SOBRE O CONHECIMENTO DA REALIDADE

Page 1

1

SOBRE O CONHECIMENTO DA REALIDADE O Capítulo Tattvartha do Bodhisattvabhumi, de Asanga

Traduzido com Introdução, Comentários e Notas de

JANICE DEAN WILLIS

BIBLIOTECA GARBHA

1


2

2


3

SOBRE O CONHECIMENTO DA REALIDADE O Capítulo Tattvartha do Bodhisattvabhumi, de Asanga Traduzido com Introdução, Comentário e Notas de

JANICE DEAN WILLIS

3


4

Para o Professor Alex Wayman e para meus Pais.

4


5

Prefácio O Tattavartha-patalam1, ou Capítulo sobre o Conhecimento da Realidade, constitui-se no quarto capítulo da Parte I do Bodhisattvabhumi, escrito no final do século IV pelo conhecido sábio e filósofo Arya Asanga. O texto foi escrito em sânscrito e, tendo alcançado sucesso e fama imediatos como um texto mahayana2, foi rapidamente traduzido para o chinês e, posteriormente, para o tibetano. Em muitos aspectos, o Capítulo Tattvartha é o foco de todo o tratado. Ele é o único capítulo que aborda especificamente o ensinamento mahayana, deixando claro para o leitor os meios adequados pelos quais a realidade deveria ser compreendida e percebida por aquele que está trilhando o Veículo dos Bodhisattvas. Assim, ele retoma a preocupação central do ensinamento budista, ou seja, a preocupação epistemológica de julgar corretamente ou validar o conhecimento sobre a realidade como ela realmente é. Agora que a presente tradução do capítulo está disponível, o lugar de honra de Asanga dentre os mestres budistas clássicos está claramente demonstrado. Sua exposição também esclarece bastante a real posição de Asanga com relação ao ensinamento mahayana, que até agora tem sido frequentemente mal compreendido pelos estudiosos budistas contemporâneos. É verdadeiramente notável que, nesta “era de declínio do Dharma”, uma explicação tão clara dos modos adequados de conhecer a realidade segundo o ensinamento budista agora esteja disponível para nós, após quase 1.600 anos. Existindo somente em edições sânscritas, tibetanas e chinesas, por muitos anos, o texto não esteve disponível para leitores ocidentais, muito embora todo o Bodhisattvabhumi tenha tido sucesso imediato após sua produção. Ele foi traduzido para o chinês no início do século V pelo erudito chinês Dharmakshema e, algum tempo depois, para o tibetano pelo erudito tradutor Prajnavarman. Contudo, até a presente obra, não há nenhuma tradução completa do Capítulo Tattvartha para qualquer língua ocidental. Meu trabalho com esse texto, bem como com a própria exegese de Asanga sobre o capítulo e outros textos afins, serviu como parte do tema de minha dissertação para Ph.D. na Universidade de Columbia. Tendo completado o doutorado lá, senti que seria adequado e oportuno tentar tornar esse clássico tratado disponível para um grupo maior de leitores interessados. O que se segue representa o fruto desse esforço. Muitas pessoas ofereceram sua gentil e inestimável assistência enquanto eu trabalhava nas primeirs fases desse projeto. Minha gratidão estende-se ao Prof. M. Nagatomi, que gentilmente tirou dois dias de sua ocupada agenda para me introduzir ao uso da coleção tibetana da Universidade de Harvard. Durante algumas semanas em Kathmandu, Nepal, em 1974, o Sr. Nyingma Lama ofereceu clara explanação com relação a algumas das difíceis passagens do capítulo. Seus exemplos esclarecedores foram úteis na medida em que me pus a trabalhar na tradução do capítulo em si. 1

Patalam (le ‘u) - Capítulo ou divisão de um livro. Mahayana (theg pa chen po) - Literalmente, o “Grande Veículo”. O nome dado à fase posterior do pensamento budista segundo o qual os conceitos de compaixão e atividade virtuosa inegoísta caracteriza eminentemente a prática, enquanto um entendimento adequado do ensinamento de shunyata (vazio) predomina em termos de teoria. 2

5


6 Foi muita sorte passar um mês em Madison, Wisconsin, no ano seguinte, utilizando a coleção de estudos budistas da universidade. Além disso, a biblioteca pessoal do saudoso Professor Richard Robinson foi generosamente colocada à minha disposição. Sobretudo, Geshe Lhundup Sopa revelou-me seu amplo e profundo domínio da filosofia budista, auxiliando-me particularmente na tradução do comentário muito sucinto e de difícil compreensão sobre o capítulo. Como esse texto exegético é um “comentário raiz”, seu significado poderia ter sido plenamente revelado somente por alguém como ele, totalmente versado na tradição. Meus agradecimentos a ele são ilimitados. Responsável por arranjar minha estada em Wisconsin foi meu kalyanamitra3 de sete anos, Lama Thubten Yeshe, um mestre da tradição gelugpa4 cuja perspicaz sabedoria é equiparada somente à sua ampla compaixão. Precioso como professor e como guia era o Professor Alex Wayman, da Universidade de Columbia. Foi ele quem me sugeriu primeiro que eu tentasse realizar o projeto e que o revisou meticulosamente em todas as fases. Eu agradeço a ele sinceramente por apresentar-me às profundezas dos estudos budistas e às importantes obras de Arya Asanga. Sem sua orientação, a tese não teria sido concluída. Deve-se mencionar, contudo, que este livro não, em nenhum sentido direto, é somente uma revisão da dissertação. Muito da discussão técnica encontrada ali foi omitido aqui, substituído por uma introdução mais geral ao material. A exegese detalhada de Asanga da obra, parte das quais foram traduzidas na íntegra para a dissertação, é somente mencionada aqui, enquanto o “comentário” encontrado aqui está completamente ausente na dissertação. Assim, houve uma completa reorganização dos materiais, cujos benefícios somente o tempo julgará. Minha amiga de longa data, Randa Solick, merece profundos agradecimentos, não só por datilografar os vários rascunhos do trabalho, mas por oferecer constante encorajamento e apoio enquanto eu lia e relia a obra de Asanga. Robert Solick, um estudante de psicologia bem como do ensinamento budista, da mesma forma, merece minha gratidão por suas úteis sugestões na medida em que o trabalho progredia, bem como por me auxiliar com a primeira preparação do glossário. Sra. Louise Gross datilografou e redatilografou a cópia manuscrita. Sou-lhe muito grata por seu incansável auxílio. Meu sincero agradecimento deve ser oferecido ao Professor Robert Thurman, da Faculdade de Amherst, por sua cuidadosa leitura e inestimável crítica do anteprojeto manuscrito desse trabalho. A presente forma do livro deve-se em larga medida a suas úteis sugestões. Sem elas, ele estaria prejudicado. Com relação a isso, também devo agradecer à Sra. Karen Mitchell, editora do manuscrito pela Columbia University Press. Qualquer facilidade e clareza de expressão encontradas aqui se devem à sua diligente edição. Eu gratamente reconheço suas sugestões pacientes, dedicadas e extremamente perspicazes. Uma palavra sobre a tradução do capíutlo e sua apresentação aqui pode se mostrar útil ao leitor. Na maior parte, eu tentei dar a tradução mais literal possível do texto, enquanto reconhecia o fato de que os idiomas inglês e sânscrito não correspondem perfeitamente um ao outro. Algumas expressões em inglês foram acrescentadas em nome da clareza, mas não a ponto, acredito, de distorcer o significado do original sânscrito. A informação dada no comentário é retirada principalmente de duas fontes: (1) meu próprio entendimento do texto, como ele permanece por si só e à luz da história do pensamento 3

kalyanamitra (dge ba’i bshes gnen) - Literalmente, o “melhor ou mais esplêndido amigo” (mitra). O termo é utilizado como um título com o qual alguém se refere ao guru ou mestre-raiz. 4 Gelugpa (Tib. dGe lugs pa) - Literalmente, “os virtuosos”. O nome refere-se à escola do Budismo tibetano fundada por Tsong-kha-pa, mestre do séc. XIV.

6


7 budista em geral e (2) a exegese extremamente importante e informativa do capítulo escrita por Asanga. Forneci uma tradução corrida do texto sem comentário, de modo que os leitores interessados em ler diretamente da tradução, sem interrupção, possam fazê-lo. Ela é seguida por um glossário e uma bibliografia selecionada. As notas para a “Introdução” incluem material direcionado principalmente para especialistas, mas podem informar também ao leitor interessado em geral. Para realizar esta tradução, eu li os textos sânscrito e tibetano lado a lado, após ter lido primeiro cada edição inteira separadamente. Para a versão em sânscrito do capítulo, eu li tanto a edição de Wogihara, quanto a de Dutt do texto, mas confiei sobretudo na de Dutt. A edição tibetana utilizada é aquela encontrada na edição Peking do Tripitaka Tibetano (PTT)5. Consultei dois comentários “pada” nas edições tibetanas existentes: uma de Gunaprabha, o Bodhisattvabhumivrtti, e a outra de Sagaramegha, o Yogacarya-bhumau bodhisattvabhumi vyakhya, incentivada pelas fontes tibetanas tradicionais. Contudo, nenhum desses comentários “pada” acrescentaram compreensão das ideias chaves do capíutlo. Provavelmente, tanto Gunaprabaha quanto Sagaramegha escreveram seus comentários ao Capítulo Tattvartha para evitar omissões, ambos estando interessados principalmente em outros capítulos do Bodhisattvabhumi¸particularmente no capítulo sobre shila. A própria exegese de Asanga sobre o capítulo, como se poderia esperar, foi a mais útil para expor os aspectos essenciais do capítulo. Sua exegese foi lida na edição tibetana encontrada no PTT. Evidentemente, traduções contemporâneas de alguns textos chaves associados com a Yogacara e outros materiais secundários também trouxeram informação ao meu trabalho. Uma bibliografia selecionada desses e de outras obras importantes encontra-se ao final deste livro. Meu trabalho inicial recebeu apoio financeiro generosamente oferecido pela Danforth Foundation e da University of California’s Steinhart Fellowship e consideravelmente facilitado pelo entendimento e cooperação do Reitor Herman Blake, de Oakes College, University of California, em Santa Cruz. Por fim, desejo expressar meus profundos agradecimentos à Professora Stoler Miller, de Barnard College e Columbia University, que me encorajou a revisar o manuscrito para publicação. Evidentemente, não é preciso dizer que qualquer descuido ou erros que ainda permanecerem no trabalho se devem somente às minhas próprias imperfeições.

Janice Dean Willis Santa Cruz, California

5

Pitaka (sde snod) - Literalmente, “cesta”. O termo é utilizado para se referir a qualquer das três “coleções” das escrituras budista (ou seja, sutra, ou discursos; vinaya, regras monásticas e abhidharma, comentários focados nos pontos mais sutis de explicações filosóficas e psicológicas).

7


8

8


9

Introdução

9


10

10


11

HISTÓRIA DO TEXTO E A VIDA DE SEU AUTOR As notícias difundem por toda parte que o Mahayana, que uma vez declinou, novamente se difundiu em todas as direções. Taranatha, History of Buddhism in India. O enciclopédico Yogacarabhumi6, composto ao final do século IV d.C., é constituído de cinco principais divisões7. A primeira divisão, chamada Bahubhumikavastu (A Divisão dos Vários Estágios), expõe o ensinamento budista em 17 volumes separados 8, cada um intitulado bhumi 9ou “nível”. O décimo quinto desse volume, o Bodhisattvabhumi, obteve sucesso imediato e fama por si só e sempre foi considerado com especial reverência como um texto Existem outros textos que recebem esse mesmo título. Por exemplo, M. Demiéville publicou um trabalho sobre um texto intitulado Yogacarabhumi que foi escrito por Sangharaksha (veja Bulletin de l’école française d’éxtrême Orient 44 [1954]). Nessa mesma obra de Demiéville, menciona-se que existem dois outros textos com o nome Yogacarabhumi: um foi composto por Buddhasena e é um tratado hinayana, e o outro simplesmente possui o título “Yogacarabhumi do Bodhisattva”. Esse último texto, segundo Demiéville, é “um pequeno manual de yoga do Mahayana traduzido para o chinês em cerca de 300”. Veja Wayman, Analysis of the Shravakabhumi Manuscript, p. 41. 7 As cinco principais divisões e seu conteúdo, como resumidas no History of Buddhism, pp. 55-56, de Buston, são as seguintes: (1) O Bahubhumikavastu, ou Bhumivastu, que expõe o ensinamento Yogacara em 17 tópicos e assim é constituído de 17 volumes; (2) Vinishcaya samgrahani, comentário sobre o Bahubhumikavastu; (3) Vastu samgrahani, que “demonstra a ordem na qual [os conteúdos do Bahubhumikavastu] devem ser combinados segundo os três códices da Escritura; (4) Paryaya samgrahani, que fornece sinônimos de palavras que expressam os diferentes temas. (5) Vivarana samgrahani, que “amplia os métodos de ensino [adotados pelas obras anteriores].” 8 Os 17 bhumis do Bahubhumikavastu são os seguintes: 1. Pancavijnanakayasamprayukta bhumi 2. Manobhumi 3. Savitarkasavicara bhumi 4. Avitarka-vicaramatra bhumi 5. Avitarka-avicara bhumi 6. Samahita bhumi 7. Asamahita bhumi 8. Sacittika bhumi 9. Acittika bhumi 10. Shrutamayi bhumi 11. Cintamayi bhumi 12. Bhavanamayi bhumi 13. Shravakabhumi 14. Pratyekabuddhabhumi 15. Bodhisattvabhumi 16. Sopadhika bhumi 17. Nirupadhika bhumi 6

Os nomes sânscritos dos bhumis são fornecidos pela edição de Bhattacharya do Yogacarabhumi, p. 3. Somente o Bodhisattvabhumi (nas duas edições utilizadas no presente livro) foi inteiramente preservado em sânscrito. O resto do tratado foi preservado somente em chinês até a retradução e edição de Bhattacharya.

11


12 mahayana. Enquanto outras obras de Asanga e, depois, de seu meio-irmão, Vasubandhu, foram transmitidas para a China em uma data muito posterior 10, o sábio Dharmakshema considerou conveniente traduzir o Bodhisattvabhumi para o chinês em 418 d.C. 11, logo após sua composição. Na tradição tibetana, o Bodhisattvabhumi, de Asanga, era um dos seis textos básicos da Escola Kadampa12, fundada por Atisha (que mais tarde se tornou o grupo Gelugpa, reformado por Tsongkhapa)13. A História, de Bu-ston, que frequentemente cita diretamente esse texto, lista-o como um dos “tratados que conduzem à Salvação e à Onisciência” 14. De fato, desde sua produção, o Bodhisattvabhumi permaneceu um livro-padrão em todas as instituições monásticas mahayana. Ele é considerado leitura essencial para se obter um entendimento dos modos adequados no qual um bodhisattva (“aquele que busca obter bodhi15, ou Iluminação”) deve comportar-se, meditar e entender o ensinamento de Buddha. “O Capítulo sobre o Conhecimento da Realidade” (Tattvartha-patalam), o quarto capítulo da Parte I do Bodhisattvabhumi (com a exegese de Asanga sobre o capítulo, encontrada em seu Vinishcayasamgrahani)16, é fundamental para o texto do Bodhisattvabhumi como um todo, e procura somente instruir aquele que está buscando o veículo do bodhisattva sobre os modos corretos para se perceber a realidade, segundo o ensinamento de Buddha. Segundo todos os sutras tradicionais, o autor desses textos, Asanga, alcançou o terceiro nível de bodhisattva17. O nome atribuído a alguém nesse estágio é Prabhakari, “Doador de Luz” ou “Iluminador”18, pois esse bodhisattva “difunde a grande luz do Dharma19 entre os seres

9

Bhumi (sa) - Literalmente, terra ou campo; o termo também significa grau, passo, nível ou estágio. O nome da obra intitulada Bodhisattvabhumi pode assim ser traduzida como “Os Estágios daquele que Busca a Iluminação”. 10 O grande sábio Paramartha é lembrado como tendo levado para a China os textos de Asanga e Vasubandhu. Takakusu, em seu Essentials of Buddhist Philosophy, p. 81, dá 548 d.C. como a data da chegada de Paramartha à China. Uma data anterior foi sugerida por Nariman noa Literary History of Sanskrit Buddhism, p. 97, onde ele afirma: “Paramartha importou de Magadha para a China as obras de Asanga e Vasubandhu no ano 539” (d.C.). Mesmo a data de Nariman faz com que a chegada à China de outras obras de Asanga e Vasubandhu tenha ocorrido 121 anos após o Bodhisattvabhumi, de Asanga, ter aparecido lá. 11 Veja a edição de Wayman e Wayman do Shri-Mala-sutra, p. 9. 12 Kadampa (Tib. bKa’ gdamps pa) - A escola de Budismo tibetano fundada pelo pandit indiano Atisha quando viajou para o Tibet para ensinar o Dharma. A escola foi desenvolvida pelo discípulo Brom e, posteriormente, tornou-se o grupo reformado Gelugpa, dirigido por Tsong-kha-pa. 13 Os outros cinco textos foram o Mahyanasutralamkara (de Maitreya), o Shikshasamuccaya e o Bodhicaryavatara (de Shantideva), Jatakamala, de Aryasura, e o Udanavarga. 14 Bu-ston, History, Parte I, p. 49. 15 Bodhi (byang chub) - Iluminação; termo utilizado para caracterizar o sumum bonum da prática budista mahayana. 16 O Vinishcaya samgrahani é a própria divisão exegética de Asanga que acompanha seu Bahubhumikavastu. Ambos são seções de seu Yogacarabhumi. O texto tibetano do Tattvartha-vinishcaya samgrahani, localizado no PTT, foi um dos textos utilizados no presente estudo. O texto em sânscrito não existe mais, contudo a obra está disponível em chinês (Taisha Tripitaka, vol. XXX). 17 Segundo o Mahayana, um bodhisattva passa por dez níveis. Tanto Taranatha (p. 160), quanto as Histórias de Bu-ston afirmam que Asanga alcançou o terceiro nível de bodhisattva. Uma descrição detalhada dos dez níveis pode ser encontrada nos sutras Dashabhumika e Samdhinirmocana. 18 Essas traduções para prabhakari, com outras, são dadas por Dayal no Bodhisattva Doctrine, p. 286. 19 Dharma (chos) - O Sagrado Ensinamento do Buddha, Doutrina Budista.

12


13 vivos”20. Nesse nível, seus pensamento são “puros, constantes, espirituais, descontaminados, estáveis, determinados, fervorosos, estimulantes, nobres e magnânimos” 21. Ele deseja somente o conhecimento de Buddha, dedica-se dia e noite ao estudo dos sutras, ao exame de si mesmo e à meditação. Esse bodhisattva “alcança todos os níveis mais elevados de meditação, ingressa em moradas sublimes, diverte-se em estações livres de limitações e aperfeiçoa as capacidades supranaturais”22. Ele se livra dos desejos sensuais, de avidya e da especulação metafísica. Ele pratica a suprema paciência (kshanti) e pretende somente promover o bem dos outros. E assim é Asanga, o Arya23, “mestre praticante da yoga24”, (o verdadeiro yogacarya) reverenciado pelos seguidores do Mahayana. Os detalhes específicos da vida de Asanga são problemáticos, pois a maior parte das fontes são relatos lendários25. Isso não surpreende, pois não é incomum encontrar as vidas de grandes sábios budistas embelezadas dessa forma, como ocorreu com a vida do próprio Gautama Buddha. As narrativas mais conhecidas da vida do Arya são encontradas nas histórias, em estilo de lenda, de Bu-ston e Taranatha. O relato oferecido por Paramartha 26 é a fonte histórica mais autorizada, embora esse relato trate principalmente da biografia de Vasubandhu27. As datas aproximadas da vida de Asanga podem ser deduzidas de um estudo Essa definição é dada no Mahayanasutralankara, p. 182, citada por Dayal, Bodhisattva Doctrine, p. 286. Dayal, Bodhisattva Doctrine, p. 286. 22 Ibid. p. 287. Resumindo os atingimentos de um bodhisattva do terceiro nível, Dayal escreve: “Ele vivencia e adquire as quatro dhyanas, os quatro samapatis imateriais, as quatro brahmaviharas e as cinco abhijnas”. Os quatro termos sânscritos nesta passagem referem-se aos atingimentos específicos à prática meditativa: as quatro dhyanas representam os quatro níveis sucessivos de samadhi, ou plena meditação, que são marcados por (1) meditação acompanhada de contentamento e reflexão; (2) meditação acompanhada de contentamento e ausência de reflexão; (3) meditação que é constante e livre de contentamento e (4) meditação que é extremamente constante, livre de contentamento ou dor. Os samapatis imateriais, ou “atingimentos”, referem-se às estações do meditador nas quais ele permanece na esfera da infinitude (1) de espaço; (2) de percepção, ou consciência; (3) de absolutamente nada e (4) nem de ideação nem de não ideação. (Esses samapatis são mencionados por Asanga no Capítulo sobre o Conhecimento da Realidade na discussão do “Samtha”, mestre praticante de meditação). As quatro brahmaviharas, ou “moradas sublimes” também são conhecidas como aparamanani, ou “meditações imensuráveis”. As meditações consistem de cultivo dos sentimetnos de (1) maitri¸amor ou amizade; (2) karuna, compaixão; (3) mudita, contentamento compassivo e (4) upkesha, ou suprema equanimidade. Por fim, as abhijnas referem-se aos atingimentos das faculdades supranormais, inclusive (1) divyam cakshuh, ou visão divina, que pertence à habilidade de ver os vários falecimentos e renascimentos dos seres; (2) divyam shrotram, audição divina; (3) parasya ceta paryaya-jnanam, ou conhecimento da produção do pensamento dos outros; (4) purva-nivasanusmrti-jnanam, memória de vidas anteriores e (5) rddhi-vidhi-jnanam, ou domínio de poderes mágicos. 23 Arya (‘phags pa) - Um título de grande respeito que significa “nobre”. Esse título é frequentemente aplicado a Asanga. 24 Yoga (rnal ‘byor) - Da raiz sânscrita yuj, “unir”, o termo, geralmente, refere-se às práticas — tanto físicas, quanto mentais — que objetivam trazer à tona o estado de integração holística. 25 Os principais relatos tradicionais são fornecidos por Taranatha e Bu-ston e estão disponíveis em tradução (ver bibiografia). 26 Paramartha - O grande sábio indiano que é conhecido especialmente por ter levado muitos textos budistas para a China. Ele é conhecido por ter traduzido textos tanto de Asanga, quanto de Vasubandhu para o chinês quando chegou à China, por volta de 548 d.C. Especialmente valioso é seu Life of Vasubandhu. Aprendemos muito sobre a vida de Asanga a partir dele. 27 O relato de Paramartha foi traduzido por Takakusu, no “The Life of Vasu-bandhu, de Paramartha”. 20 21

13


14 de suas obras. Ele provavelmente nasceu durante a segunda metade do século IV d.C e morreu algum tempo antes da metade do século V28. Segundo o relato feito por Taranatha29, a mãe de Asanga, em uma encarnação anterior, havia sido um erudito monge budista dedicado a Avalokiteshvara 30, que era sua deidade tutelar. Como esse monge uma vez “feriu profundamente os sentimentos“ 31 de outro monge enquanto debatia com ele, Avalokiteshvara previu que ele renasceria repetidamente como uma mulher. Durante um desses renascimentos, como uma mulher chamada Prasannashila 32, a vida de Arya Asanga se inicia. Prasannashila, reconhecendo os grandes infortúnios que haviam sucedido ao Budismo na Índia33, fez preces ao Senhor Avalokita para que fosse útil ao Dharma. Como resultado de suas preces, três filhos nasceram dela, que, posteriormente, entraram para uma ordem budista. Aparentemente, Prasannashila era uma mulher brâmane do clã Kausika. Segundo todos os relatos, ele deu à luz Asanga primeiro, de uma união com um kshatriya. Mais tarde, ela deu à luz outros dois filhos, desta vez, por uma união com um brâmane. Todos os relatos concordam em que Asanga era o mais velho dos três irmãos, Vasubandhu era o segundo, e Virincivatsa era o último34. A família residia na região de Gandhara, em Purushapura, atual Peshawar. Algumas fontes dizem que Asanga nasceu com sinais auspiciosos 35 e que, mesmo quando criança, saía para bosques afastados de sua casa e meditava sobre os ensinamentos recebidos de um mestre tântrico de nome Jetari. Em casa, sua mãe o instruía em escrita, debate, aritmética, medicina, belas-artes, etc., e ele se tornou bastante habilidoso em todas elas. Em um estágio inicial, ele buscou ordenação como um monge budista. Ele serviu humilde e dedicadamente à sangha e, aparentemente, era uma criança de inteligência surpreendentemente rápida. É dito que “a cada ano, ele memorizava cem mil slokas e Alex Wayman, em seu Analysis of the Shravakabhumi Manuscript, p. 23, sugeriu as datas aproximadas de 375-430 d.C. para Asanga. Elas estão bastante de acordo com a conclusão de Sylvain Lévi em sua edição do Mahayana-sutralamkara, II, 1-2. Considerando os relatos biográficos fornecidos por Taranatha e Bu-ston, bem como as notáveis realizações de Asanga em termos de prática, escrita e ensinamento, não seria incorreto acrescentar dez anos em ambos os lados desse período, dando as datas aproximadas de 365-440 d.C. Warder, no Indian Buddhism, p. 436, sugere datas anteriores para Asanga, dando 290-360 d.C., mas não oferece nenhuma evidência que dê suporte a essas datas. 29 Taranatha, History, p. 154. 30 Literalmente, o “Senhor que olha [amorosamente] para baixo [para os seres que sofrem]”. O nome é utilizado para se referir especialmente ao aspecto compassivo do Budado. Historicamente, Avalokiteshvara foi um discípulo contemporâneo o Buddha Gautama que fez o “Grande Voto” de liberar todos os seres sencientes do sofrimento. Alguns séculos depois, surgiu um culto para devoção a Avalokiteshvara como uma deidade por si só, completa, com pleno detalhamento iconográfico. 31 Ibid., p. 154. 32 O relato de Taranatha, ibid. p. 155, fornece o nome da mulher como Prakashashila. 33 O History, de Bu-ston, p. 36-37, descreve a tripla destruição do Dharma na Índia, anterior ao nascimento de Asanga. 34 Segundo o Literary History of Sanskrit Buddhism, p. 96, e Analysis, de Wayman, p. 25, os três irmãos inicialmente receberam o nome Vasubandhu, mas somente o do meio fez o nome permanecer durante a vida adulta. 35 O History de Taranatha, p. 155, relata que Asanga nasceu “com marcas auspiciosas”. O History de Buston, p. 137, diz que Prasannashila “desenhou nas línguas [de seus filhos] a letra A e realizou todos os outros ritos para assegurar-lhes uma capacidade intelectual aguçada. 28

14


15 apreendia seu significado36. Paramartha conta que todos os três filhos se tornaram, inicialmente, Sarvastivadins37, colocando-os na tradição hinayana38. Embora isso provavelmente seja verdade com relação a Asanga, que ingressou na vida monástica muito antes de seus meio-irmãos, há clara evidência de que antes de ingressar no Mahayana, ele pertenceu por muitos anos a um grupo conhecido posteriormente como Mahishasakas 39. Além de seus singulares trajes azuis, os Mahishasakas40 eram conhecidos pela grande ênfase que davam à meditação41. Esse primeiro treinamento deixaria uma impressão profunda e duradoura em Asanga. Com um professor chamado Pindola42, que é referido na história de Paramartha como um arhat, Asanga estudou assiduamente. Ele aprendeu todos os sutras, dominou os sutras hinayana e leu muitos dos textos mahayana43. Quando começou a estudar os Sutras Prajnaparamita44, teve dificuldade em obter claro entendimento deles e pediu orientação a seu guru. Aparentemente, foi nesse momento que ele tomou determinada iniciação (abhisheka)45 e procurou obter uma clara instrução diretamente de sua deidade tutelar, o Senhor Maitreya Buddha. Aqui começa o mais famoso capítulo da vida do Arya. Asanga, tendo deixado seu guru, foi para um retiro em uma caverna em uma montanha referida nos textos como Kukkutapada46. Lá ele permaneceu em busca meditativa silenciosa e solitária por um período de doze longos e árduos anos. Os Anais de Bu-ston e Taranatha entram em alguns detalhes 36 37

Taranatha, History, p. 156. Cf. Wayman, Analysis, p. 25.

Hinayana (theg pa dman) - “Veículo” de prática budista que enfatiza ensinamentos voltados para uma libertação “individual” (hina) do sofrimento. 38

39

Ibid. pp. 25-30.

40

Mahishasaka - Nome do grupo ao qual Asanga pertenceu antes de “ingressar” no Mahayana. Para mais detalhes sobre esta seção, veja Les Sectes bouddhiques du Petit Véhicule, p. 182, de Bareau. 42 Cf. em Wayman, Analysis, p. 31: “… Asanga, depois de entrar na Escola Sarvastivadin, buscou em vão compreender o vazio (shunyata) e caiu em desespero profundo. Então veio o arhat Pindola de Videha oriental (purva). Com sua instrução, Asanga compreendeu o “pequeno veículo” (hinayana)”. 43 Existe evidência suficiente fornecida pelas obras escritas pelo próprio Asanga que nos possibilita listar alguns textos mahayana que o influenciaram. Por exemplo, além da literatura prajna, da qual ele certamente tinha conhecimento, o Sutra Samdhinirmocana é muito importante. É evidente, a partir do Capítulo Tattvartha, que ele também havia estudado o Sutra Bhavasamkranti (um texto que o Mahavyutpatti (nº 1379) menciona dentre os textos mahayana mais antigos), bem como obras como o Sutta nipata, o Anguttara Nikaya e o Sutra Samtha Katyayana, do Hinayana. Com certeza, ele conhecia o Mahayanasutralankara e as outras obras atribuídas a Maitreya. É possível, embora não esteja estabelecido com certeza, que ele possa ter conhecido também o Lankavatarasutra e o Mahayanashraddhotpada. De fato, julgando pelas citações incluídas em seus próprios tratados escritos, pode-se dizer que Asanga era bem versado em todos os Agamas, bem como em muitos dos primeiros textos mahayana importantes e seus comentários. 44 Prajnaparamita (shes rab kyi ph rol tu phyin pa) - A ação (ou prática) transcedente de discernimento último. 45 Taranatha, History, p. 156. O relato de Taranatha continua: “A natureza do Tantra e da mandala de abhisheka não estão claras, embora a última pareça ter sido a mandala de mayajala-mandala, pois esse acarya [i.e. o guru de Asanga na época] praticava a sadhana de Maitreya com o tantra de mayajala.” Nessas circunstâncias, Asanga começou sua propiciação ao Buddha Maitreya. 46 Outros nomes associados com o retiro na montanha são Gur-pa-parvata e Gurupada. Veja History, de Taranatha, p. 156. 41

15


16 com relação a esse período de doze anos. É dito que Asanga inicialmente invocou o Senhor Maitreya por três anos, mas não tendo visto nenhum sinal de êxito em sua prática, ficou desanimado e saiu da caverna. Pouco depois de se aventurar a ir para fora, reparou em algumas pedras que haviam sido gastas somente pelas asas dos pássaros quando faziam seus voos diários dos ninhos até as rochas. Pensando consigo mesmo: “Então, eu perdi a perseverança”47, voltou para sua caverna e começou sua prática mais uma vez. Novamente, depois de mais três anos de meditação, ele ficou mais uma vez desanimado e deixou seu retiro. Dessa vez, reparou que algumas pedras haviam sofrido erosão por simples gotas de água e, com vigor renovado, recomeçou a prática solitária. Da mesma forma, outros três anos passaram-se, ainda sem sinal de êxito. Ele se determinou a desistir de sua prática e novamente deixou a caverna. Depois de viajar a alguma distância da caverna, encontrou um senhor “esfregando um pedaço de ferro com um algodão macio e dizendo: ‘Vou preparar finas agulhas com isto” 48 Então, o homem mostrou a Asanga agulhas que ele já havia feito dessa maneira. Asanga voltou ao retiro. Novamente, três anos mais se passaram, fazendo com que seu período na caverna para meditação chegasse a doze anos ao todo. Contudo, nenhum sinal de êxito ocorreu. Totalmente decepcionado, Asanga decidiu abandonar sua prática completamente. Ele deixou a caverna e viajou para longe. Nos arredores de uma cidade, encontrou um cão. A parte inferior de seu corpo havi sido comida por vermes. Vendo isso, Asanga encheu-se de compaixão. Ele pensou consigo mesmo: “Retirar os vermos iria destruí-los, mas se eles não forem removidos, o cão vai morrer.” Nesse local, ele resolveu cortar a carne de seu próprio corpo e atrair os vermes para ela. Em seguida, foi para a cidade, chamada Acinta 49, e trocando seu cajado de mendicante, obteve uma faca dourada. Assim ele retornou ao local onde o cão estava deitado, infestado, e começou a cortar a carne de sua própria coxa. Então ele pensou que, se pegasse os vermes com a mão, eles iriam morrer. Assim, fechando os olhos, decidiu transportá-los para sua própria carne utilizando sua língua. Nesse exato momento, o cão desapareceu e, em seu lugar, Asanga contemplou o Senhor Maitreya, cheio de luz50. Com lágrimas caindo dos olhos, Asanga perguntou: “Ó, meu pai, meu único refúgio, Eu me esforcei centenas vezes, Contudo, nenhum resultado foi visto. Por que razão as nuvens de chuva e o poder do oceano Vêm somente agora, quando, atormentado por violenta dor, Não tenho mais sede?” Maitreya respondeu: “Embora o rei dos deuses envie chuva, Taranatha, History, p. 157. Ibid. 49 Essa grafia é fornecida por Bu-ston, em seu History, p. 138. A grafia de Taranatha, History, p. 157, é “Acintya”, que significa “inconcebível” ou “superando o pensamento”. S. C. Dass, em seu A Tibetan-English Dictionary, p. 592, torna “Acinta” sinônimo de “Ajanta”, a famosa instituição monástica budista indiana. 50 É interessante que o Senhor Maitreya normalmente é representado “cheio de luz” ou “inundando tudo com grandes raios de luz”. Essa descrição torna-se associada com Asanga também, ambos com relação a seu atingimento do terceiro nível de bodhisattva, prabhakari, bem como sua realização bem-sucedida do “samadhi da luz do sol” (suryaprabha-samadhi). Essa última realização, segundo o relato de Paramartha, foi o resultado direto de uma prática ensinada a ele pelo Senhor Maitreya. Considera-se que o samadhi da luz do sol capacita seu praticante bem-sucedido a compreender tudo completamente. 47 48

16


17 Uma semente ruim não pode crescer. Embora os Buddhas possam aparecer [neste mundo] Aquele que não é digno não pode partilhar da bem-aventurança51. Maitreya então informou a Asanga que esteve próximo a ele desde o início, mas, por causa dos próprios impedimentos mentais de Asanga, ele não era capaz de vê-lo. Agora, depois de praticar com tanto ardor e finalmente equilibrar sua prática com uma compaixão tão grande, Asanga era capaz de contemplá-lo. Assim, Maitreya instruiu Asanga a levantá-lo e a levá-lo para a cidade em seus ombros. Asanga assim o fez. Mas o Senhor Maitreya não poderia ser percebido por ninguém, a não ser por Asanga 52. O Arya então acreditou nos grandes acontecimentos que haviam ocorrido e entrou imediatamente em srotah-anugatanama-samadhi, o samadhi53 chamado “corrente de fé”. O Senhor Maitreya, cheio de luz, então perguntou a Asanga o que ele desejava dele. Asanga respondeu: “Estou buscando instruções sobre como difundir o ensinamento mahayana”54. Foi nesse ponto que Maitreya disse a Asanga que olhasse para a ponta de sua roupa e, nesse momento, Asanga foi transportado para o céu de Tushita 55 do próprio Senhor Maitreya. Existem vários relatos sobre a quantidade de tempo que Asanga permaneceu em Tushita56. Alguns relatos mencionam 6 meses, enquanto outros mencionam 53 anos 57. Qualquer que tenha sido o período de permanência, foi aparentemente nesse tempo que Asanga ouviu Maitreya expor o ensinamento mahayana por inteiro e que aprendeu o real significado de todos os sutras. Tendo realizado isso, Asanga então ouviu os “Cinco Livros” 58 Esses dois versos são citados literalmente nas histórias de Taranatha (p. 157-158) e de Bu-ston (138). Isso de acordo com o History, de Bus-ton, p. 139. O History de Taranatha, p. 158, difere um pouco. Ele diz: “Somente uma mulher vendedora de vinhos o viu carregar um filhote. Como resultado, ela ficou extremamente rica posteriormente. Um pobre carregador viu somente os dedos dos pés. Como resultado, ele alcançou o estágio de samadhi e alcançou o sadharanasiddhi”. 53 Samadhi (Ting nge ‘dsin) - Termo utilizado na teoria da meditação para significar completa integração e absorção. 54 History, de Bu-ston , p. 139. 55 Segundo a cosmologia budista, o céu de Tushita localiza-se cerca de 160.000 yojanas acima do céu de Yama e 320.000 yojanas acima do nível do mar. Nele residem todas as deidades celestes resplandecentes conhecidas por lançarem luz sobre o mundo. Esse céu aparece principalmente na tradição budista, sendo esse o reino para o qual Mahamaya, mãe do Buddha Gautama, foi após sua morte e a estação de todos os bodhisattvas imediatamente anterior à suas encarnações terrenas finais como Buddhas. Portanto, é dito que o Senhor Maitreya, o futuro Buddha, reside em Tushita no presente. Para mais detalhes sobre a cosmologia budista, veja A Manual of Buddhist Philosophy, de McGovern. 56 Tushita - Literalmente, “plenamente satisfeito”. O termo designa o “céu” budista ou reino que serve de morada para todos os bodhisattvas imediatamente antes de seu ingresso no mundo fenomênico. Assim, local de onde surgem todos os futuros Buddhas. 57 O History de Bu-ston, p.139, menciona “50 ou 53 anos humanos”, embora observe: “O comentador do Yogacara-bhumi, por sua vez, diz que ele residiu lá por 6 meses e ouviu (o Ensinamento de Maitreya).” O History deTaranatha, p. 159, afirma: “Segundo alguns outros, ele passou 15 anos humanos em Tushita. Visões diferentes como essas são frequentes. Contudo, segundo a crença popular que prevalece na Índia e no Tibet, ele passou 15 anos humanos (em Tushita). Esse cálculo de 15 anos parece estar baseado na contagem de cada meio ano como um ano, pois os indianos dizem que ele, na verdade, passou 25 anos lá”. 58 Os “Cinco Livros” atribuídos a Maitreya são: (1) Mahayanasutralankara; (2) Madhyanta-Vibhanga; (3) Dharmadharmata-vibhanga; (4) Abhisamayalankara; (5) Uttaratantra. Há várias edições e traduções de alguns desses textos. 51

52

17


18 de Maitreya. Como antes, é dito que Asanga imediatamente alcançou o samadhi relativo a cada aspecto dos ensinamentos. Os acontecimentos que descrevem a busca meditativa de Asanga e seu encontro com Maitreya são referidos na tradição tibetana como rnam thar59, ou seja, detalhes biográficos que servem como guia aos leitores posteriores para a “completa libertação” (rnam par thar pa). Um gênero especial de literatura religiosa, rnam thar pode ser descrito como “hagiografia”, preocupada em revelar ao leitor o desenvolvimento “espiritual” interior de determinado sábio e, assim, a própria senda para o Budado. Assim, embora esses detalhes possam ser lidos como lendas, são considerados essenciais para a essência da prática do Dharma. Quando todos esses estudos com o Senhor se completaram, Asanga retornou ao reino humano e começou imediatamente a trabalhar pelo bem de todos os seres. Desse momento em diante, o nome Maitreyanatha (dedicado a Maitreya) torna-se um epíteto associado a Asanga e a suas obras escritas. Tendo realizado com êxito suas meditações e estudos com Maitreya, Asanga estava plenamente capacitado para trabalhar pelo bem da humanidade. Como alcançou um domínio das abhijnas (capacidades supranormais obtidas pela meditação), é dito que conseguia “conhecer a mente dos outros” (paracitta-abhijna), bem como utilizar outros poderes extrassensórios. Todos esses atingimentos aumentaram bastante sua habilidade de difundir o ensinamento mahayana efetivamente. Aparentemente, os primeiros atos de Asanga foram estabelecer várias moradas monásticas, ou viharas, depois de ter atraído monges por meio de suas competentes explanações sobre o Dharma. Foi em uma dessas viharas, mais tarde conhecida como a Dharmankura-vihara (O “mosteiro do qual o Dharma se difundiu novamente”)60, que Asanga se pôs a escrever sua profunda compreensão dos ensinamentos de Buddha. Primeiramente, com o auxílio dos discípulos, ele colocou em forma escrita os “Cinco Livros” de Maitreya 61. Depois, ele passou a escrever seus próprios tratados. O primeiro deles foi um breve 59

rNam thar (Tib.) - Uma abreviação de rnam par thar pa, ou seja, “completa libertação”. O termo é utilizado para se referir a um gênero de literatura que registra “[histórias de vida de] completa libertação”, ou “biografias sagradas”. Mais conhecido entre os rNam thar são as biografias dos iogues budistas indianos, os Mahasiddhas. 60 O History de Taranatha, p. 160, diz que esse vihara localizava-se em uma floresta chamava Veluvana, em Magadha. Aqui Asanga ensinou o Mahayana para oito discípulos escolhidos, os quais se tornaram conhecidos por seu domíno dos sutras. Posteriormente, eles próprios ensinaram o Mahayana. Assim, esse vihara tornou-se conhecido como a morada “a partir da qual o Dharma se difundiu novamente”. 61 O problema sobre o fato de o mestre de Asanga, Maitreya, ter sido um personagem histórico real ou simplesmente uma deidade tutelar meditativa por muito tempo foi um ponto de preocupação de estudiosos do Budismo que trabalham com a Yogacara. Qualquer pessoa familiarizada com os detalhes da biografia de Asanga tem conhecimento do fato de que seu principal mestre foi Maitreya, que também é referido em alguns textos como Maitreyanatha. Contudo, o principal debate centrava-se no fato de Maitreya ter sido uma figura histórica ou uma figura mítica de mesmo nome que, segundo a cosmologia budista, representa o “Futuro Buddha”. Todos os relatos tradicionais — de Bu-ston, Taranatha e até de Paramartha — afirmam que Asanga ascendeu ao céu de Tushita (i.e. o do Futuro Buddha) e lá recebeu ensinamentos de Maitreya. Muitos estudiosos modernos, no entanto, tentaram provar que Maitreya era, na verdade, uma pessoa histórica que instruiu Asanga em carne. Fortes defensores da teoria histórica são G. Tucci (veja seu On Some Aspects of the Doctrines of Maitreya (natha) and Asanga), H. Ui (em seu “Maitreya as a Historical Personage”) e Hara-Prasad Shastri (in Indian Historical Quarterly, 1, [1925], 465 f.).

18


19 compêndio do Abhidharma, em uma obra intitulada Abhidharmasamuccaya62. Essa obra provavelmente foi seguida de seu “resumo” da prática mahayana, o Mahayanasamgraha63. Foi também durante esse tempo que ele produziu seu comentário aos textos Prajnaparamita64. Em seguida, começou a gigantesca obra pela qual ele é mais conhecido: o Yogacarabhumi, ou “Os Níveis da Prática da Yoga [Budista]”. Quando completou o volume Bodhisattvabhumi dessa obra, sua fama como um mestre expositor do Mahayana espalhou-se por toda parte. Quando completou esses principais tratados, continuou a instruir muitos shravakas65 (“Ouvintes”, montes da tradição Hinayana) com o ensinamento do Mahayana. Por causa de sua grande erudição, chamou a atenção de um rei chamado Gambhirapaksha 66. Esse rei tornou-se o patrocinador real do Arya. Com seu auxílio, Asanga fundou muitos mosteiros novos, de modo que o Mahayana mais uma vez fincou raízes e floresceu na Índia. É dito que, embora o Mahayana tenha se difundido na Índia bem antes, anteriormente ao ensinamento de Asanga, ele havia declinado bastante. Alguns dos monges podiam recitar sutras mahayana, mas sem compreensão de seu significado. O relato de Taranatha diz que “mesmo durante a época de maior difusão do Mahayana, o número de monges mahayana não alcançava 10 mil67 e que, “mesmo nos dias de Nagarjuna 68, muitos dos monges eram shravakas”69. Mas devido aos ensinamentos e aos escritos de Asanga, durante o próprio Embora os estudiosos acima apresentassem sólidos argumentos para provar sua opinião, o debate tomou um rumo diferente quando M. Paul Demiéville, em seu “La Yogacarabhumi de Sangharaksha” Bulletin de l’école française d’éxtreme Orient e 386, invalidou o argumento, afirmando que há pouca razão para defender um personagem histórico quando textos válidos amplamente atestam o contrário. Demiéville baseou sua afirmação referindo-se à obra de Sthiramati, um famoso discípulo de Asanga, na qual Sthiramati considera Maitreya como tendo sido somente uma deidade tutelar de Asanga. Evidentemente, a importância do debate está no fato de que vários textos — os “Cinco Livros” — são atribuídos a Maitreya, ou Maitreyanatha. Se é aceito que Maitreya foi uma figura meditativa ou mítica, a quem atribuímos a autoria dessas obras? Minhas próprias pesquisas me levaram a fazer um estudo comparativo dos quatro Capítulos Tattva, ao longo dos quais se tornou claro que as obras atribuídas a Maitreya diferiam em aspectos chaves dos escritos de Asanga. Apesar do relato de Sthiramati, parece bem provável que essas obras tenham sido escritas não por Asanga, mas por um personagem histórico chamado Maitreya que estava associado com Asanga e lhe ensinou. O fato de que o próprio Asanga é referido como “Maitreyanatha” indica somente seu grande respeito por seu mestre, Maitreya. 62 O History de Bu-ston, p. 140, descreve o Abhidharmasamuccaya como sendo “um resumo (do ensinamento) que é comum aos três Veículos [...] Ele é um tratado mahayana, mas isso não contradiz o fato de que aborda assuntos que se referem a todos os três Veículos”. Ele é considerado ainda uma simplificação da primeira das duas seções do Yogacarabhumi. 63 O texto do Mahayanasamgraha, de Asanga, está disponível em uma excelente edição francesa em três volumes, editada e traduzida por Étienne Lamotte. 64 A obra de Asanga mostra clara evidência de sua familiaridade com a literatura Prajna. É sabido que ele escreveu pelo menos um comentário sobre o texto do Vajracchedika-sutra, um comentário em verso chamado Vajracchedikaprajaparamitasutrashastrakarika. Esse texto foi editado e traduzido por Giuseppe Tucci, em seu Minor Buddhist Texts, Part 1. 65 Shravaka (ngon thos) - Literalmente, “ouvinte”; alguém que ouviu os discursos de Buddha como eles foram ensinados. O termo é utilizado, sobretudo, para se referir aos monges da tradição hinayana. 66 History, de Taranatha, p. 161. 67 Ibid., pp. 165-66. 68 Nagarjuna - Renomado mestre da filosofia budista mahayana, mais conhecido por sua explicação sobre o ensinamento de shunyata na obra Mulamadhyamikakarika. 69 Ibid. pp. 166.

