mesma espécie é o substrato ou, se o substrato for idêntico, é o tempo. Assim, como o que discrimina duas coisas semelhantes em um substrato único é o tempo, e como é pelo tempo que são individualizados os seres que, possuindo um mesmo substrato, são de uma única e mesma espécie, o que não existe mais não se repete, pois é impossível que se repita seu tempo. E se supusermos que o acidente e "seu tempo" se repetem, será então porque o acidente e "seu tempo" existiam anteriormente. Ambos teriam, assim, um "antes" temporal (qabl zamânî). Mas então o próprio tempo teria um tempo, o que é incompreensível. Além disso, como esse acidente e "seu tempo", que se devem repetir, teriam ambos uma anterioridade temporal, esta não poderia voltar, tampouco a individualização desse acidente por essa mesma anterioridade. Assim, o retorno desse acidente não é possível, dado que o que se repetiria, supostamente um tempo, não é um tempo. Como sabes que há uma repetição necessária dos seres, então nada dos compostos elementares subsiste eternamente nos três reinos [naturais]. Senão, seus exemplares (amthâl) retornariam, ao longo de círculos infinitos, como algo eternamente subsistente. Consequentemente, a 45


multidão infinita dos corpos tornar-se-ia tal que ela existiria simultaneamente, o que é absurdo. Além disso, nem a matéria nem os corpos, que são finitos, bastariam [para provar] esses [exemplares compostos infinitos]. Podemos imaginar, por outro lado, a não finitude com relação às formas imateriais de aparição, pois não é possível compor, a partir delas, uma única e mesma distância infinita em extensão.

VI DAS REALIDADES SUPRASSENSÍVEIS QUE OS PERFEITOS ENCONTRAM

As realidades suprassensíveis que os profetas, os amigos de Deus e ainda outros encontram, às vezes, apresentam-se sob a forma de versos de escritura; às vezes, pela audição de determinada voz, que pode ser suave e doce e pode ser até aterradora. Às vezes, eles contemplam as formas daquilo que é; às vezes, eles veem formas humanas de extrema beleza que lhes dirigem as mais belas palavras e com eles conversam reservadamente sobre o mundo invisível; às vezes, essas formas se lhes apresentam como figuras que são resultado da arte do pintor mais aprimorado. Às vezes, elas se apresentam como em um prado; às vezes, têm formas e figuras "em suspenso". Tudo o que percebemos em sonho — montanhas, oceanos e continentes, vozes extraordinárias, indivíduos — perfaz muitas das figuras e formas subsistentes [por si mesmas]. Do mesmo modo, os perfumes, etc. Montanhas e oceanos que são vistos em sonho, quer se trate de sonho verídico ou de sonho enganoso, como o cérebro ou qualquer uma de suas cavidades os conteriam? Do mesmo modo que aquele que dorme, despertando de seus sonhos, deixa o mundo das formas imaginais autônomas sem ter de se colocar em movimento nem ter o sentimento de uma distância material com relação a ele, aquele que morre para este mundo encontra a visão do mundo da luz sem ter de fazer movimento, pois ele próprio está no mundo da Luz. A causa das formas e figuras manifestas no espelho é a irradiação. Os corpos nos quais não há "polimento" são aqueles com os quais não se produz imagem alguma pelas partes que contêm a obscuridade, e aquilo que não as contém é pouca coisa nesses corpos.