19


20 período de sua vida, o número de monges mahayana chegou a “dezenas de milhares”70. Assim Asanga é reverenciado como o principal expositor do ensinamento mahayana e como a causa compassiva de sua renovação. Durante todo o restante de seus anos, Asanga nunca se cansou de estudar e de ensinar o Dharma do Buddha. Alguns anos após ter completado suas obras, converteu seu meio-irmão mais novo, Vasubandhu, ao Mahayana e o adotou como discípulo 71. Em associação com sua conversão, é interessante notar que Vasubandhu, mesmo como um shravaka, nunca havia sido associado com o grupo Mahishasaka, ao qual Asanga havia pertencido. Em vez de se focar na vida meditativa, Vasubandhu sempre se dedicou à filosofia budista e à dialética. Ainda muito jovem, foi para Kashmir para estudar com Sanghabhadra, um mestre reconhecido por sua erudição, especialmente com relação aos textos do Hinayana 72. Lá ele conseguiu dominar os três pitakas shravakas e tornou-se fluente no Vibhasha73, os textos filosóficos das chamadas dezoito escolas budistas. Além disso, a tradição afirma que Vasubandhu, em cada um de seus 500 nascimentos anteriores, sempre foi um pandita e voltado para a especulação filosófica74. Consequentemente, enquanto Vasubandhu permanecia um dedicado estudioso da filosofia budista, seu irmão mais velho sempre se centrava firmemente na experiência direta do Dharma do Buddha. O Arya finalmente conseguiu converter seu meio-irmão ao Mahayana e então lhe deu os ensinamentos e também aos outros discípulos. Posteriormente, após a morte de Asanga, foi Vasubandhu que se tornou o “popularizador” dos ensinamentos do Arya. Após escrever muitas obras importantes, construído várias viharas e instruído incontáveis monges nos verdadeiro entendimento do ensinamento mahayana, Arya Asanga, o “Doador de Luz”, faleceu na cidade de Rajagrha75. Lá seus discípulos construíram uma caitya76 com seus restos.

Ibid. É importante lembrar que, segundo os relatos tradicionais, Asanga completou todas as suas próprias obras escritas antes de converter seu meio-irmão Vasubandhu ao Mahayana e tomá-lo como discípulo. 72 Bu-ston, History, p. 142, e Taranatha, History, p. 167. 73 Na época do grande rei Ashoka, c. 250 a.C., as duas maiores facções de seguidores budistas, i.e., os Mahasanghikas e os Sthaviras, haviam se fragmentado e se desenvolvido em dezoito subgrupos distintos. É dito que Vasubandhu dominava e distinguia os detalhes dos textos de cada um desses grupos — segundo o History de Taranatha, p. 168 — “onde o vinaya e os sutras das diferentes escolas divergiam [...]” Tal intelecto e treinamento o qualificaram bem para escrever o famoso Abhidharmakosha. 74 Segundo o History de Bu-ston, p. 144, Asanga contou a Vasubandhu sobre seus nascimentos anteriores. Além disso, segundo Taranatha e Bu-ston, Vasubandhu havia feito preces por uma visão da deidade tutelar de Asanga, Maitreya, mas sem sucesso. Asanga lhe informou que ele seria incapaz de fazê-lo em sua vida como Vasubandhu. Alguns relatos dizem que isso foi porque Vasubandhu havia depreciado o Mahayana uma vez; e outros, porque ele havia zombado de Asanga e sua obra. 75 Segundo o relato de Taranatha, History, p. 167. Bu-ston não menciona o local onde o Arya faleceu. Rajagrha é mais conhecida na história budista como o local do “Primeiro Concílio”, ocorrido imediatamente após o falecimento do Buddha. 76 Caitya (chos rten) - Um relicário em um monte (stupa) que aparece principalmente na arquitetura budista inicial. 70 71

20


21

A ESCOLA YOGACARA DO MAHAYANA Mencionei o importante trabalho de Asanga de construir viharas, escrever diversos tratados e instruir inúmeros discípulos monges — tudo foi importante para reviver o Mahayana. Mas ele é lembrado pela história principalmente por seu papel como fundador de uma nova escola do Budismo Mahayana, a Yogacara. Como o nome sugere, a escola de Asanga continuou a enfatizar a meditação e a prática da yoga (yogacara) como fundamental para o atingimento de bodhi, ou Iluminação77. Posteriormente, essa escola sofreu algumas modificações, tornando-se conhecida primeiramente como Vijnanavada (a chamada “escola da consciência como exclusiva”) e então Vijnaptimatratavada (escola da “representação mental como exclusiva”), devido à popularização do ensinamento de Asanga por meio de obras independentes de Vasubandhu e de mestres da linhagem posteriores. Estudiosos budistas dos dias atuais quase unanimemente caracterizam a Yogacara como uma escola de idealismo budista, mas vê-la somente dessa forma distorce o verdadeiro sentido do ensinamento de Asanga. As obras de Asanga tinham como objetivo corrigir visões equivocadas defendidas por muitos seguidores budistas de sua época com relação ao verdadeiro significado dos textos mahayana. Sem dúvida, o único e mais mal compreendido ensinamento desses textos era o de shunyata78, “vazio”. Shunyata, como “vazio”, aponta para a ausência de realidade intrínseca de um eu ou de uma essência permanentes em todos os fenômenos do mundo relativo, seja das pessoas ou das coisas. Pessoas e coisas são, na verdade, destituídos de eu e destituídos de essência. Shunyata não significa o nada, mas que nada existe por si só, por sua própria conta. O ensinamento de shunyata não foi uma criação nova do Mahayana79 — tendo sido mencionado em muitos discursos do próprio Buddha —, mas se tornou fundamental na literatura Em relação a isso, a escola é claramente a precursora de desenvolvimentos posteriores dentro do Mahayana, como a Escola Ch’an, na China, assim chamada por sua ênfase na meditação (ch’na = dhyana e samadhi). A Yogacara e a Escola Ch’an, posterior, também compartilham da opinião de que a meditação (samadhi) e a sabedoria (prajna) não são diferentes. Ao contrário, como o texto ch'an O Sutra da Plataforma afirma (tradução de Yampolsky, p. 135): “A meditação em si é a substância da sabedoria. A sabedoria em si é a função da meditação”. 78 shunyata (stong pa nyid) Vazio. A caracterização do estado último das coisaas, ou seja, como vazio de um “eu” ou de uma natureza essencial permanentes. 79 Às vezes se afirma que os ensinamentos de shunyata, nairatmya, etc. foram desenvolvidos pela fase mahayana do pensamento budista, mas eles podem ser encontrados nos primeiros textos canônicos. Por exemplo, no Samyutta-Nikaya IV (Salayatana-Vagga, 54), Ananda pergunta ao Buddha: “Senhor, é dito que o mundo é sunna [= shunya, “vazio”], o mundo é sunna. Mas, Senhor, em que aspecto o mundo é chamado sunna?” O Buddha responde: “Ananda, como é vazio de eu ou de qualquer coisa que pertença ao eu, é dito então que “o mundo é vazio”. Nesse mesmo Nikaya, III, p. 167, Shariputra diz que um monge virtuoso deve considerar os cinco agregados como vazios e sem eu. Rahula, “Vijnaptimatrata Philosophy”, p. 119, refere-se também ao Suttanipata, verso 1.119, onde o Buddha diz a Mogharaja para ver o mundo como “vazio” ao remover a ideia de eu. Existem várias outras passagens nas quais shunyata é mencionada pelo Buddha. Além disso, nairatmya e shunyata são termos intercambiáveis nos primeiros textos canônicos, significando a ideia de vazio, sem eu. Nem Nagarjuna nem Asanga estavam inventando novos ensinamentos. Eles estavam simplesmente esclarecendo e “expandindo” (o significado literal de vaipulya, que caracteriza um tratado mahayana. 77

21


22 Prajnaparamita e foi explicado veementemente pelo grande pensador mahayana Nagarjuna80, que viveu cerca de duzentos anos antes de Asanga. Nagarjuna fundou o outro grande ramo do Mahayana, a Escola Madhyamika, que ensinou o “Caminho do Meio”. Nagarjuna continua reverenciado por sua sabedoria pura e por seu intelecto preciso e crítico. Sua explanação crítica de shunyata era seca; para muitos, foi devastadora. Como resultado de sua filosofia completamente crítica, muitos começaram a interpretar mal shunyata como um ensinamento classificado como nihilismo e a temê-lo. Foi essa situação conturbada dentro da comunidade budista que Asanga herdou. Ele buscou definir as coisas corretamente explicando shunyata de modo mais positivo. Antes de ir adiante, pode-se mostrar útil aqui rever brevemente as fases históricas da filosofia budista. O Budismo Mahayana reconhece três “Giros da Roda do Dharma” 81, uma frase utilizada para se referir às três divisões dos textos, ou seja: (1) os primeiros textos do Hinayana 82; (2) os textos intermediários, que incluem a literatura Prajnaparamita e o ensinamento Madhyamika e (3) os últimos textos, do ensinamento Yogacara. Alguns estudiosos do Budismo dos dias de hoje, utilizando uma espécie de “taquigrafia filosófica”, preferiram falar dessas fases como de (1) realismo ingênuo; (2) criticismo e (3) idealismo 83. Com essa terminologia, eles se referem a sucessivos períodos filosóficos, ou seja, do pluralismo radical da primeira teoria do Dharma Hinayana, do criticismo dialético da Madhyamika, em resposta à mensagem dos textos Prajnaparamita, e do chamado idealismo absolutista da Yogacara. Tanto a Madhyamika, de Nagarjuna, quanto a Yogacara, de Asanga, foram consequências e respostas ao ensinamento sobre shunyata da literatura Prajnaparamita. De fato, essas duas escolas, que constituem o Mahayana, surgiram para esclarecer a mensagem do Prajnaparamita. Foi geralmente aceito que a Madhyamika e a Yogacara são contrárias uma à outra, e os estudiosos às vezes refletiram sobre a ordem das “três rodas”. Como e por que, alguns questionaram, poderia a fase do idealismo seguir a da filosofia rigorosamente crítica da Madhyamika?84 A presente tradução do Capítulo sobre a Realidade agora deve deixar claro que, Nagarjuna é reverenciado como santo, estudioso, filósofo e místico do Budismo indiano. Ele é conhecido como o “descobridor” de numerosos textos mahayana e como alguém que ofereceu, por meio de seus próprios tratados, talvez a mais completa análise crítica de shunyata. Seu Mulamadhyamikakarika apareceu para servir como o tratado fundamental da Escola Madhyamika. 81 A História, de Bus-ton (Livro I, p. 8) diz, referindo-se a Buddha: “Ele revelou (seu) Ensinamento em todas as suas (três) formas.” Esses três “Giros da Roda” (dharmachakrapravartana; em tibetano, chos-kyi-‘khorlo-bskor-ba) são descritos detalhadamente no Samdhinirmocana (Lamotte: 85, 206). 82 Normalmente, há um tom depreciativo associado com o termo “hinayana”, frequentemente traduzido como “veículo” (yana) “menor” (hina). Contudo, eu o estou utilizando aqui em total acordo com uma afirmação feita por Robert Thurman em seu “Buddhist Hermeneutics”, p. 37: “Eu utilizo ‘Hinayana’ aqui para designar os ensinamentos que buscam a autolibertação do sofrimento por indivíduos separados, filosoficamente subdivididos em 18 escolas durante os séculos após a morte de Sakyamuni. ‘Theravada’ não é aplicável para esse propósito, pois ele representa somente uma dessas dezoito escolas, sendo a forma páli do sânscrito Sthaviravada. [...] Quero dizer “individual” (e não “inferior”) com ‘Hina’ e “universal” (não superior) com ‘Maha’ de Mahayana. A primeira busca a libertação individual, não enfatizando o cultivo do amor e da compaixão (maitrikaruna). A última busca a libertação universal, enfatizando veementemente essas virtudes, mas também incluindo a necessidade para a libertação ao mesmo tempo”. 83 Por exemplo, veja The Yogacara Idealism, p. 2. de A. K. Chatterjee. Outras caracterizações dos Três Giros podem ser encontrados no The Conception of Buddhist Nirvana, pp. 2-3, e Buddhist Logic, de Stcherbatsky, 1, 3-4, e também no Buddhist Sects in India, de Dutt, pp. 235-36. 84 Alguns estudiosos tentaram responder ao “problema” da ordem dos dois últimos Giros fazendo uma analogia com o desenvolvimento da filosofia ocidental. Um exemplo é oferecido pela frase de abertura do capítulo sobre “Idealismo Yogacara”, do Professor Kalupahana, em seu Buddhist Philosophy: A Historical 80

22


23 longe de defender o idealismo em sentido absoluto, as afirmações de Asanga pretendiam reivindicar, expandir e esclarecer a noção fundamental de toda a filosofia mahayana, ou seja, shunyata em si. Agora podemos ver que Asanga, na verdade, herdou o primeiro realismo do Hinayana, bem como a exposição crítica de shunyata da Madhyamika e agora, como um filósofo mahayana e mestre meditador, reformulou a explicação desse ensinamento. Na medida em que mais e mais textos se tornam disponíveis, no original e em tradução, tenho esperança de que a prática de dicotomizar as produções filosóficas do Mahayana como uma escola estritamente preocupada com o vazio ou com o idealismo diminua 85. Vou retomar esse ponto novamente na próxima seção, mas, por enquanto, um pouco mais de concentração nos “três giros” pode mostrarse útil. Podem-se imaginar os três como representantes daqueles estágios do desenvolvimento filosófico dentro do Budismo que consideraram como seus respectivos focos metafísicos: (1) coisas (e aqui se quer dizer dharma em seu sentido mais amplo, como qualquer fenômeno, fato ou evento que possa ser percebido, conhecido ou pensado como possuidor de uma existência separada, como enumerado segundo a teoria do dharma hinayana), seguidas de (2) bastante interesse em shunyata como a negação das coisas (ou seja, dharmanairatmya, a teoria da “não essência” dos dharmas, particularmente como articulada na literatura mahayana mais antiga, Prajnaparamita) e, por último, (3) a identificação entre essas duas, ou seja, a identificação entre as coisas e o vazio 86. Com a identificação entre dharmas e shunyata, compreende-se diretamente dharmanairatmya, o vazio de natureza própria de todas as coisas. Mas essa compreensão nada mais é do que aquela repetidamente sugerida pela literatura Prajnaparamita. É dito explicitamente pelo Sutra do Coraçaõ: iha Shariputra rupam shunyata shunyataiva rupam (“Aqui, ó Shariputra, forma é vazio e vazio é forma). A transição na tomada de consciência progrediu da consciência das coisas, no primeiro estágio, para shunyata, no segundo, e para, finalmente, um entendimento dos dois como “não duplos”. Rupam eva shunyam. Forma é vazio e, vice-versa, esse próprio vazio é forma. Os dois não podem ser encontrados — na verdade, não é possível —como coisas separadas, individuais 87. Analysis, p. 142: “Assim como a ‘filosofia crítica’ de Immanuel Kant pavimentou o caminho para o idealismo hegeliano, da mesma forma, pode-se dizer que a filosofia crítica de Nagarjuna contribuiu para a forma sistematizada do absoluto idealismo de Vasubandu, embora o idealismo como tal fosse desconhecido anteriormente.” Assumindo que a Madhyamika representa a abordagem mais avançada da filosofia mahayana, esses estudiosos sentiram a necessidade de justificar sua posição intermediária dentro da ordem do esquema tradicional. 85 Alguns estudiosos, evidentemente, muitas vezes alertaram contra essa dicotomização, principalmente D. T. Suzuki, Alex Wayman, Walpola Rahula e Gadjin Nagao. Em seu “Discurso do Presidente”, na I Conferência da Associação Internacional de Estudos Budistas (Nova York, 15 de setembro de 1978), Gadjin Nagao afirmou: “O hiato entre as tradições madhyamika e vijnanavada tem de ser transposto, porque os madhyamikas e os vijnanavadas não eram, desde o início, duas escolas contrárias, como normalmente se admite”. 86 Esses três estágios não são diferentes de um antigo ditado zen: “Primeiro há uma montanha; depois, não há, depois, há”. A última “montanha” é experimentada pelo praticante zen de maneira que é qualitativamente diferente da primeira. De fato, a percepção do vazio e das coisas juntos é a união suprema (yoga) na qual se compreende diretamente o modo último de existência de todas as coisas. 87 Aqui se deve prestar atenção no alerta tradicional, muitas vezes expresso pelos madhyamikas. O vazio não é em si mesmo uma coisa, e é um grave erro hipostasiá-lo. Assim, os madhyamikas ensinam shunyatashunyata, “o vazio do vazio”. O exemplo de Asanga com relação a shunyata é formulado mais positivamente para afastar o medo do completo nihilismo. Assim, ele afirma no Capítulo Tattvartha: “Agora, como o vazio é conceituado corretamente? [...] O que permanece no lugar que se conhece como ele realmente é, que “aqui’ há algo existente”. Shunyata, portanto, é tratado como existente pela Yogacara, mas é

23


24 Como observei anteriormente, a literatura Prajnaparamita serviu como fonte tanto para Nagarjuna quanto para Asanga88. Mas os dois pensadores escolheram diferentes abordagens, de linguagem e de estilo, para elucidar o verdadeiro significado de shunyata. O método crítico e de negação de Nagarjuna assustou muitos, parecendo não dar chão onde se pudesse pisar, a não ser a prática do ensinamento de Buddha. O próprio Nagarjuna reconheceu as possibilidades de má interpretação. Em seu Mulamadhyamakakarika, ele cita um possível oponente: “Se tudo isso fosse vazio, então não haveria criação nem destruição [...]”. Mas confiante em seu entendimento do vazio, Nagarjuna responde: “Se tudo isso não fosse vazio, então não haveria criação nem destruição [...]” Aqui ele claramente dá expressão ao fato de que o vazio não é o nada. Ao contrário, ele é a condição necessária para haver qualquer coisa. Em conformidade com o Caminho do Meio (que, assim, evita os extremos do eternalismo e do nihilismo), Nagarjuna alertou, por um lado, contra se considerar shunyata como fosse em si mesma uma coisa hipostasiada e, por outro lado, contra acreditar que ela significa a total destruição de toda a realidade. Infelizmente, contudo, a abordagem de negação de Nagarjuna resultou em muitas más interpretações, por parte dos seguidores, de shunyata como nihilismo absoluto. Em grande parte, foi para corrigir essa má compreensão de shunyata que Asanga escreveu suas obras filosóficas, das quais um representante é o Capítulo Tattva89. Para realizar a tarefa de esclarecer o principal ensinamento mahayana de modo equilibrado, inteligível e menos assustador, Asanga utilizou vários métodos (upaya). Um foi a invenção de um modelo “ontológico-psicológico”90 para explicar a bifurcação da realidade aparente em um sujeito e um objeto. Será dito mais sobre esse modelo na próxima seção. Outro foi o que pode ser chamado uma abordagem nominalista. Essa abordagem aparece eminentemente no Capítulo Tattva. Ainda outro foi a introdução extremamente importante de um novo esquema no qual o modelo das chamadas “três naturezas” (trisvabhavas ou trilakshana) é utilizado para expandir e complementar a antiga fórmula mahayana das “duas verdades”. Segundo o esquema antigo, uma teoria encontrada em muitos dos primeiros textos mahayana e de especial importância para a Madhyamika, a realidade ou a verdade (satya91) é constituída de duas partes: (1) o que pode ser chamado superficial, convencional ou realidade

importante vê-lo por essa caracterização. Asanga procura afirmar que shunyata existe como modo último de existência de todas as coisas (e não ele mesmo como uma coisa existente). 88 É sabido que Asanga escreveu comentários sobre alguns textos da literatura Prajnaparamita. Seu comentário ao Vajracchedikasutra está entre os reunidos por G. Tucci no Minor Buddhist Texts, Parte 1. Além disso, o Sutra do Coração é frequentemente referido como um texto yogacara. 89 Muitos dos escritos de Asanga podem ser vistos como relacionados mais à prática do que, a rigor, ao ensinamento. O Bodhisattvabhumi é um bom exemplo disso. Segundo o Fundamentals of the Buddhist Tantras (tradução de Lessing e Wayman, p. 99), de mKhas-grub-rje: “O Capítulo Tattva, do Bodhisattvabhumi, ensina filosofia, enquanto os outros ensinam a prática. Exceto esse capítulo, todos os outros, que apresentam a prática, constituem um comentário sobre o significado geral da seção sobre sutra mahayana”. Portanto, não devemos procurar nenhum outro além do Capítulo Tattva para ter uma ideia da posição filosófica de Asanga, especialmente com relação às suas visões sobre o ensinamento mahayana sobre a realidade última. 90 Essa linguagem é emprestada do The Cult of Tara, de Stephan Beyer, especialmente pp. 92 ff. Na pág. 92, Beyer afirma: “Muito da psicologia ontológica budista é uma tentativa de explicar em termos históricos por que cometemos um erro epistemológico sistemático em nossa apreensão do mundo, por que lhe atribuímos uma solidez que, na verdade, ele não possui”. 91 Satya (bden pa) - Verdade. Literalmente, o que está de acordo com a realidade (sat).

24


25 relativa, samvrti satya, e (2) a realidade profunda, última ou absoluta, paramartha satya92. Assim, os madhyamikas muitas vezes ofereceram os termos “em última instância” em contextos que requerem uma explicação sobre o modo em que as coisas são na verdade, em contraposição ao modo em que elas parecem ser. Para Asanga, a teoria das duas verdades não bastava. Portanto, ele criou um esquema que afirma que todos os fenômenos possuem três naturezas: (1) uma natureza construída mentalmente e, portanto, imaginária (parikalpita); (2) uma natureza dependente ou relativa (paratantra) e (3) uma natureza perfeita ou absoluta (parinishpanna). Empregando esse esquema, Asanga podia continuar a dizer — como Robert Thurman resumiu sucintamente — que: Quando se diz que todas as coisas são vazias de substância intrínseca, isso se aplica a elas somente em sua natureza mentalmente construída — elas continuam a existir como coisas relativas, e sua relatividade inefável destituída de diferenciação conceitual é sua natureza absoluta 93.

A natureza parikalpita do esquema de Asanga é sinônimo de samvrti satya da teoria das duas verdades, e o parinishpanna é o correlato inefável de paramartha satya. O que Asanga fez ao introduzir a terceira categoria no esquema é fornecer ao praticante budista uma proteção contra o nihilismo94. Ele foi o responsável pela passagem prática para a libertação fornecendo a transição, para se tomar consciência, a partir do convencional para o conhecimento absoluto. Ele afirmou shunyata como o princípio subjacente existente e estrutura formal de toda existência relativa. Na passagem do Capítulo Tattva, Asanga escreve: Mas como o vazio é conceituado corretamente? Sempre e em qualquer lugar em que algo não estiver, observa-se corretamente que esse [lugar] está vazio dele [desse algo]. Além disso, o que permanece nesse lugar é conhecido como realmente é, que “aqui há um existente”95.

Quando todas as falsas dualidades de sujeito e objeto, de designações e bases de designações são abandonadas, o vazio, como modo último de toda existência relativa, permanece. Como será visto, o Capítulo Tattva fala demoradamente sobre a relação entre nomes (prajnapti96) e seus referentes (aqui, vastu), e sua exegese do capítulo está firmemente baseada no esquema das três naturezas. O chamado modelo “ontológico-psicológico” que é muitas vezes associado com afirmações de que a Yogacara propõe uma forma de idealismo absolutista está completamente ausente desses dois textos. Há, contudo, referência a esse modelo na próxima seção.

92

Paramartha-satya (don dam bden pa) - Segundo a filosofia mahayana, a verdade (satya) que está de acordo com o último ou supremo (parama) significado (artha). Portanto, “verdade absoluta”. 93 Robert Thurman, “Buddhist Hermeneutics”, Journal of the American Academy of Religion, 46 (1978), 27. 94 Isso está em completo acordo com a afirmação de Thurman. 95 Beyer, The Cult of Tara, p. 95, traduz essa passagem um pouco diferentemente. Ele escreve: “Quando algo não existe em algum lugar, vê-se verdadeiramente que ele está ‘vazio’ com relação a ele, e quando algo permanece lá, sabe-se que ele realmente está lá”. Beyer continua: “Quando a não realidade é esvaziada de sujeito e objeto, o que permanece — o que ‘realmente está lá’ — é o Vazio”. Novamente, para Asanga, shunyata é a estrutura formal da existência relativa, o modo último dessa existência. 96 Prajnapti (gdags pa) - Designação. Também, o fenômeno de imagem mental composto junto com o nome. Como “atribuição mental” a uma base de atribuição (aqui, vastu), esse termo constitui um ingrediente essencial na explanação de Asanga aqui.

25


26

26


27

DUAS LINHAS DA YOGACARA E ALGUMAS CONFUSÕES POSTERIORES Se, como argumentei, a principal preocupação no Capítulo Tattva é esclarecer o ensinamento sobre shunyata, por que a escola que ele fundou é vista — quase unanimemente — como se tivesse simplesmente defendido um idealismo absoluto? Parte da razão foi observada pelo Dr. D. T. Suzuki quando escreveu, em 1930: Muitos estudiosos budistas frequentemente estão prontos para fazer uma distinção precisa entre as Escolas Madhyamika e Yogacara, assumindo que uma defendeu exclusivamente a teoria do vazio (shunyata), enquanto a outra se obstinou em uma interpretação idealista do universo. Eles ainda aceitam que a ideia de vazio não é encontrável na Yogacara e que o idealismo está ausente na Madhyamika. Isso não é exato em termos de fato histórico97. Na verdade, vários fatores contam para a percepção equivocada do real posicionamento de Asanga. Parece que havia uma tendência, por parte dos estudiosos budistas, de tratar as respectivas “escolas” de Budismo como se defendessem rigidamente e seguissem posições isoladamente definidas e de ver os fundadores dessas escolas como pensadores que apresentavam seus sistemas de pensamento próprios e originais, em oposição um ao outro e até aos sutras98. Sem dúvida, os mestres budistas clássicos diferiam em estilo, entendimento e interpretação, contudo, vê-los como antagonistas por causa disso é um erro. A prática de tratar as “escolas” como unidades de ensinamento filosófico distintas e inflexíveis provoca a visão de que eram contrárias umas às outras e de que não houve continuidade ou comunicação entre elas. Esse parece claramente ter sido o destino histórico da Escola Yogacara, pois os estudiosos sistematicamente defenderam que essa escola propunha o idealismo. Seu ensinamento central é o de que a “mente (citta99), ou a consciência (vijnana), é a única (matra) e exclusiva realidade” 100. Novamente, dado que, pelo menos no Capítulo Tattva, Asanga claramente declara o vazio, e não a mente, como o único absoluto em última análise, como essa abordagem sobre a Yogacara continua sendo geralmente aceita? Abordagens que procuram caracterizar o conjunto do pensamento yogacara como uniformemente “idealista” pouco reparam no fato de que, historicamente, e segundo os próprios

Ver seu Studies in the Lankavatara Sutra, p. 170. Somos levados a concordar com a abordagem do Reverendo Walpola Rahula encontrada em seu “Vijnaptimatrata Philosophy in the Yogacara System and Some Wrong Notions”, p. 118, de que, longe de fundar novas escolas filosóficas, tais pensadores estavam apenas “expondo o antigo ensinamento com suas próprias e modernas interpretações, explanações, argumentos e teorias, segundo seu próprio temperamento, habilidade, conhecimento e experiência. [...] Sua contribuição para o Budismo não está em oferecer uma nova filosofia, mas em fornecer, de modos fascinantemente diferentes, novas e brilhantes interpretações e explanações da antiga filosofia”. 99 Citta (sems; yid) - Termo utilizado de várias maneiras para significar a mente, a consciência ou o pensamento em si. 100 Por exemplo, a obra de A. K. Chatterjee, The Yogacara Idealism, está repleta com a frase: “A Yogacara sustenta que a consciência é a única realidade”. Essa afirmação parece ter-se tornado um lema para caracterizar a posição filosófica da escola como um todo. Outros exemplos podem ser encontrados no Central Philosophy of Buddhism, pp. 105 e 197, de R. R. V. Murti, e em History of Buddhist Thought, p. 233, de E. J. Thomas. 97 98

27


28 textos, existiram pelo menos duas correntes diferentes do pensamento yogacara101, ou seja, (1) o que pode ser chamada uma linha “original”, proposta por Maitreya, Asanga, Vasubandhu e Sthiramati, e (2) uma linha “posterior”, que ganhou expressão principalmente com mestres como Dharmapala102 e Hsüan-tsang103. Ambas as “correntes” foram introduzidas na China — a primeira por Paramartha e a segunda por Hsüan-tsang — e, posteriormente, foram transmitidas também no Japão. Além disso, enquanto há clara evidência de que a segunda corrente de pensamento, como exposta por Dhamapala e outros, possui um caráter “idealista” 104, o mesmo não pode ser dito e não deve ser aceito em relação à primeira “linha”, embora, na verdade, esse tenha sido o caso em geral. Alguns estudos comparativos recentes mostraram que existem diferenças fundamentais entre as posições assumidas pelos primeiros mestres yogacara e pelos posteriores. Por exemplo, a obra de Yoshifumi Ueda105 apontou várias áreas de grandes diferenças nas interpretações de conceitos-chaves como expostos por Vasubandhu e Sthiramati, de um lado, e por Dharmapala, de outro. A abordagem de Ueda claramente mostra que Dharmapala deu um viés idealista a muitos termos que não haviam sido utilizados dessa forma por Vasubandhu e Sthiramati. Essa tendência idealista refletiu-se em muitas obras traduzidas por Hsüan-tsang. Contudo, muitos estudiosos basearam-se fundamentalmente, para conhecer a Yogacara, nos relatos de Dharmapala sobre a tradição, junto com sua exegese dos dois pequenos tratados de Vasubandhu, Vimshatika e Trimshika, permitindo que essa linha idealista posterior da escola falasse por todo o pensamento yogacara106. Os problemas que resultaram de não se delinear cuidadosamente as duas linhas Com “duas correntes diferentes” não quero dizer as divisões geralmente aceitas da Yogacara nos chamados 1) primeiros idealistas e 2) lógicos posteriores. Sem dúvida, Dignaga, que era um discípulo de Vasubandhu, segundo a tradição budista, realmente estabeleceu um novo ramo da Yogacara que deu muita ênfase à lógica e diverge em pontos importantes das posições de Asanga e Vasubandhu. Contudo, minha preocupação, no presente estudo, é tentar delinear as duas correntes de pensamento dentro da chamada fase “idealista” da Yogacara. Afirmo que, enquanto os yogacaras posteriores, como Dharmapala (séc. VI), empregam termos chaves associados com a escola de modo que parecem negar completamente a existência de coisas externas, os primeiros mestres da escola — Asanga, Vasubandhu e Sthiramati — não. 102 Dharmapala - Mestre budista indiano cujos comentários, principalmente sobre o Vimshatika e Trimshika, serviu como fundamento para a grande síntese do pensamento yogacara traduzido por Hsuangtsang como o Ch’eng wei Shih lun, ou seja, Vijnaptimatratasiddhi. 103 Hsüan-tsang - Conhecido tradutor chinês de inúmeros tratados budistas filosóficos. Responsável por introduzir na China a tradição do pensamento Yogacara “posterior”, embora seja mencionado aqui especialmente em associação com sua obra de tradução do Ch’eng wei Shih lun, ou Vijnaptimatratasiddhi. 104 Para explicações extremamente úteis sobre esse assunto, ver Yoshifumi Ueda, “As Duas principais Correntes de Pensamento na Filosofia Yogacara”. 105 Ibid., pp.156-62. 106 Os escritos de Dharmapala foram traduzidos para o chinês por Hsüan-tsang como o Ch’eng wei shih lun, que agora está disponível em francês por meio dos impressionantes esforços de tradução de La Vallée Poussin. Veja seu Vijnaptimatratasiddhi — La Siddhi de Hiuan-tsang. Takakusu, in The Essentials of Buddhist Philosophy, pp. 83-84, aponta que, após a morte de Vasubandhu, houve três outras linhas de desenvolvimento da Yogacara: (1) a linha de Dignaga, Agotra e Dharmapala, cujo centro de transmissão era a Universidade de Nalanda, (2) a linha de Gunamati e Sthiramati, cujo local parece ter sido a Universidade de Valabhi, e (3) a linha de Nanda, “cuja filosofia era seguida por Paramartha”. Embora listada primeiramente, a linha de Dharmapala não foi, historicamente, a primeira a chegar à China. As traduções de Paramartha das obras de Maitreya, Asanga e Vasubandhu foram para lá muito antes de Hsüan-tsang introduzir a tradição “posterior” do pensamento yogacara por meio de sua tradução de uma grande síntese de Dharmapala. Contudo, essa tradição é bem mais conhecida pelos estudiosos contemporâneos, enquanto as outras são bem menos. 101

28


29 histórica e filosoficamente diferentes da Yogacara são óbvios. Não as distinguindo, não somente nos confundimos ao determinar que transmissão é mais fiel à forma e ao conteúdo originais do sistema, mas, igualmente, não conseguimos afirmar com algum grau de exatidão quais foram, originalmente, as posições reais. Assim, existe uma necessidade premente de mais traduções das obras dos primeiros mestres da escola. Mais ainda, muito trabalho precisa ser feito com um “método estritamente histórico-filológico”107, pois nossos problemas, particularmente com relação à Yogacara, são piorados bastante pelo fato de que importante terminologia muito frequentemente associada com a escola foi mal interpretada e consequentemente mal traduzida, não somente pelos proponentes da linha posterior de tradição, mas também por estudiosos do Budismo. Termos como alayavijnana, cittamatra108, vijnana e vijnaptimatra, que aparecem eminentemente em muitos textos yogacara, foram lamentavelmente mal interpretados. Eles representam os conceitos centrais em obras como os Sutras Samdhinirmocana e Lankavatara. E eles são encontrados em alguns dos escritos de Asanga, principalmente no Mahayanasamgraha. Embora esses termos estejam totalmente ausentes do Capítulo Tattva, por causa de sua grande importância para a Yogacara como um todo, é necessário e útil, eu sinto, prestar alguma atenção a eles aqui, mesmo que apenas brevemente. Como mencionado anteriormente, um dos expedientes (upaya) de Asanga foi a explicação de um modelo “ontológico-psicológico” para detalhar o desdobramento da consciência que cria a realidade aparente da dualidade sujeito-objeto. Central para esse modelo era a noção de alayavijnana (“consciência-receptáculo” ou “consciência subjacente”). Segundo esse modelo, a consciência (vijnana), impelida pelo karma109 (aqui, ações anteriores), hipostasia a aparência de dualidade, embora essa dualidade não exista na verdade. O modelo afirma que a consciência ocorre pelo desdobramento em oito formas: as primeiras seis são as percepções dos cinco sentidos junto com a percepção mental. A sétima é a “mente contaminada” ou a consciência iludida pela noção de um “eu”, e uma oitava consciência é chamada alayavijnana. Enquanto os cinco primeiros “desdobramentos” parecem se referir às informações objetivas; e a sexta e a sétima, às informações subjetivas, todas as sete consciências funcionam somente para refletir as informações fornecidas pela consciência-receptáculo subjacente, alayavijnana 110. Esse procedimento é enfatizado e bem utilizado por Schmithausen. Veja, por exemplo, “On the Problema of the Relation of Spiritual Practice e Philosophical Theory in Buddhism”. 108 Cittamatra (sems tsam) - O termo é normalmente traduzido incorretamente como “apenas a mente”, com uma conotação absolutista. Como um nome próprio, é utilizado para se referir à escola de pensamento budista mahayana fundada por Maitreya e Asanga. Um nome alternativo posterior é Vijnanavada. 109 karma (las) - Da raiz sânscrita do verbo Kr, “agir ou fazer”. O nome significa “ação”. No Budismo, o termo refere-se especialmente à lei da causa e efeito, ou seja, ao princípio de que cada ação produz algum resultado. 110 Embora explicada por Asanga há cerca de 1.500 anos, a noção de alayavijnana é, na verdade, não muito diferente das teorias psicológicas dos dias de hoje sobre o inconsciente. Ela se refere a um repositório subconsciente, subliminar de cognições que funciona como um tipo de centro de informações onde todos os acontecimentos mentais (dharmas) são processados. Para citar Schmithausen, IBID. p. 237, “Os conteúdos objetivos dessa alayavijnana consistem de uma imagem mental do mundo todo e são determinados por ações anteriores positivas ou negativas (karman) do respectivo ser vivo. Assim, o mundo todo, especialmente, o mundo exterior, é somente uma produção subjetiva mental de cada ser.” Esse modelo é coerente com a teoria de “apenas conceituação” (vijnaptimatra), que declara que cognições comuns não “alcançam” realmente os objetos externos. Ao contrário, elas são somente reflexos mentais, imagens mentais (vijnapti). É claro que deve ser observado, nas palavras de Schmithausen (ibid. pp. 237-38), “que, para os yogacaras, até este múltiplo universo de fatores mentais variáveis é somente um nível imperfeito e preliminar de realidade. Na intuição mística, pode-se tomar consciência de uma realidade mais 107

29


30 Esse modelo levou muitos estudiosos do Budismo a concluir que a Yogacara considerava alayavijnana a realidade última. Por exemplo, E. J. Thomas, em seu History of Buddhist Thought, afirma: “Existe uma realidade última, real, além de qualquer coisa que possa ser afirmada sobre o que entra no campo da experiência. Ela é pensamento (citta) ou mente, não mente como existente na variedade em que é experimentada, mas sem qualquer diferenciação, chamada “consciênciareceptáculo” (alayavijnana)”111. Contudo, supor que Asanga entendeu alayavijnana como um sinônimo para a realidade última é desconsiderar suas próprias afirmações (bem como de Vasubandu e Sthiramati) em sentido contrário. Para Asanga, o conceito de alayavijnana é parte de uma explanação inovadora do antigo ensinamento budista sobre o nairatmya (“não essência”)112. Segundo o pensamento mahayana, não existe “essência no eu” (pudgala113- ou atma-nairatmya), nem “essência nos dharmas (dharmanairatmya). Mas os seres comuns têm a falsa noção de que ambos, ou seja, sujeito e objeto, existem por sua própria conta. A teoria sobre alayavijnana é desenvolvida e exposta por Asanga em resposta à questão: “Como e por que essa falsa noção surge?” Ela não foi apresentada por ele como uma proposição metafísica. Outro escrito de Asanga também evidencia que alayavijnana não é proposta em sentido absoluto. Por exemplo, em seu Abhidharmasamuccaya, enquanto abordava a definição do “agregado da consciência” (vijnana-skandha), Asanga afirma: “ Qual é a definição do agregado da consciência? É mente (citta), órgão mental (manas) e também consciência (vijnana). E o que é mente (citta)? É alayavijnana [...]”114 Assim, citta é equiparada a alayavijnana115, e ambas estão incluídas no vijnana-skandha (o agregado da consciência). Mas todos os cinco skandhas116 são anitya (impermanentes), duhkha117 (sofrimento) e anatma (sem essência), como o próprio Asanga observa depois nesse mesmo texto. 118 Talvez não exista termo mais mal compreendido e mal interpretado em todo o estudo da Yogacara do que cittamatra. Visto, ao mesmo tempo, como um dos mais característicos aspectos do ensinamento filosófico da escola e, na verdade, como a designação de seu absoluto ontológico, esse termo chega a representar, para a maior parte dos estudiosos, a própria marca da escola. Sua tradução literal como “apenas mente” é enganadora, sugerindo, como o faz, um idealismo profunda constituída do chamado ‘tathata’, ‘verdadeira essência’”. 111 E. J. Thomas, History of Buddhist Thought, p. 233. Veja também, p. 234, onde Thomas escreve: “Tendo sido todas as coisas explanadas como mente ou consciência, a realidade última é então interpretada como a consciência receptáculo fundamental”. 112 nairatmya (bdag med pa) - Não eu. O termo descritivo na filosofia budista utilizado para afirmar a ausência de um “eu” ou uma “essência” permanentes no ente para o qual ele é aplicado. 113

Pudgala (gang zag) – Termo utilizado para designar uma “pessoa” ou “indivíduo”. É frequentemente um sinônimo para atman, ou “eu”. A tradução literal do tibetano é “o que está inchado” ou “estufado”. 114 Ver Abhidharmasamuccaya, edição Pradhan., pp. 11 ff. 115 Citta e alayavijnana são também tratadas como idênticas no Samdhinirmocanasutra (Lamotte trans. PP. 55, 185) e ao longo do Lankavatarasutra. 116 Skandha (phung po) - Literalmente, “ombro”, em sânscrito, e “pilha”, em tibetano. O termo refere-se figuradamente ao “carregador do fardo [do ego]”. Ele é utilizado na filosofia e na psicologia buidsta para significar os cinco agregados da personalidade ou elementos psicofísicos comumente pensados como um “eu” ou “pessoa”. 117 duhkha (sdug bsngal) - Normalmente traduzido como “sofrimento”, o termo refere-se a todas as formas de desconforto ou enfermidade. É a marca principal da existência samsárica. 118 Ver Abhidharmasamuccaya, ed. Pradhan, pp. 11 ff.