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As esferas celestes emitem som que de modo algum possuem como causa algo que exista em nosso mundo sublunar. Assim demonstramos anteriormente que o som é outra coisa, diferente da ondulação do ar. O máximo que podemos dizer sobre esse ponto é que aqui embaixo o som é condicionado pela ondulação do ar. Mas se uma coisa é condição de outra em determinado lugar, não se deduz que ela o seja ainda para seu análogo. Do mesmo modo que a coisa, em sua generalidade, pode ter causas múltiplas que permutem entre elas, também as condições podem mudar. Assim como as cores dos astros não são condicionadas pelo que condiciona as cores no nosso mundo terrestre, o mesmo ocorre com os sons emitidos pelas esferas celestes. Não é possível dizer que os terríveis sons ouvidos pelos místicos têm como causa uma ondulação do ar no cérebro, pois uma ondulação do ar com tal força, devido a algum tremor no cérebro, é inconcebível. Não, trata-se da forma imaginal do som, e essa [forma autônoma] é ela própria um som. Assim, é concebível que haja, nas esferas celestes, os sons e as melodias que de modo algum estão condicionados pelo ar ou por um tremor vibratório. E não podemos imaginar que haja melodia mais encantadora do que a deles, do mesmo modo que não podemos conceber que haja desejo ardente mais ardente do que seu desejo. Ah! Salve o grupo de todos aqueles que ficaram loucos e embriagados pelo seu desejo pelo mundo da Luz, por seu amor apaixonado pela majestade da Luz das Luzes e que se tornaram semelhantes em seus êxtases aos "Sete Inabaláveis". Pois existe em seu caso uma lição para aqueles que são capazes de compreender. As esferas celestes possuem, portanto, uma audição que não é condicionada pelo ouvido; uma vista que não possui o olho como condição; um odor que não tem o nariz como condição, graças à possibilidade preeminente. Os Irmãos do Isolamento (ikhwân al-tajrîd) possuem uma estação mística (maqâm) que lhes é própria. Eles possuem o poder de dar existência às formas [imaginais] subsistentes por si mesmas com os traços que eles desejam. Esse grau místico é chamado "Estação do Imperativo criador" (maqâm kun). Quem quer que tenha tido a visão dessa estação sente a certeza íntima de que existe um mundo diferente do mundo dos barzakhs. [É o mundo imaginal,] no qual existem as formas e as figuras "em suspenso" e os anjos regentes que escolhem por elas as teurgias [corpóreas] e as formas pelas quais eles lhes falam e se manifestam. Às vezes, emana dessas teurgias forças impetuosas e uma influência vitoriosa, pela mediação das formas [imaginais] e das vozes maravilhosas que a imaginação não pode reproduzir. O surpreendente é que o homem, ao se isolar, ouve essa voz — ele está atento a ela e sua imaginação igualmente a encontra, buscando ouvi-la. Essa voz vem da forma [imaginal] "em suspenso". Quem, sendo experiente, entra nos [locais do] repouso divino, quando se

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eleva, retorna o tanto quanto ele se elevou, de grau em grau, entre as formas resplandecentes. Quanto mais sua ascensão for perfeita, mais ele contemplará as formas cada vez mais puras e agradáveis. Pois ele emergirá ao mundo da Luz e, enfim, aparecerá diante da Luz das Luzes. Sabe que cada uma das coisas que existem no mundo elementar é tipificada (muṣawwar) no céu no modo em que ela existe aqui embaixo, com todas as suas qualidades. Cada homem é figurado com o conjunto de seus estados, de seus movimentos e de suas pausas, o que existiu e o que existirá: "Tudo o que eles fazem está contido nos Livros, e toda coisa, pequena ou grandiosa, lá está inscrita" (54: 52-53). Essa é uma das provas da existência da alma. E porque ela é incorpórea, às vezes, o barzakh a manifesta, às vezes a forma [imaginal] "em suspenso", e ela conhece a si mesma nos dois estados, às vezes, não sendo nem uma nem outra. Lembremos então aqui, pela lembrança (dhikr), aquilo pelo qual é conhecida a forma [imaginal] autêntica, aquilo pelo qual ela é examinada. Ela causa as inspirações divinas e que os segredos sejam investigados pela pessoa do Mantenedor do Livro (shakhṣ qa'îm bni'l-kitâb)

VII ESCRITO NA TABULETA DO MEMORIAL CELESTE

Vêm ao encontro dos errantes que alcançam o portal das elevadas salas da Luz em total retidão e firmeza de coração os anjos de Deus, atraindo-os para o Oriente das Luzes. Eles os saúdam com as saudações do mundo do Malakût. Eles derramam sobre eles uma Água que brota da fonte da Beleza, para torná-los puros. De fato, o Senhor Pacientíssimo (rabb al-ṭûl) gosta que sejam puras [as almas] que têm acesso a Ele. Contudo, os Irmãos da Visão (ikhwân al-baṣîra), unidos na glorificação e na santificação, mantêm-se assíduos, humildes de coração perante Deus e constantes em sua devoção. Eles lembram Daquele que ordena os graus nos universos. Fugindo para longe dos filhos das Trevas, mantendo-se nos Templos das proximidades, em conversas reservadas com os habitantes dos oratórios da Onipotência, eles solicitam com súplicas a libertação do cativeiro e suplicam pelas Luzes na forma de sua epifania. Esses são aqueles que imitam os Puros, os mais próximos de Deus. Eles glorificam Deus que criou o Sol em afinidade [consigo], o duplo luminar como um califa e as embarcações como um transporte na proximidade de Deus: eles próprios desfrutam do favor divino, difundindo esse favor 45


[sobre os outros. E ele criou] as Realidades individuais da Luz (ashkhâṣ al-daw), nos planos do [ser em] movimento, que se beneficiam da Luz de Deus e dela fazem com que se beneficiem as hostes de baixo. Deus fará descer a santificação sobre os corações daqueles que tomam refúgio nos santuários (maḥârib), recitando as orações e invocando seu Senhor. Eles dirão então: “Ó nosso Deus, elimina, afasta de nós as Trevas da ignorância, pois as Trevas da ignorância são aquilo que envolve os agnósticos (jâhilîni). Ó nosso Deus, nós nos apresentamos a Ti obedientes. Os espíritos acenam para Ti para as santificações. Eles aspiram com força a se elevar em direção aos assentos de Glória que cercam teu Trono imenso e para o santuário de tua Luz que guia. Santifica-os então com tua mão poderosa. As almas dos clarividentes estremecem em seu turbilhão (rakaḍat), quando elas observam o círculo de teu esplendor magnânimo, pois teu esplendor magnânimo é o socorro para aqueles que buscam proteção". A orientação (hidâya) de Deus alcança uma família de eleitos, que, com as mãos estendidas esperam o maná celeste. Quando se abre seu olhar, eles encontram Deus, envolvido por sua sublimidade. Seu Nome ainda está acima do arco do Jabarût, e abaixo de sua irradiação está um povo que olha para Ele. E se não há Resolutos ('ulû 'azîmat) sobre a terra, que purificam os outros por causa da proximidade de Deus, eles, que são os bem-amados do Senhor, detestam as falhas. Os céus derramam então o castigo sobre a terra: faz-se uma grande perturbação. Os opressores são reduzidos a pó. Deus incitou os profetas em direção aos homens para que eles O adorem. Uns adoram a Deus com devoção (nask) e se aproximam. Outros se desviam do Verdadeiro (haqq), perdendo-se ao longe. Quanto àqueles que se devotam com toda a humildade de coração, Deus os elevará em direção ao santuário da Luz. Eles então ingressarão nos coros da Onipotência e Deus os santificará com sua própria pureza. Aqui estão em Deus em beatitude para sempre. Quanto àqueles que se desviam, Deus lhes envia o descenso e a abjeção (dhull). Eles são precipitados sob o véu das Trevas e das quedas. Ah! Glória Àquele diante do qual aparecem os seres (dhâwât) sem defeitos. Ele lhes concede extensão e eles retornam para os seus cobertos de honra. A salvaguarda do Misericordioso é que um povo se perca no desejo crescente de Glória (jalâl), que é a morada dos eternamente vivos. Por todos os lados da cúpula dos séculos eternos, essa salvaguarda os faz se lançarem na direção da majestade do Verdadeiro. Aqui estão então na fonte da vida. Segundo as horas litúrgicas, eles glorificam a grandiosidade do local daqueles que se mantêm

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de pé, eles se prostram na obscuridade da noite, seus olhos são banhados de lágrimas pelo temor a seu Senhor, e eles cantam salmos. Deus escreveu nos Livros da Misericórdia que o pó de seus rostos não será dissipado, a não ser que eles O tenham encontrado. Deus fará deles, por seu encontro, as pessoas que obtêm a libertação, pois aquele que obedece ao Misericordioso alcança um brilho de Sua Luz. A estrela de Deus não é o bem dos viajantes?