30


31 absoluto. Essa tradução é especialmente equivocada com relação às obras de Asanga, visto que, para ele, ao termo falta essa conotação absolutista. Cittamatra, em todo o início da Yogacara, deveria ser mais adequadamente traduzido como “apenas pensamento”, ou “simplesmente pensamento” e visto mais apropriadamente funcionando dentro do reino do discurso referente, sobretudo, à experiência meditativa, ou seja, dentro do discurso sobre a prática espiritual como oposta estritamente à teoria filosófica. (O leitor se lembrará de que o nome mais antigo da escola, “Yogacara”, pretendia enfatizar a importância fundamental da técnica meditativa como meio de se alcançar uma visão desimpedida da realidade última.) Cittamatra, sem dúvida, é um dos termos mais complexos e difíceis de lidar, por várias razões. Ele é um termo importante no Budismo Mahayana como um todo e, assim, ocorre tanto nas obras yogacara quanto madhyamika. Ele ocorre com significados diferentes em vários dos sutras mahayana que são considerados como autoridade específica em termos de escritura para a Escola Yogacara. Ele é usado em diferentes contextos e com diferentes propósitos no que eu chamei Yogacara “do início” e “posterior”. E, finalmente, mesmo nos “inícios” da Yogacara, ou seja, nas obras de Asanga e Vasubandhu, cittamatra (e seu termo associado vijnaptimatra) parece ter tido, pelo menos, três usos intencionais distintos, conforme os estudiosos estivessem abordando (1) informação técnica referente à experiência meditativa em si, ou seja, a contextos e práticas meditativos específicos; (2) senso comum, conselhos como orientações de preceitos para seres comuns excessivamente apegados à materialidade (no caso em que se pode dizer que tinham um “significado provisório”, marcando um tipo de estágio intermediário em termos da prática em geral); ou (3) a análise filosófica e descrição da causa do sofrimento de seres comuns. É aqui que encontramos o ponto epistemológico importante da Yogacara de que, em toda cognição comum, o que é conhecido não é um retrato exato de um objeto que existe fora da mente, mas simplesmente uma imagem mental semelhante ao objeto (vijnaptimatra), somente um objeto “conceituado”, que é somente o produto da imaginação construtora. É impossível entrar em detalhes sobre todos os pontos acima, especialmente no espaço de uma “Introdução”. Contudo, por causa da importância fundamental do termo cittamatra, uma tentativa tem de ser feita para olhar para esses usos pelo menos dentro dos contextos de alguns sutras mahayana antigos e comentários dos inícios da Yogacara. Fazendo isso, temos de ter sempre em mente as mudanças de contexto para o termo, ou seja, se ele é encontrado em contextos relacionados mais à especulação puramente filosófica e teórica ou naqueles associados sobretudo com a prática espiritual e meditativa. Tal discussão deve fazer as devidas menções, pelo menos, aos seguintes sutras mahayana: Dashabhumika-sutra, Bhadrapalasutra, Samdhinirmocanasutra e Lankavatarasutra. O 119 Dashabhumikasutra , a rigor, não é um sutra do tipo de literatura yogacara, mas exerceu influência na Yogacara, especialmente em seus desdobramentos posteriores. No Capítulo VI desse sutra, encontra-se uma passagem bem conhecida: cittamatram idam yad idam traidhatukam (“Esses três reinos120, [os reinos do desejo, da matéria corpórea e da imaterialidade] não são nada além da Como Schmithausen observa (“On the Problem of the Relation of Spiritual Practice and Philosophical Theory in Buddhism”, p. 244), o Dashabhumikasutra é anterior ao Bodhisattvabhumi e ao Sutra Samdhinirmocana: “Esse sutra já é mencionado no Capítulo Bodhisattvabhumi do Yogacarabhumi e foi traduzido para o chinês por Dharmaraksha ainda na última década do século III A.D. Assim, ele é, sem dúvida, mais antigo do que o Samdhinirmocanasutra, que, na verdade, também no Capítulo VIII, adota sua teoria dos dez estágios de um bodhisattva.” 120 A cosmologia budista reconhece três reinos, ou “mundos” (tridhatu), conhecidos como o reino do desejo (kamadhatu), o reino material ou da forma (rupadhatu) e o reino imaterial ou sem forma (arupyadhatu). 119

31


32 mente”). Essa passagem foi comentada por vários estudiosos budistas do Mahayana, tanto da Madhyamika121, quanto da Yogacara, ao longo de sua história. O contexto da passagem, à primeira vista, parece ser principalmente filosófico. Na verdade, a citação está centrada na discussão sobre a teoria budista da “originação dependente” (pratityasamutpada122). A interpretação padrão madhyamika da passagem é que a frase não nega as coisas externas, mas enfatiza que somente a mente (ou o pensamento) convencionalmente (samvrtitas) cria a coisas externas123. Por outro lado, normalmente se sustenta — os teóricos madhyamikas, bem como muitos estudiosos modernos — que, para a Yogacara, isso significa a negação de todas as coisas externas. Evidentemente, em face disso, uma interpretação idealista dessa passagem não parece particularmente estranha. Contudo, tem razão aquele que questiona isso quando observa as outras frases imediatamente próximas a essa. Como todas as outras sentenças, seguintes e anteriores, pressupõem a ontologia realista tradicional, essa frase parece incomum e um tanto quanto isolada, para dizer o mínimo. Esse fato levou L. Schithausen a concluir que o Dashabhumika provavelmente não foi o local onde a frase foi formulada primeiramente124. Alguns resultados dessas importantes investigações valem a pena citar na íntegra: Na verdade, a frase ocorre também, pelo menos, em outro sutra mahayana antigo, chamado Pratyutpannabuddhasammukha-avasthitasamadhisutra, também chamado Bhadrapalasutra, que foi traduzido para o chinês por Lokakshema já em 179 A.D., ou seja, mais de cem anos antes do Dashabhumikasutra. Como o longo título desse sutra indica, seu principal tema é um tipo especial de meditação visionária na qual o iogue se vê face a face com algum Buddha do tempo presente, especialmente com Amitabha ou Amitayus, o Buddha que reside no paraíso ocidental Sukhavati. No terceiro capítulo desse sutra, essas aparições do Buddha visualizadas na meditação são comparadas com visões de sonhos, com imagens refletidas e com cadáveres em decomposição e esqueletos visualizados na “contemplação do impuro” (ashubhabhavana). Assim como essas aparições imaginárias, os Buddhas visualizados na meditação também não são realmente encontrados pelo bodhisattva em meditação, mas somente projeções da mente do bodhisattva. E o que o bodhisattva deveria perceber é precisamente esse fato de que o Buddha visualizado não mais é do que a mente (cittam eva). Esse idealismo das imagens meditativas, contudo, tem de ser estendido a todos os fenômenos: assim como um homem, despertando de um sonho, compreende que todos os fenômenos são ilusórios como visões de sonho, da mesma forma, o reflexo do bodhisattva que entende que em sua meditação ele não encontra realmente o Buddha culmina na intuição do idealismo universal: “Esse mundo todo que consiste nas três esferas nada mais é senão a mente Wayman, no “The Meanings of the Term Cittamatra”, p. 1, observa que “a tradição da Terra Pura do Buddhismo japonês sustenta que Nagarjuna compôs o Dashabhumika-sutra. Isso não diminuiria essa tradição se essa famosa passagem sobre a cittamatra pudesse ser entendida sob o ponto de vista da Madhyamika, enquanto também sabemos que Vasubandhu escreveu um comentário em estilo Yogacara sobre o Dashabhumika-sutra”. 122 Pratityasamutpada (sten cong ‘brel par ‘byung pa) - Um dos ensinamentos quintessenciais da filosofia budista, o termo é uma frase descritiva que caracteriza o tipo de origem ou “surgimento” (utpada) que ocorre “junto com” (sam) ou é ocasionado pela (ou seja, é dependente da) ocorrência de algum outro fenômeno. O termo, especialmente no contexto do capítulo, possui afinidade com os termos anyonya hetuka, ou seja, “produção mútua”. 121

123

Ibid., p. 1. Wayman cita o comentário de Tsongkhapa ao Madhyamakavatara, de Chandrakirti, como a fonte para a sua interpretação. 124 Ver Schmithausen, “On the Problem of the Relation” . . . . p. 246.

32


33 (cittamatram idam [yad idam?] traidhatukam). E por quê? Porque [eu vejo, no caso da meditação, que ele aparece exatamente como eu imagino”125.

Claramente, portanto, nessa obra, que é anterior ao Dashabhumikasutra (bem como às obras de Asanga), o termo cittamatra foi primeiramente utilizado dentro do contexto da prática meditativa126. O que é “apenas mente” ou “totalmente mente”? A primeira resposta parece ter sido: “A imagem (alambana; pratibimba)127 conhecida durante intensa contemplação (samadhi)”. Essa foi uma resposta que procurava descrever o caráter “ideal” da imagem do samadhi, o objeto mentalmente visualizado pelo iogue em meditação. Esse parece ser o caso também dos exemplos iniciais de citamatra (e de vijnaptimatra) no Samdhinirmocanasutra. Isso está especialmente claro no oitavo capítulo dessa obra. Lá “a questão é levantada se as imagens que são o objeto de meditação (samadhigocarapratibimba) são diferentes da mente (citta) ou não. A resposta é que elas não são diferentes da mente porque elas nada são além de cognição (vijnaptimatra)128. Enquanto, em todo o volumoso Yogacarabhumi, de Asanga, existem extremamente parcos usos de cittamatra ou vijnaptimatra129 (texto longo, exceto pela seção Bodhisattvabhumi, obviamente pressupondo a ontologia realista das escolas hinayana), contudo, em seu Mahayanasamgraha (capítulo II), ele cita esta passagem do Samdhinirmocanasutra: Maitreya perguntou: “Muni, essas imagens percebidas na meditação são diferentes da mente (que as conhece) ou não são diferentes?” O Muni respondeu: “Maitreya, elas não são diferentes. E por quê? Porque essas imagens nada são além de representação mental” (vijnaptimatra). “Maitreya, eu expliquei que o objeto meditativo (alambana) da consciência (vijnana) é composto de (prabhavita) somente de representação mental” (vijnaptimatra)130.

125

Ibid. pp. 246-47. Enquanto o parágrafo final dessa citação mostra que o Bhadrapalasutra passa a “estender” a noção de cittamatra a todos os fenômenos, Schmithausen, p. 247, observa pontualmente que sua “tese do idealismo universal originou-se da generalização de uma situação observada no caso de objetos visualizados em meditação, ou seja, no contexto da prática espiritual”. 127 Alambana refere-se ao suporte mental da cognição, ou o objeto conhecido; pratibimba significa “imagem refletida”. Em contextos meditativos, alambana é equivalente a nimitta, literalmente, “signo” ou “marca”, que é aplicada tanto ao ideal objetivo, quanto ao ideal subjetivo de meditação”. Tecnicamente falando, existem três estágios ou níveis de nimitta: primeiro, é a “imagem mental preliminar” (parikamma nimitta) empregada na prática preliminar. Isso normalmente se refere a um objeto concreto da experiência comum. Segundo, a “pura imagem mental (uggaha nimitta), que é uma cópia exata do objeto, agora internalizado e apresentado vividamente à mente. Quando esse nível tiver sido apreendido, não existe mais necessidade de objeto ou artifício de meditação concreto. Por último, existe a chamada “pós-imagem” ou imagem contraparte (patibhaga nimitta). Nesse estágio da prática, diz-se que a concentração do praticante removeu da imagem suas “limitações” e “falhas” (kasina dosa) e a imagem se transformou em um conceito, uma ideia abstrata (que, contudo, permanece individualizada, pois ela ainda está associada a um objeto em particular). Nesse estágio final, Mahathera (Buddhist Meditation, p. 145) diz que a pós-imagem “não é mais apresentada aos sentidos ou à faculdade cognitiva como um objeto concreto. Mas essa imagem permanece na mente como uma representação emblemática de toda qualidade ou elemento que ela simboliza”. É essa última forma do objeto meditativo a que os yogacarins se referem — em contextos meditativos — como sendo “totalmente mente” (cittamatra) ou “totalmente conceituação” (vijnaptimatra). A descrição da transformação do artifício meditativo presume a realidade (e externalidade) da imagem preliminar, e assim, a realidade dos objetos comuns não é questionada. 128 Ver Schmithausen, “On the Problem of the Relation” . . . . p. 240. 129 Ibid., p. 238. Referindo-se ao Yogacarabhumi, Schmithausen observa: “Nesse texto, no meu entender, a filosofia idealístico-espiritualista da Yogacara posterior e seus termos característicos, vijnaptimatra e cittamatra, não são rastreáveis. Encontrei somente uma passagem na qual o texto afirma que somente a mente (cittamatra) realmente existe. Mas é um oponente que está falando na passagem, e, além disso, a afirmação não é, como geralmente, dirigida contra a existência de objetos reais fora da mente, mas simplesmente contra a opinião de que, fora da mente, temos que aceitar a existência de fatores mentais emocionais e volitivos”. 130 Ver La Somme du Grande Vehicule, I, 93-94. 126

33


34 É significativo que essa citação, focando como ela o faz, na natureza da imagem meditativa, é encontrada no Mahayanasamgraha, de Asanga, imediatamente após outra citação, ou seja, a famosa frase do Dashabhumika mencionada anteriormente. Claramente, para Asanga, o termo cittamatra e vijnaptimatra funcionam eminentemente nos discursos que fazem parte das genuínas instruções e práticas meditativas. A Yogacara, de fato, está preocupada primeira e principalmente com a mente (citta), sua natureza, desdobramento e funcionamento precisamente porque ela considera a mente essencial para o processo meditativo. Assim, ela é, simultaneamente, a fonte da libertação última. Isso é porque a meditação (samadhi) não é diferente da sabedoria (prajna)131. A consciência do funcionamento da mente é a prática meditativa por excelência, pois a compreensão intuitiva de que o objeto meditativo visualizado pela mente é criado pela mente e nada mais é do que a mente (cittam eva ou cittamatra) é simultaneamente a compreensão intuitiva direta de shunyata em si, ou seja, do vazio dos objetos e do sujeito. Parece haver um objeto “lá fora”, mas é compreendido na meditação que ele nada mais é além da mente, ou da consciência. Além disso, pela meditação, o próprio sujeito, do mesmo modo, é visto como ilusório. Havendo uma relação mútua e relativa entre esses dois, nem objeto nem sujeito existem independentemente, por sua própria conta. Esse fato é compreendido diretamente na experiência meditativa do bodhisattva iogue avançado. Falando da condução geral da experiência meditativa, Alex Wayman132 afirmou: No treinamento da yoga, deve-se transferir o objeto para a mente e, então, eliminar todo afastamento mental do objeto meditativo e evitar qualquer alteração do objeto meditativo em si. No estágio final dessa meditação, o objeto cessa de ser objeto, pois a relação sujeito-objeto foi transcendida. Com o “olho de prajna”, que não possui “olho”, o praticante vê a coisa na forma do vazio: ele a levou de volta para o reino onde ela reside em si, destituída de toda relação externa, e assim não é o “objeto” de um “sujeito”.

Novamente, importantes textos dos inícios da Yogacara tornam esse processo explícito. Por exemplo, nas palavras de Rahula133, o Mahyanasutralankara (Capítulo VI, verso 8 e comentário), declara que: O bodhisattva, tendo compreendido intuitivamente que nada há além do pensamento (citta), alcança a compreensão intuitiva de que esse pensamento (citta) ou “apenas pensamento” (cittamatra) em si não existe e, assim compreendendo que não há objeto (grahya) ou sujeito (grahaka), estabelece-se no Dharmadhatu134. 131

A identidade entre meditação e sabedoria é enfatizada mais nos textos Ch’an, ou Zen. Um bom exemplo é fornecido pelo famoso Sutra da Plataforma (do VI Patriarca), tradução de Yampolsky, p. 135: “Caros amigos, meu ensinamento do Dharma toma a meditação (ting) e a sabedoria (hui) como sua base. Nunca, sob qualquer circunstância, diga equivocadamente que a meditação e a sabedoria são diferentes. Elas são uma unidade, não duas coisas.A meditação em si é a substância da sabedoria; a sabedoria em si é a função da meditação. Em todos os momentos, quando existe sabedoria, a meditação existe na sabedoria; em todos os momentos em que existe meditação, a sabedoria existe na meditação. Caros amigos, isso significa que a meditação e a sabedoria são iguais. Discípulos, tomem cuidado para não dizer que a meditação causa a sabedoria ou que a sabedoria causa a meditação ou que a meditação e a sabedoria são diferentes uma da outra.” Parece claro que a Yogacara reconhecia essa identidade e a tornou o centro de seu ensinamento. Como Conze salienta em Buddhist Thought in India, p. 253: “Asanga recorre à experiência da meditação. Nossos processos mentais empíricos não estão todos no mesmo nível, e alguns estão menos distantes da verdade última do que outros. Na percepção dos sentidos comuns, o distanciamento é grande, mas não na meditação, porque ‘o praticante vê as coisas como elas realmente são’”. Novamente, como Schmithausen observa, “On the Problem of the Relation [...]”, p. 247, a chamada posição filosófica de idealismo da Yogacara “originou-se da generalização de uma situação observada no caso de objetos visualizados em meditação [...]”. 132 Wayman, “O Idealismo Yogacara”, in Philosophy East and West, 15, nº 1 (1965), 69. 133 Ver Rahula, “Vijnaptimatrata Philosophy [...]”, p. 122. 134 Dharmadhatu (chos kyi dbyings) - Literalmente, o “reino dos [todos] dharmas”. Esse termo é utilizado para caracterizar a totalidade de tudo o que existe e, assim, para demarcar os limites da realidade. É, às

34


35

Talvez nada ofereça prova melhor de que a “declaração” de cittamatra é somente um expediente do que o Bhadrapalasutra. Schmithausen escreve135: “Não devemos esquecer o fato de que o Badhrapalasutra simplesmente pretende introduzir [na discussão] a irrealidade dos fenômenos, e não estabelecer que a mente é uma realidade mais elevada. Isso está claro a partir dos versos da conclusão onde o sutra, depois de ter enunciado sua tese de que o Buddha visualizado em meditação nada é senão a mente e percebido somente pela mente (ou seja, que, neste caso, a mente nada percebe além de si mesma). “[Mas] a mente não pode conhecer a mente, a mente não pode perceber a mente”. [...] Assim, mesmo a noção de mente (como algo real) é somente ignorância e tem de ser abandonada. A redução dos objetos à mente é, assim, simplesmente um passo preliminar para a intuição do completo Vazio.”

Deve-se notar que essa última afirmação de Schmithausen resume sucintamente o processo essencial e o objetivo da meditação tântrica e explica a importância reconhecida da Escola Yogacara no desenvolvimento do tantra budista em geral136. O Lankavatarasutra muitas vezes é apontado como um sutra mahayana associado com a Yogacara que verdadeiramente propõe o idealismo absoluto universal. Esse é, certamente, o caso em que se encontram no Lankavatarasutra várias ocorrências do termo cittamatra. Sobre todas elas pode-se autenticamente dizer que, pelo menos aparentemente, sugerem um idealismo completo. Nele não se encontram discussões sobre a imagem em samadhi nem de outros aspectos da experiência meditativa em si. Ao contrário, o sutra parece falar diretamente da situação da pessoa comum. Ele diz que todos os objetos comuns considerados normalmente como existentes como realidades externas são “nada além da mente”. Por exemplo, esse sutra, no Capítulo III, verso 33, alega citar o Buddha ao dizer: O mundo externo não existe, e a multiplicidade de objetos é o que é visto da mente. Corpo, experiência dos sentidos, local — eu chamo mente apenas (cittamatra)137.

Assim, pareceria que o sutra faz uma afirmação muito mais categórica do idealismo absoluto do que qualquer obra comumente associada com a Yogacara, certamente mais do que qualquer sutra mahayana mais frequentemente citado nessa associação. Dois breves comentários devem bastar inicialmente em relação a isso. Primeiramente, o Lankavatara em si não é um sutra que estaria de acordo com as primeiras exposições da Yogacara, seja de Asanga ou de Vasubandhu. Em segundo lugar, mesmo no contexto do Lankavatara, o termo cittamatra pode ser visto como tendo um uso “intencional”, trabalhando somente em um sentido de significado provisório138. O Lankavatara é conhecido por ser um texto sincrético, “mais caótico em composição, muito provavelmente porque foi desenvolvido gradualmente, reunindo discussões sobre uma grande variedade de tópicos que interessavam ao movimento idealista.” 139 Dr. Suzuki descreveu o texto como “um memorandum mantido por um mestre mahayana, no qual ele colocou talvez todos os vezes, empregado como um título para a realidade última. 135 Schmithausen, “On the Problem of the Relation” . . . . p. 247-48. 136 No The Dawn of Tantra, p. 12, por exemplo, Chogyam Trungpa Tulku faz a seguinte afirmação: “A ideia de tantra como continuidade associa essa investigação com a filosofia da Yogacara, pois essa antiga escola indiana de filosofia budista foi essencial para o desenvolvimento da ideia de tantra”. 137 Wayman, no “The Meanings of the Term Cittamatra”, p. 8, também cita esse verso, traduzindo o verso inicial como “Nada há manifesto fora, pois a mente manifesta a multiplicidade”. 138 O termo neyartha é utilizado para se referir aos ensinamentos budistas que são dados em termos de verdade relativa que requerem mais interpretação. É mais bem traduzido por significado “indireto” ou “interpretável”. 139 Essa descrição é de Warder, Indian Buddhism, p. 432.

35


36 ensinamentos importantes aceitos pelos seguidores mahayana de sua época”140. Dado esse caráter geral da obra, uma explicação detalhada sobre ele claramente não pode ser tentada aqui. Mas devemos notar, de passagem, que o Lankavatara, no Capítulo VI, identifica alayavijnana com um conceito chamado Tathagatagarbha (a semente do Tathagata 141) e que essa identificação não é aceita pela Yogacara inicial de Asanga/Vasubandhu142. Como mencionado anteriormente, é possível ver a maior parte das declarações “idealistas” do sutra apresentadas somente em sentido provisório, com a intenção de desviar a atenção dos seres sencientes de suas preocupações com o materialismo 143. De fato, essa era a opinião do grande Tsongkhapa, que se referia ao Lankavatara como um sutra de significado “provisório” ou “indireto” (neyartha) que requer mais interpretação (como aposto ao de significado “final” ou “definitivo” (nitartha). Para confirmar sua avaliação do Lankavatara, Tsongkhapa cita um verso retirado daquele texto144: Do mesmo modo em que um médico oferece um remédio a um paciente e um remédio a outro paciente, os buddhas ensinam a cittamatra para os seres sencientes.

Como observado anteriormente, o termo vijnaptimatra é frequentemente utilizado como sinônimo para cittamatra, especialmente em contextos meditativos, ou seja, Capítulo VIII do Samdhinirmocanasutra. Portanto, o que foi dito em relação ao termo cittamatra em tais contextos serve igualmente para o vijnaptimatra. Podemos aqui, contudo, aludir a outro uso “intencional” do vijnaptimatra. Enquanto o Mahayanasamgraha, de Asanga, tratou de dez tópicos específicos, foi Vasubandhu (em seu comentário ao Mahayanasamgraha e outros textos dos inícios da Yogacara) que designou vijnaptimatra como o conceito central da escola. Vasubandhu estava, antes de mais nada, preocupado com o discurso filosófico. A mudança na ênfase do discurso centrado na 140

Ver prefácio de Suzuki para o Lankavatarasutra, pág. xi. Tathagata (de bzhin gshegs pa) - Um epíteto de um Buddha. Significa literalmente “aquele que ‘assim foi’ ou ‘assim chegou’”, com referência ao Modo de Vida ou à Senda para a Iluminação. 142 Wayman faz a seguinte obervação em “The Meanings of the Term Cittamatra”, p. 8: “O Lankavatara tem o aspecto de identificar alayavijnana como o tathagatagarbha, o que não aparece na escola de Asanga e Vasubandhu.” A noção de tathagatagarbha propõe a teoria de que todos os seres sencientes têm a potencialidade do Buddhado. Seu principal texto é o Sutra Shrimala, que se considera ter auxiliado a inspirar o Lankavatarasutra. Os pontos divergentes entre a noção de tathagatagarbha e a de alayavijnana são explanados com detalhe na tradução de Alex e Hideko Wayman do The Lion’s Roar of Queen Shrimala. 143 Edward Conze, no Buddhist Thought in India, pp. 252-53, expõe eloquentemente sobre esse uso intencional: “(Sua) afirmação sobre a não existência dos objetos é, contudo, um artifício soteriológico, e sua principal função consiste em agir como o primeiro passo de uma meditação sobre as visões errôneas [...]. A simples negação da existência de objetos externos pertence a um estágio inferior e preliminar de compreensão e, embora possa aparecer bastante nas discussões filosóficas com escolas rivais, não é mais do que um trampolim para coisas melhores. A real questão de afirmar a irrealidade de um objeto qua objeto é avançar a retirada de todos os suportes objetivos externos, tanto por meio de crescente introversão da meditação, quanto pelo avanço em estágios mais elevados da trajetória de um bodhisattva, quando, como vimos, não mais ligado a um objeto, ele age a partir da livre espontaneidade de seu ser interior. Por longo período, ou seja, até ele superar o último vestígio de um objeto, o sujeito ( grahaka) deve parecer mais real ao bodhisattva do que o objeto. Mas no último estágio de sua jornada, ele consegue compreender que, com o colapso final do objeto, também o sujeito separado deixou de existir e que também o pensamento e seus acompanhantes, na medida que eles consideram um objeto, não constituem um fato último. 144 Citado em Wayman, “The Meanings of the Term Cittamatra”, p. 9. O verso citado por Tsongkhapa é o nº 123 no Capítulo II do Lankavatara. 141

36


37 cittamatra em um contexto meditativo para centrar-se no vijnaptimatra em um contexto filosófico parece ter sido realizada por Vasubandhu e motivada por seu próprio gênio original como popularizador da tradição. Em seus dois pequenos tratados bem conhecidos, o Vimshatika e o Trimshika, Vasubandhu salienta o vijnaptimatra, “apenas representação” ou “somente conceituação”. Geralmente, assume-se que, como resumido, por exemplo, por Kalypahana 145: O Vimshatika dedica-se a refutar a posição realista e é uma justificativa filosófica do ponto de vista idealista. Essa é uma obra eminentemente polêmica. O Trimshika é dedicado a um tratamento sistemático dos ensinamentos básicos dos idealistas.

Um modo alternativo e mais preciso de avaliar os dois tratados, eu acredito, é vê-los como se eles oferecessem, no primeiro texto mencionado, uma análise e uma descrição da causa do sofrimento dos seres comuns e, no segundo, uma análise e uma descrição da solução para esse problema146. Novamente, o Vimshatika ilumina a principal ilusão dos seres comuns, ou seja, considerar equivocadamente que o universo comumente percebido da aparência existe como percebido, em vez de considerá-lo como um universo distorcido pela conceituação de todos os tipos. De fato, esse encobrimento das imaginações construtoras (kalpana, vijnapti147, vikalpa) é tudo o que normalmente contactamos e conhecemos. Nós não vemos a coisa como ela realmente é, nós vemos somente uma coisa conceituada. E essa é exatamente a tese de Vasubandhu (como também foi de Asanga). Tudo o que normalmente percebemos é vijnaptimatra, é apenas “representação” ou “somente conceituação”. E, por causa disso, não é a realidade última. Abordando no Trimshika a solução do problema do sofrimento dos seres, Vasubandhu primeiramente, de forma sucinta, apresenta o modelo do desdobramento da consciência detalhando as oito consciências como descritas aqui anteriormente e então descreve o modo correto de conhecer a realidade última. Por exemplo, o texto começa assim 148: Porque nossa ideação faz surgirem as Falsas ideias de eu e dharmas, Existem várias mudanças das aparências.

O verso xx enuncia:

Por causa das falsas discriminações, Várias coisas são falsamente discriminadas. O que é apreendido por essa falsa discriminação Não tem natureza própria alguma. As seções finais são as seguintes: xxv. A suprema verdade de todos os dharmas

Kalupahana, Buddhist Philosophy: A Historical Analysis, p. 143. Resumindo o uso intencional por parte de Vasubandhu, Wayman, em seu “The Yogacara Idealism (Review Article)”, p. 68, oferece uma avaliação semelhante. Ele diz, com relação ao Vimshatika e ao Trimshika: “Na primeira obra, Vasubandhu enfatiza a noção de apenas-ideação (vijnaptimatra) porque ele está apresentando o processo de ilusão sobre o mundo criado pela “imaginação de irrealidade”, do Madhyantavibhanga. [...] Na obra posterior, Vasubandhu novamente enfatiza a noção de apenas-ideação porque eles está apresentando a remoção de toda ilusão sobre o mundo”. 147 Vijnapti (rnam par rig pa) - Conceitualização. O termo descreve a cognição comum, pela qual a percepção de uma coisa dada é distorcida por sobreposições, julgamentos e conceitualizações de todo tipo. No sistema de Asanga, o termo é freqüentemente um sinônimo para vijnana (rnam par shes pa). 148 Todos os versos seguintes são traduzidos a partir da versão chinesa de Hsüan-tsang por Wing-tsit Chan e se encontram no A Sourcebook in Indian Philosophy, de Radhakrishnan e Moore, pp. 333-37. 145 146

37


38 Nada é senão o tathata. Ela é sempre verdadeira para sua natureza, Que é a verdadeira natureza de mente apenas. xxvi. Como a consciência em seu estado não desperto Não está na morada da realidade de mente apenas, Os seis órgãos dos sentidos, seus objetos e as sementes dos desejos malignos Não podem ser controlados e extirpados. xxvii. Encontrar algo diante de si E dizer que isso é a realidade de mente apenas Não é o estado de mente apenas, Porque isso é o resultado da apreensão. xxviii Mas quando (o mundo objetivo que é) a base do condicionamento bem como da sabedoria (que realiza o condicionamento) Ambos são eliminados, O estado de mente apenas é intuído, Pois os seis órgãos dos sentidos e seus objetos não estão mais presentes. xxix Sem qualquer apreensão e além do pensamento Está a sabedoria supramundana (do estado de bodhisattva) Por causa do abandono da energia do hábito de vários Karmas e dos seis órgãos dos sentidos, bem como de seus objetos, A transformação do conhecimento relativo em perfeita sabedoria É realizada. xxx Esse é o reino da ausência de contaminações, ou da pureza, Que está além da descrição, é bom e é eterno, Onde se está em estado de libertação, paz e contentamento. Esse é o Dharma do Grande Buddha.

Vijnapti (conceituação) e vikalpa, traduzidos aqui como “pensamento discursivo”, são sinônimos nas obras de Asanga e Vasubandhu. Assim, para ambos, a intuição última (prajna) é caracterizada como nirvikalpajnana149, ou seja, como conhecimento que está completamente livre do pensamento discursivo, totalmente separado das construções imaginativas ou sobreposições. O termo, frequentemente mal-interpretado, vijnaptimatra, portanto, que Vasubandhu tornou a marca do pensamento yogacara, refere-se não a uma afirmação de idealismo absoluto, mas, ao contrário, a esse estado de conhecimento que surge quando se compreende diretamente a causa da ilusão, que é a compreensão de que, comumente, tudo o que percebemos está encoberto e são apenas (matra)

149

nirvikalpa (rnam par mi rtog pa) - Literalmente, “sem pensamento discursivo”. O termo descreve o estado de conhecimento da realidade eu é totalmente livre da distorção do pensamento discursivo. Em associação com jnana (conhecimento), portanto, o termo caracteriza a percepção direta que o bodhisattva tem da realidadecomo ela realmente é. Segundo o capítulo, isso é sinônimo do supremo e mais elevado conhecimento da realidade.

38


39 imagens construídas (vijnapti). Com essa compreensão, existe o simultâneo surgimento de prajna e a dissolução do sujeito e do objeto, daquele que vê e do que é visto. Enquanto tratados da linha “posterior” da Yogacara empregam o termo vijnaptimatra e cittamatra nos sentidos que aparentemente negam completamente a existência de objetos externos, esse uso parece claramente ter surgido em um período histórico e filológico posterior 150. De qualquer forma, toda essa terminologia, mais frequentemente associada com discussões da Yogacara, está particularmente ausente do Capítulo Tattvartha, de Asanga. Ao contrário, o capítulo apresenta um tipo de filosofia nominalista na qual os termos chaves são vastu e prajnapti (“coisa dada” ou “base do nome” e “designação”, respectivamente. Esses termos serão retomados na próxima seção.

Espera-se que o que antecedeu tenha jogado alguma luz nesse assunto. É interessante que, no “The Meanings of the Term Cittamatra”, de Wayman, p. 6, Masaaki Hattori é citado como tendo dito: “A Escola Yogacara desenvolvida procede do Vijnaptimatrata depois de Vasubandhu, e nessa escola posterior existe definitivamente uma negação do objeto externo”. 150

39


40

40


41

CONTEÚDO DO CAPÍTULO O Capítulo Tattva aborda diretamente o problema de se examinar e verificar corretamente o conhecimento da realidade como ela realmente é (yathabutam). A frase de abertura do capítulo, tattvartha katamah, “O que é conhecimento da realidade?”, introduz uma análise completa desse problema segundo o pensamento mahayana. O termo composto tattvartha requer alguma explicação aqui. Ele é composto de duas palavras sânscritas, das quais cada uma possui diversas conotações. Uma tradução literal de tattva151 é “hecceidade” (tat = “aquilo”, e tva = dade), ou “a qualidade de ser assim”, e refere-se ao verdadeiro ou real estado das coisas ou situações, ou seja, sua realidade em si mesma, separada de todos os elementos exteriores ou influências subjetivas. Etimologicamente, o termo possui afinidade com tathata, que geralmente é traduzido por “a qualidade de ser como tal” e normalmente aparece como sinônimo de shunyata (vazio), o verdadeiro estado das coisas, segundo o Mahayana. Embora a obra de Asanga empregue o termo tathata de modo coerente com o uso mahayana, ele é empregado moderadamente, e uma clara preferência é dada a tattva como termo-chave do capítulo. Como termo técnico, é interessante que tattva é normalmente utilizado para caracterizar realidades distintas e singulares, especialmente em tratados associados com escolas de yoga 152. Nesta tradução, o termo é sistematicamente traduzido por “realidade”. Artha, que eu traduzo por “conhecimento” ou “conhecer”, é uma palavra complexa em sânscrito que possui muitos significados e abrange toda uma gama de referentes. Ela pode ser traduzida por “alvo”, “objetivo”, “propósito”, “coisa”, “objeto”, “significado”, “natureza” e outras traduções, embora algumas sejam mais especificamente utilizadas em determinados contextos do que em outros. Embora “conhecer” e “conhecimento” sejam traduções incomuns para artha, essas traduções parecem, de fato, as mais apropriadas ao contexto do capítulo, já que o tema principal de Asanga durante todo o tempo é a caracterização de vários tipos de conhecimento sobre a realidade. Em seções anteriores do capítulo, artha é mostrado várias vezes como sinônimo para jnana (ou seja, “conhecimento” ou “atividade cognitiva”)153. Assim, como espero que uma leitura de todo o capítulo confirme ao leitor, “conhecer” no título e “conhecimento” na tradução em si são traduções ditadas pela linha geral da obra. Pode-se esperar que “significado” seja a tradução mais normal aqui, mas esse termo se provaria inadequado e até confuso no contexto do capítulo. Enquanto a exegese do capítulo, o Tattvarthavinishcaya, emprega artha no sentido de “objeto” ou “referente concreto” de um nome, ele 151

Tattva (de kho no [nyid]) - Literalmente, “estado de ser aquilo”. O termo é utilizado no capítulo para se referir à realidade em si, em seu estado último, destituído de toda caracterização. 152 Por exemplo, veja o uso de tattva dessa forma nas Escolas Samkhya e Yoga dos seis sistemas filosóficos hindus ortodoxos. A Samkhya fala de 24 elementos de realidade como tattvas, em referência ao eu (purusha), tomado como o 25º tattva. Mesmo o heterodoxo Sistema Jaina utiliza o conceito de múltiplos tattvas ao expor seu sistema. Os tantras budistas normalmente falam dos tattvas nesse último sentido, quando, por exemplo, o Tattva-samgraha lista 37 mudras, etc. Para uma explanação mais detalhada desses vários sistemas e seus usos do termo, veja K. Bhattacharya, Studies in Philosophy, vol. I, especialmente pp. 158-250; Lessing e Wayman, mKhas-grub-rje’s Fundamentals of the Buddhist Tantras e Radhakrishnan e Moore, A Sourcebook in Indian Philosophy. 153 Jnana (shes pa) - Conhecimento, tanto mundano, quanto supramundano. (O tibetano, às vezes, reserva ye shes para o tipo de conhecimento supramundano possuído pelos Buddhas.)

41


42 o faz somente com referência ao entendimento inferior dos seres comuns. O uso do termo “significado” quase invariavelmente induz ao envolvimento com ideias como a concepção agostiniana da linguagem e a chamada “teoria da correspondência de significado”, segundo a qual “o significado está correlacionado com a palavra. Ele é o objeto que a palavra simboliza” 154. Normalmente, pensamos que o “significado”, nessa teoria da correspondência da linguagem, se refere somente ao “objeto de conhecimento”. Mas, no contexto da epistemologia de Asanga, “significado” necessariamente teria que ter um sentido dual, abrangendo tanto o objeto de conhecimento quanto o próprio conhecimento. O “significado” da realidade tem de se referir ao objeto (aqui, realidade) como conhecido, ou seja, à realidade tanto como objeto quanto como experiência de conhecimento direto, na qual o objeto e sujeito se dissolvem em uma compreensão “não dupla”. Existe outra razão pela qual “significado” foi considerado inadequado no contexto do capítulo. O termo “significado” geralmente aparece em contextos em que algum adjetivo ou substantivo (aqui, “realidade”) está sendo definido, esclarecido, comentado, etc. Mas, como Wittgenstein bem salientou, um substantivo nos faz olhar para uma coisa — um objeto ou qualidade — que lhe corresponde. Agora, não somente Wittgenstein, mas Asanga também se esforçaram para mostrar que esse “essencialismo” decorrente da “teoria da correspondência do significado” confundia e não propiciava um entendimento da realidade como ela realmente é. No Capítulo Tattva, assim como em sua exegese, Asanga argumenta contra esse modo de pensar. Ele diz que os seres comuns (que possuem um conhecimento inferior da realidade) acreditam que um nome simboliza uma coisa e que cada coisa possui um nome. Além disso, por causa dessa suposição, os seres comuns acreditam que os nomes (que surgiram puramente por meio de convenção, e não por uma intuição do verdadeiro estado das coisas) caracterizam precisamente a natureza (ou essência) das coisas às quais eles são aplicados. Asanga argumenta exaustivamente, como o fazem todos os proponentes de shunyata (ou seja, vazio de essência), contra essa teoria do essencialismo. Em resumo, tattva, no uso de Asanga, refere-se às várias realidades como conhecidas (ou seja, vivenciadas) por diversos seres. E o termo composto tattvartha denota os vários tipos de conhecimento sobre a realidade. Artha é traduzido aqui como “conhecimento” ou “conhecer” por coerência e também para ressaltar a linha principal do capítulo. Embora não seja um texto longo, o capítulo aborda vários itens, cada um dos quais pode ser visto dando suporte ao tema central, a explicação de como um bodhisattva vê a realidade. O capítulo divide-se em quatro seções: I. Primeiramente, um delineamento detalhado do objetivo, ou seja, do verdadeiro conhecimento da realidade última e das práticas preparatórias para o bodhisattva que o busca. Essa seção vai do parágrafo inicial até a declaração do “modo de não proliferação”. II. Imediatamente após, há uma breve e sucinta seção, em estilo semelhante ao debate, na qual Asanga aborda o “raciocínio filosófico” que prova o caráter inexpressável de todos os dharmas. Essa seção vai até a descrição do “vazio corretamente conceituado”. III. Depois se segue uma discussão ainda mais breve que apresenta a autoridade dos textos para essa visão e entendimento adequados da “hecceidade” como delineado acima. Essa seção menciona e explica citações do Bhavasamkranti-sutra, o Arthavargiya e do Samtha-Katyayana-sutra. Ele vai da declaração final da autoridade dos textos e da linhagem do Tathagata de pessoas confiáveis”. 154

Wittegenstein, Philosophical Investigations, p. 2.

42


43 IV.

A divisão final do capítulo é igual, em comprimento, à primeira seção. Aqui Asanga discute as falhas do pensamento “discursivo” indisciplinado (vikalpa) e os meios para conseguir compreender completamente seu funcionamento. Como o pensamento discursivo e a conceituação de todos os tipos turvam nossa visão da realidade última, Asanga aqui se esforça para delinear e analisar esse pensamento. A discussão aponta que todo o processo de distorção “é composto de dois elementos apenas: pensamento discursivo e a coisa dada que se torna o suporte mental do pensamento discursivo” e que “esses dois são mutuamente produzidos (anyonya hetuka155)”. De fato, essa é uma das principais afirmações do capítulo, pois, do mesmo modo com que Vasubandhu mais tarde iria declarar vijnaptimatra (apenas conceituação) como o principal problema na percepção da realidade pelos seres comuns, Asanga aqui define o pensamento discursivo como o principal culpado156, que rouba aos seres a verdadeira visão da realidade. São enumerados oito tipos de vikalpa. Depois se segue uma discussão dos meios e das acumulações aos quais um bodhisattva deve recorrer para compreender completamente e, assim, combater esse pensamento. Em geral, o método prescrito é ver esse pensamento como pensamento apenas, designações particulares como “designações apenas” (prajnapti-matra). O bodhisattva realizado deve reconhecer, o capítulo afirma, que “existe apenas a simples semelhança de natureza essencial por meio das designações” e ele, ou ela 157, deve ver as designações que procuram distinguir uma 155

Anyonya hetuka (gcig gi rgyu las gcig byung ba yin pa) - Produção mutual, ou gênese na dependência um do outro. Literalmente, “da causa de um, o outro surge”. O conceito de produção mútua e dependência é fundamental para a explicação de Asanga aqui, onde é mostrado que o pensamento discursivo ocasiona a coisa dada, enquanto a presença da coisa dada gera o pensamento discursivo. Da mesma forma, havendo coisas, os nomes surgem, e vice-versa. Esse processo de dependência mútua é também caracterizado como sendo “sem início”. 156 A exegese que Asanga fez desse capítulo dedica a maior parte da discussão ao funcionamento de vikalpa e conclui exaltando o estado de nirvikalpa jnana, ou seja, “conhecimento completamente livre do pensamento discursivo”. 157 Bodhisattva, literalmente, significa “aquele cujo ser inteiro (sattva) está determinado a alcançar a Iluminação (bodhi). A rigor, portanto, não existe limitação associada com o termo quanto ao seu gênero. Isso não quer dizer, contudo, que o Buddhismo não faça distinção de gênero. Na verdade, as escrituras budistas antigas e posteriores defendem uma aceitação geral de que o objetivo supremo pode ser alcançado pelos homens e que as mulheres que buscam esse objetivo devem, primeiramente, reencarnar em forma masculina para alcançá-lo. Dado o contexto cultural da Índia do século VI a.C., bem como a importância do celibato da organização monástica budista inicial, não surpreende que as mulheres tivessem sido desvalorizadas. Coomaraswamy (Buddha and the Gospel of Buddhism, p. 160) cita o seguinte extrato dos primeiros sutras: —’Mestre, diz Ananda, ‘como devemos nos comportar perante as mulheres?’ —‘Vós deveis vos esquivardes de seu olhar, Ananda.’ —‘Mas se as virmos, mestre, o que então devemos fazer?’ — ‘Não falar com elas, Ananda’ —‘Mas se falarmos com elas, o que devemos fazer?’ —‘Então observai a vós próprios, Ananda’” I.B. Horner, em seu Women Under Primitive Buddhism, dedica todo um capítulo à relação de Ananda e do Buddha Gautama com as mulheres (veja esp. Pp. 295-312). Ananda, talvez o discípulo favorito de Gautama, é mostrado nos textos como um grande defensor das mulheres e possui a fama de ter impulsionado a admissão de mulheres na ordem budista. Mahaprajapati, tia de Buddha, tornou-se a primeira monja, ou bhikkhuni. Anteriromente a sua admissão, Ananda teria perguntado, “As mulhers são competente, venerável Senhor [...] para alcançar o resultado da conversão, alcançar o resultado de retornar uma vez [...] de nunca retornar, para alcançar o estado de arhat”? O Buddha não negou sua competência,

43


44 particularidade “com um significado não duplo”. Tal visão é alcançada com o desenvolvimento do desapego e do desprendimento. O objetivo último descrito pelo capítulo para o bodhisattva é o atingimento da “completa cessação do pensamento discursivo junto com a coisa dada [percebida]”. Esse estado é definido como o “Parinirvana do Grande Veículo”. O capítulo termina com uma descrição dos benefícios e dos consequentes deveres obtidos pelo bodhisattva assim amadurecido. Pode ser útil, a essa altura, resumir os tópicos específicos abordados pelo capítulo com um pouco mais de detalhe (os termos sânscritos são explicados nos devidos comentários). O texto se inicia com a afirmação de Asanga de que o conhecimento da realidade pode ser classificado em dois tipos: (1) conhecimento de todos os dharmas como eles são em si mesmos (bhutata158) e (2)

mas previu que, como resultado de fundar uma ordem de mulheres, seu ensinamento não iria durar muito tempo na Índia. Mas as mulheres foram admitidas na ordem budista, e elas realmente cultivavam o modo de vida monástico budista. Muitas alcançaram o estado de arhat e o nirvana, como atestaram em suas “canções de triunfo”, o Therigatha, traduzido por C.A.F. Thys Davids, como Salmos das Irmãs. Por outro lado, as escrituras mostram, como Coomaraswamy, p. 163, aponta, que Buddha possuía muitas seguidoras mulheres leigas devotas (e ricas). De uma lisat dessas ilustres mulheres do Budismo inicial estão: Khema, Uppalavanna, Patacara, Bhadda, Kisa Gotami, Dhammadinna e Visakha. Quando vamos para os textos do Mahauana, com sua perspectiva mais universal, podemos esperar encontrar menos desprezo explícito pelo sexo feminino, mas, geralmente, esse não é caso. Por exemplo, o Sutra do Lótus (H. Kern, trad. Capítulo XI, “Aparecimento de uma Estupa”, p. 252) lembra: “Então, o venerável Shariputradisse à filha de Sgara, o Rei Naga: ’Tu concebeste a ideia de iluminação, jovem de boa família, sem deslize e é dotada de imensa sabedoria, mas a suprema e perfeita iluminação não é facilmente obtida. Pode ocorrer, irmã, que uma mulher demonstre inesgotável energia, realize boas obras por muitos milhares de eons e viva à altura das seis perfeitas virtudes (paramitas), mas, por enquanto, não há exemplo de ter alcançado o Budado, e isso porque uma mulher não pode ocupar as cinco classe, ou seja: 1. A classe de Brahma; 2. A classe de Indra; 3. A classe de um guardião chefe das quatro direções; 4. A classe de Chakravartin; 5 a classe de um bodhisattva incapaz de regredir.

Kern acrescenta em uma nota a essa passagem: “Todos esses sers (i.e. da lista dos cinco) são, em sânscrito, do gênero masculino. Portanto, sua classe não pode ser alcançada por seres que possuam nomes femininos”. Em outra passagem do Lótus (Hurvitz, trad. Ch. 23, “Assuntos Antigos do Bodhisattva Rei da Medicina”, p. 300), encontramos: Se uma mulher, ouvindo este Capítulo dos Assuntos Antigos do Bodhisattva Rei da Medicina, pode aceitá-lo e mantê-lo, ela deve colocar um fim em seu corpo feminino e nunca mais receber outro.

O Vimalakirtinirdeshasutra, em um episódio que tem muita afinidade com a passagem imediatamente seguinte à que acabamos de citar do Lótus, uma deusa instrui Shariputra no sentido de que uma forma feminina não é impedimento para se compreender a natureza última, vazia, da realidade. Contudo, o eixo da passagem é que a realidade transcende toda distinção, incluindo as associadas com um dado sexo. Ele diz (Thurman, trad. P. 61): Shariputra: Deusa, o que te impede de saires de seu estado feminino? Deusa: Embora eu tenha buscado meu “estado feminino” por esses 12 anos, ainda não o encontrei. Venerável Shariputra, se um mágico se encarnasse como uma mulher por mágica, você lhe perguntaria: ‘O que te impede de sair de seu estado feminino?’ Shariputra: Não! Essa mulher não existiria realmente. Então, o que haveria para transformar? Deusa: Da mesma forma, venerável Shariputra, todas as doisas não existem realmente.

44


45 conhecimento de todos os dharmas como eles existem fenomenicamente, na totalidade (sarvata159). Esses são os dois tipos de conhecimento possuídos pelos Tathagatas 160. De fato, ambos equivalem ao mesmo conhecimento, já que, como é dito posteriormente, esse conhecimento é o conhecimento da natureza essencial inexpressável de todos os dharmas, vazios em essência, e que, vistos numenicamente ou fenomenicamente, é a mesma (sama). Imediatamente após essa dupla caracterização, é dada a alternativa de uma análise em quatro pontos. É dito que existem quatro tipos de tattvartha: (1) o chamado conhecimento possuído pelos seres comuns e baseado em um senso comum da linguagem; (2) o tipo afirmado e estabelecido pelos lógicos; (3) o tipo de conhecimento possuído pelos praticantes hinayana e (4) o conhecimento possuído pelos buddhas e bodhisattvas, que é o modo de conhecimento supremo e real. Em outras palavras, Asanga inicia o capítulo definindo o conhecimento superior de realidade. Depois, ele retoma, por uma análise de quatro pontos, os vários tipos de conhecimento da realidade, terminando novamente com esse conhecimento superior. A elucidação desse último tipo de tattvartha é a preocupação principal do capítulo. Segue-se uma breve descrição de cada um dos quatro tattvarthas. Tratando dos últimos dois deles, ou seja, aqueles que pertencem às duas classes de praticantes budistas, Asanga também caracteriza a respectiva metodologia meditativa que causa cada modo de conhecimento. Por exemplo, ele diz que os shravakas e pratyekabuddhas161 (do Hinayana) alcançam um conhecimento mais claro da realidade do que os seres comuns ou os lógicos porque eles realizaram a destruição dos “fluxos” (ashravas)162 da aversão, do apego e do engano. Tendo realizado isso, seu O Shri-Mala sutra, que Waymans (p. 2) julga ser uma “decorrência da Mahasanghika posterior” escrita no século III d.C., fornece um um retrato positivo das capacidades femininas. Segundo a avaliação de Waymans (p. 36) Quando o Shri-Mala permite que uma boa filha da família, ao renunciar suas posses (tendo anteriormente renunciado ao corpo e à energia de vida), seja dotada de méritos ininterruptos, permanentes e inconcebíveis que não são partilhados por outros seres sencientes, ele aparentemente a torna equivalente, na terminologia de outros textos, a um bodhisattva do décimo nível. Trata-se da mais elevada condição que pode ser indicada dentre os textos budistas. Com desenvolvimentos posteriores na prática, especialmente a ênfase posterior no tantra, há uma mudança positiva com relação a como as mulheres são consideradas. Por exemplo, 4 dos famosos ’84 mahasiddhas’ são mulheres. Contudo, na maior parte das vezes, continua verdadeiro, ao longo da história do Budismo, que se espera que a mulher mostre deferência ao homem. Não posso dizer que Buddha ou Asanga tenham abraçado a “causa da mulher”. Há clara evidência de que eles não o fizeram. No entanto, é igualmente verdade que, se os principais ensinamentos do Budismo fossem compreendidos e colocados em prática ,haveria muito pouca necessidade de assumir essas questões. Como a Deusa no Vimalakirti sutra diz a Shariputra (Thurman, trad., p. 62): “O Buddha disse: ‘Em todas as coisas, não há masculino nem feminino’.” 158

Bhutata (yang dag pa nyid) - O verdadeiro estado das coisas. O aspecto numênico da realidade. A Realidade em si. 159

Sarvata (tham cad nyid) - Literalmente, “totalidade”. O termo refere-se aqui a toda a existência fenomênica. O aspecto fenomênico da realidade como contrastado com o aspecto numênico (bhutata). Tathagata é um dos principais epítetos do Buddha, especialmente em textos mahayana. O termo é ambíguo: pode ser visto como o composto tatha + gata e traduzido por “Aquele que se foi”, ou como tatha +ágata, “Aquele que assim chegou” à Iluminação. 161 Pratyekabuddha (rang sangs rgyas) - Literalmente, “iluminação somente para si mesmo”. O termo refere-se à categoria de praticantes buidstas que aparentemente treinam para alcançar a iluminação em isolamento. 162 Também pode ser traduzido como “aflições”. (Nota do tradutor para o português.) 160

45


46 conhecimento está completamente purificado e, portanto, desimpedido pelas contaminações (klesha163), “obscurecimentos” e impedimentos. Além disso, como afirma Asanga, a visão clara da realidade surge porque eles compreenderam o significado das Quatro Nobres Verdades e, simultaneamente a isso, compreenderam pudgalanairatmya (a falta de eu ou a não substancialidade da “pessoa” ou “eu”). Como surge o conhecimento superior da realidade possuído pelos buddhas? O bodhisattva busca com empenho alcançar esse conhecimento. Asanga responde: o conhecimento dos buddhas é completamente purificado dos “obscurecimentos ao cognoscível” (jneyavarana164), ou seja, os últimos vestígios de influências subjetivas que bloqueiam ou obscurecem a verdadeira visão da realidade como ela é. Esse conhecimento é completamente livre de todo pensamento discursivo, é a nirvikalpa jnana. Seu conhecimento alcançou essa pureza por eles terem compreendido dharmanairatmya (a falta de essência de todos os dharmas) e, segundo Asanga, por terem entendido a igualdade inexpressável (samata) da natureza essencial de todos os dharmas. O capítulo, posteriormente, define essa igualdade como “a igualdade entre essa natureza essencial da designação verbal e o cognoscível não discursivo.” A explicação seguinte de Asanga está baseada em uma análise detalhada dos nomes (ou designações) e cognoscíveis, as coisas dadas da experiência. O reto conhecimento, então, surge para o bodhisattva que, tendo entrado na “Senda da Instrução”165, se esforça incessantemente para compreender shunyata, a natureza vazia de todos os dharmas. Tendo feito isso, considera-se que ele conhece o tathata diretamente, ou seja, a realidade como ela realmente é (yathabhutatm), considerando-a conforme a visão do Caminho do Meio (madhyama pratipat). Como esse capítulo é dirigido especificamente para os bodhisattvas que buscam tal conhecimento, Asanga então faz uma breve descrição das práticas às quais o bodhisattva deve recorrer. O bodhisattva não deve buscar o nirvana166 dos hinayanas, mas, agindo pelo bem-estar dos seres, em qualquer existência no samsara167 em que ele estiver, deve praticar as seis perfeições (paramitas168), permanecer imperturbável e firmemente arraigado na compreensão intuitiva de shunyata. Tendo descrito as práticas que o bodhisattva que busca o supremo conhecimento da realidade deve realizar, Asanga agora foca o lado sistemático do capítulo. Primeiramente, ele 163

Klesha (ngon mongs pa) - Da raiz sânscrita do verbo klish, que significa “se afligido ou atingido por algo”. O substantivo, no Budismo, refere-se especialmente às emoções dolorosas de aversão, apego e engano; contaminações. 164

Avarana (sgrib pa) - Uma capa ou véu que impede uma clara visão da realidade. “Senda da Instrução” = siksha-marga. Siksha refere-se ao “tríplice treinamento” encontrado no Budismo antigo (e sobre o qual as três divisões do Vissuddhimagga, de Buddhaghosha, estão baseadas). Os três treinamentos são os seguintes: (1) shila, ou harmonia nas ações; (2) samadhi (ou citta), contemplação e meditação e (3) prajna, intuição. O tríplice treinamento é fundamental tanto para o Hinayana, quanto para o Mahayana. 166 Nirvana (mya ngan lãs ‘das pa) - O estado que representa o objetivo da prática hinayana. 165

167

Samsara (‘khor ba) - Literalmente, “ida contínua”. O termo refere-se a toda a esfera de existência mental e física marcada pela falta de repouso e por um constante senso de intranqüilidade, dor e desconforto. 168 Paramita (pha rol tu phyin pa) - Ação transcendente. O termo refere-se às seis ações transcendentes do bodhisattva, com relação à generosidade, harmonia nas ações, paciência, perseverança, meditação e sabedoria.

46


47 explica as visões filosóficas que são inaceitáveis para esse bodhisattva e então aborda as visões que são aceitáveis. Asanga considera duas posições filosóficas como inaceitáveis para o propósito do bodhisattva de alcançar o conhecimento supremo da realidade: (1) a posição (dos seres comuns) que afirma que existe uma real correspondência entre as designações verbais (prajnapti) e os dharmas, ou seja, que declara que os nomes (nama169) caracterizam exatamente a verdadeira natureza das coisas e (2) a posição nihilista que conceitua erronamente o vazio, (a) afirmando que apenas as designações existem, não as coisas designadas (Asanga mostra que, na ausência das coisas, as designações não ocorreriam) ou (b) afirmando que “absolutamente tudo é inexistente” (Asanga mostra que a noção de vazio depende da existência, de algum modo, do vazio ou da coisa vazia). Asanga então apresenta, em estilo de debate, as refutações às posições dos seres comuns. Sua própria exegese sobre o capítulo responde a essa refutação ao considerar a suposta “correspondência real” entre os nomes e as coisas a partir de diferentes perspectivas. A conclusão de Asanga é a de que o bodhisattva deveria considerar corretamente as designações como designações apenas (prajnaptimatra), sem possuir nem gerar natureza essencial (svabhava170). Por outro lado, as designações não devem ser consideradas como completamente destituídas de natureza essencial, visto que, na verdade, elas realmente possuem a natureza essencial de shunyata, que é,para Asanga, algo existente. Quando ele inicia seus argumentos contra os nihilistas que erroneamente conceituam o vazio — seja se suas posições filosóficas sustentam a real existência das designações [ou seja, os prajnaptivadins] ou se negam a real existência tanto das designações, quanto de seus referentes [vainashikas], pode-se ver claramente nas observações de Asanga a intenção de refutar ambas as posições — de alguns “internos” (aqui, seguidores do ensinamento madhyamika) ou de alguns “externos” (não budistas). Esses “internos” são aqueles budistas que confundiram e interpretaram mal o ensinamento de shunyata, entendendo-o erroneamente como um nihilismo extremo. Segundo Asanga, a posição dos prajnaptivadins é completamente insustentável, porque deseja afirmar que as designações existem, embora seus referentes não. Mas se ele nega totalmente a possibilidade de referentes para essas designações, como elas poderiam existir? Portanto, na prática, ele nega tanto a realidade, quanto as designações. Mas essa posição, como é dito, é a do “nihilista-mor” (pradhana nastika). E uma pessoa que adota essa posição deve ser evitada por aqueles que trilham a senda budista, pois ela “se desviou bastante de nosso Dharma-Vinaya”. A posição de nossos “internos” e “externos” que de maneira mais grave interpretaram mal o vazio é a de que “absolutamente tudo é inexistente na verdade”. Uma negação universal como essa negaria a própria possibilidade de vazio em si. Assim, essa posição, como Asanga mostra aqui e em sua exegese do capítulo (onde ele explica as três svabhavas171), é inaceitável para o bodhisattva que busca o supremo conhecimento da realidade. Agora o texto retoma a discussão do vazio correta ou adequadamente conceituado, que ele claramente equaciona com as visões filosóficas aceitáveis para o bodhisattva que busca o supremo conhecimento da realidade. Nessa linha, Asanga cita textos canônicos budistas. Essas visões que 169

Nama (ming) - Nome. Designação nominal, atribuição ou imputação. Também, todo o processo de atribuição. 170

Svabhava (ngo bo nyid) - Literalmente, “ser próprio” ou “autoexistência”. O termo aqui é traduzido por “natureza essencial”. Também, “aspecto” ou “natureza”, especialmente em conexão com um esquema epistemológico exposto por Asanga. 171 Naturezas.

47


48 são aceitáveis para o bodhisattva são as descritas no Bhavasamkranti-sutra, o Arthavargiya do SuttaNipata e o Samtha-Katyayana-sutra172. Esses textos explicam claramente a verdadeira natureza de todos os dharmas como sendo vazios de essência (nairatmya) e inexpressáveis (nirabhilapya). Esse ensinamento caracteriza a verdadeira visão mahayana, o Caminho do Meio (madhyama-pratipat). Essa posição filosófica é a visão aceitável para o bodhisattva que busca o supremo conhecimento da realidade. Tendo concluído sua descrição da visão madhyamika adequada que o bodhisattva na Senda da Instrução deve adotar, Asanga agora alerta o bodhisattva para as armadilhas do pensamento discursivo (vikalpa). Ele começa dizendo que é “precisamente devido à falta de entendimento do tathata173 que os oitos tipos de pensamento discursivo e as “três bases” surgem para os “seres imaturos”, e, por causa delas, todo o ciclo de existência (ou seja, o samsara) é produzido e acontece. Logo, a determinação de alcançar o conhecimento da realidade como ela é deve investigar cuidadosamente e se precaver contra esses oito tipos de pensamento discursivo. Ele deve fazer assim por meio das quatro “investigações completas” (paryeshanas174) e os quatro tipos de “conhecimento preciso, em detalhe (yathabhutaparijnanas). Asanga explica cada um deles segundo a visão madhyamika. O capítulo termina com uma breve descrição dos benefícios (anushamsas175) e consequentes deveres (karaniyas176) que advêm para o bodhisattva que, tendo alcançado a cessação (nirodha) dos pensamentos discursivos junto com as coisas dadas (vastus) e, portanto, a cessação de toda proliferação (prapanca), permanece firmemente estabelecido na compreensão intuitiva do “mais esplêndido conhecimento da realidade”.

Detalhes específicios com relação a esses sutras são dados no comentário que acompanha a presente tradução. É interessante notar aqui novamente que, dos três textos citados no capítulo por Asanga, dois são escrituras antigas da tradição hinayana. O Bhavasamkrantisutra, embora classificado pelo Mahavyutpatti (nº 1379) como um texto mahayana, é mostrado aqui como um dos textos mahayana mais antigos. Assim, Asanga, longe de procurar apresentar um novo sistema filosófico, claramente evidencia, ao incluir essas citações em particular, tanto sua devoção à sua primeira formação e treinamento em um grupo hinayana , quanto sua firme convicção de que está somente reiterando o próprio ensinamento original de Buda como transcrito na literatura canônica antiga. 173 Tathata (de bzhin nyid) - Literalmente, “estado de ser assim”, “estado de ser como tal”. O termo é um sinônimo para shunyata e samata e caracteriza o estado último da realidade, livre de toda descrição estabelecida. 174 Paryeshana (yongs su tshol ba) - Traduzido aqui como “investigação complete”, o termo refere-se especificamente às quatro análises — do nome, da coisa dada, das designações para a natureza essencial e das designações para a particularidade — que podem ser realizadas pelso shravakas e pratyekabuddhas, bem como pelos bodhisattvas. 175 Anushamsa (phan yon) - Aqui, os benefícios (em número de cinco) que resultam para o bodhisattva que alcançou o “conhecimento não discursivo” e que é dito que “controlam em todas as circunstâncias”. 176 Karaniya (bya ba) - Literalmente, “o que deve ser feito”, ou seja, obrigação. Aqui, refere-se às cinco obrigações prescritas aos bodhisattvas que alcançaram a “sabedoria não discursiva”. 172

48


49

CapĂ­tulo sobre o Conhecimento da Realidade

49


50

50


51

[I]

O que é conhecimento da realidade?a Resumidamente, existem dois tipos: (1) aquele tipo que consiste em [conhecer] o aspecto numênico (yathavadbhavikata) dos fenômenos, ou o verdadeiro estado dos fenômenos como eles são em si mesmos (bhutata); (2) aquele tipo que consiste em [conhecer] o aspecto fenomênico (yavadbhavikata) dos fenômenos, como eles são na totalidade (sarvata)177. Em resumo, conhecimento da realidade deve ser entendido como [conhecimento dos] “fenômenos como eles são e como eles são na totalidade”. Ambos os tipos de conhecimento referidos acima são os que pertencem aos buddhas. Assim, Asanga inicia o capítulo definindo aquele conhecimento superior (uttama) ao qual o bodhisattva deve aspirar. O uso de sarvata (em tibetano, tham cad ñid) com relação ao segundo tipo de conhecimento, por sugerir a ideia de cognição que é totalmente abrangente, está em consonância com um dos epítetos comuns de um Buddha: sarvajna, “onisciente”. Considerando os dois tipos juntos, então, um Buddha conhece diretamente a natureza essencial (svabhava) de cada dharma178 individual em si mesmo, como ele realmente é (tipo 1 acima), e conhece simultaneamente todo o reino dos dharmas (dharmadhatu) como um todo (tipo 2). Ele tem conhecimento direto de todos os fenômenos (sarvata) e seu modo de ser (bhutata). Como será dito posteriormente no capítulo, para um “Iluminado”, os dois tipos de conhecimento são, na verdade, um conhecimento, ou seja, o conhecimento da natureza vazia (shunya) de todos os dharmas. Tanto do ponto de vista numênico, quanto do fenomênico, a natureza essencial de todos os dharmas é a mesma (sama), ou seja, o vazio (shunyata). Além disso, do conhecimento da realidade pode ser feita a seguinte análise em quatro pontos: 1) o que é universalmente aceito pelos seres comuns; 2) o que é universalmente aceito pela razão, ou lógica; 3) aquele que é a esfera de cognição (jnanagocara)179 completamente purificada dos obscurecimentos dos kleshas (kleshavarana), e 177

Sarvata – Literalmente, "totalidade". O termo refere-se aqui ao todo da existência fenomênica. O aspecto fenomênico da realidade contrastado com o aspecto numênico (bhūtata). 178 dharma (chos) - Como é bem conhecido dos estudantes de Budismo, esse termo é extremamente difícil de traduzir (e se considerou melhor deixá-lo sem traduzir no corpo da presente obra para evitar confusão e complicação desnecessária). Ele é utilizado de várias formas, mas em contextos filosóficos, geralmente refere-se a qualquer realidade ou fenômenos existente, contudo transitório em termos de duração temporal. Dharmas em tais contextos podem ser considerados fenômenos ou acontecimentos que são gerados e experimentados pela consciência. Além disso, o termo normalmente é reservado para fenômenos que são algo existente composto e, portanto, dependente. 179 jnanagocara (shes pa’i spyod yul) - Traduzido aqui como “esfera de cognição”. O termo significa tanto o local, quanto a dimensão do conhecimento (ou seja, gocara ou yul) e o conhecimento em si. O termo é descritivo em sua natureza, sugerindo a imagem da consciência que envolve seu “objeto” (o ente cognoscível), de tal modo que há a dissoluação tanto do sujeito (ou seja, a consciência “conhecedora”), quanto o objeto (daí o ente cognoscível = gocara, ou a “área de operação” da consciência).

51


52 4)

aquele que é a esfera de cognição completamente purificada dos obscurecimentos ao que pode ser conhecido180 (jneyavarana).

Tendo descrito o tipo de conhecimento supremo, aquele que deve ser buscado pelo bodhisattva, Asanga começa novamente a traçar os vários tipos de conhecimento possuídos pelos seres em diferentes estágios de habilidade e realização. Ele diz que diferentes tipos de cognição da realidade são possuídos por quatro classes de seres: (1) seres comuns; (2) lógicos; (3) praticantes budistas hīnayana (ou seja, shravakas e pratyekabuddhas) e (4) praticantes mahayana (ou seja, buddhas e bodhisattvas). Essa mesma análise quádrupla é adotada por Asanga em outras obras, bem como por mestres posteriores da Yogacara que seguem as linhas principais no pensamento original de Asanga. Asanga afirma claramente, ao final do capítulo, que os primeiros dois desses quatro tipos de conhecimento são inferiores, o terceiro é mediano, e somente o quarto é superior (uttama). Segue-se uma breve descrição do primeiro e do segundo tipos de conhecimento. É dito que os seres comuns percebem somente o aspecto fenomênico dos objetos. Seu conhecimento é condicionado pela conclusão prévia de que as coisas existem assim como elas são expressas, ou seja, que os nomes caracterizam exatamente a natureza das coisas nomeadas. O conhecimento possuído pelos lógicos difere desse tipo no sentido de que o conhecimento que eles têm das coisas resulta de uma análise mais cuidadosa — embora somente dos aspectos fenomênicos dos dharmas —, que utiliza as provas lógicas padrão. Desses quatro tipos, o primeiro pode ser definido assim: a opinião partilhada por todos os seres mundanos — porque suas mentes estão envolvidas com signos (samketa)181 e convenções (samvrtti)182 e agem de acordo com eles, a partir do hábito (samstava)183b — com relação a qualquer “coisa dada” (vastu)184. Desse modo, “terra é só terra, e não fogo”. Assim como a terra, 180

Jneya (shes bya) - Qualquer ente ou fenômeno cognoscível. Literalmente, aquilo que gera conhecimento. Assim, o fenômeno que serve como uma base para o conhecimento. 181 Samketa (brda) – Um signo, escrito ou verbal. Aqui, especificamente, signos linguísticos. Palavras. Convenções da linguagem. 182 Samvrti (kun rdzob) – Em combinação com satya ("verdade"), o termo é traduzido por "relativo" (em oposição à verdade "absoluta"). Relativo; mundano. Aqui também "convenções da linguagem", escritas ou verbais. 183 Samstava ('dris pa) – Hábito. Samstava (‘dris pa) - Hábito. O termo refere-se tanto às visões particulares, bem como às ações que são realizadas automaticamente, sem disciplina ou investigação prévia. 184

Vastu (dngos po) - A coisa dada próxima. O objeto sobre o qual a atenção cognitiva se foca. Qualquer ente perceptível que sirva de base para a cognição/atribuição. Um entendimento adequado desse termo é essencial para a compreensão correta de toda a explanação de Asanga. Traduzido aqui como “coisa dada”, vastu é propriamente a base de atribuição. Sobre essa base, vários nomes são associados (bem como julgamentos inconsistentes e outras formas de atribuição mental, como a afirmação de “externalidade”) Segundo as a teoria das “três naturezas”, de Asanga, o vastu é a o elemento fundamental da natureza paratantra (ou seja, dependência). Enquanto o processo de nomeação é considerado totalmente imaginário (natureza parikalpita), sendo falso e inconsistente, sem transmitir verdade, no entanto, a atribuição ocorre somente em relação a alguma base de atribuição (ou seja, um vastu) que tem de existir de algum modo (mesmo se esse modo de existência seja imperfeito). O entendimento correto, tanto da natureza de atribuição, como da base de atribuição, produz compreensão que é, segundo a terminologia de Asanga, “absoluto”, ou seja, parinishpanna.

52


53 o fogo, água, ar, formas, sons, odores, sabores, sensações táteis, alimento, bebida, transporte, roupas, ornamentos, utensílios, incenso, guirlandas, unguentos, dança, canção, música, iluminação, relação sexual, campos, lojas, objetos domésticos, felicidade e sofrimento são vistos do mesmo modo. “Isto é sofrimento, e não felicidade.” “Isto é felicidade, e não sofrimento.” Em resumo, “isto é isto, e não aquilo”. Da mesma forma, “isto é isto e nenhuma outra coisa”. Diz-se que qualquer coisa dada que seja aceita e se torne estabelecida por todos os seres comuns devido simplesmente a seus próprios pensamentos discursivos (vikalpa)185, por meio de associações (samjna)186, surgindo uma após a outra na esfera das conclusões prévias, sem terem sido ponderadas, sem terem sido pesadas e medidas e sem terem sido investigadas, é a realidade universalmente aceita pelos seres comuns ou estabelecida pelo consenso mundano. Vastu, neste contexto, refere-se, como o equivalente tibetano dngos po sugere, a qualquer objeto de experiência perceptível ou tangível. A maior aproximação para vastu usada nesse sentido é o termo comum “coisa”. Ele é traduzido aqui como “coisa dada” porque existe também a ideia de ser uma coisa específica “à mão” ou “na mente”, ou seja, abertamente disponível para definição, pelo menos para si mesmo, na medida em que a afirmação que fecha a seção indica: “isto é isto e nenhuma outra coisa”. Samstava é um termo chave que se refere à visão que foi adquirida por meio de uso repetido e exercício. Trata-se de um hábito realizado automaticamente e sem investigação prévia. Paul Wilfred O’Brien, em seu “Um Capítulo sobre a Realidade a partir do Madhyantavibhagashastra”, pp. 231-32, cita duas fontes que ainda definem o termo: (1) o P’u-as-shan-chieh-ching, T. 30, 1582, p. 986b: “ quando um objeto, por ter sido seu nome transmitido desde um tempo antigo por todo o mundo, é conhecido espontaneamente e não como resultado de prática acumulada [repetida], isso é chamado “realidade estabelecida por meio do senso comum”; e (2) Hsien-yang, T. 31, p. 507b: “ a realidade estabelecida pelo senso comum é a natureza convencional comumente presumida com relação aos objetos por toda a humanidade por meio de um conhecimento intelectual adquirido a partir do costume”. Um entendimento direto adequado do caráter nocivo de samstava, especialmente com relação ao nosso uso comum da linguagem, é uma das principais preocupações do capítulo, primeiramente porque uma parte-chave da abordagem metodológica de Asanga para analisar o conhecimento da realidade — tanto aqui quanto em sua exegese — é o exame cuidadoso da

Vikalpa (rnam par rtog pa) – Pensamento discursivo indisciplinado de todos os tipos, sejam nomes, imagens, julgamentos ou o que quer que seja. Segundo a explanação de Asanga, o pensamento discursivo gera tanto os nomes, quanto as coisas, isto é, tanto as atribuições, quanto as bases de atribuição, respectivamente. Assim, devido ao pensamento discursivo, há a presença da natureza parikalpita (nomes), bem como a natureza paratantra (isto é, coisas, aqui vastus). Contudo, nenhuma dessas duas naturezas é "perfeita" (parinişpanna), por isso a grande ênfase do capítulo no atingimento de nirvikalpa-jnana, ou "conhecimento não-discursivo". Os oito tipos de vikalpa, em seus equivalentes sânscritos e tibetanos, são: (1) svabhavavikalpa = gno bo ngid du rnam par rtog pa; (2) visheshavikalpa = bye brag tu rnam par rtog pa; (3) pindagrahavikalpa = ril por ‘dzin pa’i rnam par rtog pa; (4) ahamiti vikalpa = bdag go snam pa’i par rtog pa; (5) mameti vikalpa bdag gi snam pa’i rnam par rtog pa; (6) priyavikalpa = sdug par rnam par rtog pa; (7) apriyavikalpa = mi sdug par rnam par rtog pa; (8) tadubhayuaviparita vikalpa = de ga ni lãs bzlog pa’i rnam par rtog pa. 186 Samjna (‘du shes) - Um dos cinco agregados da personalidade, ou skandhas. O termo é traduzido alternativamente por “motivações” ou “ideações”. No contexto do capítulo, é claro que ele está associado com a faculdade de nomear e com associações mentais em geral. 185

53


54 relação entre nomes (gerados, aprendidos e transmitidos pelo hábito e costume) e as coisas às quais eles estão associados. É precisamente por causa de nossa “certeza habitual” com relação ao uso da linguagem que concluímos que conhecemos o que uma coisa é quando sabemos seu nome. Para indicar o erro de tal visão, Asanga diz que essa tendência característica marca o tipo inferior de conhecimento sobre a realidade. De fato, em sua exegese, ele define a natureza imaginária (ou seja, completamente falsa, parikalpita187) somente em termos de sua prática comum com relação ao uso da linguagem. Lá ele afirma: (19b.8) “O que é a natureza imaginária? É a natureza que surge a partir do nome e do signo [em tibetano, brda, aqui = “objeto”] e por causa da qual existe, posteriormente, a associação de uma designação”. Assim, uma tradução alternativa para parikalpita é “natureza atribuída”. Além disso, uma análise da verdadeira relação entre nome e coisas pode ser utilizada como veículo para nos guiar para um entendimento adequado da natureza essencial de ambos e, assim, por extensão, para a natureza essencial de todos os dharmas. Qual é a realidade universalmente aceita pela razão (yukti)188? É aquela conhecida a partir da eloquência pessoal daqueles no estágio em que são regidos pela razão, que são doutos nos significados dos princípios lógicos e que têm inteligência, poder de raciocínio e habilidade na investigação. Também é aquele conhecimento que surge nos seres comuns e que está baseado na autoridade daqueles dedicados à investigação, ou seja, às provas (pramana)189 dos lógicos: percepção direta, inferência e testemunho de pessoas confiáveis. Essa é a esfera do conhecimento bem analisado, na qual a coisa dada cognoscível é provada e estabelecida pela argumentação com demonstração e prova. Sobre essa realidade se diz que é universalmente aceita pela razão. Qual é a realidade que é a esfera de cognição completamente purificada dos obscurecimentos das contaminações? É aquele domínio e esfera de cognição alcançados ao se colocar um fim nos fluxos190 (asrava), que é “colocar um fim nos fluxos” de todos os shravakas e pratyekabuddhas, assim como aquele conhecimento mundano que coloca um fim nos fluxos em um tempo futuro. Sobre essa realidade se diz que é a esfera de cognição completamente purificada dos obscurecimentos das contaminações. Quando o conhecimento se torna purificado dos obscurecimentos das contaminações, ou seja, daqueles três suportes mentais [as três contaminações], permanece-se no não obscurecimento. Portanto, ele é chamado “realidade que é a esfera de cognição completamente purificada dos obscurecimentos das contaminações”. Asanga agora se refere às duas classes de praticantes hinayana, ou seja, os shravakas (literalmente, os “ouvintes”), aqueles monges que se prendem ao sentido literal dos discursos de Gautama e buscam o nirvana como seu objetivo final, e os pratyekabuddhas, (literalmente, “Buddhado para si mesmo”), praticantes budistas que, tendo ouvido o ensinamento, afastam-se em completo retiro e isolamento dos assuntos mundanos. Muito embora os pratyekabuddhas sejam 187

Parikalpita (kun brtags pa) - Imaginário. Fabricado mentalmente. Nome dado à primeira das “três naturezas”, segundo a explanação de Asanga. No contexto do capítulo, essa natureza imaginária é representada pelos nomes e designações. 188 Yukti (rigs pa) - Tipo de raciocínio que utiliza princípios lógicos e análise. {Rigs pa ≠ rig pa} 189 Pramaņa (tshad ma) – As fontes ou "provas" de conhecimento que, de acordo com Asańga, são três em número: percepção direta, inferência e escritura ou testemunho confiáveis. 190 Asrava (zag pa) – Literalmente "fluxo"{outflow}; aquilo que sai de algo ou causa inchaço. No Bodhisattvabhūmi, de Asańga, os asravas são identificados com os kleśas primários de cobiça, ódio e ilusão.

54


55 seres excepcionais, possuindo grandes poderes de energia, vontade e concentração, eles também buscam somente o nirvana. Asanga descreve seu conhecimento da realidade como “mediano”, ou seja, superior ao dos seres comuns e lógicos, mas inferior ao conhecimento possuído pelos buddhas e Bodhisattvas. Sobre os shravakas e pratyekabuddhas é dito que possuem um conhecimento mais claro da realidade devido ao fato de que eles se libertaram das emoções contaminantes de apego, aversão e engano. Segundo a tradição budista, essas três “contaminações” (kleshas) geram todo o ciclo do samsara. Samsara (em tibetano, ‘kor ba) refere-se ao ciclo, ou roda, da existência mental e física, ocorrendo descontrolado, sempre se modificando, marcado principalmente pela característica de duhkha, sofrimento ou infelicidade. Apego, aversão e engano (raga191-dvesha-moha192; em tibetano, ‘dod-chagas, źe-dang e gti-mug) são as três contaminações “maiores”, ou fundamentais. Nos conhecidos estandartes dos templos tibetanos que retratam o samsara, essas três são representadas como uma serpente, um galo e um javali, respectivamente, e desenhadas no centro da “Roda do Samsara”, sugerindo que as três são a própria base do “mundo de sofrimento”. A rigor, asravas (traduzido aqui, literalmente, como “fluxo”) refere-se ao que Dayal, Bodhisattva Doctrine, p. 109, chama “pecados e erros mais metafísicos e fundamentais” do que os kleshas, que ele descreve como “falhas comuns de caráter”. Os três primeiros asravas (um quarto foi acrescentado em período posterior) foram os fluxos associados com o desejo dos sentidos (kamasrava), o “vir-a-ser” ou amor pela existência (bhav-asrava), e avidyai (avidy-asrava). Posteriormente, houve um acréscimo do fluxo associado com as visões especulativas ou opiniões (drshty-asrava). A completa destruição dos asravas (asrava-kshaya representava o summum bonum da vida religiosa budista primitiva e marcava o atingimento do estágio de arhat. Novamente, de acordo com Dayal, p. 109, leitores posteriores do hinayana e do mahayana “silenciosamente ignoraram o ideal mais difícil de asrava-kshaya”, considerando-o “muito árduo para monges comuns”. Essa passagem de Asanga é a única na literatura budista, porque aqui os asravas são claramente identificados com os kleshas primários. Dayal argumenta bastante contra a identificação deles com os kleshas e cita o Bodhisattvabhumi como o único texto onde essa identificação é encontrada. Mas claramente, para Asanga, os shravakas e pratyekabuddhas que se libertaram dos kleshas libertaram-se, então, dos “fluxos” também. Tendo realizado isso, sobre eles é dito que possuem um conhecimento da realidade que é completamente livre do primeiro dos dois principais véus, obstáculos ou “obscurecimentos” para uma visão perfeita da realidade como ela realmente é. Por “conhecimento mundano” (laukika jnana), Asanga provavelmente se refere ao conhecimento de outros na trajetória mundana, ou seja, a determinados praticantes leigos que podem alcançar esse objetivo no futuro e, talvez, até a não budistas que praticam outro “caminho” que, não obstante, pode levar ao mesmo resultado. Além disso, o que é essa realidade? As Quatro Nobres Verdades, ou seja: (1) sofrimento, (2) sua origem, (3) sua cessação e (4) a senda que conduz à sua cessação. Ela é aquele conhecimento que surge naqueles que, tendo clara compreensão, depois de uma investigação completa, chegam ao entendimento dessas Quatro Nobres Verdades. Além disso, é o entendimento 191

raga (‘dod chags) - Apego. Primeiro membro do tríplice agrupamento dos kleshas primários, ou seja, apego, aversão e engano. 192 Moha (gti mug) - Ilusão. A “névoa” de avidya.

55


56 daquelas verdades por parte dos shravakas e pratyekabuddhas que apreenderam que existem somente agregados (skandha-matra) [no que comumente se assume ser uma pessoa] e que não apreenderam um eu (atman)193 como um ente separado e independente dos agregados. Por meio de prajna194 aplicada adequadamente aos nidanas (pratītyasamutpanna), estados condicionados, a clara visão (darshana) surge da repetição do ponto de vista de que “fora dos agregados não há nenhuma ‘pessoa’”. Aqui Asanga abre o caminho da prática pela qual os shravakas e pratyekabuddhas alcançam o conhecimento completamente purificado dos obscurecimentos da contaminação. A prática é dupla, embora seja realizada simultaneamente. Ela envolve estudo contínuo, investigação sobre as Quatro Nobres Verdades. Prajna sobre o verdadeiro alcance da verdade é obtido por esses praticantes que compreenderam e entenderam bem o ensinamento da originação dependente (pratītyasamutpada). Tal entendimento dos shravakas e pratyekabuddhas surge, segundo é dito, a partir da meditação na “repetição do ponto de vista de que fora dos agregados não há nenhuma ‘pessoa’”. Em resumo, praticantes hinayana podem obter um conhecimento da realidade que é completamente purificado de apego, aversão e engano por compreenderem plenamente o alcance das Quatro Nobres Verdades e pela direta compreensão do atmanairatmya, ou seja, de que não há um “eu” verdadeiramente existente no conglomerado de elementos psicofísicos que nós normalmente pensamos como um “eu”, ou como uma “pessoa” (pudgala). Qual é a realidade que é a esfera de cognição completamente purificada dos obscurecimentos ao que pode ser conhecido? Aquilo que evita o conhecimento de algo que pode ser conhecido é considerado um “obscurecimento”. Qualquer que seja a esfera de cognição completamente livre de todos os obscurecimentos ao que pode ser conhecido, e somente ela, deve ser entendida como o domínio e esfera de cognição completamente purificados dos obscurecimentos ao que pode ser conhecido. O capítulo distingue claramente entre as duas classes de praticantes budistas e seus dois respectivos níveis de atingimento com relação ao conhecimento da realidade. Essa distinção é baseada na respectiva pureza de conhecimento que resulta, por um lado, na completa libertação do véu criado pelas contaminações do apego, aversão e engano e, por outro lado, da completa libertação de todos os véus que obscurecem o que quer que seja. O primeiro nível de pureza é alcançado pelos praticantes hinayana quando eles se livram dos obscurecimentos contaminadores. O segundo nível de pureza, e superior, é alcançado somente pelos praticantes mahayana, ou seja, os buddhas e os bodhisattvas, que se libertaram completamente e com êxito do véu final que obscurece a visão perfeita da realidade. O véu final é chamado de jneyavarana, literalmente, “a cobertura” ou “obscurecimento” (avarana) daquilo “que pode ser conhecido” (jneya). Os dois véus às vezes são descritos como obstruções grosseiras e sutis, respectivamente (1) para a libertação e (2) para a onisciência. Nesse ponto, é dito que os praticantes mahayana possuem o conhecimento da realidade liberto das paixões contaminadoras, de toda influência subjetiva e de toda visão distorcida de sujeito/objeto, ou aquele que percebe/aquilo que é percebido, dualidade, “completamente livre de

Atman (bdag pa) – O termo denota o suposto "eu". Prajna (shes rab) - Discernimento. A forma mais elevada de conhecimento, direto e penetrante, que produz uma visão da realidade desimpedida e pura. Tipo de conhecimento possuído por todos os Buddhas. 193

194

56


57 todos os obscurecimentos ao que pode ser conhecido”. Eles experimentam a realidade diretamente, como ela é (yathabhutam). Novamente, o que é isso? É o domínio e a esfera de cognição que pertencem aos BuddhaBhagavans e Bodhisattvas, que, tendo compreendido a falta de essência dos fenômenos (dharmanairatmya) e tendo compreendido, por causa desse entendimento puro, a natureza inexpressável (nirabhilapyasvabhavata) de todos os fenômenos, conhecem a igualdade (sama) entre a natureza essencial da designação verbal (prajnaptivada195) e o que pode ser conhecido não discursivo (nirvikalpa-jneya). Esse é o supremo tathata, nada havendo superior, que está no extremo limite do que é cognoscível, pelo qual todas as análises dos fenômenos são realizadas e o qual elas não ultrapassam. Agora Asanga se refere àquele conhecimento possuído pelos buddhas e bodhisattvas, o ponto focal do capítulo, descrevendo como ele realiza a prática central e o atingimento de tais praticantes. A abertura do capítulo definiu o conhecimento dos buddhas ao qual o bodhisattva deve aspirar. Aqui o texto aconselha tal bodhisattva a tomar a “Senda da Instrução”, que tem como objetivo compreender a “falta de essência de todos os dharmas” (dharmanairatmya). Simultaneamente à completa compreensão de dharmanairatmya é a compreensão da natureza inexpressável de todos os dharmas e, portanto, a igualdade (samata196) da natureza essencial tanto das designações verbais, quanto daqueles dharmas que agora são conhecidos diretamente (ou seja, os “dharmas não discursivos), libertos de todas as atribuições subjetivas. Como a abordagem de Asanga neste capítulo está baseada em uma análise cuidadosa dos nomes e de sua relação com as coisas, a definição do “supremo tathata” é dada nos termos dessa análise. Assim, o tathata é transformado em sinônimo de Igualdade (Samata), sendo que “igualdade” refere-se à igualdade de natureza essencial dos nomes e das coisas. Devemos lembrar que tathata é um sinônimo comum para shunyata. Por extensão, então, tanto os nomes quanto os dharmas aos quais esses nomes são aplicados têm a mesma natureza, ou seja, de vazio. Quando o Bodhisattva tiver compreendido plenamente dharmanairatmya, compreenderá que todos os dharmas (1) não possuem “essência” independente; (2) não possuem “essência” expressável e (3) em última instância, não permitem atribuição. Assim, os dharmas não existem como são expressos. Mas se deve entender que isso não significa que os nomes e os dharmas não existem de forma alguma. Para Asanga, ambos são cognoscíveis existentes e podem ser conhecidos diretamente. Novamente, dizer que a natureza essencial dos nomes e dos dharmas (e nomes também são dharmas) é a mesma, ou seja, de vazio, não é dizer, para Asanga, que eles são completamente inexistentes. A tarefa do bodhisattva é exatamente chegar a entender como cada um é existente. 195

Prajnaptivada (‘dogs pa’i tshig) - Designação verbal. Também, a visão que defende a existência real de nomes (ou designações). 196

Samata (mtshungs pa nyid) - Termo chave do capítulo, empregado por Asanga para significar a “igualdade” da natureza essencial para todos os fenômenos — seja do “eu” ou das “coisas” — em geral. Samata é um sinônimo mais positivo para shunyata (“vazio”), embora aponte para a mesma caracterização da realidade. A natureza essencial de todos os fenômenos é, falando em sentido último, a mesma (sama), ou seja, vazia (shunya) de um eu permanente, ou de autoexistência.

57


58 Além disso, deve-se entender que a característica corretamente determinada (vyavasthanatah)d da realidade é sua natureza, ou constituição (prabhavitam), “não dupla” (advaya)197e. É dito que a dupla é: “ser” (bhava198) e “não ser” (abhava). A passagem em sânscrito diz: tat punah tattva-lakshanam vyavasthanatah advayaprabhavitam veditavayam. A seção é evidentemente importante e é colocada separadamente do resto do texto, no sânscrito, para ênfase. Pode-se dizer que essa é a única passagem na qual Asanga parece fazer uma afirmação ontológica com relação à realidade. “Corretamente determinada” é a tradução de vyavasthanatah, que também é traduzida como “estabelecida”. Aqui o termo parece se referir à compreensão da realidade “estabelecida” pelos praticantes mahayana realizados. O termo advaya (em tibetano, gnis su med pa) foi propositadamente colocado em seu sentido literal de “não duplo” para evitar as conotações geradas por sua tradução mais comum “não dual”. “Não dual” normalmente invoca a ideia de “unidade”, o que é, em muitos tratados Yogacara, inapropriado. Por exemplo, no Mahayanasutralankara, quando esse texto fala de alayavijnana junto com as outras sete vijnanas, o sentido mais correto é que as oito vijnanas funcionam juntas, de modo totalmente integrado. Ou seja, elas trabalham como um sistema. Mas seria incorreto dizer que as vijnanas são uma naquele contexto. Da mesma forma, no contexto deste capítulo, Asanga utiliza advaya para indicar que a característica da realidade como determinada pelos “Realizados” transcende as categorias de “ser” e “não ser”; ela não é completamente existente nem completamente inexistente. Ao contrário, nela, tanto “ser” quanto “não ser” funcionam lado a lado, podemos dizer, simultaneamente. Tal visão é consistente com a premissa central de Asanga aqui de que os dharmas são existentes, mas não são existentes como são expressos. Ele é bastante cuidadoso ao longo do capítulo para não insinuar que os aspectos distintos dos dharmas — seu aspecto “numênico” e seu aspecto “fenomênico” — são um só e iguais, mas para indicar, ao contrário, que esses dois aspectos são o mesmo em essência, visto que a natureza essencial (svabhava) de todos os dharmas é, na verdade, de vazio. Bhava, traduzido aqui como “ser”, e abhava, traduzido como “não ser” podem ser traduzidos também por “existente” e “não existente”, respectivamente. A lista seguinte de Asanga de exemplos para bhava indica que o termo se refere a entes específicos de experiência, ou seja, “coisas existentes” e, portanto, não ao termo “existência”, mais geral e mais abstrato nesse contexto. Com relação a essa dupla, “ser” é qualquer coisa definida como possuidora de natureza essencial somente em virtude de designação verbal (prajnaptivada svabhava) e, como tal, é aceita pelos mundanos por longo tempo. Para os seres comuns, essa [noção de ser] é a raiz de todo o pensamento discursivo (vikalpa) e da proliferação (prapanca)199, seja "forma", Advaya (gnyis su med pa) – "Não-dual" é uma tradução comum, mas inapropriada no contexto desta obra. Veja o texto para uma explicação mais completa. 198 Bhava (yod pa) - Literalmente, “ser”; o capítulo trata o termo como sinônimo de vastu (em tibetano, dngos po), ou seja, “qualquer coisa existente”, ou qualquer ente composto, perceptível. 197

199

Prapanca - Proliferação. Aqui, especialmente a proliferação do pensamento discursivo (vikalpa), que engendera a aparentemente infindável procissão de nomes e concomitantes coisas (vastus). Por causa de prapanca, há o contínuo “funcionamento” do pensamento (ou seja, nomes, discriminações, julgamentos, etc.), de modo que a realidade nunca é experimentada diretamente como ela realmente é, livre de sobreposições

58


59 sentimento", "ideação", "motivação" ou "percepção"; "olho", "ouvido", "nariz", "língua", "corpo", ou "mente"; "terra", "água", "fogo" ou "vento"; "forma", "som", "odor", "sabor" ou "contato"; ações "hábeis", "inábeis", ou "indeterminadas"; "nascimento" ou "morte" ou "surgimento dependente"; "passado", "futuro" ou "presente"; "composto" ou "não composto"; "Isto é um mundo, e além está um mundo", "Há tanto o sol quanto a lua" e o que quer que seja "visto", "ouvido", "acreditado" ou "percebido"; o que é "alcançado ou pelo qual se lute"; o que é "obscurecido" ou "pensado por imagens" pela mente; até o "nirvana". Tudo nessa categoria possui uma natureza estabelecida somente pela designação verbal. Isso é dito [pelos seres comuns] ser "ser". Como mencionado anteriormente, como os seres comuns utilizam a linguagem de modo descuidado, embora habitual e condicionado, essas “pessoas mundanas” constantemente caem no erro de assumir que os nomes caracterizam exatamente a natureza essencial das coisas nomeadas. Aqui também Asanga sugere que, para os seres comuns, existe ainda a suposição de que tudo o que pode ser nomeado existe, por exemplo, uma “pessoa” (e vice-versa: se uma coisa existe, pode ser nomeada). Em sua exegese do capítulo, no fólio 22b.4, Asanga, usando novamente os cinco agregados, dá o exemplo para ilustrar essa primeira visão errônea: “Deve-se entender que seres imaturos (em tibetano, byis pa rnam pa; em sânscrito balah, literalmente, “crianças”) tomam as coisas dadas expressáveis como sendo ou possuindo a natureza de seus nomes e suas expressões... Sendo esse o caso, à questão: “Qual é a natureza dessa coisa dada?”, uma pessoa imatura responderia: “Sua natureza é forma”, mas não responderia: “Seu nome é ‘forma’”. E ela responderia que sua natureza é sensação, discriminação, tendência ou consciência e não responderia que “consciência” é [somente] seu nome”. E assim é para todos os outros [agregados], respectivamente. Como é típico em obras desse tipo, Asanga inicia sua enumeração de exemplos de “ser” listando os cinco skandhas, ou “agregados”, dos quais se diz que abrangem e delimitam um “ser” como uma “pessoa” ou “indivíduo”, ou seja: forma (rupa), sensação (vedana), discriminação (samjna), tendências (samskaras) e consciência (vijnana). Aqui o agregado “forma” é mencionado para cobrir o aspecto material ou físico do mundo e, tradicionalmente, abrange os quatro elementos (traduzidos melhor como solidez, fluidez, calor e movimento), os cinco órgãos dos sentidos e seus objetos correspondentes no mundo externo. Consequentemente, “forma” serve como um termo guarda-chuva, nos contextos budistas em geral e no texto de Asanga em particular, para indicar qualquer objeto manifesto. Vikalpa (rnam pa rtog pa) significa “pensamento discursivo” de qualquer tipo, ou seja, pensamento que é geralmente descontrolado ou indisciplinado. Ele se move rápida e incontrolavelmente, gerando ficções da imaginação. Embora ele seja normalmente tratado como tendo uma conotação negativa (especialmente em contextos meditativos e no presente contexto deste capítulo), o termo às vezes também possui um significado positivo, ou seja, samyakvikalpa na lógica budista, como nas obras de Dharmakirti e no Paramitasamasa, de Aryasura. Nesses contextos, samyakvikalpa é qualquer pensamento que seja virtuoso e conduza à Senda do Dharma. Também, embora vikalpa no presente contexto do capítulo tenha uma conotação negativa, temos a deturpadoras. Portanto, Asanga encoraja o bodhisattva que busca o verdadeiro conhecimento da realidade a “praticar o método sem proliferação”.