VIII ORIENTAÇÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS

O pacto de Deus com as gerações é que elas acolham aquele que os chama (da'î) e que se afastem dos grupos que caluniam a Deus antes que os condene Aquela que envolve no Dia da Ressurreição. Quantos resistem às mensagens de seu Senhor! Sua força vitoriosa os agarrará, eliminando até suas pegadas. Eles serão surpreendidos, repelidos no opróbrio, em direção à arena do mal, rastejando sobre o fogo, aspirando ao retorno. Isso é proibido na primeira indicação da Escritura (raqîm), a não ser o retorno dos perversos às pátrias [terrestres]. Imaginam eles, aqueles que transgrediram, que lhes será concedida a graça do horizonte da Glória sem que aceitem o Livro de Deus com esforço? Sem que tenham temido a desagradável surpresa do destino no dia em que e deverão trancar a morada da família para retornar à sala do horror? Os Negadores verão, no momento da parusia, um impetuoso impulso que nenhum defensor poderá repelir e com o qual não poderão subsistir as negações. Deus colocou sobre a terra sete caminhos, e no sétimo é consolado o olho de cada peregrino na infatigável caminhada. Aqueles que abriram o caminho cumprem o que Deus escreveu sobre eles na Escritura primordial. As doçuras não os impedem de caminhar, e os sufocantes calores do verão não os fazem se atrasarem no seu percurso para satisfazer a Deus, o Mestre do Imperativo. Quanto àqueles que fazem as circum-ambulações ao Portal de Deus e temem o poder de Deus, aqueles que suplicam nas Trevas, os fiéis nas devoções (manâsik) e aqueles que dão esmola em meio às negligências de seu povo, os enérgicos no combate (jihâd) e aqueles que circulam pela 45


terra enquanto seus espíritos estão suspensos na morada suprema, aqueles que possuem as sakîna maior receberão de Deus a boa nova da libertação. Deus inscreveu [sua decisão preeterna] no Livro primordial e prescreveu ao espírito fiel responder ao chamado (da'wa) de todo ser dominado pelas Trevas e de todo ser puro que aspira a protestar contra a opressão, para o contentamento de Deus. Que se auxiliem os fiéis contra os filhos dos Satãs. O perverso vestirá a camisa de piche (qâr), enquanto os filhos da graça divina tomarão do mundo efêmero o que os fortalecerá; os que não tiverem conserto serão banidos e mantidos à distância. Eles optarão pelo que deve abandoná-los em vez daquele que será seu companheiro, e aquilo pelo qual eles atravessarão, como sobre uma ponte, os castigos, quando o chicote de Deus se vingar de todos os fugitivos, habituados à mentira. Os anjos de Deus ouvem o chamado ressonante dos justos. Por temor a Deus, suplicam por eles a seu Senhor. Eles solicitam e invocam: "Ó Mestre das sublimidades, Senhor dos Poderes supremos, Tu que levantas as tendas do poder, iluminador dos seres, suplica por eles, pois por Tua prece excelente o coração daqueles que se levantam é preenchido de alegria. Ó nosso Senhor, há pessoas que clamam nas conversas que têm Contigo; há pessoas que choram no segredo de Teus santuários, reclamando as bênçãos do Céu de Tua Glória. Elas são inocentes de idolatria e estranhas ao que é ilícito; elas empregam extraordinários esforços no caminho de Tua Graça. Inspira-lhes então uma poderosa bem-aventurança. Envia-lhes, a partir de Ti, um rei (sultân), um defensor (nâsir), um iluminador (munîr)". Sim, possa Deus comprazer-se com relação àqueles que obram excelentemente, que perseveram no culto divino (ta'abbud), que não associam a Deus coisa alguma. Quando eles chegam à corte do Poder, o que envolve os Querubins que se mantêm abaixo do grau da sublimidade os envolverá, na fonte original da Graça. Que Ele os proteja contra as pessoas da iniquidade (ahal alfurûq) até seu retorno ao Portal de Deus. Que a Luz maior lhes conceda um raio dentre as irradiações de sua beleza, para que lhes seja submisso tudo aquilo que possua sentidos.

IX OS ESTADOS MÍSTICOS DOS PEREGRINOS

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Voltemos ao fim do caminho no qual estamos envolvidos, [mas desta vez] pelo conhecimento científico. Sabe que a matéria do cosmos obedece às almas, enquanto duram sobre elas as iluminações do alto. Sua evocação é ouvida no Pleroma Supremo, pois ele ordenou no Decreto Divino preeterno que o chamado de um indivíduo seja como uma causa para uma resposta com relação a tal coisa. Essa Luz que emana do Pleroma Supremo é o elixir do poder e do conhecimento [gnosis]. É por isso que o cosmos lhe obedece. E nas almas isoladas encontra-se estabelecida uma similitude (mithâl) da Luz de Deus e encontra-se implantada nela uma Luz criadora. O que chamamos “mau-olhado” é devido a uma luminescência dominadora que influi sobre as coisas a ponto de corrompê-las. Sobre os Irmãos do Isolamento iluminam as Luzes, e elas abrangem várias categorias: a Luz de um raio apresenta-se aos novatos. Ela fulgura e desdobra-se como a fulguração de um raio agradável. Apresenta-se também aos outros a Luz de um raio mais vivo do que aquele e que se assemelha mais ao raio, a não ser que seja a um raio grandioso. Frequentemente, ouvimos, ao mesmo tempo em que ele, um ruído que se assemelha ao de um trovão ou de um borbulhamento no cérebro. Uma Luz repentina e encantadora cuja irrupção se assemelha ao que seria a de uma água fervente sobre a cabeça; uma Luz que dura um tempo bastante longo, que domina com violência e que se acompanha de um tipo de torpor no cérebro; uma Luz extremamente doce que não tem semelhança com o raio, mas que é acompanhada de um estado de alegria sutil e terna, sendo colocada em vibração pelo poder do amor; uma Luz que envolve, movendo-se a partir do movimento do poder que domina (quwwa ‘azzîya) e que, às vezes, se manifesta por um concerto de címbalos e de trombetas, de coisas que aterrorizam o iniciante, ou melhor, que afetam com força o entendimento (tafakkur) e a phantasis (takhayyul); uma Luz que fulgura em um arrebatamento imenso, que se revela à contemplação e à visão, mais manifesta do que o sol, em uma bem-aventurança radiante; uma Luz bem resplandecente, extremamente doce — nós nos imaginamos suspensos pelos cabelos por um longo tempo; uma Luz incidental ao mesmo tempo que uma influência imaginal — temos a impressão de que ela segura os cabelos, que ela puxa com força e lhe impõe um sofrimento delicioso; uma Luz ao mesmo tempo que um abraço — temos a impressão de que ela está implantada no cérebro; uma Luz que ilumina do fundo da alma o conjunto do pneuma psíquico — parece então que algo está em nosso corpo como dentro de uma armadura e que o pneuma da totalidade do corpo quase recebe uma forma luminosa e é um estado de extrema doçura; uma Luz que começa na impetuosidade — em seu começo o homem imagina que algo se desmorona; uma Luz incidental que