59


60 exegese de Asanga na qual ele aparece como um dos “Cinco Dharmas”, oferecendo uma análise positiva dos sucessivos estágios para a Iluminação e, assim, é tratado como um dos constituintes do progresso na senda budista. Prapanca (sprod pa), ou “proliferação”, por outro lado, é sempre visto negativamente. É esse uso do pensamento que imediatamente distorce a realidade pelo exagero (samaropa200) ou pela diminuição (apavada201). A passagem nos diz que a visão de que há existência puramente em virtude das designações é a raiz (mula; rtsa ba) de todo pensamento divagador e proliferações falseadoras. Com relação a essa dupla, "não ser" é a ausência da base da designação verbal "forma", etc., até "nirvana". É sua ausência ou sua qualidade de não caracterizável, quando a base de designação verbal — à qual a designação verbal recorre quando opera — é irreal, não verificável ou não presente de qualquer forma. Isso é considerado "não ser".

Os termos empregados aqui para “base” e “suporte” são ashraya e ashritya, respectivamente. (Mais tarde, no capítulo, adhishtana e samnishrayam serão utilizados como sinônimos para esses termos.) Como antes, Asanga continua sua descrição das ideias dos seres comuns com relação aos “dois extremos” de “ser” e “não ser”. Aqui nos é dito que os seres comuns consideram que qualquer coisa que não possa ser afirmada ou determinada como algo que sirva como uma base (referente) ao qual se possa associar um rótulo não “existe”. Seres comuns não podem imaginar a ideia de que pode existir uma coisa à qual não se possa dar um nome. Assim, o que não é expressável é, para elas, não existente também. Novamente, o próprio comentário de Asanga é útil para esclarecer melhor a passagem. A seção na exegese é dedicada especificamente a esclarecer a mútua dependência e o mútuo surgimento de nomes e coisas, no entanto, será citada aqui na íntegra: [23b.5] Como se deve entender que há prisão em virtude de expressões para signos? Ele [o Buddha] disse: “Deve-se entender por raciocínio e pelos sutras. O que é raciocínio? [...] Se não há expressão, então não se pode desfrutar de uma coisa dada. Mas se há uma expressão que acompanha, então, pode-se desfrutar disso. Essa é uma razão. Além disso, um é o local de nascimento do outro. Ou seja, o pensamento [em tibetano, dmigs-pa] que dá origem à expressão depende de uma coisa dada. E o pensamento que dá origem a uma coisa dada depende de uma expressão. Consequentemente, por exemplo, seres mundanos podem imaginar coisas dadas por meio de nome e expressão, mas se as coisas dadas não estiverem presentes, então, eles são incapazes de imaginálas. Como esse é o caso, o pensamento que dá origem ao nome e à expressão depende da coisa dada...

Samaropa (sgro ‘dogs pa) – A visão “extrema” da afirmação. A visão que exagera ou superestima a coisa em questão. Samaropa e seu oposto (apavada, “negação”) formam um par técnico que caracteriza as visões errôneas divergentes do Caminho do Meio budista. 200

Apavada (skur pa ‘debs pa) - Negação ou rejeição. O termo utilizado para caracterizar a visão “extrema” da redução. Com samaropa (exagero), o termo forma um par técnico que indica as duas visões errôneas que se “desviaram” do Caminho do Meio. 201

60


61 Sempre que uma afirmação definitiva é feita com relação à verdade ou à falsidade em textos mahayana, em geral, considera-se que o próprio Buddha a fez, sejam essas afirmações citações diretas dos sutras ou não. A exegese que Asanga faz do capítulo está repleta de passagens assim, toda iniciadas com aha (em tibetano, smras pa), literalmente “ele disse”, na qual “ele” se refere claramente ao Buddha. O sentido dessa passagem simplesmente é o de que, para os seres comuns, coisas que não estão presentes e, portanto, não podem ser nomeadas são consideradas inexistentes. Evidentemente, essa é uma visão equivocada segundo o ponto de vista de Asanga, já que foi dito anteriormente que os dharmas de fato existem, embora sua natureza essencial seja inexpressável (nirabhilapya) e esteja além do alcance da designação. Para o meu “imaginar”, os tibetanos usam rab tu rtog pa e yongs su rtog pa. Traduções alternativas nesse contexto são “pensar sobre algo”, “considerar” ou “entreter a mente”. Além disso, a coisa dada, constituída de características de fenômeno e que é completamente liberta tanto de "ser", quanto de "não ser" — ou seja, do "ser" e "não ser" descritos acima — é "não dupla". Agora, o que é “não dupla”? Justamente aquilo que se diz ser o incomparável Caminho do Meio (madhyama pratipad), que evita os dois extremos. Com relação a essa realidade (tattve), a sabedoria (jnanam) de todos os Buddha-Bhagavans deve ser entendida como sendo extremamente pura. Mais ainda, deve-se entender que essa sabedoria dos bodhisattvas constitui a Senda da Instrução (Shiksha-marga).

Para resumir a discussão anterior no capítulo, Asanga agora claramente expõe o ponto de vista do Caminho do Meio, que é coerente com o tipo mais elevado de conhecimento da realidade, possuído por todos os buddhas. Tal cognição vê uma coisa dada existente diretamente, livre das concepções subjetivas de “ser” e “não ser”, portanto, sem sobrepor quaisquer rótulos ou designações a essa base existente. Os buddhas, estando livres dos “véus” (avaranas) dos kleshas e das opiniões subjetivas, alcançaram esse modo de conhecer todos os dharmas. Asanga agora começa a descrever as práticas que todos os bodhisattvas, aspirando a tal conhecimento, deveriam realizar. Shiksha-marga (em tibetano, slob pa’i lam) refere-se, na tradição budista, ao tríplice treinamento (adhishikshas), ou seja, à harmonia nas ações (shila202), (2) meditação (samadhi) e (3) sabedoria (prajna). Na passagem dada acima, Asanga identificou o último deles, ou seja, prajna, com a intuição que vê a realidade não dupla da coisa dada percebida. Na passagem seguinte, ele diz que o cultivo dessa intuição é o “grande meio” (mahan upaya203; em tibetano, thabs chen po) para o bodhisattva que busca o conhecimento superior da realidade. Prajna é o grande meio (mahan upaya) para o bodhisattva alcançar a Incomparável Iluminação Perfeita. E por quê? Por causa da firme convicção do bodhisattva no vazio (shunyatadhimoksha), praticando nestes e em outros nascimentos e circulando no samsara pelo 202

Shila (tshul khrims) - Virtude ou disciplina. Comportamento, bem como atitude, virtuosos. mahan upaya (thabs chen po) - Literalmente, o “grande” (mahan) “meio” (upaya) do bodhisattva para alcançar o objetivo de ibertar todos os seres sencientes. Upaya pode ser traduzido também por “método” ou “recurso”. 203

61


62 amadurecimento completo dos Buddhadharmas para si e para os outros seres sencientes, ele conhece o samsara como ele realmente é. Além disso, ele não cansa sua mente com os aspectos de impermanência, etc., que pertencem a esse samsara. Não experimentasse ele a verdadeira natureza do samsara, ele seria incapaz, devido a todas as contaminações (apego, raiva, engano, etc.), de tornar sua mente serena. Não estando serena, sua mente contaminada, circulando no samsara, não amadureceria nem os Buddhadharmas nem os seres sencientes. Shunyatadhimoksha (em tibetano, stong pa ngid la mos pa): Edgerton, em seu Buddhist Hybreid Sanskrit Dictionary, define adhimoksha como “devoção zelosa”, e o termo tibetano mos pa refere-se “àquele que é viciado” em algo. Mas o próprio vazio não é uma coisa, à qual se pode ou se deve se tornar apegado. Como mencionado na Introdução, tanto Nagarjuna, quanto Asanga desejaram corrigir essa visão equivocada. A tradução “firme convicção no vazio” é formulada, portanto, para evitar essa conotação errônea. O termo paripakaya (em tibetano, yongs su smin par bya ba) está associado ao amadurecimento dos seres comuns, frequentemente referidos como balas (em tibetano, byis pa), literalmente “crianças”, aqueles cujo conhecimento, particularmente do Dharma budista, não é desenvolvido. Sarat Candra Das define bala como “aquele que não domina o conhecimento sobre o karma”, mas ele é usado em sentidos bem mais amplos, abrangendo todo o ensinamento budista. Em contraste, evidentemente, com tais seres há o bodhisattva, que tem como principal tarefa levar os seres sencientes à “maturidade”. Os akaras, ou “aspectos” do samsara são tradicionalmente ensinados em conjunto com as Quatro Nobres Verdades. Eles eram doze no ensinamento inicial e, mais tarde, foram cristalizados em um conjunto de dezesseis, começando com anitya (impermanência), duhkha (sofrimento) e anatman204 (não eu). Nas próximas poucas passagens, Asanga indica que o bodhisattva que busca o conhecimento superior da realidade não deve buscar o nirvana dos shravakas e dos pratyekabuddhas nem deve desdenhar esse objetivo nem se assustar com ele. Ao contrário, ele deve permanecer afável e firmemente enraizado em sua convicção no vazio.

Novamente, se ele cansasse sua mente com os aspectos do samsara, impermanência, etc., estando assim [cansado], esse bodhisattva logo ingressaria no parinirvana. Mas o bodhisattva, assim entrando rapidamente no parinirvana, não amadureceria nem os Buddhadharmas nem os seres sencientes. Novamente, como se tornaria desperto para a Incomparável Iluminação Perfeita? Por causa de sua firme convicção no vazio, esse bodhisattva, dedicando-se constantemente, nem se assusta com o nirvana nem se esforça para alcançá-lo. Se esse bodhisattva se assustasse com o nirvana, não acumularia mérito para o nirvana, mas, ao contrário, não percebendo os Anatman (ddag med pa) - Um ensinamento central da filosofia budista que clama a ausênca de uma “essência” na verdade; a negação da existência de um princípio permanente, autoexistente, princípio não chamado “eu” ou nas coisas. 204

62


63 benefícios que se encontram no nirvana, devido ao medo disso, o bodhisattva abandonaria a confiança e a convicção que percebem as excelentes qualidades que há no nirvana. Por outro lado, se esse bodhisattva frequentemente focasse sua mente com dedicação, rapidamente entraria no Parinirvana. Mas, como resultado dessa entrada rápida no parinirvana, não amadureceria nem os Buddhadharmas nem os seres sencientes. Em resumo, quem não conhece completamente o samsara como ele realmente é nele circula com uma mente contaminada. E quem, em sua mente, está cansado do samsara rapidamente entra em nirvana. Quem possui uma mente de medo com relação ao nirvana não acumula mérito para isso. E quem foca [sua mente] dedicadamente no nirvana rapidamente entra em parinirvana. Mas se deve entender que esses não são os meios do bodhisattva para alcançar a Incomparável Iluminação Perfeita. Novamente, quem conhece completamente o samsara como ele realmente é nele circula com uma mente incontaminada. Quem possui uma mente que não está cansada dos aspectos de impermanência, etc. do samsara não entra rapidamente em nirvana. E quem possui uma mente que não tem receio do nirvana reúne meios para alcançá-lo e, embora veja suas boas qualidades e benefícios, todavia, não anseia excessivamente por ele e, assim, não entra rapidamente em nirvana. Esse é o grande método do bodhisattva para alcançar a Incomparável Iluminação Perfeita. E ele está bem fundamentado naquela firme convicção no supremo vazio. Portanto, para o bodhisattva que assimilou bem a Senda da Instrução, cultivar a convicção no supremo vazio é considerado o "Grande Método" para alcançar a sabedoria do Tathagata. Agora se deve saber que esse bodhisattva, por causa desse envolvimento de muito tempo com a sabedoria da falta de essência dos fenômenos, tendo entendido a inexpressabilidade de todos os fenômenos como eles realmente são, não imagina (kalpayati) absolutamente nenhum fenômeno. Caso contrário, ele não apreenderia [verdadeiramente] "somente a coisa dada" precisamente como "somente tathata". Ele não pensa: "Isto é apenas a coisa dada; e isto outro, somente o tathata". Com claro entendimento, o bodhisattva prossegue, e prosseguindo nesse supremo entendimento com intuição do tathata, ele vê todos os fenômenos como realmente são, ou seja, como sendo absolutamente o mesmo. E vendo igualdade em toda parte, em sua mente também, ele alcança a suprema equanimidade. O bodhisattva alcança a suprema equanimidade (paramam upeksham) como resultado de seu cultivo e envolvimento com o conhecimento da falta de essência dos fenômenos. Concomitantemente a esse conhecimento está o reconhecimento da natureza inexpressável de todos os dharmas e da igualdade de sua natureza essencial. A passagem é clara ao identificar o tathata com a igualdade de natureza essencial (samata). Por causa desse reconhecimento da igualdade, o bodhisattva não imagina nenhum dharma. Ou seja, porque ele não possui mais pensamento discursivo ou imaginação construtora (kalpana), que sobrepõe conceitos, julgamentos, designações e distinções, ele não percebe distinções quando vê os dharmas. Ao contrário, quando vê os dharmas, ele vê o tathata. Valendo-se dessa equanimidade, enquanto se dedica intensamente a se capacitar em todas as ciênciasf, esse bodhisattva não se afasta de seu objetivo por causa do cansaço ou por causa de qualquer sofrimento. Incansável no corpo e incansável na mente, ele rapidamente adquire

63


64 habilidade naquelas [ciências] e alcança o estágio de atingimento do grande poder da plena atenção. Ele não se envaidece em virtude de sua habilidade nem é mesquinho, como mestre, com relação aos outros. Não só sua mente não se esquiva de nenhuma habilidade, mas também, com entusiasmo, ele prossegue sem impedimento.

“Habilidade em todas as ciências” refere-se à dedicação incansável do bodhisattva para dominar todas as vidyasthanas205 (em tibetano, rig pa’i gnas), que, conforme a tradição budista, são cinco: (1) filosofia budista; (2) lógica; (3) gramática; (4) medicina; (5) arte aplicada. Com essas habilidades, o bodhisattva é mais capaz de converter e, quando não, beneficiar os seres. “Grande poder da plena atenção” = mahasmrtibala; em tibetano, dran- pa’i stob- pa bskyed-pa chen- po. Dayal, em seu Bodhisattva Doctrine, p. 82, diz que “Smrti é a condição sine qua non ou progresso ético para um bodhisattva”. Ela é parte essencial da preparação (sambhara) de um bodhisattva, e possuí-la confere grande poder (bala) para ele. Para uma análise minuciosa desse termo, veja Dayal, pp. 82 ff. “Mesquinhez de um mestre” é a tradução do termo sânscrito acaryamustim (em tibetano, slobdpon gyi dpe-mkhyud). Edgerton (Buddhist Hybrid Sanskrit Dictionary, p. 89) define esse termo como “mesquinhez de um mestre esconder (particularmente ensinamento) dos discípulos”. Bodhisattvas não se tornam nem orgulhosos nem arrogantes por causa de seus atingimentos nem são avarentos com as habilidades, conhecimento e bens que possuem. Ele pratica com uma sólida couraça mental (drdhasamnaha) na medida em que, circulando no samsara, vivencia diversos sofrimentos (duhkha-vishesham) e na medida em que gera entusiasmo em direção à Incomparável Iluminação Perfeita; na medida em que vive em diversos corpos (samucchraya-viesham), na medida em que lhe falta orgulho com relação a qualquer ser senciente; na medida em que vivencia diversas relações[?] (jnana-vishesham), na medida em que, associado a outros que buscam rixas e disputas, que são tagarelas, que têm grandes ou menores contaminações e que praticam meios descontrolados ou errôneos, quando ele os conhece, mesmo em grande medida, sua mente permanece em equanimidade na medida em que cresce em virtude (gunas). Nessa medida sua bondade (kalyana) não decresce. Ele não busca saber a partir de outros nem busca ganhos ou reverência [para si mesmo]. Esses e muitos outros benefícios da mesma categoria, ou seja, os fenômenos Asas da Iluminaçãog e todas as coisas compatíveis com a Iluminação, resultam ao bodhisattva que tem a sabedoria [da ausência de eu dos fenômenos] como sua base perfeita. Portanto, quem iniciar com a intenção de obter a Iluminação, quem quer que seja, a alcançará. E todos aqueles que de fato a alcançam têm como sua base essa mesma sabedoria, não outra, seja superior ou inferior. Os fenômenos “Asas da Iluminação” (em sânscrito, bodhipakshya; em tibetano, byang chub kyi phyogs) referem-se à fórmula tradicional budista constituída de 37 fatores, ou práticas, tidos como conducentes à Iluminação. Esses fatores incluem os 4 smrty-upasthanani, ou meditações de plena 205

Vidyasthana (rig pa’i gnas) - Literalmente, “bases de conhecimento”. O termo refere-se aos cinco ramos do aprendizado budista tradicional, ou seja, filosofia, lógica, gramática, medicina e arte aplicada.

64


65 atenção; 4 samyak prahanani, retos esforços; 4 rddhi-padah, ou bases de eficiência mágica; 5 indriyani, ou valores éticos e espirituais controladores; 5 balani, forças ou poderes; 7 bodhy-angani, ou seja, constituintes da Iluminação, e o Óctuplo Caminho, resultando em 37. Para um estudo mais completo do ensinamento sobre bodhipakshya, veja Dayal, Bodhisattva Doctrine, PP. 80-164. Tendo assim iniciado a aplicação prática do método sem proliferação, o bodhisattva obtém muitos benefícios: ele se dedica corretamente a amadurecer completamente os Buddhadharmas para si mesmo e para os outros, em amadurecer completamente o Dharma dos Três Veículos. Mais ainda, assim corretamente envolvido, ele não tem desejo por posses ou até por seu próprio corpo. Os “Três Veículos” (yanatraya; thep pa gsum) são (1) o Veículo do Shravaka; (2) o Veículo do Pratyekabuddha e (3) o Veículo do Bodhisattva. Ele treina (shikshate)h a si mesmo a não desejar, de modo que seja capaz de doar aos seres sencientes suas posses e até seu próprio corpo. Somente pelo bem dos seres sencientes ele é comedido, e bem comedido, no corpo e na fala. Ele treina a si mesmo na moderação de modo que naturalmente não tenha prazer nas ações errôneas e de modo que se torne ético e bom por natureza. Ele é paciente com relação a todo insulto e más ações por parte dos outros. Ele treina a si mesmo na paciência de modo que tenha pouca raiva e de modo que não cause dano aos outros. O verbo shikshate (em tibetano, slob-pa), embora um termo comum, é interessante aqui. Ele tem tanto a conotação de “ensinar”, quanto de “aprender”. O bodhisattva aprende fazendo e, assim, ensina a si mesmo. O duplo sentido do termo foi mantido pela tradução “treina”. Ele se capacita e domina todas as ciências para dispersar as dúvidas dos seres sencientes, para conseguir auxiliá-los e para ele mesmo abraçar a causa da onisciência (sarvajnanata). Sua mente permanece no interior, equilibrada. Ele treina a si mesmo na fixação de sua mente, de modo a purificar completamente as Quatro Moradas Sublimes (caturbrahmavihara)i e para utilizar as Cinco Faculdades Supranaturais (pancabhijna)j, a fim de realizar seu dever para com todos os seres sencientes e de eliminar todo o cansaço que surge pelo seu esforço para se tornar competente. E ele se torna sábio, conhecendo a Realidade Suprema (paramatattvajna). Ele treina a si mesmo para conhecer a Realidade Suprema de modo que, no futuro, ele próprio, no Grande Veículo, entre em parinirvana. Vicikitsa (em tibetano, the tshom), ou dúvida, é o sexto dos dez kleshas, paixões contaminadoras, na enumeração páli e o último da lista mahāyāna dos seis kleshas. Ela é considerada um dos maiores impedimentos para o progresso espiritual. Desfazer as dúvidas dos seres sencientes, especialmente com relação ao Dharma, é uma das principais doações feitas pelo bodhisattva na medida em que ele busca o bem-estar de todos os seres. As “Quatro Moradas Sublimes” (catur-brahma-viharas; tshans pa’i gnas bzhi) são as quatro meditações que, na tradição budista, são chamadas Brahma-viharas, “brahma” significando aqui não o deus hindu, mas o estado ou nível de “nobre atingimento” que o bodhisattva alcança praticando-as. Elas são conhecidas também como apramanas, as “infinitudes”, as meditações “imensuráveis” ou “ilimitadas”. Edward Conze, no Buddhist Thought in India, p. 80, sugere que as

65


66 quatro parecem ter pertencido às tradições religiosas indianas como um todo, já que elas também são encontradas, listadas na mesma ordem, nos Yoga-Sutras de Patanjali. As quatro brahma-viharas consistem em cultivar, por meio de técnicas meditativas indicadas, quatro sentimentos em particular: (1) maitri, amor ou bondade; (2) karuna, compaixão; (3) mudita, alegria benevolente; (4) upkesha, ou equanimidade. Uma boa descrição dos quatro conjuntos dentro da tradição de meditação é dada por Mahathera em seu Buddhist Meditation. O Venerável Trijang Rinpoche, atual tutor principal do XIV Dalai Lama, descreveu essas práticas. Ele diz que, antes de tudo, é importante desenvolver upskesha, pois, sem isso, as outras três viharas não podem se desenvolver com êxito. Além disso, quando se busca desenvolver maitri, karuna e mudita, é importante começar com um sentimento genuíno de cada um. A prática não busca expandir ou tornar “ilimitadas” essas emoções, pois, se esse fosse o caso, não se estaria trabalhando de fato com um sentimento autêntico. Ou seja, a verdadeira bondade não muda. Ao contrário, a prática das viharas é realizada de modo que o número de seres sencientes que alguém é capaz de incluir nessas emoções ou dirigir a eles se torna “ilimitado”. A descrição que o Rinpoche faz dessas práticas parece o relato mais exato e é consistente com a ordem dada por Asanga na passagem acima, ou seja, o bodhisattva, tendo-se tornado primeiramente “sereno”, foca sua mente no cultivo das brahma-viharas. Dayal, (Bodhisattva Doctrine, p. 226), diz-nos que, na época da literatura Prajnaparamita, o termo apramana substitui o uso de vihara, e que isso provavelmente se deveu ao uso específico posterior de vihara “para significar os diferentes estágios da senda do bodhisattva”. Posteriormente, como é dito, o bodhisattva desenvolve as “cinco faculdades supranormais” (em sânscrito, pancabhijna; mngon par shes pa lnga). As abhijnas, ou “faculdades supranormais”, são listadas aqui como sendo cinco, mas também são enumeradas em seis, por exemplo, no Mahayanasutralankara. Dayal (no The Bodhisattva Doctrine, p. 107) cita o Mahavyutpatti para sua lista das seis abhijnas, como se segue: (1) divyam cakshuh, ou seja, visão divina; (2) divyam shrotram, audição divina; (3) parasya ceta-paryaya-jnanam, conhecimento sobre a composição do pensamento dos outros; (4) purva-nivas-anusmrti-jnanam, memória de vidas passadas; (5) rddhi-vidhi-jnanam, conhecimento de poderes mágicos e (6) asrava-kshaya-jnanam, conhecimento da destruição dos fluxos. O Dashabhumikasutra omite a sexta abhijna, como faz Asanga aqui. Provavelmente, Asanga o faz porque, anteriormente, no capítulo, ele inclui a “destruição dos fluxos (asrava-kshaya) entre os atingimentos alcançados pelos shravakas e pratyekabuddhas e considera esse atingimento coerente com a destruição do véu dos kleshas. Às vezes, considera-se que as abhijnas possuem duas divisões principais: mundana (lokiya) e supramundana (lokottara). Segundo essa análise, esses atingimentos da primeira divisão são o resultado da prática de shamatha, ou meditação cujo objetivo é “acalmar”, e os da segunda categoria são alcançados por meio de vipashyana, ou meditação cujo objetivo é a intuição. Van Zeyst, na Encyclopaedia of Buddhism, p. 98, diz que as cinco abhijnas estão na primeira categoria, enquanto a sexta e, às vezes, a sétima, está na segunda categoria. Além disso, da lista quíntupla, diz-se que quatro pertencem ao conhecimento (ou seja, audição divina, conhecimento sobre a composição do pensamento dos outros, poderes mágicos e memória de vidas passadas, enquanto a

66


67 quinta, “visão divina” está relacionada somente com a visão e pertence à habilidade dos buddhas e bodhisattvas de verem os vários “falecimentos e renascimentos dos seres”. “No futuro, ele próprio, no Mahayana, entrará em parinirvana” — mahayane, c’ayatyam atmanah parinirvanaya — é interessante por causa do modo bastante concreto no qual Asanga usa o caso locativo do termo mahayana, ou seja, literalmente, “no grande veículo”. Deve-se saber que o bodhisattva assim retamente envolvido trata todos os seres virtuosos com devoção e reverência. E todos os seres não virtuosos ele trata com cuidado, com uma mente de simpatia e uma mente de suprema compaixão. Na medida do possível e de sua condição, ele se dedica a extinguir suas falhas. Ele trata atenciosamente todos os seres agressivos com uma mente de amor. E, na medida do possível e de sua condição, sem trapaças (ashaţha) e sem fraudes (amayavī), trabalha pelo bem-estar e felicidade deles, para eliminar a consciência hostil daqueles que fazem o mal por causa de suas falhas (dosha) de convicção e de prática. Quanto aos seres prestativos, depois de lhes demonstrar gratidão, ele os trata atenciosamente em retribuição, com mais prestatividade. Ele corresponde às suas devotas aspirações na medida do possível e de sua condição. Até quando ele é incapaz, não tendo sido solicitado, ele demonstra respeitoso empenho com relação a essas ou aquelas obrigações a serem feitas. Ele nunca rejeita seu dever. Como poderia lhe ocorrer a ideia: "Eu, sendo incapaz, não desejo fazer isso"? Esta e outras ações da mesma categoria deveriam ser entendidas como o procedimento correto para o bodhisattva, que, tendo tomado a via da não proliferação, está bem embasado na sabedoria da Realidade Suprema. “Até quando ele é incapaz...“: as várias edições sânscritas e tibetanas discordam em suas traduções dessa passagem. A versão sânscrita é a seguinte: apratibalo’pi ca yacitah san tesu tesu krtyakaraniyesu adaram-vyayamam upadarshayati na sakrd eva nirakaroti. A edição de Dutt concorda com a de Wogihara, exceto na sua leitura de ādaram, “respeitoso”, como aposto a ādāram (?). O texto de Wogihara, contudo, faz uma nota, p. 43. Sugerindo uma tradução alternativa. A versão tibetana claramente lê gus par, ou seja, ādaram, mas também difere tanto da versão de Wogihara, quanto da de Dutt ao ler ma bcol bar, ou seja, na yacitah, (literalmente) “não tendo sido solicitado”, em vez de ca yacitah, “sendo solicitado”. A tradução dada aqui segue a tradução tibetana da passagem. Como todas as edições concordam em sua leitura de que não ocorreria ao bodhisattva rejeitar a ação nas áreas em que ele é incapaz de realizar uma tarefa, parece claramente mais apropriado ao contexto que ele é “incapaz” de agir somente nos casos em que não houve um pedido direto ou compromisso para realizar determinado serviço, ou seja, em que não houve uma demanda específica. Tal comportamento demonstra a austeridade e a atenção do bodhisattva a um serviço efetivo e altruísta, em vez de sua inabilidade.

67


68

68


69

[II]

Agora, por qual raciocínio filosófico se deve entender o caráter inexpressável (nirabhilapya-svabhavata) de todos os dharmas? Pelo seguinte: qualquer que seja a designação para as características individuais dos dharmas — por exemplo, "forma" ou "sentimento" ou os outros agregados da personalidade, como explicado antes, até o "nirvana"— deve ser entendido como apenas uma designação (prajnapti-matram). Nem é a natureza essencial (svabhava) daquele dharma nem é totalmente diferente disso. Essa [natureza essencial] não é a esfera da fala, não é o objeto da fala nem é totalmente diferente disso. Sendo esse o caso, a natureza essencial dos dharmas não é encontrada no modo em que é expressa. No entanto, não é que absolutamente nada seja encontrado. Novamente, a natureza essencial está ausente (avidyamana), contudo, não absolutamente ausente. Pode-se perguntar: "Como ela é encontrada?" Ela é encontrada ao se evitar prender-se à visão que afirma a existência do que é não existente e à visão que nega a existência completamente. Mais ainda, deve-se entender que somente a esfera de cognição completamente livre do pensamento discursivo é o domínio do conhecimento da natureza essencial suprema (paramarthikah svabhavah) de todos os dharmas. Com essa passagem, Asanga inicia a explicação do raciocínio filosófico (yukti) pelo qual o bodhisattva chega a compreender a natureza essencial de todos os dharmas. Tendo completado a descrição das práticas que o bodhisattva deve cultivar, Asanga agora se dirige para o tópico central do capítulo. Aqui o termo chave, prajnaptimatra, “apenas” ou “somente uma designação”, é introduzido, e a abordagem filosófica adotada no capítulo, ou seja, a análise da relação entre designações e a natureza essencial dos dharmas, é evidentemente exposta. Nas passagens seguintes, Asanga apresentará uma análise minuciosa da natureza das designações e de sua relação tanto com os dharmas individuais (aqui, todos os referentes de nomes), quanto com a natureza essencial em geral. O sânscrito dessa passagem é especialmente interessante, principalmente pela ambiguidade introduzida pelo seu uso de tad, “aquilo” ou “isso”. A passagem se lê: prajnapti-matram eva tad veditavyam. na svabhavo napi tad-vinirmuktas tad anyo vag-gocaro vag-vishayah. evam sati na svabhavo dharmanam tatha vidyate. Aqui “isso” pode ser visto aplicando-se igual e simultaneamente à “designação” e à “natureza essencial”, de modo que a passagem pode ser traduzida (primeiro tad), “designações não são equivalentes à natureza essencial dos dharmas” e (segundo tad) “a natureza essencial não é a esfera da fala nem o objeto da fala”. A ambiguidade pode ser intencional aqui, enfatizando, a partir das duas direções, a ausência de natureza essencial nas/por meio das designações. A passagem termina com uma clara descrição do modo de o Caminho do Meio ver a natureza essencial e com a reiteração de que tal cognição é possível somente quando o pensamento discursivo tiver sido completamente silenciado. Segue-se, nas próximas poucas passagens, uma breve análise, no estilo dos debates, na qual Asanga oferece críticas às afirmações de que, primeiramente, os nomes transmitem natureza essencial às coisas nomeadas e, em segundo lugar, de que as próprias coisas ditam quais nomes devem ser aplicado a elas.

69


70

Novamente, se, com relação a qualquer dharma ou coisa dada, se assume que eles se tornam exatamente como sua expressão, então, esses dharmas e essa coisa dada seriam aquela expressão em si. Mas, se esse fosse o caso, então, para cada dharma e para cada coisa dada, haveria muitos tipos de natureza essencial. E por quê? É assim: a cada dharma e a cada coisa dada muitos homens associam muitas designações diferentes em virtude de numerosas expressões de diversos tipos. Aquele dharma e aquela coisa dada devem ter identidade com a natureza essencial de alguma designação verbal, dela ser feitos e possuí-la, mas não das outras designações verbais restantes. Mas, não havendo nenhuma definição fixa, qual dos muitos tipos de designação verbal se sustentaria como o correto? Portanto, o uso de qualquer uma e de todas as designações verbais, não importa o quanto sejam completas ou incompletas, para qualquer uma e para todas as coisas dadas, não significa que as últimas sejam idênticas às designações verbais, delas sejam feitas ou recebam uma natureza essencial através delas. A afirmação de que uma coisa corresponde à sua designação implica vários problemas. Sugere-se com uma afirmação como essa que uma determinada coisa dada é idêntica à natureza essencial, dela é feita ou tem a natureza essencial do nome aplicado a ela. Mas, como Asanga argumenta, isso não pode ser assim, já que, para qualquer coisa em particular, vários nomes diferentes são utilizados, por diferentes seres e sob diferentes circunstâncias. As várias designações — isso deve ficar claro — são resultado não só das diferentes línguas, mas também das diferentes situações psicológicas, respostas emocionais e suas consequentes percepções. Por exemplo, eu recordo do exemplo Yogacara comum citado por Edward Conze na discussão sobre “Os Yogacaras”, no Buddhist Thought in India. O exemplo aponta que os seres em diferentes estágios de renascimento percebem as coisas diferentemente: “Um mesmo objeto, por exemplo, um rio, evoca ideias totalmente diferentes nos fantasmas famintos, animais, homens e devas. [...] Os fantasmas famintos, por causa da retribuição de suas ações passadas, vê somente pus, urina e excrementos; os peixes nele encontram um lar; os homens vêem água fresca e pura que pode ser utilizada para beber; os devas da estação do espaço infinito veem somente espaço” (p. 256). Tais percepções diferentes, evidentemente, geram o uso de diferentes designações para a mesma coisa dada. Como não há “determinação fixa” para se escolher qual dos vários nomes é o correto, ou seja, aquele que caracteriza exatamente a natureza essencial daquela coisa dada, o bodhisattva deve entender que a natureza essencial das coisas não é encontrada nos nomes aplicados a elas nem é transmitida por eles. Agora, considerando de outra maneira, suponha que os dharmas em si, de forma, etc., como explicado anteriormente, se tornassem a natureza essencial de suas designações verbais. Se esse fosse o caso, então, primeiramente, haveria apenas a coisa dada, isto é, completamente dissociada de nomes, e somente depois haveria o desejo de associar àquela coisa dada a designação verbal. Mas isso significaria que, antes que uma designação verbal fosse associada, no momento imediatamente anterior à associação da designação, aquele próprio dharma e aquela coisa dada não possuiriam natureza essencial. Mas se não houvesse natureza essencial, não haveria absolutamente coisa alguma. Assim, uma designação não seria necessária. E como nenhuma designação verbal seria associada, a natureza essencial do dharma e da coisa dada não poderia ser provada. Essa segunda hipótese supõe que as coisas “assumem” ou chegam a possuir natureza essencial quando são nomeadas. Asanga contrapõe-se diretamente a essa afirmação. Se não se

70


71 assume uma natureza essencial prévia, então nenhuma coisa prévia está presente, e nenhum objeto está disponível para servir como base para a qual se associar um nome. Um nome é colocado em algo. Se não há algo presente, então não há razão para sequer se ocupar com o questionamento sobre o fato de que seu nome caracteriza ou não sua natureza essencial. Assim, qualquer que seja a natureza essencial possuída pelas coisas, essa natureza essencial não pode ser estabelecida verbalmente, ou seja, ter começado a existir como resultado do processo de nomeação. Novamente, suponha que, imediatamente antes da associação da designação verbal, aquele dharma e aquela coisa dada fossem idênticos à designação. Sendo esse o caso, mesmo sem a designação verbal "forma", a ideia de forma ocorreria sempre que houvesse um dharma com o nome "forma" e sempre que houvesse uma coisa dada com o nome "forma". Mas isso não ocorre. Agora, utilizando um raciocínio como esse, pode-se entender que a natureza essencial de todos os dharmas é inexpressável, ou seja, completamente além do alcance da expressão. E podese entender que assim como ocorre com a forma, ocorre do mesmo modo com as sensações, etc., como explicado anteriormente, até o nirvana em si. Enquanto as duas primeiras afirmações se referiam à questão dos nomes e das coisas a partir dos nomes e sugeriam que as designações realmente definiam ou transmitiam natureza essencial às coisas, a passagem acima fala a partir das próprias coisas e considera a proposição de que a natureza essencial das coisas já é tal que define e dita que nomes devem ser adequadamente colocados nelas. Mas, se fosse verdade que as próprias coisas ditam seus nomes corretos, então haveria concordância completa e universal sobre como cada coisa é chamada. Mais ainda, tal concordância existiria apesar das várias línguas, respostas de percepção e psicológicas mencionadas anteriormente. Mas, claramente, esse não é o caso. Por meio de raciocínios como esse, deve-se entender que a natureza essencial de todos os dharmas está “além do alcance da expressão”. E ainda, Asanga assegura, a natureza essencial dos dharmas realmente existe. Ele agora começa, de modo minucioso, a expor como o conhecimento dessa natureza essencial inexpressável pode ser obtido. Deve-se entender que estas duas visões se separaram de nosso Dharma-Vinaya 206: (1) aquela que tende a afirmar (samaropata)l a existência do que são características individuais não existentes, havendo natureza essencial somente por meio de designações verbais para uma coisa dada, forma, etc., ou para os dharmas forma, etc.; e também (2) aquela que, a respeito de uma coisa dada (vastu), nega (apavadamano) a base para o signo da designação verbal, que existe em sentido último (paramarthasadbhutam) devido à sua natureza inexpressável (nirabhilapyatmakatataya), dizendo: "Absolutamente tudo é inexistente". A afirmação de Asanga sobre essas duas visões errôneas serve como ponto alto de sua explicação sobre a realidade como deveria ser adequadamente entendida. Ela representa a própria formulação de Asanga do Caminho do Meio (madhyama pratipad), o caminho que evita os dois

206

Dharma-Vinaya (chos-‘dul ba) - Vinaya refere-se à segunda das chamadas “cestas” (pitakas) do cânone budista, ou seja, aquela que trata especificamente do código de disciplina monástica. Portanto, o uso de Asanga do termo composto Dharma-Vinaya pretende delimitar o que constitui propriamente o verdadeiro ensinamento e prática budistas.

71


72 extremos errôneos — da existência e da não existência, do eternalismo e do nihilismo — e que faz uma clara explanação e a defesa do ensinamento sobre shunyata. Os termos samaropa (em tibetano, sgro ‘dogs pa) e apavada (skur pa ‘debs), que significam “afirmação” e “negação”, respectivamente, formam um par técnico que representa os dois extremos. Samaropa indica o extremo do exagero, ou de atribuir realidade demais à coisa em questão, enquanto apavada indica o extremo da redução, ou de atribuir pouca realidade a ela. O meio entre essas duas visões equivocadas é o Caminho do Meio, que revela a característica de shunyata como nem existente nem não existente, mas, ao contrário, um meio que transcende essas duas visões. O’Brien (A Chapter on Reality, p. 294, nota 52) oferece uma interessante citação do Fohsing-lun (T. 31, 795), centrada no conceito do vacuidade, ou vazio, em sua descrição do Caminho do Meio: “Se imaginarmos o vazio como existente, isso é chamado exagero. Se imaginarmos o vazio como não existente, isso é chamado redução (ou seja, apavada).” Novamente, a afirmação de Asanga é mais complexa do que a afirmação tradicional do Caminho do Meio (por exemplo, como feita por Nagarjuna) porque está em consonância com a posição de Asanga de que a natureza ilusória ou irreal (ou seja, parikalpita), bem como a natureza relativa (paratantra207), deve, contudo, estar baseada no real. Ou seja, sua formulação permite para um existente, embora inexpressável, um substrato de realidade (que torna a cognição, embora distorcida, e a nomeação totalmente possíveis). A segunda parte da formulação de Asanga pode ser vista como dirigida particularmente aos “externos” (ou seja, os seguidores de alguma das escolas hindus ortodoxas), bem como os “internos” (aqui, os seguidores da Madhyamika) que conceberam erroneamente shunyata como completo nihilismo. “Imaginar o vazio como não existente” é um grave erro que, segundo Asanga, está distante do que constitui propriamente o verdadeiro ensinamento budista. Para o sistema de Asanga, o nome ou designação é de natureza puramente imaginária (parikalpita). Sua exegese afirma (27b.3): “Como se pode conhecer completamente essa natureza imaginária? Ele diz: Pode-se conhecer completamente essa natureza imaginária como sendo simplesmente nome, ou seja, simplesmente imaginação”. O vastu, ou coisa dada, contudo, realmente existe — como paratantra, ou natureza relativa. Ou seja, como ele é composto, ele existe, embora impermanentemente e, portanto, não em sentido absoluto. Novamente, a exegese afirma (27b.7): “Como se pode conhecer completamente a natureza de dependência?” Ele diz: “Pode-se saber completamente que ela inclui todas as coisas construídas [bya ba ‘dus byas, literalmente: ‘criado pela composição’.]” Com “composição”, quer-se dizer que é produzido por meio de condições, ou “reunido devido a causas e condições”. Um nome alternativo para vastu, nesse sentido, é “coisa condicionada”. Qualquer fenômeno condicionado é dependente (de causas e condições) e, devido a essa dependência, é impermanente. Assim, o estado último ou o modo de realidade último é frequentemente referido como “o Incondicionado”. Portanto, enquanto a negação do vastu (na passagem sinônima a nimitta = “signo” ou “a coisa sobre a qual a fala se baseia”) é possível — se se entender o sentido apropriado da negação —, é um grave erro negar a existência do fundamento (adhishthanam) [último] inexpressável do vastu. Pois, 207

Paratantra (gzhan gyi dbang) - Nome dado à segunda das “três naturezas”. A natureza de “dependência”. Literalmente, “obtendo seu poder a partair de outro”. No sistema de Asanga, essa natureza de “dependência”é representada pelo vastu (ou seja, a coisa dada que serve como base para atribuição).

72


73 segundo Asanga, esse fundamento inexpressável realmente existe em sentido último. Ele é a verdadeira, parinishpanna208, realidade. As falhas que resultam de se afirmar a existência do que é inexistente foram examinadas, expostas, esclarecidas e iluminadas imediatamente acima. Por causa dessas falhas que surgem ao se afirmar a existência de inexistentes com relação à coisa dada de forma, etc., deve-se entender aquela visão como se tendo separado de nosso Dharma-Vinaya. Os seres comuns fazem isso o tempo todo, sempre que eles associam nomes às coisas e acreditam, sem sequer refletir sobre a validade de sua crença, que as coisas existem exatamente como elas são expressas. Por nos envolvermos tão descuidadamente com os jogos da linguagem e dos julgamentos, constantemente sobrepomos nos seres atributos e características inexistentes de fato. Assim, exageramos o verdadeiro estado das coisas. Do mesmo modo, a negação da mera coisa dada (vastu-matram)m, que é uma negação universal (sarvavainashika), separa-se de nosso Dharma-Vinaya. Eu digo então: "Nem realidade nem designação são conhecidas quando a mera coisa dada, forma, etc., é negada. Ambas as visões são incorretas". O termo composto “vastu-matram” foi traduzido como “mera coisa dada” na tentativa de traduzir o sentido especial, que eu penso pretendido aqui, de uma base ou coisa completamente livre de atributos e imputações. Ele também pode ser traduzido aqui simplesmente como “a coisa dada em si” (ou seja, separada de atribuições subjetivas). O ponto de vista de Asanga é que, segundo o modo de ver do Caminho do Meio, é um erro afirmar a existência do que, de fato, é inexistente, e é um erro negar completamente a existência. Aqui a ênfase está no erro de negar completamente a coisa dada. Em resumo, negar categoricamente todas as coisas — designações bem como referentes — é uma visão extrema que, segundo Asanga, é muito pior do que a primeira definida acima. Em seguida, ele comenta sobre o porquê de isso ser assim. Assim, se os agregados da forma existem, a designação "pessoa" é válida. Mas, se eles não existem, a designação "pessoa" é infundada. Associar uma designação verbal aos dharmas, forma, etc. e à mera coisa dada de forma, etc. é válido quando eles são existentes (sat). Quando eles não são existentes, a associação de uma designação verbal é infundada. E, novamente, se não existe coisa dada presente para ser designada, então, como não há base, também não há designação. Portanto, certas pessoas que ouviram as passagens obscuras dos sutras associadas com o Mahayana e associadas com o profundo vazio e que apresentam somente um significado indireto (abhiprayikartha)209 não entendem o significado do ensinamento como ele realmente é 208

Parinishpanna (yongs su grub pa) - “Aperfeiçoado”. Termo utilizado para caracterizar a terceira das “três naturezas” (svabhavas), segundo o sistema de Asanga. Corresponde à “verdade absoluta” do ensinamento sobre as “duas verdades e descreve a cognição última da realidade, livre de todas as influências deturpadoras. 209

Abhiprayika (dgongs pa can) - Velado; indireto. Aparecendo especialmente em associação com artha (significado) ou vacanan (fala), esse termo caracteriza o que está “coberto” ou “velado”. Assim, aquilo que possui significado velado ou indireto, não prontamente acessível à investigação.

73


74 (yathabhuta210). Imaginando-o superficialmente (ayonisha), elas então têm pontos de vista demonstrados pela lógica, sem força de convencimento, e dizem assim: "Toda esta realidade é apenas designação. E quem vir desse modo vê corretamente." De acordo com elas, a coisa dada em si, que é a base para a designação, está ausente. Mas, se assim fosse, nenhuma designação ocorreria de forma alguma! Como a realidade, então, poderia vir a ser somente designação? Essas duas passagens podem ser vistas como constituintes da refutação definitiva de Asanga àqueles que confundem shunyata com o nada. Essa posição é insustentável para Asanga. Simplificando, “não há isto sem aquilo. Não existindo aquilo, isto também não existe”. (É precisamente no ponto da relatividade de shunyata que Asanga e Nagarjuna concordam). Novamente, algumas pessoas que confundem o significado de shunyata afirmam que nada existe, exceto nomes, ou seja, “nenhuma coisa existe, somente nomes”. O principal motivo dos argumentos de Asanga, tanto aqui quanto na exegese, tem sido demonstrar a dependência mútua de nomes e coisas. Agora, o que quer que seja dependente não faz parte da realidade última. Assim, é incorreto assumir que uma coisa dependente (ou seja, designação) exista a partir de si mesma. Mas Asanga, ao mesmo tempo, argumenta com outra posição, mais importante, aqui. Ou seja, ele refuta a ideia de que se possa negar completamente o vastu (ou seja, aqui a natureza paratantra). Aqueles que “compreenderam mal” o verdadeiro propósito do ensinamento mahayana sobre shunyata supõem que ele significa a negação de todas as coisas, todos os vastus. Mas eles não discernem que parte da natureza paratantra deve ser negada e que parte não! A posição de Asanga está baseada nos três svabhavas. Sua exegese (em 24b.8) diz: “O significado de todos os sutrantas de significado provisório é guiado pelas Três Naturezas. Deve-se entender o significado como o Tathagata enunciou de incontáveis modos, em termos das Três Naturezas, em seu verdadeiro significado e como os bodhisattvas que possuíam esse ensinamento o explanaram em seu verdadeiro significado”. Consequentemente, a negação geral e indiscriminada da natureza paratantra impede que se alcance o conhecimento da realidade última (ou seja, da natureza parinishpanna perfeita), pois isso deixa a pessoa presa ao nihilismo. Essa refutação, portanto, visa àqueles “internos” (aqui, seguidores de Nagarjuna) que pensam que shunyata significa a completa negação da natureza relativa e da natureza imaginária. Isso também expressa claramente a objeção de Asanga à teoria das “duas naturezas”, ou seja, de que é insuficiente como meio soteriológico (upaya). Como podem as designações (natureza imaginária) apenas constituir a realidade última (parinishpanna)? As designações surgem quando existem coisas presentes, e vice-versa. Elas são mutuamente dependentes. Quando se reconhece essa dependência mútua, o que se faz somente quando se aceita a existência de algum modo de ambos os componentes dependentes, aproxima-se do entendimento adequado de shunyata. Além disso, a passagem da exegese de Asanga acima aponta para um aspecto-chave da abordagem yogacarin do tema da hermenêutica budista. Como mencionado anteriormente, o 210

Yathabhuta (yang dag pa ji lta ba bzhin du) - Termo descritivo utilizado para caracterizar o estado último de realidade, livre de todas as sobreposições. Traduzido aqui pela frase “como ela realmente é”, ou seja, em si mesma.

74


75 Buddhismo Mahayana reconhece três fases do desenvolvimento filosófico budista (os chamados “três giros da roda do Dharma”), segundo as quais a Yogacara é considerada a última e, por consequência, a mais avançada. Esse estratagema dos “três giros” como um expediente hermenêutico é apresentado no Samdhinirmocana Sutra, um sutra conhecido por ter sido muito valorizado por Asanga. Agora, o principal problema de significado e interpretação com relação aos textos mahayana refere-se às declarações de Buddha sobre o vazio (shunyata). A exegese de Asanga aqui expressa o julgamento hermenêutico de que todos os sutras, sejam ensinados pelo Buddha de modo direito e explícito (nitartha) ou de modo velado e indireto (neyartha), podem ser corretamente entendidos somente com o uso do esquema da teoria da Yogacara das “três naturezas”, e isso particularmente porque o praticante está, desse modo, protegido contra o nihilismo. Consequentemente, elas negam ambas: tanto a realidade quanto a designação. Deve-se entender que a negação da realidade e da designação é a posição do nihilista-mor 211 (pradhana nastika). Como suas visões são assim, as pessoas inteligentes (vijna) que vivem uma vida pura (brahmacarin) não devem conversar nem se associar com o nihilista. Tal pessoa, ou seja, o nihilista, é uma calamidade até para si mesma, e as pessoas do mundo que seguem sua visão também caem em desgraça. Com relação a isso, o Muni declarou: "De fato, é melhor ter a visão de uma 'essência' do que conceituar erroneamente o vazio". Por quê? Porque os homens que têm a visão de uma “pessoa” estão iludidos somente a respeito de uma única coisa a ser conhecida, mas eles não negam todas as coisas que podem ser conhecidas. E eles não nasceriam entre os seres infernais só por essa razão. E ninguém deve levar o buscador do Dharma, o buscador da libertação do sofrimento à desgraça nem enganá-lo; ao contrário, deve-se estabelecê-lo na retidão (dharma) e na Verdade (satya). E não se deve ser relapso com relação a pontos de instrução. Por causa do vazio erroneamente conceituado pelo nihilista, ele se confunde em relação à coisa dada que pode ser conhecida dos dharmas a ponto de negar tudo o que pode ser conhecido e, por causa disso, nasce entre os seres infernais. O nihilista causaria um desastre ao homem reto, o buscador da libertação do sofrimento, e se tornaria relapso com relação a pontos de instrução. Portanto, negando a coisa dada como ela realmente é, ele se desviou bastante de nosso Dharma-Vinaya. As passagens são, em sua maior parte, autoexplicativas. O nihilista extremo causa desgraça para si mesmo e para os outros porque, negando todas as coisas, ele destrói os preceitos éticos, pratica um estilo de vida totalmente hedonista que conduz apenas a renascimentos entre os seres infernais. Tal comportamento é totalmente o oposto da prática disciplinada voltada para a libertação. Assim, trilhando a senda do bodhisattva, deve-se tomar cuidado com uma pessoa assim. Além disso, as passagens indicam o grande perigo de pensar que shunyata significa o nada. Embora, segundo o ensinamento budista, ter a visão de uma ”pessoa”, ou seja, assumir a existência independente de um “eu” individual, seja uma visão errônea a ser corrigida, contudo, como a citação deixa claro, ter tal visão é menos perigosa do que ter a noção equivocada sobre o verdadeiro significado de shunyata. Novamente, como o vazio é conceituado erroneamente? Existem alguns shramanas, bem como brahamanas, que não concordam (necchati) com relação a "devido a que existe um vazio; nem concordam com relação a "o que é que é vazio". Mas tais formulações são evidência do que 211

{"...is the position of the chief nihilist."}

75


76 se diz ser "vazio conceituado erroneamente". E por quê? O vazio é lógico quando uma coisa é vazia de outra por causa daquela ausência [da outra] e por causa da presença da coisa vazia em si. Mas como e por qual razão o vazio chegaria a existir a partir de uma ausência universal [sarva-abhavat, ou seja, da completa não existência]? Assim, a concepção de vazio que eles descrevem não é válida. Portanto, desse modo, o vazio é conceituado erroneamente. Embora breve, a passagem acima é bastante importante, pois nela Asanga refuta a posição daqueles que pretendem propor o ensinamento de shunyata, mas que, segundo seu sistema, não consideraram bem a validade de seu argumento. O sânscrito nessa passagem é muito sucinto. Lêse (começando em “Existem alguns”): yah hashic chramano va brahmano va tac ca necchati yena shunyam. tad api necchati yat shunyam. iyam evam-rupa durgrhita shunyatety ucyate, tat kasya hetoh. yena hi shunyam. tad a-sad-bhavat. yac ca shunyam. tad sad-bhavac chunyata yujyeta. O ponto crucial da passagem liga as duas frases yena shunyam e yat shunyam. Literalmente, elas não concordam com relação a “devido a que (yena) existe um vazio” nem concordam com relação a “o que é (yat) vazio”. A passagem visa a explicar com mais detalhe o absurdo da posição do nihilista extremo, pois uma pessoa assim pretende entender o vazio, mas, ao mesmo tempo, se prende à não existência de “absolutamente tudo”. Asanga afirma aqui que qualquer pretensão de negação universal (sarva-abhavat) exclui a possibilidade de vazio. Esse é um exemplo-chave para ilustrar o “sabor” da posição yogacara e da teoria das três naturezas. Para Asanga, o termo “vazio” é aplicável somente em um contexto no qual existe uma coisa existente à qual ele se aplica. A coisa vazia (vastu) deve estar presente de algum modo para que a afirmação de que ela é vazia (de algo) seja válida. Se tal coisa não estiver presente, então a designação “vazia” é infundada. Mas os nihilistas desejam dizer que absolutamente tudo é não existente e não presente. Dizendo assim, segundo Asanga, eles negam o vazio da mesma forma. Mais ainda, o argumento, como apresentado por Asanga, visa especificamente a refutar aqueles que negariam a natureza paratantra. Asanga diz a tais pessoas: “Você nega a coisa autoexistente. Nisso concordamos com você. Você também nega a coisa não autoexistente (ou seja, o paratantra), mas, nessa negação, não podemos concordar com você, pois se você disser que toda autoexistência é não existente, certamente, sua afirmação provará que a não autoexistência existe! E esse é o ponto principal de Asanga, ou seja, o vazio realmente existe.

76


77 Um exemplo pode ser útil para ilustrar o significado da passagem. Pegue um livro. Agora, um livro autoexistente não está presente, ou seja, não existe. Por quê? Porque ele é dependente (de uma série de várias causas e condições, ou seja, seu autor, a prensa que o imprimiu, o papel, a linha e a tinta que entraram na sua produção, etc.) Consequentemente, ele não é autoexistente, não tendo causado sua própria produção. Mas não sendo autoexistente, ele é dependente, ou seja, não existe por conta própria. Agora, devido a que o livro é vazio (de autoexistência)? Devido ao próprio fato de sua dependência. Mas se alguém quisesse dizer que tanto a autoexistência quanto a não autoexistência são não existentes, como se poderia pretender discutir o livro, exceto seu vazio, de qualquer modo? O livro é — isso deve ficar claro —, no sistema de Asanga, o não autoexistente, mas uma coisa dependentemente existente, ou seja, a natureza paratantra. Agora, como o vazio é conceituado corretamente? Onde e qualquer que seja o lugar onde algo não esteja, observa-se corretamente que aquele [lugar] é vazio dessa [coisa]. Além disso, o que quer que permaneça naquele lugar é conhecido (prajanati) como realmente é, que "aqui há um existente". Isso é considerado envolvimento com o vazio como ele realmente é e sem desvios. Por exemplo, quando uma coisa dada, como indicado, é denominada "forma", etc., não existe nenhum dharma idêntico a essa designação verbal "forma", etc. Assim, sempre que um dharma for designado "forma", etc., essa coisa dada é vazia de identidade com a designação "forma", etc. Então, o que permanece naquele lugar quando uma coisa dada é designada "forma", etc.? O seguinte: somente a base (ashraya) da designação verbal "forma", etc. Quando alguém conhece ambas como elas realmente são — ou seja, que há somente uma coisa dada e há somente uma designação para uma coisa dada somente —, então, nem se afirma a existência do que é inexistente nem se nega o que é existente. Não se tende nem para o excesso nem para a redução, nem se minimiza nem se acrescenta. E quando se conhece o tathata212 como realmente é, com sua natureza essencial inexpressável como ela realmente é, isso é chamado "vazio conceituado corretamente" e chamado "intuição correta bem discernida". Por esses meios e outros coerentes com o raciocínio demonstração-e-prova, chegar-se-á a julgar que a natureza essencial de todos os dharmas é inexpressável. A passagem acima estabelece a posição de Asanga bem claramente. Para ele, o vazio é apreendido “corretamente” por aquele que vê com o modo de ver do Caminho do Meio, ou seja, que nem exagera nem minimiza a realidade como ela realmente é. Ele nem nega nem afirma in toto. Ao contrário, ele vê o que ele vê como “apenas isso” e sabe que é possível uma coisa existir de tal forma que nem é totalmente existente nem totalmente não existente. Ele vê todas as coisas como não sendo nenhum desses dois extremos. Consequentemente, ele chega a julgar que a natureza essencial de todas as coisas como, de fato, inexpressável. Nas próximas passagens, Asanga cita a autoridade dos sutras para a discussão filosófica acima e para a posição assumida aqui.

tathata (de bźin nid) – Literalmente, "dessa forma" ou "o estado de ser assim como é", o termo é um sinônimo para śūnyata e samata e caracteriza o estado último da realidade, liberto de toda descrição definida. 212

77


78

78


79

[III]

Além disso, deve-se entender que todos os dharmas têm uma natureza essencial inexpressável a partir dos textos (agama) de uma pessoa confiável (competente). Essa mesma intenção foi expressa pelo Muni a partir de um verso elucidador (gathabhigīta) do Sutra sobre a Transmigração na Vida Fenomênica (sk.: Bhavasamkrantisutra; tib.: srid pa 'pho ba'i mdo)n: De fato, por qualquer que seja o nome, qualquer que seja o dharma mencionado, esse dharma não é encontrado ali, pois essa é a verdadeira natureza (dharmata) de todos os dharmas. Com essa passagem, Asanga inicia a seção que oferece autoridade escritural para o entendimento adequado do “vazio” como definido acima. O primeiro sutra citado, o Bhavasamkranti-sutra (em tibetano, srid pa ‘pho ba’i mdo), é mencionado no Mahavyutpatti (ver item 1.379), onde se diz que ele é um dos mais antigos textos mahayana. Além de ser citado aqui por Asanga, o Bhavasamkranti é mencionado por Chandrakirti em seu Madhyamakavatara. Sua importância é verificada ainda pelo fato de que existem comentários inteiros aos sutras que são atribuídos a Asanga e Nagarjuna (ou seja, o Bhavasamkranti-tika e o Bhavasamkrantishastra, respectivamente). Um sutra bem breve em tamanho, o Bhavanasamkranti-sutra tem a forma de um diálogo entre o Buddha e Bimbisara, Rei de Magadha. Seu principal assunto concentra-se na explanação de como pode existir o renascimento, ou, mais precisamente no contexto do sutra, a transmigração (samkranti) à luz do ensinamento do anatman, não eu. O formato do sutra é o seguinte: durante a primeira sessão, em prosa, o Buddha explica a Bimbisara como o renascimento ocorre em virtude de ações que são apenas momentâneas. Para fazer isso, ele dá uma explicação detalhada baseada no exemplo de um sonho. Então, ao fim dessa seção em prosa, são enumerados sete versos; o citado aqui por Asanga é o segundo desses versos. Os versos desse sutra são, além disso, notáveis, pois propõem uma das mais antigas afirmações mahayana sobre as Duas Verdades (ou seja, samvrtisatya e paramarthasatya). Para mais detalhes e tradução do sutra, junto com os comentários, veja a tradução de N. A. Sastri do Bhavasamkrantisutra. A própria explanação de Asanga do verso imediatamente seguinte o interpreta eloquentemente. Como esse verso elucida o significado? Quando um dharma tem o nome "forma", etc., qualquer que seja o nome, ele é referido por meio desse nome "forma", “sentimento”, etc. até “nirvana”. Mas esses dharmas que têm esses nomes não são, em si mesmos, idênticos às designações "forma", etc. Nem há dharma algum encontrado fora daquele que é idêntico à "forma", etc. Novamente, em relação a esses dharmas que têm os nomes "forma", etc., deve-se entender que o que existe lá em sentido último, com um significado inexpressável, é o modo

79


80 verdadeiro (dharmata) de natureza essencial. E isso foi dito pelo Muni no sutra que trata das categorias de dharmas [o Arthavargīya]:

Quaisquer que sejam as convenções que haja entre os mundanos, todas elas o Muni não adota. E verdadeiramente não participando, como poderia ele se entregar, visto que ele não tem prazer no que é visto ou ouvido? O Arthavargya-sutra (em tibetano, dons gyi sde tshan dag mdo) existe no cânone páli com o título Atthakavagga. Lá ele é encontrado como o décimo terceiro sutta de uma coleção maior intitulada Mahaviyuhasutta, na quarta seção do famoso Sutta Nipata. O verso citado aqui é o terceiro de treze versos que compreendem o Atthakavagga. Na versão páli, ele está formulado nos seguintes termos: Ya kac’ ima sammutiyo puthujja; sabba va eta na upeti vidva; anupayo so upayam Kim eyya ditthe sute khantim akubbamano. Embora a versão sânscrita desse sutra não exista mais, sabemos que existiu não apenas porque a citação de Asanga está em sânscrito, mas também porque a tradução chinesa (por um tradutor Tche-k’ien, feita entre os anos 223 e 253 A.D.) foi feita a partir de uma versão original sânscrita, segundo Lamotte (Histoire du Bouddhisme Indien, p. 173). O próprio Sutta Nipata é reverenciado como representante de um dos mais antigos esquemas da literatura budista. Que Asanga faça uma citação a partir desse sutra em particular atesta para ambos tanto sua reverência e seu conhecimento da antiga literatura quanto sua convicção de que tais ideias como ele aqui as está explanando são encontradas de fato nessa literatura. Como esse verso elucida o significado? Quaisquer que sejam as designações, tais como "forma", etc., aplicadas a um dharma de "forma", etc., são consideradas "convenções". Ele não aceita que os dharmas sejam idênticos a essas designações. A esse respeito, ele não aceita essas convenções. E por quê? Porque sua visão nem é a de exagero (samaropa) nem de negação (apavada). Agora, como ele não tem uma visão errônea (viparyasa213), é dito que não ele participa. Assim, não participando, como vai se entregar? Sem essa visão errônea, ele nem afirma nem nega aquela coisa dada. E, não se entregando, ele vê retamente, no que pode ser conhecido, o que deve ser visto. E o que ele ouve ser dito sobre o que pode ser conhecido foi de fato ouvido sobre isso. Quanto ao que é visto e ouvido, ele não gera nem aumenta apego. De outra forma, ele não se livraria do objeto de consciência (alambana)214 e não permaneceria em equanimidade. Tendo equanimidade, ele não cria desejo (kantim).

213

Viparyasa (phyin ci log) - Aqui, traduzido como “visão obstinada”, o termo refere-se, na literatura budista, às quatro visões errôneas: (1) considerar permanente o que é, na verdade, impermanente; (2) considerar possuidor de uma essência o que não possui essência; (3) considerar puro o que é impuro e (4) considerar agradável o que, na verdade, é desagradável. 214 Alambana (migs pa) – O objeto, ou suporte mental, da consciência. Frequentemente usado com referência à meditação, quando conota o objeto meditativo ou visualização.

80


81 O Muni (referindo-se aqui tanto ao sábio da senda meditativa silenciosa quanto ao próprio Buddha) não aceita convenções mundanas. Assim, diferentemente dos seres comuns, ele não exagera (samaropa) nem reduz (apavada) a realidade. O termo viparyasa, traduzido aqui como “visão errônea” é, tradicionalmente no Budismo, aplicado a quatro visões errôneas dos seres comuns, ou seja: (1) considerar como permanente o que, na verdade, é impermanente; (2) considerar como possuidor de um eu o que não possui eu; (3) considerar como puro o que é impuro e (4) considerar como agradável o que, na verdade, é doloroso. A exegese de Asanga (em 22b.3) acrescenta uma quinta “visão errônea”, que ele define como “considerar a natureza imaginária ou atribuída como o objeto (nimitta = vastu ) em si”. Não possuindo essas visões errôneas, o Muni “nem afirma nem nega a coisa dada”. Assim, experimentando a natureza essencial inexpressável da coisa dada, “ele nela vê retamente o que deve ser visto”. Essa passagem também deixa claro que é somente por “não participar”, por meio do apego, anseio ou expectativa, que se cessa de se prender a um objeto e/ou à sua designação, assim alcançando a equanimidade. E, novamente, isso foi declarado pelo Muni no sutra que se inicia com a estória do "Samtha Katyayana". Nessa narrativa, o monge, possuindo o título "Samtha", não medita nem sobre a base (ayatana)215 terra, água, fogo ou vento nem sobre as bases espaço, percepção ou absolutamente nada nem ideação ou não ideação sobre este mundo ou o outro nem sobre o sol ou a lua nem sobre o que é visto, ouvido, pensado, percebido, obtido, lutado, investigado ou concluído pela mente. Ele não utiliza nada disso como base meditativa. Agora, se ele não medita sobre a base terra, etc., ou sobre todo o resto, sobre o que ele medita? Aqui, para o monge samtha, qualquer que seja a ideia (samjna) de "terra" com relação à terra, essa ideia é perdida (vibhuta). Qualquer que seja a ideia de "água" com relação à água e com relação a todo o resto, essa ideia é perdida. Assim, o monge medita não utilizando terra como base meditativa nem qualquer uma das outras. Não utilizando absolutamente nenhuma delas como base meditativa, ele medita. Portanto, todos os devas, juntamente com Indra, com Īshanas e Prajapati, curvam-se próximos ao monge assim meditando, dizendo: Saudações a este nobre homem. Saudações ao melhor dos homens, a ti, para quem nada mais existe para saber. Recorrendo a que vais meditar? Novamente, como esse verso do sutra elucida nossa própria intenção? Coisas dadas designadas "terra", etc., "terra", etc. são somente designações nominais. Para essas coisas dadas designadas "terra", etc., a ideia relativa a elas surge com exagero ou com redução. A ideia com "exagero" supõe que a natureza essencial da coisa dada consiste daquele nome, e a ideia com "redução" supõe a destruição daquela base última da coisa dada em si. Quando essas duas visões errôneas são abandonadas e eliminadas, a ideia de qualquer base meditativa é considerada "perdida".

215

Ayatana (skye mched) - Os doze “fatores” da consciência, que abrangem os seis órgãos dos sentidos (inclusive a mente como o sexto) e seus respectos objetos dos sentidos. Essas são os elementos fundamentais da análise epistemológica budista.

81


82 A edição sânscrita de Dutt do Bodhisattvabhumi, p. 49, situa o Samtha Katyayana-sutra no Anguttara-Nikaya, V, 224.28-329.19. Um samtha é um meditador conhecido por sua firme concentração. Os ayatanas (em tibetano, skye mched) ou “bases” são tradicionalmente enumerados como sendo 12 e podem ser chamados “fatores de consciência”. Compostos pelos 6 objetos dos sentidos e pelos 6 órgãos dos sentidos, eles são elementos fundamentais da epistemologia budista. Aqui o termo também é sinônimo de vários kasinas, ou os chamados dez “artifícios” e objetos meditativos de todos os tipos, dos “suportes mentais” (ou seja, alambanas) grosseiros aos extremamente sutis. Como ele não se prende a nenhum objeto nem à sua designação, diz-se que a ideia de tais coisas está “perdida” para ele. Assim, ele medita não utilizando objetos meditativos, ou seja, nada que possa ser determinado por meio da fala. Sendo inexpressável, diz-se que o objeto está “perdido”. O termo vibhuta é interessante aqui por causa do uso incomum por parte de Asanga, pelo qual vi- funciona como prefixo de negação em união com a raiz bhu. O Prof. Wayman notou isso no contexto do Shravakabhumi, de Asanga. (Ver Analysis, de Wayman, p. 57, onde ele define vibhavana como “cessar a intensa concentração” [bhavana].) Monier-Williams aparentemente não tinha consciência desse uso. Veja sua entrada para vibhuta em seu Sanskrit-English Dictionary, p. 978. Aparentemente, existe uma tradição entre os yogacarins de usar uniões de “vi” e bhu” desse modo, pois o mesmo pode ser observado no Mahayanasutralankara. Nomes, como é dito, geram ideias das coisas nomeadas, as quais são exageros ou reduções dessas coisas. O meditador que reconhece esse caráter deturpador dos nomes os abandona (tornando-se, podemos dizer, um “meditador silencioso”, um muni) e suas ideias deturpadoras acompanhantes. Assim, ele não medita sobre “absolutamente nada”. A parte final da passagem acima fornece a, talvez, mais clara formulação do ponto de vista de Asanga sobre o Caminho do Meio. Ou seja, esse é o Caminho que evita (1) supor que a natureza essencial da coisa dada consiste de seu nome e (2) supor a eliminação da base última da coisa dada. Portanto, a partir dos textos e também da linhagem suprema de confiáveis sucessores do Tathagata, deve-se entender que todos os dharmas têm uma natureza essencial inexpressável. Agora, se todos os dharmas têm assim uma natureza essencial inexpressável, por que a expressão é utilizável de algum modo? Na verdade, porque, sem expressão, a verdadeira natureza inexpressável não poderia ser contada a outros nem ouvida por outros. E se ela não fosse nem dita nem ouvida, não poderia se tornar conhecida. Portanto, a expressão é aplicável para gerar sabedoria através da audição.

82


83 [IV]

Precisamente porque o tathata não é totalmente conhecido (aparijnatatva), os oito tipos de pensamento discursivo (vikalpa) surgem para os seres imaturos (bala) e operam então para criar as três bases (trivastu), que, posteriormente, produzem os mundos receptáculos (bhajanaloka)q de todos os seres sencientes. Os oito são os seguintes: (1) pensamento discursivo referente à natureza essencial; (2) pensamento discursivo referente à particularidade; (3) pensamento discursivo referente à apreensão de formas genéricas; (4) pensamento discursivo referente ao "eu"; (5) pensamento discursivo referente ao "meu"; (6) pensamento discursivo referente ao agradável; (7) pensamento discursivo referente ao desagradável, e (8) pensamento discursivo contrário a ambos. Aqui começa a última e maior seção do capítulo. Com a passagem acima, Asanga inicia sua análise completa do pensamento discursivo. Ele nos diz que existem oito tipos diferentes desse pensamento e que esses oito produzem três coisas (aqui, “bases”) que, posteriormente, engendram todos os reinos do samsara. Aqui, “mundos receptáculos”, bhajanaloka (em tibetano, snod kyi ‘jig rten), refere-se aos cinco (no Hinayana) e seis (no Mahayana) gatis, ou destinos, que constituem o samsara, ou seja, (1) o naraka, ou inferno (seres infernais), (2) pretas (fantasmas famintos), (3) animais, (4) humanos, (5) devas, ou deuses, e (6) asuras, semideuses. O vastu de trivastu (em tibetano, szhi gsum), nessas passagens, tem uma conotação mais ampla do que anteriormente. Assim, ele é traduzido por “base”. Enquanto, na verdade, a primeira dessas “três bases”, é idêntica ao vastu traduzido, desde o começo, como “coisa dada”, o objeto percebido (sua natureza paratantra), com relação aos outros dois casos, seu significado é mais próximo de “base” ou “fundamento” no sentido do que subjaz, apoia ou produz os fenômenos quando são percebidos. Essa conotação mais ampla deve ser lembrada enquanto se lê esta seção. Em seguida, há uma descrição de como os oito vikalpas produzem as três bases, ou, mais precisamente, quais vikalpas geram qual base. Aprendemos que os pensamentos discursivos sobre a natureza essencial, a particularidade e as “formas genéricas” (pindagraha-vikalpa) são responsáveis por produzir a base (aqui, vastu = “coisa dada”, referente) que é então nomeada e se torna o fundamento para posterior proliferação discursiva. Os pensamentos sobre “eu” e “meu” produzem a base que é a visão de “eu” e do “que pertence ao eu”. Por último, o pensamento discursivo sobre o que é agradável, o que é desagradável ou o que, não sendo nenhum dos dois, é neutro, produz, por diversas formas, os três kleshas primários: apego, aversão e engano. Ou seja, parece que o pensamento discursivo sobre o agradável é responsável por gerar apego; sobre o desagradável, aversão; e sobre nenhum dos dois, engano. Esses três kleshas, não se deve esquecer, são o próprio eixo da “roda do samsara”. Além disso, segundo diz Asanga, as três bases estão intimamente conectadas, de modo que a visão do “eu” tem suporte somente quando há a visão de um objeto (ou seja, de “uma base que é nomeada”) em contraposição àquilo que é definido – ou dualismo eu-outro, sujeito-objeto. E os três kleshas de apego, aversão e engano são possíveis somente quando existem as ideias de “eu” e do “que pertence ao eu”. Assim, como o pensamento discursivo e sua proliferação — que produzem objetos, ideias de “eu” e “meu”, apego e aversão, etc. — são responsáveis pelo prosseguimento de todos os reinos de sofrimento, é obrigação do bodhisattva entender bem a natureza e o funcionamento do pensamento discursivo.

83


84 Além disso, os oito tipos de pensamento discursivo criam quais três bases? O pensamento discursivo referente à natureza essencial, o pensamento discursivo referente à particularidade e o pensamento discursivo referente à apreensão de formas genéricas — esses três geram a base [perceptível] que é designada "forma", etc., isto é, a base que serve como fundamento para a proliferação discursiva e como seu suporte mental (alambana). Com essa base [perceptível] como seu fundamento, o pensamento discursivo, saturado e revestido de palavras, ideias e nomes, prolifera-se e percorre essa base de muitas maneiras. Desses oito, o pensamento discursivo referente ao "eu" e o pensamento discursivo referente ao "meu" gera a visão concretizadora (satkayadrshti)216 e a raiz de todas as outras visões, ou seja: a raiz do orgulho (mana217), a raiz do egoísmo (asmimana) e a raiz de todas as outras visões autocentradas. Desses oito, os pensamentos discursivos referentes ao agradável e ao desagradável, bem como o que é contrário a ambos, geram, conforme as circunstâncias, apego, aversão ou engano (ragadveshamoha). Assim, esses oito tipos de pensamento discursivo servem para manifestar os três tipos de bases, ou seja: (1) a base [perceptível] que serve como fundamento para o pensamento discursivo e sua proliferação; (2) a base da visão concretizadora, egoísmo e orgulho e (3) a base do apego, da aversão e do engano. Com relação a esses, quando a base [perceptível] do pensamento discursivo, junto com a proliferação, existe, então o apego, a aversão e a ilusão têm suporte. Mais ainda, essas três bases explicam completamente a progressão múltipla de todos os mundos [do samsara]. Agora se segue uma definição detalhada de cada um dos oito tipos de vikalpa. O pensamento discursivo referente à natureza essencial afirma a suposta natureza ou essência de seu objeto. O pensamento discursivo referente à particularidade delineia especificidades e afirma distinções. O pensamento discursivo referente à apreensão de formas genéricas afirma a reunião ou agrupamento de dharmas individuais em conjunto, a composição de características separadas em uma única unidade. Esse é, exatamente, o processo de concretização com o qual dharmas individuais e separados são vistos juntos e estão, então, nomeados. Esse pensamento formula os universais. Quando fazemos isso com os “agregados”, nós, equivocadamente, concretizamos um “ego”, um “eu” onde, na verdade, não há nenhum. Esse pensamento discursivo referente ao “eu” e ao “meu” gera as ideias de “eu” e do “que pertence ao eu”, essas últimas sendo responsáveis pela noção errônea de que os objetos são verdadeiramente existentes como percebidos pelo “eu”. E, como mencionado anteriormente, o pensamento discursivo sobre o que é agradável, desagradável ou neutro causa, conforme as circunstâncias, os três kleshas. 1. Desses oito, o que é pensamento discursivo referente à natureza essencial? É aquele que designa "forma", etc., quando há uma coisa dada de forma, etc. Isso é chamado “pensamento discursivo referente à natureza essencial”. 2. O que é pensamento discursivo referente à particularidade? É aquele que, quando existe uma coisa dada chamada "forma", etc., pensa: "Isso tem forma", "Isso é sem forma", "Isso está manifesto", "Isso não está manifesto", "Isso tem impedimento", " Isso está desimpedido", " Isso é fluxo", " Isso não é fluxo", " Isso é composto", " Isso não é composto", "virtuoso", "não virtuoso", Satkayadŗşţi ('jig tshogs la lta ba) - A visão reificadora. A visão que afirma uma realidade concreta autocentrada baseada nas noções de "eu" e "meu". 217 mana (nga rgyal) - Orgulho; egocentrismo. O tibetano traduzido literalmente é “[tratar o] eu como um rei”. 216

84


85 "indeterminado", "passado", "futuro", "presente". Por meio de incontáveis discriminações da mesma categoria, qualquer pensamento discursivo que esteja baseado no pensamento discursivo referente à natureza essencial com o intuito de particularizá-lo é chamado “pensamento discursivo referente à particularidade”. 3. O que é pensamento discursivo referente à apreensão de formas genéricas? Quando existe uma coisa dada designada "forma", etc., o que operar para apreender formas genéricas com relação aos múltiplos dharmas tomados juntos, acrescentando às coisas dadas designações nominais, como "eu", "vida" e "seres sencientes" e acrescentando designações nominais como "casa", "exército" e "floresta", "alimento", "bebida", "transporte" e "roupas", etc., é chamado “pensamento discursivo referente à apreensão de formas genéricas”. 4. 5. O que é pensamento discursivo referente ao "eu" e "meu"? Quando uma coisa dada tem fluxo, é apreensível e, por longo tempo, tem sido familiar, presa a (abhinivishţa) um eu e pensada como "eu" (atmata) ou como "o que pertence ao eu" (atmīata), então, pela familiaridade com essa forma errônea de conceituar, o pensamento discursivo toma erroneamente a coisa dada, que surgiu dependentemente, como tendo sido colocada lá a partir de seu próprio ponto de vista. Isso é chamado “pensamento discursivo referente ao ‘eu’ e ‘meu’”. 6. O que é pensamento discursivo referente ao agradável? É aquele que tem como suporte mental uma coisa dada que seja prazerosa ou cativante para a mente. 7. O que é pensamento discursivo referente ao desagradável? É aquele que tem como seu suporte mental uma coisa dada que seja dolorosa e repulsiva para a mente. 8. O que é pensamento discursivo contrário a ambos, o agradável e o desagradável? É aquele que tem como seu suporte mental uma coisa dada que nem é prazerosa nem não prazerosa, nem cativante nem repulsiva para a mente. E todo esse processo é composto somente de dois elementos: pensamento discursivo e coisa dada, que então se torna o suporte mental do pensamento discursivo e o fundamento do pensamento discursivo. Deve-se entender que ambos são mutuamente causados (anyonya hetuka)218 e sem começo no tempo. Um pensamento discursivo anterior é a causa que gera uma coisa dada presente, que, por sua vez, se torna o suporte mental do pensamento discursivo. E, novamente, a coisa dada gerada, que é o suporte mental presente para o pensamento discursivo, é a causa que gera o pensamento discursivo futuro, tendo-a como seu suporte mental. Agora, com relação a isso, é precisamente pela falta de entendimento que o pensamento discursivo do presente é a causa que gera a coisa dada no futuro — e essa coisa dada, por sua vez, torna-se o suporte mental do pensamento discursivo no futuro — e que há a inevitável (niyata) geração do pensamento discursivo no futuro, tendo essa coisa como seu fundamento e como sua base. As passagens acima afirmam a dependência mútua do pensamento discursivo e da coisa dada. Pode-se substituir “nome” ou “designação” por “pensamento discursivo” aqui, na medida em que a ideia é indicar que um — seja nome, designação, ideia, pensamento ou o que for — é dependente do outro. A exegese de Asanga dedica um bom espaço para oferecer interessantes exemplos que mostram que isso é assim. Anyonya hetuka (gcig gi rgyu las gcig byuń ba yin pa) – Produção mútua ou geração em dependência um do outro. Literalmente: "por causa de um, o outro surge". O conceito de produção mútua e dependência é fundamental para a explicação de Asanga aqui, onde é mostrado que o pensamento discursivo causa a coisa dada, enquanto a presença da coisa dada gera o pensamento discursivo. Da mesma forma, havendo coisas, o nome surge, e vice-versa. Esse processo de dependência mútua é ainda caracterizado como sendo "sem começo". 218

85


86 A partir de tais passagens, pode-se também deduzir que Asanga não é idealista, pelo menos como se entende na tradição da filosofia ocidental, pois, claramente, coisas dadas, ou objetos, existem assim como os nomes. Na verdade, segundo a teoria das três naturezas, até mais. Para Asanga, “idealismo” estaria associado com o pensamento discursivo, vikalpa, e assim, com a natureza deturpadora da conceitualização. Como tal, ele seria denunciado em vez de exaltado pela Escola Yogacara. Como será alertado posteriormente, para o bodhisattva que compreende totalmente a natureza e o funcionamento do pensamento discursivo, tanto o pensamento discursivo quanto sua base, a “coisa dada”, simultaneamente se dissolvem. Assim, longe de defender a superioridade do pensamento sobre os objetos, a explanação de Asanga sobre shunyata e o Caminho do Meio envolve a cessação tanto do sujeito quanto do objeto, tanto daquele que apreende quanto da coisa apreendida. Somente o conhecimento completamente liberto do pensamento discursivo conhece um objeto como ele realmente é. Esse estado de conhecimento, contudo, deve ser descrito como inexpressável, pois, quando o objeto é visto como ele realmente é, ele não é visto como um objeto, ou seja, como separado ou à parte daquele que vê. Mas aquele que vê também se dissolve no que é visto, porque o objeto é visto como ele realmente é. Assim, não um idealismo, mas um estado de íntimo e inexpressável conhecimento da realidade é almejado. Mas agora, como a completa jnana (parijnana) do pensamento discursivo surge? Ela surge por meio das quatro investigações completas (paryeshanas) e por meio das quatro formas de conhecer precisa e detalhadamente (yathabhutaparijnanas)r. Quais são as quatro investigações completas? Elas são a investigação do nome, a investigação da coisa dada, a investigação das designações para a natureza essencial e a investigação das designações para a particularidade. As quatro paryeshanas (em tibetano, yongs su tshol ba) e as quatro yathabhutaparijnanas (em tibetano, yang dag pa ji lta ba bzhin du yongs su shes pa) são investigações técnicas do âmbito de vipasyana realizadas por praticantes budistas. Asanga começa discutindo as quatro paryeshanas, ou “investigações completas”. Esse mesmo grupo de quatro itens é enumerado com explanações na Mahayanasamgraha, de Asanga, capítulo 3, seção 7. (Ver a tradução de Lamotte, vol. II, p. 161) Da mesma forma, as quatro são tratadas no capítulo 19, verso 47 do Mahayanasutralankara (o capítulo trata das qualidades do bodhisattva e é intitulado Gunadhikara). O comentário de Sthiramati sobre o capítulo e esse verso em particular é interessante. Seu comentário (encontrado no PTT, vol. 109, p. 98, folio I) diz: “[Esse tipo de] análise é feito no momento do adhimukticaryabhumi” [ou seja, no estágio imediatamente anterior ao primeiro estágio do bodhisattva]. Assim, essas quatro análises podem ser feitas pelos shravakas e pratyekabuddhas. Pode ser que as quatro, pelo menos segundo Sthiramati, sejam equivalentes aos quatro nirvedha-bhagyas, ou “investigação analítica”. As afirmações de Sthiramati indicam uma clara distinção entre as quatro paryeshanas e as quatro yathabhutaparijnanas ao sugerir que as primeiras podem ser realizadas pelos praticantes dos dois veículos menores, mas as últimas são apenas da esfera dos bodhisattvas. Segue-se a caracterização dessas “investigações completas”. Em cada caso, a coisa investigada deve ser reconhecida como “apenas isso”, sem exagero ou redução. O investigador reconhece que, embora nomes sejam “apenas nomes” e coisas sejam “apenas coisas”, designações para a natureza essencial e para a particularidade surgem quando os dois, ou seja, nomes e coisas são reunidos.

86


87 Com relação a essas investigações, investigação do nome significa que o bodhisattva vê, quanto ao nome, que é apenas um nome. Da mesma forma, quanto à coisa dada, perceber que ela é apenas uma coisa dada é a investigação da coisa dada. Quanto às designações para a natureza essencial, percebê-las claramente como apenas designações para a natureza essencial é a investigação das designações para a natureza essencial; e quanto às designações para a particularidade, percebê-las como apenas designações para a particularidade é a investigação das designações para a particularidade. Ele vê que nomes e coisas dadas possuem características distintas (bhinna lakshana219) e características associadas (anushlishta lakshana) e compreende (pratividhyati) que as designações para a natureza essencial e as designações para a particularidade estão baseadas nas características associadas do nome e da coisa dada. Quais são as quatro formas de conhecer precisa e detalhadamente? Elas são: conhecer detalhadamente o nome investigado, a coisa dada investigada, as designações para a natureza essencial e as designações para a particularidade — conhecer tudo isso precisamente, em detalhe. Tendo visto os quatro itens de modo geral e tendo concluído que cada um é “apenas isso”, Asanga agora descreve a prática avançada para um bodhisattva conseguir compreender cada um deles “precisamente, em detalhe”. Novamente, segundo o comentário de Sthiramati, essas quatro ocorrem no primeiro estágio do bodhisattva. Sthiramati escreve: “O bodhisattva agora analisa o caráter do vazio” (ou seja, stong pa nyid mtshan nyid). No folio 5, ele descreve as quatro assim: “(1) saber [...] que todos os nomes são avastuka [ou seja, infundados e sem referentes reais] e vazios; (2) saber [...] que todos os vastus não possuem natureza essencial e são vazios; (3) saber [...] que todos as svalakshanas [ou seja, características individuais] não possuem natureza essencial e são vazias e (4) saber [...] que todos os dharmas que surgem e cessam [samanya-lakshanas ou dharmas com “características associadas”] não possuem natureza essencial e são vazios”. Assim, o bodhisattva no primeiro estágio consegue “conhecer precisa e detalhadamente” a falta de essência dos dharmas (dharmanairatmya). Sobre as quatro yathabhutaparijnanas, é dada uma explanação bem semelhante a essa de nosso capítulo no Mahayanasamgraha, 3.8. O que é conhecer precisamente, em detalhe, o nome investigado? Deve-se saber que o bodhisattva, tendo investigado o nome apenas como nome, conhece esse nome exatamente como ele realmente é, ou seja, ele define que "esse nome é uma unidade linguística (artha)220 para uma coisa dada"; da mesma forma, é "a unidade linguística para a conceituação, a unidade linguística para a visão e a unidade linguística para a atribuição (upacara)". Se, para uma coisa dada concebida normalmente como forma, etc., um nome "forma" não fosse determinado, ninguém iria então conceituar essa coisa dada como forma; e não a conceituando, não exageraria nem se apegaria a ela. E não se apegando a ela, não poderia expressá-la. Assim, ele a conhece 219

Lakshana (mtshan nyid) - Uma marca ou sinal. Na filosofia budista, uma característica ou aspecto distintivo. Um atributo (de uma substância) No contexto do presente capítulo, o termo refere-se àquelas “características individuais” que têm existência somente em virtude das designações. 220 Artha (don) – Conhecimento; significado; unidade linguística. A tradução comum para este termo é "significado". Contudo, no contexto do presente capítulo, ele é frequentemente utilizado como um sinônimo para jnana, ou conhecimento. Para traduzir então o traço principal epistemológico do capítulo, está traduzido aqui como "conhecimento" ou "conhecer". Além disso, ele às vezes é tratado como aquilo que causa conhecimento ou que "cria significado" (tib. don byed) . Com referência aos "signos" escritos específicos para as coisas, ele é também apropriadamente traduzido por "unidade linguística".

87


88 precisa e detalhadamente. Isso é chamado “conhecer o nome investigado precisa e detalhadamente”. O que é conhecer precisamente, em detalhe, a coisa dada investigada? Para qualquer coisa dada, o bodhisattva, tendo-a investigado como apenas coisa dada, vê que essa coisa dada, enquanto conceituada como "forma", etc., e enquanto associada com todas as expressões [para ela], é em si mesma inexpressável. Esse é o segundo conhecimento detalhado, ou seja, conhecer precisa e detalhadamente a coisa dada investigada. Conhecer a natureza do nome como ela realmente é, ou seja, a de uma unidade linguística que facilita o pensamento discursivo e sobre a qual o pensamento discursivo opera e se prolifera, o bodhisattva reconhece que é por causa do nome que a conceituação é possível, que as opiniões, atribuições e adornos surgem. Da mesma forma, o bodhisattva reconhece que, se não fossem os nomes, o exagero e a redução não poderiam ocorrer e, assim, o apego seria forçado a cessar. Reconhecendo isso como a verdadeira natureza do nome, pode-se dizer que ele o conhece precisamente, em detalhe. O que é conhecer a coisa dada precisamente? É conhecer que, em si mesma, ou seja, em seu sentido último [paramarthika], a coisa dada é inexpressável e completamente dissociada do pensamento discursivo. Ela é o cognoscível “não discursivo”. O que é conhecer precisa e detalhadamente as designações investigadas para a natureza essencial? É aquele conhecimento pelo qual, com relação à coisa dada concebida como "forma", etc., depois de ter investigado suas designações para a natureza essencial como apenas designações, sabe e sabe bem, em detalhe, que, nas designações referentes a essa coisa dada existe apenas a mera aparência de natureza essencial e que, na verdade, a natureza essencial verdadeira está ausente lá. Percebendo essa "natureza essencial" senão como criação mágica, uma imagem refletida, um eco, uma alucinação, o reflexo da lua na água, um sonho e uma ilusão, ele sabe que essa aparência não é constituída dessa natureza essencial. Esse é o terceiro conhecimento preciso e detalhado, que é a esfera do mais profundo conhecimento (sugambhīrartha gocara). O que é conhecer precisa e detalhadamente as designações para a particularidade investigadas? É aquele conhecimento pelo qual o bodhisattva, depois de ter investigado as designações para a particularidade como apenas designações associadas às coisas dadas chamadas "forma", etc., vê designações para a particularidade como tendo um significado não duplo. A coisa dada não está nem completamente presente nem completamente ausente [nem existente nem não existente]. Ela não está presente, pois não está "perfeita" (parinishpannatva) devido a ter uma “essência” expressável. E ela não está totalmente ausente, pois, de fato, ela está determinada a ter uma essência inexpressável. Assim, do ponto de vista da verdade absoluta (paramarthasatya), ela não é formada (rupi); contudo, do ponto de vista da verdade relativa (samvritisatya), ela não é sem forma, já que uma forma é atribuída a ela. Assim como é com a presença e a ausência, forma e sem forma, assim é o que for manifesto ou não manifesto, etc. Todas as enumerações de designações para a particularidade deveriam ser entendidas exatamente dessa mesma maneira. Ele [o bodhisattva] conhece detalhadamente como tendo um significado não duplo quaisquer designações para a particularidade. Isso é conhecer precisa e detalhadamente as designações investigadas para a particularidade.