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despoja a alma quando a ela descobre a si mesma como suspensa e pura — ela contempla a partir de seu desgarramento das dimensões espaciais, embora o possuidor dessa alma não tenha tido conhecimento antes disso; uma Luz com a qual imaginamos um peso que o místico mal é capaz de suportar. Uma Luz com um poder de mover o corpo, embora as juntas de seus membros sejam quase rompidas. Tudo isso são as iluminações que se lançam sobre a alma humana regente de seu corpo. Elas se refletem então sobre o habitáculo (ou “templo”) corpóreo e sobre o pneuma psíquico. Para os medianamente avançados, esses fotismos marcam os limites nos quais ele se detêm. Às vezes, essas Luzes os sustentam, de modo que eles caminham sobre as águas e planam pelos ares. Às vezes, eles sobem ao céu, mas com um corpo [que é seu corpo sutil] e, então, se unem a vários príncipes celestes. Mas tudo isso são os eventos relativos às condições do oitavo clima, aquele em que se encontram as cidades de Jâbalqâ, Jâbarṣâ e Hûrqalyâ, ricas em maravilhas. O mais magnífico dos hábitos (malakât) é um hábito de morte pelo qual a Luz regente se descama, por assim dizer, das Trevas. Embora a ligação com o corpo não deixe de subsistir, ela transparece no mundo da Luz e se torna como que suspensa nas Luzes Arcangélicas. Ela vê então os véus de Luz, todos os véus de Luz, com relação à Glória envolvente, eterna, da Luz das Luzes, como se esses véus fossem diáfanos. A Luz regente torna-se como se ela repousasse no interior da Luz envolvente. É essa estação bastante nobre e bastante elevada que Platão relata ter ele mesmo alcançado. Hermes e os príncipes dentre os Sábios deixaram seu próprio testemunho. Foi, igualmente, o que relatou o autor (ṣâḥib) da Lei religiosa do Islã e com ele todo um grupo daqueles que se descamaram de sua condição humana. Jamais os ciclos são privados das coisas, e cada coisa está em [Deus] em certa medida, e nela estão as chaves do mistério não revelado (ghayb), que ninguém conhece, senão Ele. Que aquele que não contempla as estações por experiência pessoal não faça objeção aos Pilares da Sabedoria, pois isso é incapacidade, ignorância e preguiça. Quem quer que sirva a Deus em toda pureza, morre para as Trevas e renuncia a seus caminhos, contempla o que outro além de si não admite contemplar. Entre essas Luzes, aquelas que contêm o poder (‘izz) se beneficiam das coisas que estão em relação com o poder. O que contém o amor (maḥabba) é benefício para as coisas que estão em relação com o amor. E, nas Luzes, existem maravilhas. Quem é capaz de colocar em movimento as duas forças, seu poder e seu amor, decide por si sobre as coisas, na proporção de cada poder, [ou

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seja,] aquele com quem estiver em correspondência, e não outra coisa. E aquele que se eleva ao mundo superior, o pensador meditativo, o perseverante é aquele que obtém. Entre as decisões fervorosas, existe [a de alcançar] as estações místicas (maqâmât) nas realidades terríveis, assustadoras ou chocantes. Elas são todas perfeitamente claras para aqueles que possuem a reflexão autêntica sobre os ensinamentos divinos e sobre as coisas satânicas. A persistência na decisão é devida aos cognoscíveis que se expandem em cada faculdade segundo sua própria medida. O poder se expande para a força vitoriosa (qahr); o amor, para a força atrativa (jadhb). O sábio visionário possui a explicação perfeita. Assim, o raro multiplica-se, enquanto a perseverança advém da decisão resoluta das coisas. O segredo é aqui deixado sob os cuidados da pessoa (shakhṣ) do Mantenedor do Livro (qa’îm bi’l-kitâb). A intimidade (qurba) com Deus, simultaneamente com a diminuição da alimentação, as longas vigílias, a oração voltada para Deus, para aplainar o caminho em direção a Ele e tornar sutis os recônditos (sirr) [da alma] para as reflexões sutis, e a compreensão das sugestões pelas quais os seres mostram a santidade de Deus, a persistência da lembrança (dhikr) da glória de Deus que conduz a essas coisas e a pureza na conversão para a Luz das Luzes — eis a condição para começar. A alegria obtida com a música da alma enquanto recorda a Deus, mestre do Jabarût, é benigna, embora a tristeza (ḥuzn) seja preferível para o segundo estado místico. A leitura dos Livros revelados e a rapidez em retornar Àquele a quem pertence a criação (khalq) e o Imperativo criador (amr) — tudo isso são as condições. Quando as Luzes divinas multiplicam-se no ser humano, elas o revestem com a veste do poder e da autoridade majestosa (hayba), e as almas obedecem-lhe docilmente. Em Deus, para aquele que aspira à água da vida, há uma intensa chuva. Bem-aventurado aquele que toma refúgio em uma Luz que possui o Molk e o Malakût! Bemaventurado aquele que, ardendo de desejo, bate à porta do Jabarût! Feliz daquele que se rende perante a lembrança de Deus. Feliz daquele que emigra para seu Senhor, pois Ele o guiará. Aquele que tende para Sua majestade não está perdido, aquele que se detém em Seu portal não se decepciona.

X

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TESTAMENTO ESPIRITUAL

Eu vos lego em testamento, ó meus irmãos, a guarda das ordens de Deus, a renúncia ao que ele proscreveu, a conversão a Deus, nosso mestre, Luz das Luzes, conversão total, a renúncia ao que não é para vós de proveito algum, com relação à palavra e à ação, e de reduzir toda sugestão satânica. Eu vos lego a guarda deste livro, o encargo de velar por ele, de preservá-lo do profano ignorante. Por Deus! Que ele seja meu califa com relação a vós! Terminei de compor, no fim do mês de Jomâdâ II do ano 582 da Hégira, no dia em que os sete planetas se encontravam em conjunção no signo de Libra. [Eu o terminei] ao final do dia. Não o transmitais senão àquele que for capaz de compreendê-lo, aquele que, possuindo perfeitamente o ensinamento dos Peripatéticos, é, ao mesmo tempo, um amante da Luz de Deus. Antes de começar a leitura deste livro, é absolutamente necessário praticar durante quarenta dias a vida espiritual, abster-se, por exemplo, da carne dos animais, não consumir senão o mínimo de alimento, para se absorver na meditação da Luz divina, segundo o que ordena o Mantenedor do Livro. Para que esse livro chegue a seu fim, nele o mergulho em suas profundezas. Então, aquele que investiga nele tomará consciência daquilo que os Antigos e os Modernos careceram, aquilo mesmo que aprouve a Deus divulgar pela minha boca. É o Espírito Santo que inspira este livro em meu coração, de um só golpe, quando de uma viagem maravilhosa, embora eu não tenha podido chegar a colocá-lo por escrito senão ao longo de vários meses, por causa das dificuldades ocasionadas pelas minhas viagens.

Este livro apresenta um interesse fundamental. Quem desmentir

a verdade será reprovado por Deus, “pois Deus é poderoso. Ele é o mestre da vingança”. Que ninguém conceba a ambição de obter o conhecimento dos segredos deste livro sem voltar para a pessoa (shakhṣ), para o califa que possui a ciência do Livro. Sabei, meus irmãos, que a lembrança interior da morte deve superar todas as preocupações, pois “a próxima morada é a vida. Ah! Se eles soubessem”. Invocai frequentemente o nome de Deus! “Não morrei a não ser que vós estejais submissos a Deus!” Ó meu Senhor, ó Deus meu e Deus de todas as coisas, faz de nós o que é de teu agrado, não nos deixes a cargo de nós mesmos nem de outro que não seja Tu, Tu mesmo em pessoa. Estende

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sobre nós, Senhor, o bem deste mundo e do outro mundo. Afasta de nós o mal deste mundo e do outro mundo. Sê nosso escudo, assiste-nos, auxilia-nos, purifica-nos, conduze-nos à perfeição. Concedenos a ciência e torna-nos bem-aventurados em Ti, ó Bem-esperado, cuja generosidade responde a toda prece, Tu, o mais Compassivo dos compassivos. Glória a Deus, Aquele a quem damos graças, o Adorado que difunde Sua graça, o Doador de existência. A Ele somente a ação de graça nos séculos dos séculos. A bênção esteja com Seus enviados e Seus profetas, em particular sobre Moḥammad e os seus, os Magníficos, os Puríssimos. Bênção eterna, eternamente crescente!

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