88


89 O bodhisattva consegue perceber que, do ponto de vista relativo, apenas a aparência de natureza essencial é indicada pelas designações para a natureza essencial e que, do ponto de vista absoluto, nenhuma natureza essencial, de tipo algum, é encontrada neles. Esse conhecimento é caracterizado como “o mais profundo”. Aqui Asanga lista somente algumas comparações elucidativas para a visão do bodhisattva em relação à natureza relativa (ou seja, o aspecto paratantra) da designação para a natureza essencial e suas respectivas coisas dadas. Sua exegese fornece uma lista bem mais longa. A passagem aqui é interessante porque deixa claro que as comparações são aplicáveis somente ao aspecto relativo das coisas ou das relações. Elas não são aplicáveis à natureza última. Com relação às designações para a particularidade, o bodhisattva as conhece “precisa e detalhadamente” quando reconhece que essas designações servem somente para afirmar caracterizações excessivas. Como elas servem para distinguir atributos distintos, afirmando que uma coisa dada é totalmente isso ou aquilo, essas designações sempre distorcem a realidade. O bodhisattva então as conhece corretamente, como elas realmente são, quando, percebendo sua natureza, as vê como possuindo um significado “não duplo” e se referindo a uma realidade que, na verdade, não pode ser expresso de modo definitivo. Asanga termina essa seção estimulando o bodhisattva. Ele assegura que o prosseguimento do samsara e seus consequentes sofrimentos cessarão junto com o pensamento discursivo que os gerou para aquele que dominou esses quatro tipos de “conhecimento preciso e detalhado”. Agora se deve entender que esses oito tipos de pensamento discursivo errôneo (mithya221) que pertencem aos seres imaturos e que geram as três bases e causam o retorno contínuo ao mundo funcionam por causa da debilidade dessas quatro formas de conhecimento preciso e detalhado e do não envolvimento com elas. Mais ainda, do pensamento discursivo errôneo surge a contaminação; da contaminação, o movimento cíclico no samsara; do movimento cíclico no samsara, as consequências do samsara, ou seja, os sofrimentos do nascimento, envelhecimento, doença e morte. Mas sempre que o bodhisattva recorre às quatro formas de conhecer precisa e detalhadamente, ele conhece os oito tipos de pensamento discursivo. E por causa de seu reto conhecimento, nesta vida (drshte dharme) não há geração, agora ou no futuro, de uma coisa dada associada com proliferação que poderia servir como suporte mental e como fundamento para o pensamento discursivo. E porque o pensamento discursivo não surge, não há geração, no futuro, de uma coisa dada que o tem como seu suporte. Assim, para ele, esse pensamento discursivo, junto com a coisa dada, cessa (nirodha). Isso deve ser entendido como a cessação de toda proliferação. Acima Asanga oferece a caracterização final do objetivo buscado pelo bodhisattva, ou seja, a completa cessação do pensamento discursivo junto com a coisa dada que o acompanha. Esse é o estado de supremo conhecimento da realidade, ou seja, conhecimento completamente livre do pensamento discursivo (nirvikalpa jnana222). 221

Mithya (log pa) - Equivocado. Incorreto. Utilizado especialmente com referência à formulação de

lógica. 222

Nirvikalpa (rnam par mi rtog pa) - Literalmente, “sem pensamento discursivo”. O termo descreve o estado de conhecimento da realidade eu é totalmente livre da distorção do pensamento discursivo. Em associação com jnana (conhecimento), portanto, o termo caracteriza a percepção direta que o bodhisattva tem da realidadecomo ela realmente é. Segundo o capítulo, isso é sinônimo do supremo e mais elevado

89


90 Portanto, deve-se entender a completa cessação da proliferação como o "Parinirvana do Grande Veículo" do bodhisattva. Por causa da completa pureza de seu conhecimento — agora a esfera do mais sublime conhecimento da realidade —, nesta vida, o bodhisattva alcança a perfeição do poder em todos os lugares (sarvatra vashitaprapti). Por exemplo, ele alcança a perfeição da criação mágica de múltiplas formas (nirmana223) devido ao poder mágico (rddhi) de criar; da transformação em múltiplas formas (parinama) devido ao poder mágico de transformar; do conhecimento de tudo o que pode ser conhecido; de permanecer no mundo tanto quanto deseje e de partir do mundo à vontade, sem impedimento. O bodhisattva que alcançou nirvikalpa jnana chega a possuir também o que é chamado o “domínio do poder em todos os lugares” (sarvatra vashitaprapti; em tibetano, thams cad la dbang thob pa rnyed pa). Segundo o Dashabhumika e outros tratados mahayana, o bodhisattva do oitavo estágio adquire dez vashitas, ou poderes, embora Asanga aqui cite somente uma lista resumida. O Bodhisattva Doctrine, de Dayal, pp. 140-41, descreve os dez da seguinte maneira: 1) Ayur-vashita (poder de longevidade). Um bodhisattva possui poder sobre a duração da vida. Ele pode prolongá-la por imensurável número de kalpas (eons). 2) Ceto-(Citta)-vashita. Ele tem poder sobre a mente e adquiriu o conhecimento de um infinito número de samadhis (modos de meditação). 3) Parishkara-vashita. Ele tem domínio dos meios e conhece todo o ordenamento e adornos de todos os mundos e universos. 4) Karma-vashita. Ele tem poder sobre o karma, na medida em que compreende as consequências das ações no devido tempo. 5) Upappati-vashita. Ele tem domínio sobre o nascimento, na medida em que entende a origem de todos os mundos e universos. 6) Adhimukti-vashita. Ele tem poder sobre a convicção (ou motivação) na medida em que percebe bem todos os buddhas de todos os mundos e universos. 7) Pranidhana-vashita. Ele tem domínio sobre todos os votos, na medida em que percebe bem o momento para a Iluminação em qualquer campo de Buddha conforme seu desejo. 8) Rddhi-vashita. Ele é senhor do poder de realizar milagres, na medida em que percebe bem as maravilhas de todos os campos de Buddha. 9) Dharma-vashita. Ele tem domínio do Dharma, na medida em que contempla a luz da fonte do Dharma no início, no meio e no fim. 10) Jnana-vashita. Ele compreende completamente os atributos de um Buddha, ou seja, seus poderes, as razões para a confiança em si, seus atributos exclusivos especiais e as principais marcas e os sinais menores em seu corpo. Portanto, ele é o Senhor de Jnana. Assim ele, com essa perfeição de poder, é melhor e incomparável dentre todos os seres. E se deve entender que esse bodhisattva tem os cinco benefícios superiores (anushamsa), os quais controla em todas as circunstâncias, ou seja: (1) ele alcança a paz mental suprema, pois alcança as serenas estações (viharaprashantataya)s, e não por pacificar a contaminação; (2) seu conhecimento da realidade. 223

nirmana (sphrul pa) - Aparência criada magicamente. Utilizado especialmente com referência aos corpos dos seres iluminados.

90


91 conhecimento e visão sobre todas as ciências são desimpedidos, extremamente puros e perfeitamente claros; (3) ele não se cansa de circular no samsara pelo bem dos seres; (4) ele compreende todos os sutras com "intenção velada" (samdhaya vacanani) dos Tathagatas, e (5) por causa de sua confiança em si, não dependendo de outros, ele não se desvia de sua devoção zelosa (adhimukti) ao Grande Veículo. Além dos vários poderes mágicos (rddhi) alcançados pelo bodhisattva que compreendeu a verdadeira natureza da realidade como ela realmente é, existem os cinco benefícios (anushamsa) que também são obtidos. Asanga os enumera acima. Ao descrever o primeiro benefício, a passagem em sânscrito é a seguinte: paramam cittashamtimanuprapto bhavati vhiharaprashamtataya na kleshaprashantataya. O Professor Wayman apontou que vihara aqui equivale a bhumi. Assim, as “serenas estações” mencionadas aqui equivalem aos estágios dos bodhisattva. A paz e a tranquilidade que resultam da pacificação das contaminações (ou seja, kleshaprashantataya) teriam sido alcançadas em um estágio anterior na trajetória do bodhisattva. Assim, a supremacia da serenidade vivenciada nos bhumis está claramente implícita. O termo samdhaya vacanani (em tibetano, ldem po’i ngag) foi traduzido aqui como “fala com intenção velada”, seguindo a linguagem do Sutra Samdhinirmocana. A frase em sânscrito está ligada aos quatro abhisamdhis (tipos de discurso “emaranhado” ou “indireto”), citado no Mahavyutpatti (nº 167-75). Compreendendo tal discurso, o bodhisattva consegue compreender o verdadeiro significado do Dharma, sendo seu significado expresso de modo direto ou indireto. Agora se deve entender que há cinco tipos de karma simultâneos aos cinco benefícios. Ou seja, deve-se entender que esse karma que acompanha o benefício da mente serena permanece na vida presente na suprema estação de felicidade, ou seja, aquela estação do bodhisattva que é familiar à prática (prayoga224) que conduz à Iluminação e destrói o cansaço físico e mental do esforço. Deve-se entender que o karma para o bodhisattva que acompanha o benefício de possuir conhecimento desimpedido em todas as ciências é a maturação de todos os Buddhadharmas e que o karma que acompanha o benefício de não se cansar por causa do samsara é a maturação dos seres. Deve-se entender que o karma que acompanha todos os sutras com "intenção velada" é aquele que remove as dúvidas que surgem entre os candidatos (vineya), que os mantém reunidos e que sustenta a regra do Dharma (dharmanetrya) por longo tempo, por reconhecer, expor e dispersar as falsas semelhanças com o Verdadeiro Dharma (saddharma) que fazem com que o Ensinamento desapareça. E, por último, deve-se entender que o karma para o bodhisattva que acompanha o benefício de não depender de outros e assim não se desviar é sua vitória sobre todos os argumentos contrários de outros, sua dedicação constante e a manutenção de seu voto. Simultaneamente aos cinco benefícios alcançados pelo bodhisattva assim amadurecido, existem cinco karmas. Como se pode ver, esses karmas são impostos aos bodhisattvas na medida em que eles servem para beneficiar não apenas a si mesmos, mas a todos os seres sencientes. Assim, os cinco são referidos como “deveres do bodhisattva” (karaniyas).

224

Prayoga (sbyor ba) - Aqui, a integração da teoria com a prática praticada pelo bodhisattva.

91


92 Consequentemente, qualquer que seja o dever do bodhisattva (karanīya), seja ele quem for, tudo isso é abrangido por esses cinco karmas, acompanhados dos benefícios. Novamente, que dever é esse? Consiste de felicidade pessoal incontaminada, amadurecimento dos Buddhadharmas, amadurecimento dos seres, preservação do Verdadeiro Dharma e defesa contra as teorias oponentes por aquele cujo empenho seja enérgico e cujo voto não se enfraqueça. Com relação a tudo o que precedeu, deve-se entender que, dos quatro tipos de conhecimento da realidade, os dois primeiros são inferiores (hīna), o terceiro é mediano (madhya), mas o quarto é supremo (uttama). Aqui termina o Capítulo sobre o Conhecimento da Realidade, sendo o quarto [capítulo] da primeira divisão (yogasthana) do Bodhisattvabhumi.

92


93

Capítulo sobre o Conhecimento da Realidade (Tradução sem os comentários)

93


94

94


95 [I]

O que é conhecimento da realidade?a Resumidamente, existem dois tipos: (1) aquele tipo que consiste em [conhecer] o aspecto numênico (yathavadbhavikata) dos fenômenos, ou o verdadeiro estado dos fenômenos como eles são em si mesmos (bhutata); (2) aquele tipo que consiste em [conhecer] o aspecto fenomênico (yavadbhavikata) dos fenômenos, como eles são na totalidade (sarvata)225. Em resumo, conhecimento da realidade deve ser entendido como [conhecimento dos] “fenômenos como eles são e como eles são na totalidade”. Além disso, do conhecimento da realidade pode ser feita a seguinte análise em quatro pontos: 5) o que é universalmente aceito pelos seres comuns; 6) o que é universalmente aceito pela razão, ou lógica; 7) aquele que é a esfera de cognição (jnanagocara)226 completamente purificada dos obscurecimentos dos kleshas (kleshavarana), e 8) aquele que é a esfera de cognição completamente purificada dos obscurecimentos ao que pode ser conhecido227 (jneyavarana). Desses quatro tipos, o primeiro pode ser definido assim: a opinião partilhada por todos os seres mundanos — porque suas mentes estão envolvidas com signos (samketa)228 e convenções (samvrtti)229 e agem de acordo com eles, a partir do hábito (samstava)230b — com relação a qualquer “coisa dada” (vastu)231c. Desse modo, “terra é só terra, e não fogo”. Assim como a terra, o fogo, água, ar, formas, sons, odores, sabores, sensações táteis, alimento, bebida, transporte, roupas, ornamentos, utensílios, incenso, guirlandas, unguentos, dança, canção, música, iluminação, relação sexual, campos, lojas, objetos domésticos, felicidade e sofrimento são vistos 225

Sarvata – Literalmente, "totalidade". O termo refere-se aqui ao todo da existência fenomênica. O aspecto fenomênico da realidade contrastado com o aspecto numênico (bhūtata). 226 Jnana-gocara (śes pa'i spyod yul) - Traduzida aqui como a "esfera de atividade cognitiva", a frase conota tanto o lugar ou localização de conhecimento (i.e., gocara ou yul), quanto o conhecimento em si. O termo é descritivo por natureza, sugerindo a imagem da consciência envolvendo seu "objeto" (o ente cognoscível) de tal maneira que existe uma dissolução do sujeito (i.e., a consciência "conhecedora") e do objeto (onde o ente cognoscível é igual a gocara, ou à "área de operação" da consciência). 227 Jneya – Qualquer ente cognoscível ou fenômeno. Literalmente, aquilo que gera conhecimento. Assim, é o fenômeno que serve como base de conhecimento. 228 Samketa (brda) – Um signo, escrito ou verbal; aqui, especificamente, signos linguísticos. Palavras; convenções da linguagem. 229 Samvrti (kun rdzob) – Em combinação com satya ("verdade"), o termo é traduzido por "relativo" (em oposição à verdade "absoluta"). Relativo; mundano. Aqui também "convenções da linguagem", escritas ou verbais. 230 Samstava ('dris pa) – Hábito. O termo refere-se tanto a visões particulares, quanto a ações realizadas automaticamente, sem treino ou investigação prévia. {Dris pa – Estar bem familiarizado com, estar acostumado com; familiaridade, hábito, intimidade.} 231 Vastu (dgnos po) - A coisa dada próxima. O objeto sobre o qual a atenção cognitiva é focada. Qualquer coisa perceptível que sirva de base para a cognição/atribuição. O entendimento apropriado desse termo é essencial para a compreensão correta de toda a explicação de Asańga. Traduzido aqui como "coisa dada", vastu é propriamente a base de atribuição. A essa base, vários nomes são associados (bem como julgamentos absurdos e outras formas de atribuição mental, tais como a afirmação da “externalidade”.){Ou seja, a noção de que os atributos atribuídos são inerentes ao objeto.} Segundo a teoria das "três naturezas" de Asańga, o vastu é o elemento fundamental da natureza paratantra (i.e., dependência). Enquanto o processo de nomear é considerado totalmente imaginário (natureza parikalpita), sendo falso e absurdo, sem comunicar verdade alguma, no entanto, a atribuição ocorre somente em relação a alguma base de atribuição (ou seja, um vastu) que tem de existir de alguma forma (mesmo que esse modo de existência seja imperfeito). O correto entendimento tanto da natureza da atribuição, quanto da base da atribuição produz uma intuição que é, segundo a terminologia de Asańga, "perfeito", isto é, parinishpanna.

95


96 do mesmo modo. “Isto é sofrimento, e não felicidade.” “Isto é felicidade, e não sofrimento.” Em resumo, “isto é isto, e não aquilo”. Da mesma forma, “isto é isto e nenhuma outra coisa”. Diz-se que qualquer coisa dada que seja aceita e se torne estabelecida por todos os seres comuns devido simplesmente a seus próprios pensamentos discursivos (vikalpa)232, por meio de associações (samjna)233, surgindo uma após a outra na esfera das conclusões prévias, sem terem sido ponderadas, sem terem sido pesadas e medidas e sem terem sido investigadas, é a realidade universalmente aceita pelos seres comuns ou estabelecida pelo consenso mundano. Qual é a realidade universalmente aceita pela razão (yukti)234? É aquela conhecida a partir da eloquência pessoal daqueles no estágio em que são regidos pela razão, que são doutos nos significados dos princípios lógicos e que têm inteligência, poder de raciocínio e habilidade na investigação. Também é aquele conhecimento que surge nos seres comuns e que está baseado na autoridade daqueles dedicados à investigação, ou seja, às provas (pramana)235 dos lógicos: percepção direta, inferência e testemunho de pessoas confiáveis. Essa é a esfera do conhecimento bem analisado, na qual a coisa dada cognoscível é provada e estabelecida pela argumentação com demonstração e prova. Sobre essa realidade se diz que é universalmente aceita pela razão. Qual é a realidade que é a esfera de cognição completamente purificada dos obscurecimentos das contaminações? É aquele domínio e esfera de cognição alcançados ao se colocar um fim nos fluxos236 (asrava), que é “colocar um fim nos fluxos” de todos os shravakas e pratyekabuddhas, assim como aquele conhecimento mundano que coloca um fim nos fluxos em um tempo futuro. Sobre essa realidade se diz que é a esfera de cognição completamente purificada dos obscurecimentos das contaminações. Quando o conhecimento se torna purificado dos obscurecimentos das contaminações, ou seja, daqueles três suportes mentais [as três contaminações], permanece-se no não obscurecimento. Portanto, ele é chamado “realidade que é a esfera de cognição completamente purificada dos obscurecimentos das contaminações”. Além disso, o que é essa realidade? As Quatro Nobres Verdades, ou seja: (1) sofrimento, (2) sua origem, (3) sua cessação e (4) a senda que conduz à sua cessação. Ela é aquele conhecimento que surge naqueles que, tendo clara compreensão, depois de uma investigação completa, chegam ao entendimento dessas Quatro Nobres Verdades. Além disso, é o entendimento daquelas verdades por parte dos shravakas e pratyekabuddhas que apreenderam que existem somente agregados (skandha-matra) [no que comumente se assume ser uma pessoa] e que não 232

Vikalpa (rnam par rtog pa) – Pensamento discursivo indisciplinado de todos os tipos, sejam nomes, imagens, julgamentos ou o que quer que seja. Segundo a explanação de Asanga, o pensamento discursivo gera tanto os nomes, quanto as coisas, isto é, tanto as atribuições, quanto as bases de atribuição, respectivamente. Assim, devido ao pensamento discursivo, há a presença da natureza parikalpita (nomes), bem como a natureza paratantra (isto é, coisas, aqui vastus). Contudo, nenhuma dessas duas naturezas é "perfeita" (parinişpanna), por isso a grande ênfase do capítulo no atingimento de nirvikalpa-jnana, ou "conhecimento não-discursivo". Os oito tipos de vikalpa, em seus equivalentes sânscritos e tibetanos, são: (1) svabhavavikalpa = gno bo ngid du rnam par rtog pa; (2) visheshavikalpa = bye brag tu rnam par rtog pa; (3) pindagrahavikalpa = ril por ‘dzin pa’i rnam par rtog pa; (4) ahamiti vikalpa = bdag go snam pa’i par rtog pa; (5) mameti vikalpa bdag gi snam pa’i rnam par rtog pa; (6) priyavikalpa = sdug par rnam par rtog pa; (7) apriyavikalpa = mi sdug par rnam par rtog pa; (8) tadubhayuaviparita vikalpa = de ga ni lãs bzlog pa’i rnam par rtog pa. 233 Samjna ('du śes) – Um dos cinco agregados da personalidade, ou skandhas, o termo é traduzido diferentemente como "motivações" ou "ideações". No contexto do capítulo é claro que ele está associado com a faculdade de nomear e com as associações mentais em geral.

Yukti (rigs pa) - Aquele tipo de raciocínio que utiliza princípios lógicos e análise. {Rigs pa ≠ rig pa} Pramaņa (tshad ma) – As fontes ou "provas" de conhecimento que, de acordo com Asańga, são três em número: percepção direta, inferência e escritura ou testemunho confiáveis. 236 Asrava (zag pa) – Literalmente "fluxo"{outflow}; aquilo que sai de algo ou causa inchaço. No Bodhisattvabhūmi, de Asańga, os asravas são identificados com os kleśas primários de cobiça, ódio e ilusão. 234 235

96


97 apreenderam um eu (atman)237 como um ente separado e independente dos agregados. Por meio de prajna aplicada adequadamente aos nidanas (pratītyasamutpanna), estados condicionados, a clara visão (darshana) surge da repetição do ponto de vista de que “fora dos agregados não há nenhuma ‘pessoa’”. Qual é a realidade que é a esfera de cognição completamente purificada dos obscurecimentos ao que pode ser conhecido? Aquilo que evita o conhecimento de algo que pode ser conhecido é considerado um “obscurecimento”. Qualquer que seja a esfera de cognição completamente livre de todos os obscurecimentos ao que pode ser conhecido, e somente ela, deve ser entendida como o domínio e esfera de cognição completamente purificados dos obscurecimentos ao que pode ser conhecido. Novamente, o que é isso? É o domínio e a esfera de cognição que pertencem aos BuddhaBhagavans e Bodhisattvas, que, tendo compreendido a falta de essência dos fenômenos (dharmanairatmya) e tendo compreendido, por causa desse entendimento puro, a natureza inexpressável (nirabhilapyasvabhavata) de todos os fenômenos, conhecem a igualdade (sama) entre a natureza essencial da designação verbal (prajnaptivada) e o que pode ser conhecido não discursivo (nirvikalpa-jneya). Esse é o supremo tathata, nada havendo superior, que está no extremo limite do que é cognoscível, pelo qual todas as análises dos fenômenos são realizadas e o qual elas não ultrapassam. Além disso, deve-se entender que a característica corretamente determinada (vyavasthanatah)d da realidade é sua natureza, ou constituição (prabhavitam), “não dupla” (advaya)238e. É dito que a dupla é: “ser” (bhava) e “não ser” (abhava). Com relação a essa dupla, “ser” é qualquer coisa definida como possuidora de natureza essencial somente em virtude de designação verbal (prajnaptivada svabhava) e, como tal, é aceita pelos mundanos por longo tempo. Para os seres comuns, essa [noção de ser] é a raiz de todo o pensamento discursivo (vikalpa) e da proliferação (prapanca)239, seja "forma", sentimento", "ideação", "motivação" ou "percepção"; "olho", "ouvido", "nariz", "língua", "corpo", ou "mente"; "terra", "água", "fogo" ou "vento"; "forma", "som", "odor", "sabor" ou "contato"; ações "hábeis", "inábeis", ou "indeterminadas"; "nascimento" ou "morte" ou "surgimento dependente"; "passado", "futuro" ou "presente"; "composto" ou "não composto"; "Isto é um mundo, e além está um mundo", "Há tanto o sol quanto a lua" e o que quer que seja "visto", "ouvido", "acreditado" ou "percebido"; o que é "alcançado ou pelo qual se lute"; o que é "obscurecido" ou "pensado por imagens" pela mente; até o "nirvana". Tudo nessa categoria possui uma natureza estabelecida somente pela designação verbal. Isso é dito [pelos seres comuns] ser "ser". Com relação a essa dupla, "não ser" é a ausência da base da designação verbal "forma", etc., até "nirvana". É sua ausência ou sua qualidade de não caracterizável, quando a base de designação verbal — à qual a designação verbal recorre quando opera — é irreal, não verificável ou não presente de qualquer forma. Isso é considerado "não ser".

Atman (bdag pa) – O termo denota o suposto "eu". Advaya (gnyis su med pa) – "Não-dual" é uma tradução comum, mas inapropriada no contexto desta obra. Veja o texto para uma explicação mais completa. {Nota "e".} 239 Prapanca (spros pa) – Proliferação. Aqui, especialmente proliferação do pensamento discursivo (vikalpa), gerando sequência, aparentemente sem fim, de nomes e coisas concomitantes (vastus). Por causa de prapanca, há o contínuo "correr" do pensamento (isto é, nomes, discriminações, julgamentos, etc.) de forma que a realidade nunca é experimentada diretamente como ela realmente é, liberta de sobreposições falseadoras. Por isso, Asanga encoraja o bodhisattva que busca o verdadeiro conhecimento da realidade a "engajar-se no método sem proliferação". 237 238

97


98 Além disso, a coisa dada, constituída de características de fenômeno e que é completamente liberta tanto de "ser", quanto de "não ser" — ou seja, do "ser" e "não ser" descritos acima — é "não dupla". Agora, o que é “não dupla”? Justamente aquilo que se diz ser o incomparável Caminho do Meio (madhyama pratipad), que evita os dois extremos. Com relação a essa realidade (tattve), a sabedoria (jnanam) de todos os Buddha-Bhagavans deve ser entendida como sendo extremamente pura. Mais ainda, deve-se entender que essa sabedoria dos bodhisattvas constitui a Senda da Instrução (Shiksha-marga). Prajna é o grande meio (mahan upaya) para o bodhisattva alcançar a Incomparável Iluminação Perfeita. E por quê? Por causa da firme convicção do bodhisattva no vazio (shunyatadhimoksha), praticando nestes e em outros nascimentos e circulando no samsara pelo amadurecimento completo dos Buddhadharmas para si e para os outros seres sencientes, ele conhece o samsara como ele realmente é. Além disso, ele não cansa sua mente com os aspectos de impermanência, etc., que pertencem a esse samsara. Não experimentasse ele a verdadeira natureza do samsara, ele seria incapaz, devido a todas as contaminações (apego, raiva, engano, etc.), de tornar sua mente serena. Não estando serena, sua mente contaminada, circulando no samsara, não amadureceria nem os Buddhadharmas nem os seres sencientes. Novamente, se ele cansasse sua mente com os aspectos do samsara, impermanência, etc., estando assim [cansado], esse bodhisattva logo entraria no parinirvana. Mas o bodhisattva, assim entrando rapidamente no parinirvana, não amadureceria nem os Buddhadharmas nem os seres sencientes. Novamente, como se tornaria desperto para a Incomparável Iluminação Perfeita? Por causa de sua firme convicção no vazio, esse bodhisattva, dedicando-se constantemente, nem se assusta com o nirvana nem se esforça para alcançá-lo. Se esse bodhisattva se assustasse com o nirvana, não acumularia mérito para o nirvana, mas, ao contrário, não percebendo os benefícios que se encontram no nirvana, devido ao medo disso, o bodhisattva abandonaria a confiança e a convicção que percebem as excelentes qualidades que há no nirvana. Por outro lado, se esse bodhisattva frequentemente focasse sua mente com dedicação, rapidamente entraria no Parinirvana. Mas, como resultado dessa entrada rápida no parinirvana, não amadureceria nem os Buddhadharmas nem os seres sencientes. Em resumo, quem não conhece completamente o samsara como ele realmente é nele circula com uma mente contaminada. E quem, em sua mente, está cansado do samsara rapidamente entra em nirvana. Quem possui uma mente de medo com relação ao nirvana não acumula mérito para isso. E quem foca [sua mente] dedicadamente no nirvana rapidamente entra em parinirvana. Mas se deve entender que esses não são os meios do bodhisattva para alcançar a Incomparável Iluminação Perfeita. Novamente, quem conhece completamente o samsara como ele realmente é nele circula com uma mente incontaminada. Quem possui uma mente que não está cansada dos aspectos de impermanência, etc. do samsara não entra rapidamente em nirvana. E quem possui uma mente que não tem receio do nirvana reúne meios para alcançá-lo e, embora veja suas boas qualidades e benefícios, todavia, não anseia excessivamente por ele e, assim, não entra rapidamente em nirvana. Esse é o grande método do bodhisattva para alcançar a Incomparável Iluminação

98


99 Perfeita. E ele está bem fundamentado naquela firme convicção no supremo vazio. Portanto, para o bodhisattva que assimilou bem a Senda da Instrução, cultivar a convicção no supremo vazio é considerado o "Grande Método" para alcançar a sabedoria do Tathagata. Agora se deve saber que esse bodhisattva, por causa desse envolvimento de muito tempo com a sabedoria da falta de essência dos fenômenos, tendo entendido a inexpressabilidade de todos os fenômenos como eles realmente são, não imagina (kalpayati) absolutamente nenhum fenômeno. Caso contrário, ele não apreenderia [verdadeiramente] "somente a coisa dada" precisamente como "somente tathata". Ele não pensa: "Isto é apenas a coisa dada; e isto outro, somente o tathata". Com claro entendimento, o bodhisattva prossegue, e prosseguindo nesse supremo entendimento com intuição do tathata, ele vê todos os fenômenos como realmente são, ou seja, como sendo absolutamente o mesmo. E vendo igualdade em toda parte, em sua mente também, ele alcança a suprema equanimidade. Valendo-se dessa equanimidade, enquanto se dedica intensamente a se capacitar em todas as ciênciasf, esse bodhisattva não se afasta de seu objetivo por causa do cansaço ou por causa de qualquer sofrimento. Incansável no corpo e incansável na mente, ele rapidamente adquire habilidade naquelas [ciências] e alcança o estágio de atingimento do grande poder da plena atenção. Ele não se envaidece em virtude de sua habilidade nem é mesquinho, como mestre, com relação aos outros. Não só sua mente não se esquiva de nenhuma habilidade, mas também, com entusiasmo, ele prossegue sem impedimento. Ele pratica com uma sólida couraça mental (drdhasamnaha) na medida em que, circulando no samsara, vivencia diversos sofrimentos (duhkha-vishesham) e na medida em que gera entusiasmo em direção à Incomparável Iluminação Perfeita; na medida em que vive em diversos corpos (samucchraya-viesham), na medida em que lhe falta orgulho com relação a qualquer ser senciente; na medida em que vivencia diversas relações[?] (jnana-vishesham), na medida em que, associado a outros que buscam rixas e disputas, que são tagarelas, que têm grandes ou menores contaminações e que praticam meios descontrolados ou errôneos, quando ele os conhece, mesmo em grande medida, sua mente permanece em equanimidade, e na medida em que cresce em virtude (gunas). Nessa medida sua bondade (kalyana) não decresce. Ele não busca saber a partir de outros nem busca ganhos ou reverência [para si mesmo]. Esses e muitos outros benefícios da mesma categoria, ou seja, os fenômenos Asas da Iluminaçãog e todas as coisas compatíveis com a Iluminação, resultam ao bodhisattva que tem a sabedoria [da ausência de eu dos fenômenos] como sua base perfeita. Portanto, quem iniciar com a intenção de obter a Iluminação, quem quer que seja, a alcançará. E todos aqueles que de fato a alcançam têm como sua base essa mesma sabedoria, não outra, seja superior ou inferior. Tendo assim iniciado a aplicação prática do método sem proliferação, o bodhisattva obtém muitos benefícios: ele se dedica corretamente a amadurecer completamente os Buddhadharmas para si mesmo e para os outros, em amadurecer completamente o Dharma dos Três Veículos. Mais ainda, assim corretamente envolvido, ele não tem desejo por posses ou até por seu próprio corpo. Ele treina (shikshate)h a si mesmo a não desejar, de modo que seja capaz de doar aos seres sencientes suas posses e até seu próprio corpo. Somente pelo bem dos seres sencientes ele é

99


100 comedido, e bem comedido, no corpo e na fala. Ele treina a si mesmo na moderação de modo que naturalmente não tenha prazer nas ações errôneas e de modo que se torne ético e bom por natureza. Ele é paciente com relação a todo insulto e más ações por parte dos outros. Ele treina a si mesmo na paciência de modo que tenha pouca raiva e de modo que não cause dano aos outros. Ele se capacita e domina todas as ciências para dispersar as dúvidas dos seres sencientes, para conseguir auxiliá-los e para ele mesmo abraçar a causa da onisciência (sarvajnanata). Sua mente permanece no interior, equilibrada. Ele treina a si mesmo na fixação de sua mente, de modo a purificar completamente as Quatro Moradas Sublimes (caturbrahmavihara)i e para utilizar as Cinco Faculdades Supranaturais (pancabhijna)j, a fim de realizar seu dever para com todos os seres sencientes e de eliminar todo o cansaço que surge pelo seu esforço para se tornar competente. E ele se torna sábio, conhecendo a Realidade Suprema (paramatattvajna). Ele treina a si mesmo para conhecer a Realidade Suprema de modo que, no futuro, ele próprio, no Grande Veículo, entre em parinirvana. Deve-se saber que o bodhisattva assim retamente envolvido trata todos os seres virtuosos com devoção e reverência. E todos os seres não virtuosos ele trata com cuidado, com uma mente de simpatia e uma mente de suprema compaixão. Na medida do possível e de sua condição, ele se dedica a extinguir suas falhas. Ele trata atenciosamente todos os seres agressivos com uma mente de amor. E, na medida do possível e de sua condição, sem trapaças (ashaţha) e sem fraudes (amayavī), trabalha pelo bem-estar e felicidade deles, para eliminar a consciência hostil daqueles que fazem o mal por causa de suas falhas (dosha) de convicção e de prática. Quanto aos seres prestativos, depois de lhes demonstrar gratidão, ele os trata atenciosamente em retribuição, com mais prestatividade. Ele corresponde às suas devotas aspirações na medida do possível e de sua condição. Até quando ele é incapaz, não tendo sido solicitado, ele demonstra respeitoso empenho com relação a essas ou aquelas obrigações a serem feitas. Ele nunca rejeita seu dever. Como poderia lhe ocorrer a ideia: "Eu, sendo incapaz, não desejo fazer isso"? Esta e outras ações da mesma categoria deveriam ser entendidas como o procedimento correto para o bodhisattva, que, tendo tomado a via da não proliferação, está bem embasado na sabedoria da Realidade Suprema.

100


101

[II]

Agora, por qual raciocínio filosófico se deve entender o caráter inexpressável (nirabhilapya-svabhavata) de todos os dharmas? Pelo seguinte: qualquer que seja a designação para as características individuais dos dharmas — por exemplo, "forma" ou "sentimento" ou os outros agregados da personalidade, como explicado antes, até o "nirvana"— deve ser entendido como apenas uma designação (prajnapti-matram). Nem é a natureza essencial (svabhava) daquele dharma nem é totalmente diferente disso. Essa [natureza essencial] não é a esfera da fala, não é o objeto da fala nem é totalmente diferente disso. Sendo esse o caso, a natureza essencial dos dharmas não é encontrada no modo em que é expressa. No entanto, não é que absolutamente nada seja encontrado. Novamente, a natureza essencial está ausente (avidyamana), contudo, não absolutamente ausente. Pode-se perguntar: "Como ela é encontrada?" Ela é encontrada ao se evitar prender-se à visão que afirma a existência do que é não existente e à visão que nega a existência completamente. Mais ainda, deve-se entender que somente a esfera de cognição completamente livre do pensamento discursivo é o domínio do conhecimento da natureza essencial suprema (paramarthikah svabhavah) de todos os dharmas. Novamente, se, com relação a qualquer dharma ou coisa dada, se assume que eles se tornam exatamente como sua expressão, então, esses dharmas e essa coisa dada seriam aquela expressão em si. Mas, se esse fosse o caso, então, para cada dharma e para cada coisa dada, haveria muitos tipos de natureza essencial. E por quê? É assim: a cada dharma e a cada coisa dada muitos homens associam muitas designações diferentes em virtude de numerosas expressões de diversos tipos. Aquele dharma e aquela coisa dada devem ter identidade com a natureza essencial de alguma designação verbal, dela ser feitos e possuí-la, mas não das outras designações verbais restantes. Mas, não havendo nenhuma definição fixa, qual dos muitos tipos de designação verbal se sustentaria como o correto? Portanto, o uso de qualquer uma e de todas as designações verbais, não importa o quanto sejam completas ou incompletas, para qualquer uma e para todas as coisas dadas, não significa que as últimas sejam idênticas às designações verbais, delas sejam feitas ou recebam uma natureza essencial através delas. Agora, considerando de outra maneira, suponha que os dharmas em si, de forma, etc., como explicado anteriormente, se tornassem a natureza essencial de suas designações verbais. Se esse fosse o caso, então, primeiramente, haveria apenas a coisa dada, isto é, completamente dissociada de nomes, e somente depois haveria o desejo de associar àquela coisa dada a designação verbal. Mas isso significaria que, antes que uma designação verbal fosse associada, no momento imediatamente anterior à associação da designação, aquele próprio dharma e aquela coisa dada não possuiriam natureza essencial. Mas se não houvesse natureza essencial, não haveria absolutamente coisa alguma. Assim, uma designação não seria necessária. E como nenhuma designação verbal seria associada, a natureza essencial do dharma e da coisa dada não poderia ser provada. Novamente, suponha que, imediatamente antes da associação da designação verbal, aquele dharma e aquela coisa dada fossem idênticos à designação. Sendo esse o caso, mesmo sem a

101


102 designação verbal "forma", a ideia de forma ocorreria sempre que houvesse um dharma com o nome "forma" e sempre que houvesse uma coisa dada com o nome "forma". Mas isso não ocorre. Agora, utilizando um raciocínio como esse, pode-se entender que a natureza essencial de todos os dharmas é inexpressável, ou seja, completamente além do alcance da expressão. E se pode entender que assim como ocorre com a forma, ocorre do mesmo modo com as sensações, etc., como explicado anteriormente, até o nirvana em si. Deve-se entender que estas duas visões se separaram de nosso Dharma-Vinaya: (1) aquela que tende a afirmar (samaropata)l a existência do que são características individuais não existentes, havendo natureza essencial somente por meio de designações verbais para uma coisa dada, forma, etc., ou para os dharmas forma, etc.; e também (2) aquela que, a respeito de uma coisa dada (vastu), nega (apavadamano) a base para o signo da designação verbal, que existe em sentido último (paramarthasadbhutam) devido à sua natureza inexpressável (nirabhilapyatmakatataya), dizendo: "Absolutamente tudo é inexistente". As falhas que resultam de se afirmar a existência do que é inexistente foram examinadas, expostas, esclarecidas e iluminadas imediatamente acima. Por causa dessas falhas que surgem ao se afirmar a existência de inexistentes com relação à coisa dada de forma, etc., deve-se entender aquela visão como se tendo separado de nosso Dharma-Vinaya. Do mesmo modo, a negação da mera coisa dada (vastu-matram)m, que é uma negação universal (sarvavainashika), separa-se de nosso Dharma-Vinaya. Eu digo então: "Nem realidade nem designação são conhecidas quando a mera coisa dada, forma, etc., é negada. Ambas as visões são incorretas". Assim, se os agregados da forma existem, a designação "pessoa" é válida. Mas, se eles não existem, a designação "pessoa" é infundada. Associar uma designação verbal aos dharmas, forma, etc. e à mera coisa dada de forma, etc. é válido quando eles são existentes (sat). Quando eles não são existentes, a associação de uma designação verbal é infundada. E, novamente, se não existe coisa dada presente para ser designada, então, como não há base, também não há designação. Portanto, certas pessoas que ouviram as passagens obscuras dos sutras associadas com o Mahayana e associadas com o profundo vazio e que apresentam somente um significado indireto (abhiprayikartha) não entendem o significado do ensinamento como ele realmente é (yathabhuta). Imaginando-o superficialmente (ayonisha), elas então têm pontos de vista demonstrados pela lógica, sem força de convencimento, e dizem assim: "Toda esta realidade é apenas designação. E quem vir desse modo vê corretamente." De acordo com elas, a coisa dada em si, que é a base para a designação, está ausente. Mas, se assim fosse, nenhuma designação ocorreria de forma alguma! Como a realidade, então, poderia vir a ser somente designação? Consequentemente, elas negam ambas: tanto a realidade, quanto a designação. Deve-se entender que a negação da realidade e da designação é a posição do nihilista-mor 240 (pradhana nastika). Como suas visões são assim, as pessoas inteligentes (vijna) que vivem uma vida pura (brahmacarin) não devem conversar nem se associar com o nihilista. Tal pessoa, ou seja, o 240

{"...is the position of the chief nihilist."}

102


103 nihilista, é uma calamidade até para si mesma, e as pessoas do mundo que seguem sua visão também caem em desgraça. Com relação a isso, o Muni declarou: "De fato, é melhor ter a visão de uma 'essência' do que conceituar erroneamente o vazio". Por quê? Porque os homens que têm a visão de uma “pessoa” estão iludidos somente a respeito de uma única coisa a ser conhecida, mas eles não negam todas as coisas que podem ser conhecidas. E eles não nasceriam entre os seres infernais só por essa razão. E ninguém deve levar o buscador do Dharma, o buscador da libertação do sofrimento, à desgraça nem enganá-lo; ao contrário, deve-se estabelecê-lo na retidão (dharma) e na Verdade (satya). E não se deve ser relapso com relação a pontos de instrução. Por causa do vazio erroneamente conceituado pelo nihilista, ele se confunde em relação à coisa dada que pode ser conhecida dos dharmas a ponto de negar tudo o que pode ser conhecido e, por causa disso, nasce entre os seres infernais. O nihilista causaria um desastre ao homem reto, o buscador da libertação do sofrimento, e se tornaria relapso com relação a pontos de instrução. Portanto, negando a coisa dada como ela realmente é, ele se desviou bastante de nosso Dharma-Vinaya. Novamente, como o vazio é conceituado erroneamente? Existem alguns shramanas, bem como brahamanas, que não concordam (necchati) com relação a "devido a quê existe um vazio; nem concordam com relação a "o que é que é vazio". Mas tais formulações são evidência do que se diz ser "vazio conceituado erroneamente". E por quê? O vazio é lógico quando uma coisa é vazia de outra por causa daquela ausência [da outra] e por causa da presença da coisa vazia em si. Mas como e por qual razão o vazio chegaria a existir a partir de uma ausência universal [sarva-abhavat, ou seja, da completa não existência]? Assim, a concepção de vazio que eles descrevem não é válida. Portanto, desse modo, o vazio é conceituado erroneamente. Agora, como o vazio é conceituado corretamente? Onde e qualquer que seja o lugar onde algo não esteja, observa-se corretamente que aquele [lugar] é vazio dessa [coisa]. Além disso, o que quer que permaneça naquele lugar é conhecido (prajanati) como realmente é, que "aqui há um existente". Isso é considerado envolvimento com o vazio como ele realmente é e sem desvios. Por exemplo, quando uma coisa dada, como indicado, é denominada "forma", etc., não existe nenhum dharma idêntico a essa designação verbal "forma", etc. Assim, sempre que um dharma for designado "forma", etc., essa coisa dada é vazia de identidade com a designação "forma", etc. Então, o que permanece naquele lugar quando uma coisa dada é designada "forma", etc.? O seguinte: somente a base (ashraya) da designação verbal "forma", etc. Quando alguém conhece ambas como elas realmente são — ou seja, que há somente uma coisa dada e há somente uma designação para uma coisa dada somente —, então, nem se afirma a existência do que é inexistente nem se nega o que é existente. Não se tende nem para o excesso nem para a redução, nem se minimiza nem se acrescenta. E quando se conhece o tathata241 como realmente é, com sua natureza essencial inexpressável como ela realmente é, isso é chamado "vazio conceituado corretamente" e chamado "intuição correta bem discernida". Por esses meios e outros coerentes com o raciocínio demonstração-e-prova, chegar-se-á a julgar que a natureza essencial de todos os dharmas é inexpressável. tathata (de bźin nid) – Literalmente, "dessa forma" ou "o estado de ser assim como é", o termo é um sinônimo para śūnyata e samata e caracteriza o estado último da realidade, liberto de toda descrição definida. 241

103


104

104


105

105


106

[III]

Além disso, deve-se entender que todos os dharmas têm uma natureza essencial inexpressável a partir dos textos (agama) de uma pessoa confiável (competente). Essa mesma intenção foi expressa pelo Muni a partir de um verso elucidador (gathabhigīta) do Sutra sobre a Transmigração na Vida Fenomênica (sk.: Bhavasamkrantisutra; tib.: srid pa 'pho ba'i mdo)n: De fato, por qualquer que seja o nome, qualquer que seja o dharma mencionado, esse dharma não é encontrado ali, pois essa é a verdadeira natureza (dharmata) de todos os dharmas. Como esse verso elucida o significado? Quando um dharma tem o nome "forma", etc., qualquer que seja o nome, ele é referido por meio desse nome "forma", “sentimento”, etc. até “nirvana”. Mas esses dharmas que têm esses nomes não são, em si mesmos, idênticos às designações "forma", etc. Nem há dharma algum encontrado fora daquele que é idêntico à "forma", etc. Novamente, em relação a esses dharmas que têm os nomes "forma", etc., deve-se entender que o que existe lá em sentido último, com um significado inexpressável, é o modo verdadeiro (dharmata) de natureza essencial. E isso foi dito pelo Muni no sutra que trata das categorias de dharmas [o Arthavargīya]: Quaisquer que sejam as convenções que haja entre os mundanos, todas elas o Muni não adota. E verdadeiramente não participando, como poderia ele se entregar, visto que ele não tem prazer no que é visto ou ouvido? Como esse verso elucida o significado? Quaisquer que sejam as designações, tais como "forma", etc., aplicadas a um dharma de "forma", etc., são consideradas "convenções". Ele não aceita que os dharmas sejam idênticos a essas designações. A esse respeito, ele não aceita essas convenções. E por quê? Porque sua visão nem é a de exagero (samaropa) nem de negação (apavada). Agora, como ele não tem uma visão errônea (viparyasa), é dito que não ele participa. Assim, não participando, como vai se entregar? Sem essa visão errônea, ele nem afirma nem nega aquela coisa dada. E, não se entregando, ele vê retamente, no que pode ser conhecido, o que deve ser visto. E o que ele ouve ser dito sobre o que pode ser conhecido foi de fato ouvido sobre isso. Quanto ao que é visto e ouvido, ele não gera nem aumenta apego. De outra forma, ele não se livraria do objeto de consciência (alambana)242 e não permaneceria em equanimidade. Tendo equanimidade, ele não cria desejo (kantim). E, novamente, isso foi declarado pelo Muni no sutra que se inicia com a estória do "Samtha Katyayana". Nessa narrativa, o monge, possuindo o título "Samtha", não medita nem sobre a base (ayatana)p terra, água, fogo ou vento nem sobre as bases espaço, percepção ou absolutamente nada nem ideação ou não ideação sobre este mundo ou o outro nem sobre o sol ou a lua nem sobre o que é visto, ouvido, pensado, percebido, obtido, lutado, investigado ou concluído pela mente. Ele não utiliza nada disso como base meditativa. Agora, se ele não medita sobre a base terra, etc., ou sobre todo o resto, sobre o quê ele medita? Aqui, para o monge Alambana (migs pa) – O objeto, ou suporte mental, da consciência. Frequentemente usado com referência à meditação, quando conota o objeto meditativo ou visualização. 242

106


107 samtha, qualquer que seja a ideia (samjna) de "terra" com relação à terra, essa ideia é perdida (vibhuta). Qualquer que seja a ideia de "água" com relação à água e com relação a todo o resto, essa ideia é perdida. Assim, o monge medita não utilizando terra como base meditativa nem qualquer uma das outras. Não utilizando absolutamente nenhuma delas como base meditativa, ele medita. Portanto, todos os devas, juntamente com Indra, com Īshanas e Prajapati, curvam-se próximos ao monge assim meditando, dizendo: Saudações a este nobre homem. Saudações ao melhor dos homens, a ti, para quem nada mais existe para saber. Recorrendo a quê vais meditar? Novamente, como esse verso do sutra elucida nossa própria intenção? Coisas dadas designadas "terra", etc., "terra", etc. são somente designações nominais. Para essas coisas dadas designadas "terra", etc., a ideia relativa a elas surge com exagero ou com redução. A ideia com "exagero" supõe que a natureza essencial da coisa dada consiste daquele nome, e a ideia com "redução" supõe a destruição daquela base última da coisa dada em si. Quando essas duas visões errôneas são abandonadas e eliminadas, a ideia de qualquer base meditativa é considerada "perdida". Portanto, a partir dos textos e também da linhagem suprema de confiáveis sucessores do Tathagata, deve-se entender que todos os dharmas têm uma natureza essencial inexpressável. Agora, se todos os dharmas têm assim uma natureza essencial inexpressável, por que a expressão é utilizável de algum modo? Na verdade, porque, sem expressão, a verdadeira natureza inexpressável não poderia ser contada a outros, nem ouvida por outros. E se ela não fosse nem dita nem ouvida, ela não poderia se tornar conhecida. Portanto, a expressão é aplicável para gerar sabedoria através da audição.

107


108 [IV]

Precisamente porque o tathata não é totalmente conhecido (aparijnatatva), os oito tipos de pensamento discursivo (vikalpa) surgem para os seres imaturos (bala) e operam então para criar as três bases (trivastu), que, posteriormente, produzem os mundos receptáculos (bhajanaloka)q de todos os seres sencientes. Os oito são os seguintes: (1) pensamento discursivo referente à natureza essencial; (2) pensamento discursivo referente à particularidade; (3) pensamento discursivo referente à apreensão de formas genéricas; (4) pensamento discursivo referente ao "eu"; (5) pensamento discursivo referente ao "meu"; (6) pensamento discursivo referente ao agradável; (7) pensamento discursivo referente ao desagradável, e (8) pensamento discursivo contrário a ambos. Além disso, os oito tipos de pensamento discursivo criam quais três bases? O pensamento discursivo referente à natureza essencial, o pensamento discursivo referente à particularidade e o pensamento discursivo referente à apreensão de formas genéricas — esses três geram a base [perceptível] que é designada "forma", etc., isto é, a base que serve como fundamento para a proliferação discursiva e como seu suporte mental (alambana). Com essa base [perceptível] como seu fundamento, o pensamento discursivo, saturado e revestido de palavras, ideias e nomes, prolifera-se e percorre essa base de muitas maneiras. Desses oito, o pensamento discursivo referente ao "eu" e o pensamento discursivo referente ao "meu" gera a visão concretizadora (satkayadŗshţi)243 e a raiz de todas as outras visões, ou seja: a raiz do orgulho (mana), a raiz do egoísmo (asmimana) e a raiz de todas as outras visões autocentradas. Desses oito, os pensamentos discursivos referentes ao agradável e ao desagradável, bem como o que é contrário a ambos, geram, conforme as circunstâncias, apego, aversão ou engano (ragadveshamoha). Assim, esses oito tipos de pensamento discursivo servem para manifestar os três tipos de bases, ou seja: (1) a base [perceptível] que serve como fundamento para o pensamento discursivo e sua proliferação; (2) a base da visão concretizadora, egoísmo e orgulho e (3) a base do apego, da aversão e do engano. Com relação a esses, quando a base [perceptível] do pensamento discursivo, junto com a proliferação, existe, então o apego, a aversão e a ilusão têm suporte. Mais ainda, essas três bases explicam completamente a progressão múltipla de todos os mundos [do samsara]. 1. Desses oito, o que é pensamento discursivo referente à natureza essencial? É aquele que designa "forma", etc., quando há uma coisa dada de forma, etc. Isso é chamado “pensamento discursivo referente à natureza essencial”. 2. O que é pensamento discursivo referente à particularidade? É aquele que, quando existe uma coisa dada chamada "forma", etc., pensa: "Isso tem forma", "Isso é sem forma", "Isso está manifesto", "Isso não está manifesto", "Isso tem impedimento", " Isso está desimpedido", " Isso é fluxo", " Isso não é fluxo", " Isso é composto", " Isso não é composto", "virtuoso", "não virtuoso", "indeterminado", "passado", "futuro", "presente". Por meio de incontáveis discriminações da mesma categoria, qualquer pensamento discursivo que esteja baseado no pensamento discursivo referente à natureza essencial com o intuito de particularizá-lo é chamado “pensamento discursivo referente à particularidade”.

Satkayadŗşţi ('jig tshogs la lta ba) - A visão reificadora. Aquela visão que propõe uma realidade concreta autocentrada baseada nas noções de "eu" e "meu". 243

108


109 3. O que é pensamento discursivo referente à apreensão de formas genéricas? Quando existe uma coisa dada designada "forma", etc., o que operar para apreender formas genéricas com relação aos múltiplos dharmas tomados juntos, acrescentando às coisas dadas designações nominais, como "eu", "vida" e "seres sencientes" e acrescentando designações nominais como "casa", "exército" e "floresta", "alimento", "bebida", "transporte" e "roupas", etc., é chamado “pensamento discursivo referente à apreensão de formas genéricas”. 4. 5. O que é pensamento discursivo referente ao "eu" e "meu"? Quando uma coisa dada tem fluxo, é apreensível e, por longo tempo, tem sido familiar, presa a (abhinivishţa) um eu e pensada como "eu" (atmata) ou como "o que pertence ao eu" (atmīata), então, pela familiaridade com essa forma errônea de conceituar, o pensamento discursivo toma erroneamente a coisa dada, que surgiu dependentemente, como tendo sido colocada lá a partir de seu próprio ponto de vista. Isso é chamado “pensamento discursivo referente ao ‘eu’ e ‘meu’”. 6. O que é pensamento discursivo referente ao agradável? É aquele que tem como suporte mental uma coisa dada que seja prazerosa ou cativante para a mente. 7. O que é pensamento discursivo referente ao desagradável? É aquele que tem como seu suporte mental uma coisa dada que seja dolorosa e repulsiva para a mente. 8. O que é pensamento discursivo contrário a ambos, o agradável e o desagradável? É aquele que tem como seu suporte mental uma coisa dada que nem é prazerosa nem não prazerosa, nem cativante nem repulsiva para a mente. E todo esse processo é composto somente de dois elementos: pensamento discursivo e coisa dada, que então se torna o suporte mental do pensamento discursivo e o fundamento do pensamento discursivo. Deve-se entender que ambos são mutuamente causados (anyonya hetuka)244 e sem começo no tempo. Um pensamento discursivo anterior é a causa que gera uma coisa dada presente, que, por sua vez, se torna o suporte mental do pensamento discursivo. E, novamente, a coisa dada gerada, que é o suporte mental presente para o pensamento discursivo, é a causa que gera o pensamento discursivo futuro, tendo-a como seu suporte mental. Agora, com relação a isso, é precisamente pela falta de entendimento que o pensamento discursivo do presente é a causa que gera a coisa dada no futuro — e essa coisa dada, por sua vez, torna-se o suporte mental do pensamento discursivo no futuro — e que há a inevitável (niyata) geração do pensamento discursivo no futuro, tendo essa coisa como seu fundamento e como sua base. Mas agora, como a completa jnana (parijnana) do pensamento discursivo surge? Ela surge por meio das quatro investigações completas (paryeshanas) e por meio das quatro formas de conhecer precisa e detalhadamente (yathabhutaparijnanas)r. Quais são as quatro investigações completas? Elas são a investigação do nome, a investigação da coisa dada, a investigação das designações para a natureza essencial e a investigação das designações para a particularidade. Com relação a essas investigações, investigação do nome significa que o bodhisattva vê, quanto ao nome, que é apenas um nome. Da mesma forma, quanto à coisa dada, perceber que ela é apenas uma coisa dada é a investigação da coisa dada. Quanto às designações para a natureza essencial, percebê-las claramente como apenas designações para a natureza essencial é a investigação das designações para a natureza essencial; e quanto às designações para a Anyonya hetuka (gcig gi rgyu las gcig byuń ba yin pa) – Produção mútua ou geração em dependência um do outro. Literalmente: "por causa de um, o outro surge". O conceito de produção mútua e dependência é fundamental para a explicação de Asanga aqui, onde é mostrado que o pensamento discursivo causa a coisa dada, enquanto a presença da coisa dada gera o pensamento discursivo. Da mesma forma, havendo coisas, o nome surge, e vice-versa. Esse processo de dependência mútua é ainda caracterizado como sendo "sem começo". 244

109


110 particularidade, percebê-las como apenas designações para a particularidade é a investigação das designações para a particularidade. Ele vê que nomes e coisas dadas possuem características distintas (bhinna lakshana) e características associadas (anushlishta lakshana) e compreende (pratividhyati) que as designações para a natureza essencial e as designações para a particularidade estão baseadas nas características associadas do nome e da coisa dada. Quais são as quatro formas de conhecer precisa e detalhadamente? Elas são: conhecer detalhadamente o nome investigado, a coisa dada investigada, as designações para a natureza essencial e as designações para a particularidade — conhecer tudo isso precisamente, em detalhe. O que é conhecer precisamente, em detalhe, o nome investigado? Deve-se saber que o bodhisattva, tendo investigado o nome apenas como nome, conhece esse nome exatamente como ele realmente é, ou seja, ele define que "esse nome é uma unidade linguística (artha)245 para uma coisa dada"; da mesma forma, é "a unidade linguística para a conceituação, a unidade linguística para a visão e a unidade linguística para a atribuição (upacara)". Se, para uma coisa dada concebida normalmente como forma, etc., um nome "forma" não fosse determinado, ninguém iria então conceituar essa coisa dada como forma; e não a conceituando, não exageraria nem se apegaria a ela. E não se apegando a ela, não poderia expressá-la. Assim, ele a conhece precisa e detalhadamente. Isso é chamado “conhecer o nome investigado precisa e detalhadamente”. O que é conhecer precisamente, em detalhe, a coisa dada investigada? Para qualquer coisa dada, o bodhisattva, tendo-a investigado como apenas coisa dada, vê que essa coisa dada, enquanto conceituada como "forma", etc., e enquanto associada com todas as expressões [para ela], é em si mesma inexpressável. Esse é o segundo conhecimento detalhado, ou seja, conhecer precisa e detalhadamente a coisa dada investigada. O que é conhecer precisa e detalhadamente as designações investigadas para a natureza essencial? É aquele conhecimento pelo qual, com relação à coisa dada concebida como "forma", etc., depois de ter investigado suas designações para a natureza essencial como apenas designações, sabe e sabe bem, em detalhe, que, nas designações referentes a essa coisa dada existe apenas a mera aparência de natureza essencial e que, na verdade, a natureza essencial verdadeira está ausente lá. Percebendo essa "natureza essencial" senão como criação mágica, uma imagem refletida, um eco, uma alucinação, o reflexo da lua na água, um sonho e uma ilusão, ele sabe que essa aparência não é constituída dessa natureza essencial. Esse é o terceiro conhecimento preciso e detalhado, que é a esfera do mais profundo conhecimento (sugambhīrartha gocara). O que é conhecer precisa e detalhadamente as designações para a particularidade investigadas? É aquele conhecimento pelo qual o bodhisattva, depois de ter investigado as designações para a particularidade como apenas designações associadas às coisas dadas chamadas "forma", etc., vê designações para a particularidade como tendo um significado não duplo. A coisa dada não está nem completamente presente nem completamente ausente [nem existente nem não existente]. Ela não está presente, pois não está "perfeita" (parinishpannatva) devido a ter uma “essência” expressável. E ela não está totalmente ausente, pois, de fato, ela está Artha (don) – Conhecimento; significado; unidade linguística. A tradução comum para este termo é "significado". Contudo, no contexto do presente capítulo, ele é frequentemente utilizado como um sinônimo para jnana, ou conhecimento. Para traduzir então o traço principal epistemológico do capítulo, está traduzido aqui como "conhecimento" ou "conhecer". Além disso, ele às vezes é tratado como aquilo que causa conhecimento ou que "cria significado" (tib. don byed) . Com referência aos "signos" escritos específicos para as coisas, ele é também apropriadamente traduzido por "unidade linguística". 245

110


111 determinada a ter uma essência inexpressável. Assim, do ponto de vista da verdade absoluta (paramarthasatya), ela não é formada (rupi); contudo, do ponto de vista da verdade relativa (samvritisatya), ela não é sem forma, já que uma forma é atribuída a ela. Assim como é com a presença e a ausência, forma e sem forma, assim é o que for manifesto ou não manifesto, etc. Todas as enumerações de designações para a particularidade deveriam ser entendidas exatamente dessa mesma maneira. Ele [o bodhisattva] conhece detalhadamente como tendo um significado não duplo quaisquer designações para a particularidade. Isso é conhecer precisa e detalhadamente as designações investigadas para a particularidade. Agora se deve entender que esses oito tipos de pensamento discursivo errôneo (mithya) que pertencem aos seres imaturos e que geram as três bases e causam o retorno contínuo ao mundo funcionam por causa da debilidade dessas quatro formas de conhecimento preciso e detalhado e do não envolvimento com elas. Mais ainda, do pensamento discursivo errôneo surge a contaminação; da contaminação, o movimento cíclico no samsara; do movimento cíclico no samsara, as consequências do samsara, ou seja, os sofrimentos do nascimento, envelhecimento, doença e morte. Mas sempre que o bodhisattva recorre às quatro formas de conhecer precisa e detalhadamente, ele conhece os oito tipos de pensamento discursivo. E por causa de seu reto conhecimento, nesta vida (drshte dharme) não há geração, agora ou no futuro, de uma coisa dada associada com proliferação que poderia servir como suporte mental e como fundamento para o pensamento discursivo. E porque o pensamento discursivo não surge, não há geração, no futuro, de uma coisa dada que o tem como seu suporte. Assim, para ele, esse pensamento discursivo, junto com a coisa dada, cessa (nirodha). Isso deve ser entendido como a cessação de toda proliferação. Portanto, deve-se entender a completa cessação da proliferação como o "Parinirvana do Grande Veículo" do bodhisattva. Por causa da completa pureza de seu conhecimento — agora a esfera do mais sublime conhecimento da realidade —, nesta vida, o bodhisattva alcança a perfeição do poder em todos os lugares (sarvatra vashitaprapti). Por exemplo, ele alcança a perfeição da criação mágica de múltiplas formas (nirmana) devido ao poder mágico (rddhi) de criar; da transformação em múltiplas formas (parinama) devido ao poder mágico de transformar; do conhecimento de tudo o que pode ser conhecido; de permanecer no mundo tanto quanto deseje e de partir do mundo à vontade, sem impedimento. Assim, ele, com essa perfeição de poder, é melhor e incomparável dentre todos os seres. E se deve entender que esse bodhisattva tem os cinco benefícios superiores (anushamsa), os quais controla em todas as circunstâncias, ou seja: (1) ele alcança a paz mental suprema, pois alcança as serenas estações (viharaprashantataya)s, e não por pacificar a contaminação; (2) seu conhecimento e visão sobre todas as ciências são desimpedidos, extremamente puros e perfeitamente claros; (3) ele não se cansa de circular no samsara pelo bem dos seres; (4) ele compreende todos os sutras com "intenção velada" (samdhaya vacanani) dos Tathagatas, e (5) por causa de sua confiança em si, não dependendo de outros, ele não se desvia de sua devoção zelosa (adhimukti) ao Grande Veículo. Agora se deve entender que há cinco tipos de karma simultâneos aos cinco benefícios. Ou seja, deve-se entender que esse karma que acompanha o benefício da mente serena permanece na vida presente na suprema estação de felicidade, ou seja, aquela estação do bodhisattva que é familiar à prática (prayoga) que conduz à Iluminação e destrói o cansaço físico e mental do esforço.

111


112 Deve-se entender que o karma para o bodhisattva que acompanha o benefício de possuir conhecimento desimpedido em todas as ciências é a maturação de todos os Buddhadharmas e que o karma que acompanha o benefício de não se cansar por causa do samsara é a maturação dos seres. Deve-se entender que o karma que acompanha todos os sutras com "intenção velada" é aquele que remove as dúvidas que surgem entre os candidatos (vineya), que os mantém reunidos e que sustenta a regra do Dharma (dharmanetrya) por longo tempo, por reconhecer, expor e dispersar as falsas semelhanças com o Verdadeiro Dharma (saddharma) que fazem com que o Ensinamento desapareça. E, por último, deve-se entender que o karma para o bodhisattva que acompanha o benefício de não depender de outros e assim não se desviar é sua vitória sobre todos os argumentos contrários de outros, sua dedicação constante e a manutenção de seu voto. Consequentemente, qualquer que seja o dever do bodhisattva (karanīya), seja ele quem for, tudo isso é abrangido por esses cinco karmas, acompanhados dos benefícios. Novamente, que dever é esse? Consiste de felicidade pessoal incontaminada, amadurecimento dos Buddhadharmas, amadurecimento dos seres, preservação do Verdadeiro Dharma e defesa contra as teorias oponentes por aquele cujo empenho seja enérgico e cujo voto não se enfraqueça. Com relação a tudo o que precedeu, deve-se entender que, dos quatro tipos de conhecimento da realidade, os dois primeiros são inferiores (hīna), o terceiro é mediano (madhya), mas o quarto é supremo (uttama). Aqui termina o Capítulo sobre o Conhecimento da Realidade, sendo o quarto [capítulo] da primeira divisão (yogasthana) do Bodhisattvabhumi.

112


113

113


114

Glossário Todos os termos listados aqui se encontram no corpo do livro. Contudo, para o leitor que possa desejar um breve resumo dos significados em uma forma prontamente acessível, o seguinte glossário é fornecido. Todos os termos estão listados inicialmente em sânscrito. Equivalentes tibetanos são dados em parênteses, imediatamente após. Nomes próprios são dados somente em sânscrito, salvo indicação em contrário. abhiprayika (dgongs pa can) Velado; indireto. Aparecendo especialmente em associação com artha (significado) ou vacanan (fala), esse termo caracteriza o que está “coberto” ou “velado”. Assim, aquilo que possui significado velado ou indireto, não prontamente acessível à investigação. abhisheka (dbang bskur) Iniciação tântrica. Literalmente “aspergindo [água] a partir do alto”, o termo, originalmente, referia-se à cerimônia de coração de um monarca indiano. Posteriormente, passou a simbolizar o atingimento do Buddhado e a designar o rito que marca o ingresso ao ensinamento esotérico do Budismo. A água, no caso das iniciações esotéricas, representa os cinco tipos de sabedoria do Buddha. Acinta A História, de Taranatha, utiliza a grafia acintya, que significa “inconcebível” ou “superação do pensamento”. S.C. Dass o considera sinônimo de Ajanta, a famosa instituição monástica budista no sul da Índia. Asanga viaja para essa “cidade” imediatamente antes de seu miraculoso encontro com Senhor Maitreya. adavaya (gnyis su med pa) Literalmente, “não duplo”. “Não dual” é uma tradução freqüente, mas é inapropriada no contexto desta obra. Veja o texto para mais explicações. alambana (dmigs pa) O objeto, ou suporte mental, da consciência. Frequentemente utilizado com referência à meditação, na qual ela significa o objeto meditativo de visualização. anatman (ddag med pa) Um ensinamento central da filosofia budista que clama a ausênca de uma “essência” na verdade; a negação da existência de um princípio permanente, autoexistente, princípio não chamado “eu” ou nas coisas. anushamsa (phan yon) Aqui, os benefícios (em número de cinco) que resultam para o bodhisattva que alcançou o “conhecimento não discursivo” e que é dito que “controlam em todas as circunstâncias”. anyonya hetuka (gcig gi rgyu las gcig byung ba yin pa)

114


115 Produção mutual, ou gênese na dependência um do outro. Literalmente, “da causa de um, o outro surge”. O conceito de produção mútua e dependência é fundamental para a explicação de Asanga aqui, onde é mostrado que o pensamento discursivo ocasiona a coisa dada, enquanto a presença da coisa dada gera o pensamento discursivo. Da mesma forma, havendo coisas, os nomes surgem, e vice-versa. Esse processo de dependência mútua é também caracterizado como sendo “sem início”. apavada (skur pa ‘debs pa) Negação ou rejeição. O termo utilizado para caracterizar a visão “extrema” da redução. Com samaropa (exagero), o termo forma um par técnico que indica as duas visões errôneas que se “desviaram” do Caminho do Meio. arhat (dgra bcom pa) O “ideal” da prática budista hinayana inicial. Esse título é dado àquele que “conquistou” (hata seus “inimigos”(ari). “Inimigos” refere-se às três contaminações (kleshas) básicas: aversão, apego e engano. artha (Don) Conhecimento; significado; unidade linguística. A tradução comum para esse termo é “significado”. Contudo, no contexto do presente capítulo, é normalmente utilizado como sinônimo para jnana, ou conhecimento. Portanto, para traduzir a linha principal e epistemológica do capítulo, o termo é traduzido aqui por “conhecimento” ou “conhecer”. Além disso, às vezes, ele é tratado como aquilo que causa o conhecimento ou aquilo que “cria significado” (em tibetano, Don byed). Com referência aos “signos” escritos específicos para as coisas, ele também é adequadamente traduzido por “unidade linguística”. arya (‘phags pa) Um título de grande respeito que significa “nobre”. Esse título é frequentemente aplicado a Asanga. asrava (zag pa) Literalmente, “fluxo”; aquilo que se derrama ou causa inchaço. No Bodhisattvabhumi, de Asanga, os asravas são identificados com os kleshas primários (contaminações) de apego, aversão e engano. atman (bdag pa) O termo denota o suposto “eu”. Avalokiteshvara Literalmente, o “Senhor que olha [amorosamente] para baixo [para os seres que sofrem]”. O nome é utilizado para se referir especialmente ao aspecto compassivo do Budado. Historicamente, Avalokiteshvara foi um discípulo contemporâneo o Buddha Gautama que fez o “Grande Voto” de liberar todos os seres sencientes do sofrimento. Alguns séculos depois, surgiu um culto para devoção a Avalokiteshvara como uma deidade por si só, completa, com pleno detalhamento iconográfico. Avarana (sgrib pa) Uma capa ou véu que impede uma clara visão da realidade. Ayatana (skye mched) Os doze “fatores” da consciência, que abrangem os seis órgãos dos sentidos (inclusive a mente como o sexto) e seus respectos objetos dos sentidos. Essas são os elementos fundamentais da análise epistemológica budista. bhava (yod pa)

115


116 Literalmente, “ser”; o capítulo trata o termo como sinônimo de vastu (em tibetano, dngos po), ou seja, “qualquer coisa existente”, ou qualquer ente composto, perceptível. bhumi (sa) Literalmente, terra ou campo; o termo também significa grau, passo, nível ou estágio. O nome da obra intitulada Bodhisattvabhumi pode assim ser traduzida como “Os Estágios daquele que Busca a Iluminação”. bhutata (yang dag pa nyid) O verdadeiro estado das coisas. O aspecto numênico da realidade. A Realidade em si. bodhi (byang chub) Iluminação; termo utilizado para caracterizar o sumum bonum da prática budista mahayana. bodhisattva (byang chub sem dpa’) Aquele que busca (alcançar) a Iluminação. caitya (chos rten) Um relicário em um monte (stupa) que aparece principalmente na arquitetura budista inicial. citta (sems; yid) Termo utilizado de várias maneiras para significar a mente, a consciência ou o pensamento em si. cittamatra (sems tsam) O termo é normalmente traduzido incorretamente como “apenas a mente”, com uma conotação absolutista. Como um nome próprio, é utilizado para se referir à escola de pensamento budista mahayana fundada por Maitreya e Asanga. Um nome alternativo posterior é Vijnanavada. dharma (chos) Como é bem conhecido dos estudantes de Budismo, esse termo é extremamente difícil de traduzir (e se considerou melhor deixá-lo sem traduzir no corpo da presente obra para evitar confusão e complicação desnecessária). Ele é utilizado de várias formas, mas em contextos filosóficos, geralmente refere-se a qualquer realidade ou fenômenos existente, contudo transitório em termos de duração temporal. Dharmas em tais contextos podem ser considerados fenômenos ou acontecimentos que são gerados e experimentados pela consciência. Além disso, o termo normalmente é reservado para fenômenos que são algo existente composto e, portanto, dependente. Dharma (chos) O Sagrado Ensinamento do Buddha, Doutrina Budista. dharmadhatu (chos kyi dbyings) Literalmente, o “reino dos [todos] dharmas”. Esse termo é utilizado para caracterizar a totalidade de tudo o que existe e, assim, para demarcar os limites da realidade. É, às vezes, empregado como um título para a realidade última. Dharmapala Mestre budista indiano cujos comentários, principalmente sobre o Vimshatika e Trimshika, serviu como fundamento para a grande síntese do pensamento yogacara traduzido por Hsuangtsang como o Ch’eng wei Shih lun, ou seja, Vijnaptimatratasiddhi. Dharma-Vinaya (chos-‘dul ba) Vinaya refere-se à segunda das chamadas “cestas” (pitakas) do cânone budista, ou seja, aquela que trata especificamente do código de disciplina monástica. Portanto, o uso de Asanga do termo composto Dharma-Vinaya pretende delimitar o que constitui propriamente o verdadeiro ensinamento e prática budistas.

116


117 dhyana (bsam gtan) Absorção meditativa. O termo refere-se especificamente a um dos quatro estágios sucessivos de completa concentração acompanhada de (1) contentamento e reflexão; (2) contentamento e ausência de reflexão; (3) estar livre de contentamento e tranquilo e (4) suprema equanimidade. drsti (lta ba) Visão. Utilizado especificamente para um ponto de vista filosófico. duhkha (sdug bsngal) Normalmente traduzido como “sofrimento”, o termo refere-se a todas as formas de desconforto ou enfermidade. É a marca principal da existência samsárica. dvesha (zhe sdang) Aversão. Um dos três kleshas, ou contaminações (no composto: apego, aversão e engano). Gambhirapaksha O rei indiano que se tornou o patrono real de Asanga. Gelugpa (Tib. dGe lugs pa) Literalmente, “os virtuosos”. O nome refere-se à escola do Budismo tibetano fundada por Tsong-kha-pa, mestre do séc. XIV. gocara (spyod yul) Espera de atividade. Em conjunção com jnana (conhecimento), a área ou local de operação do processo cognitivo. Gunaprabha Um comentarista. Embora conhecido principalmente por seu comentário sobre o capítulo shila do Bodhisattvabhumi, Gunaprabha escreveu uma exegese sobre toda a obra, chamado Bodhisattvabhumivrtti. Hinayana (theg pa dman) “Veículo” de prática budista que enfatiza ensinamentos voltados para uma libertação “individual” (hina) do sofrimento. Hsüan-tsang Conhecido tradutor chinês de inúmeros tratados budistas filosóficos. Responsável por introduzir na China a tradição do pensamento Yogacara “posterior”, embora seja mencionado aqui especialmente em associação com sua obra de tradução do Ch’eng wei Shih lun, ou Vijnaptimatratasiddhi. jnana (shes pa) Conhecimento, tanto mundano, quanto supramundano. (O tibetano, às vezes, reserva ye shes para o tipo de conhecimento supramundano possuído pelos Buddhas.) jnanagocara (shes pa’i spyod yul) Traduzido aqui como “esfera de cognição”. O termo significa tanto o local, quanto a dimensão do conhecimento (ou seja, gocara ou yul) e o conhecimento em si. O termo é descritivo em sua natureza, sugerindo a imagem da consciência que envolve seu “objeto” (o ente cognoscível), de tal modo que há a dissoluação tanto do sujeito (ou seja, a consciência “conhecedora”), quanto o objeto (daí o ente cognoscível = gocara, ou a “área de operação” da consciência). jneya (shes bya) Qualquer ente ou fenômeno cognoscível. Literalmente, aquilo que gera conhecimento. Assim, o fenômeno que serve como uma base para o conhecimento. Kadampa (Tib. bKa’ gdamps pa)

117


118 A escola de Budismo tibetano fundada pelo pandit indiano Atisha quando viajou para o Tibet para ensinar o Dharma. A escola foi desenvolvida pelo discípulo Brom e, posteriormente, tornou-se o grupo reformado Gelugpa, dirigido por Tsong-kha-pa. kalyanamitra (dge ba’i bshes gnen) Literalmente, o “melhor ou mais esplêndido amigo” (mitra). O termo é utilizado como um título com o qual alguém se refere ao guru ou mestre-raiz. karaniya (bya ba) Literalmente, “o que deve ser feito”, ou seja, obrigação. Aqui, refere-se às cinco obrigações prescritas aos bodhisattvas que alcançaram a “sabedoria não discursiva”. karma (las) Da raiz sânscrita do verbo Kr, “agir ou fazer”. O nome significa “ação”. No Budismo, o termo refere-se especialmente à lei da causa e efeito, ou seja, ao princípio de que cada ação produz algum resultado. klesha (ngon mongs pa) Da raiz sânscrita do verbo klish, que significa “se afligido ou atingido por algo”. O substantivo, no Budismo, refere-se especialmente às emoções dolorosas de aversão, apego e engano; contaminações. Kukkutapada O nome da montanha que serviu de local de retiro solitário para os doze árduos anos de meditação de Asanga. lakshana (mtshan nyid) Uma marca ou sinal. Na filosofia budista, uma característica ou aspecto distintivo. Um atributo (de uma substância) No contexto do presente capítulo, o termo refere-se àquelas “características individuais” que têm existência somente em virtude das designações. mahan upaya (thabs chen po) Literalmente, o “grande” (mahan) “meio” (upaya) do bodhisattva para alcançar o objetivo de ibertar todos os seres sencientes. Upaya pode ser traduzido também por “método” ou “recurso”. Mahayana (theg pa chen po) Literalmente, o “Grande Veículo”. O nome dado à fase posterior do pensamento budista segundo o qual os conceitos de compaixão e atividade virtuosa inegoísta caracteriza eminentemente a prática, enquanto um entendimento adequado do ensinamento de shunyata (vazio) predomina em termos de teoria. Mahishasaka Nome do grupo ao qual Asanga pertenceu antes de “ingressar” no Mahayana. mana (nga rgyal) Orgulho; egocentrismo. O tibetano traduzido literalmente é “[tratar o] eu como um rei”. Maitreya Considerado mestre histórico de Asanga. O nome também se refere à deidade tutelar de Asanga, Senhor Maitreya, que representa o aspecto amor (maitri) de Buddha.

118


119 mithya (log pa) Equivocado. Incorreto. Utilizado especialmente com referência à formulação de lógica. moha (gti mug) Ilusão. A “névoa” de avidya. Nagarjuna Renomado mestre da filosofia budista mahayana, mais conhecido por sua explicação sobre o ensinamento de shunyata na obra Mulamadhyamikakarika. nairatmya (bdag med pa) Não eu. O termo descritivo na filosofia budista utilizado para afirmar a ausêncvia de um “eu” ou uma “essência” permanentes no ente para o qual ele é aplicado. nama (ming) Nome. Designação nominal, atribuição ou imputação. Também, todo o processo de atribuição. rNam thar (Tib.) Uma abreviação de rnam par thar pa, ou seja, “completa libertação”. O termo é utilizado para se referir a um gênero de literatura que registra “[histórias de vida de] completa libertação”, ou “biografias sagradas”. Mais conhecido entre os rNam thar são as biografias dos iogues budistas indianos, os Mahasiddhas. nirmana (sphrul pa) Aparência criada magicamente. Utilizado especialmente com referência aos corpos dos seres iluminados. nirvana (mya ngan lãs ‘das pa) O estado que representa o objetivo da prática hinayana. nirvikalpa (rnam par mi rtog pa) Literalmente, “sem pensamento discursivo”. O termo descreve o estado de conhecimento da realidade eu é totalmente livre da distorção do pensamento discursivo. Em associação com jnana (conhecimento), portanto, o termo caracteriza a percepção direta que o bodhisattva tem da realidadecomo ela realmente é. Segundo o capítulo, isso é sinônimo do supremo e mais elevado conhecimento da realidade. Paramartha

119


120 O grande sábio indiano que é conhecido especialmente por ter levado muitos textos budistas para a China. Ele é conhecido por ter traduzido textos tanto de Asanga, quanto de Vasubandhu para o chinês quando chegou à China, por volta de 548 d.C. Especialmente valioso é seu Life of Vasubandhu. Aprendemos muito sobre a vida de Asanga a partir dele. paramartha-satya (don dam bden pa) Segundo a filosofia mahayana, a verdade (satya) que está de acordo com o último ou supremo (parama) significado (artha). Portanto, “verdade absoluta”. paramita (pha rol tu phyin pa) Ação transcendente. O termo refere-se às seis ações transcendentes do bodhisattva, com relação à generosidade, harmonia nas ações, paciência, perseverança, meditação e sabedoria. paratantra (gzhan gyi dbang) O nome dado à segunda das “três naturezas”. A natureza de “dependência”. Literalmente, “obtendo seu poder a partair de outro”. No sistema de Asanga, essa natureza de “dependência”é representada pelo vastu (ou seja, a coisa dada que serve como base para atribuição). parikalpita (kun brtags pa) Imaginário. Fabricado mentalmente. Nome dado à primeira das “três naturezas”, segundo a explanação de Asanga. No contexto do capítulo, essa natureza imaginária é representada pelos nomes e designações. parinishpanna (yongs su grub pa) “Aperfeiçoado”. Termo utilizado para caracterizar a terceira das “três naturezas” (svabhavas), segundo o sistema de Asanga. Corresponde à “verdade absoluta” do ensinamento sobre as “duas verdades e descreve a cognição última da realidade, livre de todas as influências deturpadoras. paryeshana (yongs su tshol ba) Traduzido aqui como “investigação complete”, o termo refere-se especificamente às quatro análises — do nome, da coisa dada, das designações para a natureza essencial e das designações para a particularidade — que podem ser realizadas pelso shravakas e pratyekabuddhas, bem como pelos bodhisattvas. patalam (le ‘u) Capítulo ou divisão de um livro. Pindola Um dos mestres hinayana de Asanga, mencionado no relato de Paramartha como tendo alcançado a condição de arhat.

120


121 pitaka (sde snod) Literalmente, “cesta”. O termo é utilizado para se referir a qualquer das três “coleções” das escrituras budista (ou seja, sutra, ou discursos; vinaya, regras monásticas e abhidharma, comentários focados nos pontos mais sutis de explicações filosóficas e psicológicas). Prajna (shes rab) Discernimento. A forma mais elevada de conhecimento, direto e penetrante, que produz uma visão da realidade desimpedida e pura. Tipo de conhecimento possuído por todos os Buddhas. prajnaparamita (shes rab kyi ph rol tu phyin pa) A ação (ou prática) transcedente de discernimento último. prajnapti (gdags pa) Designação. Também, o fenômeno de imagem mental composto junto com o nome. Como “atribuição mental” a uma base de atribuição (aqui, vastu), esse termo constitui um ingrediente essencial na explanação de Asanga aqui. prajnaptivada (‘dogs pa’i tshig) Designação verbal. Também, a visão que defende a existência real de nomes (ou designações). prapanca Proliferação. Aqui, especialmente a proliferação do pensamento discursivo (vikalpa), que engendera a aparentemente infindável procissão de nomes e concomitantes coisas (vastus). Por causa de prapanca, há o contínuo “funcionamento” do pensamento (ou seja, nomes, discriminações, julgamentos, etc.), de modo que a realidade nunca é experimentada diretamente como ela realmente é, livre de sobreposições deturpadoras. Portanto, Asanga encoraja o bodhisattva que busca o verdadeiro conhecimento da realidade a “praticar o método sem proliferação”. Prasannashila Mãe de Asanga. Seu nome é registrado como Prakashashila em alguns relatos. pratityasamutpada (sten cong ‘brel par ‘byung pa) Um dos ensinamentos quintessenciais da filosofia budista, o termo é uma frase descritiva que caracteriza o tipo de origem ou “surgimento” (utpada) que ocorre “junto com” (sam) ou é ocasionado pela (ou seja, é dependente da) ocorrência de algum outro fenômeno. O termo, especialmente no contexto do capítulo, possui afinidade com os termos anyonya hetuka, ou seja, “produção mútua”. pratyekabuddha (rang sangs rgyas)

121


122 Literalmente, “iluminação somente para si mesmo”. O termo refere-se à categoria de praticantes buidstas que aparentemente treinam para alcançar a iluminação em isolamento. prayoga (sbyor ba) Aqui, a integração da teoria com a prática praticada pelo bodhisattva. pudgala (gang zag) Termo utilizado para designar uma “pessoa” ou “indivíduo”. É frequentemente um sinônimo para atman, ou “eu”. A tradução literal do tibetano é “o que está inchado” ou “estufado”. raga (‘dod chags) Apego. Primeiro membro do tríplice agrupamento dos kleshas primários, ou seja, apego, aversão e engano. rddhi (rdsu ‘phrul) Poder mágico. saddharma (dam pa’i chos) O Verdadeiro Ensinamento. Sagaramegha Autor de um comentário sobre todo o Yogacarabhumishastra, de Asanga. Sagaramegha é mencionado aqui especialmente em associação com sua exegese da seção Bodhisattvabhumi da obra, intitulada Yogacaryabhumau bodhisattvabhumi vyakhya. samadhi (Ting nge ‘dsin) Termo utilizado na teoria da meditação para significar completa integração e absorção. samaropa (sgro ‘dogs pa) – A visão “extrema” da afirmação. A visão que exagera ou superestima a coisa em questão. Samaropa e seu oposto (apavada, “negação”) formam um par técnico que caracteriza as visões errôneas divergentes do Caminho do Meio budista. samata (mtshungs pa nyid) Termo chave do capítulo, empregado por Asanga para significar a “igualdade” da natureza essencial para todos os fenômenos — seja do “eu” ou das “coisas” — em geral. Samata é um sinônimo mais positivo para shunyata (“vazio”), embora aponte para a mesma caracterização da realidade. A natureza essencial de todos os fenômenos é, falando em sentido último, a mesma (sama), ou seja, vazia (shunya) de um eu permanente, ou de autoexistência. samjna (‘du shes)

122


123 Um dos cinco agregados da personalidade, ou skandhas. O termo é traduzido alternativamente por “motivações” ou “ideações”. No contexto do capítulo, é claro que ele está associado com a faculdade de nomear e com associações mentais em geral. samketa (brda) Um signo, escrito ou verbal. Aqui, especificamente, signos linguísticos. Palavras. Convenções da linguagem. samsara (‘khor ba) Literalmente, “ida contínua”. O termo refere-se a toda a esfera de existência mental e física marcada pela falta de repouso e por um constante senso de intranqüilidade, dor e desconforto. samstava (‘dris pa) Hábito. O termo refere-se tanto às visões particulares, bem como às ações que são realizadas automaticamente, sem disciplina ou investigação prévia. samvrtti (kun rdzob) Em combiçaõ com satya (“verdade”), o termo é traduzido como “relativo” (como oposto à verdade “absoluta”). Relativo; mundano. Aqui também, “convenções” da linguagem, escritas e verbais. Sanghbhadra Renomado mestre budista de Kashmir que instruiu Vasubandhu nas tradições filosóficas da Budismo inicial. sarvata (tham cad nyid) Literalmente, “totalidade”. O termo refere-se aqui a toda a existência fenomênica. O aspecto fenomênico da realidade como contrastado com o aspecto numênico (bhutata). satkayadrshti (‘jig tshogs la lta ba) A visão reificante. A visão que afirma uma realidade concreta, autocentrada, baseada em noções de “eu” e “meu”. satya (bden pa) Verdade. Literalmente, o que está de acordo com a realidade (sat). shila (tshul khrims) Virtude ou disciplina. Comportamento, bem como atitude, virtuosos. skandha (phung po)

123


124 Literalmente, “ombro”, em sânscrito, e “pilha”, em tibetano. O termo refere-se figuradamente ao “carregador do fardo [do ego]”. Ele é utilizado na filosofia e na psicologia buidsta para significar os cinco agregados da personalidade ou elementos psicofísicos comumente pensados como um “eu” ou “pessoa”. shravaka (ngon thos) Literalmente, “ouvinte”; alguém que ouviu os discursos de Buddha como eles foram ensinados. O termo é utilizado, sobretudo, para se referir aos monges da tradição hinayana. Sthiramati Discípulo de Vasubandhu. Os comentários de Sthiramati às obras de Asanga e Vasubandhu são inestimáveis como auxílio para um entendimento adequado do pensamento Yogacara “inicial”. shunyata (stong pa nyid) Vazio. A caracterização do estado último das coisaas, ou seja, como vazio de um “eu” ou de uma natureza essencial permanentes. svabhava (ngo bo nyid) Literalmente, “ser próprio” ou “autoexistência”. O termo aqui é traduzido por “natureza essencial”. Também, “aspecto” ou “natureza”, especialmente em conexão com um esquema epistemológico exposto por Asanga. bstan ‘gyur (Tib.) Título dado à coleção completa da tradição de comentários budistas em tibetano que, junto com os discursos traduzidos do Buddha (sutra), constitui o cânone budista tibetano. Tathagata (de bzhin gshegs pa) Um epíteto de um Buddha. Significa literalmente “aquele que ‘assim foi’ ou ‘assim chegou’”, com referência ao Modo de Vida ou à Senda para a Iluminação. tathata (de bzhin nyid) Literalmente, “estado de ser assim”, “estado de ser como tal”. O termo é um sinônimo para shunyata e samata e caracteriza o estado último da realidade, livre de toda descrição estabelecida. tattva (de kho no [nyid]) Literalmente, “estado de ser aquilo”. O termo é utilizado no capítulo para se referir à realidade em si, em seu estado último, destituído de toda caracterização. triyana (theg po gsum)

124


125 Literalmente, os “Três Veículos” do Budismo: (1) o Veículo Shravaka, ou senda dos “ouvintes”; (2) o Veículo Pratyekabuddha, ou senda daqueles que buscam a salvação somente para si mesmos, e (3) o Veículo Bodhisattva, veículo daqueles que buscam a iluminação pelo bem de todos os seres. Tsong-kha-pa (Tib.) Renomado mestre budista tibetano do século XIV. Fundou o grupo reformado dGe lus pa e escreveu volumosas obras sobre o ensinamento e sobre a prática budista. Especialmente conhecido é o Lam rim chen mo, ou “Grande [tratado] sobre a Senda Graduada [para a Iluminação]”. Tushita Literalmente, “plenamente satisfeito”. O termo designa o “céu” budista ou reino que serve de morada para todos os bodhisattvas imediatamente antes de seu ingresso no mundo fenomênico. Assim, local de onde surgem todos os futuros Buddhas. vashita (mnga ‘ba; dbang) Poderes; especialmente o grupo de dez poderes usufruídos por um bodhisattva do oitavo nível. vastu (dngos po) A coisa dada próxima. O objeto sobre o qual a atenção cognitiva se foca. Qualquer ente perceptível que sirva de base para a cognição/atribuição. Um entendimento adequado desse termo é essencial para a compreensão correta de toda a explanação de Asanga. Traduzido aqui como “coisa dada”, vastu é propriamente a base de atribuição. Sobre essa base, vários nomes são associados (bem como julgamentos inconsistentes e outras formas de atribuição mental, como a afirmação de “externalidade”) Segundo as a teoria das “três naturezas”, de Asanga, o vastu é a o elemento fundamental da natureza paratantra (ou seja, dependência). Enquanto o processo de nomeação é considerado totalmente imaginário (natureza parikalpita), sendo falso e inconsistente, sem transmitir verdade, no entanto, a atribuição ocorre somente em relação a alguma base de atribuição (ou seja, um vastu) que tem de existir de algum modo (mesmo se esse modo de existência seja imperfeito). O entendimento correto, tanto da natureza de atribuição, como da base de atribuição, produz compreensão que é, segundo a terminologia de Asanga, “absoluto”, ou seja, parinishpanna. Vasubandhu O meio-irmão mais jovem de Asanga, que ele converteu ao Mahayana. Vasubandhu mais tarde se tornou o principal expositor e divulgador do sistema de Asanga. vidyasthana (rig pa’i gnas) Literalmente, “bases de conhecimento”. O termo refere-se aos cinco ramos do aprendizado budista tradicional, ou seja, filosofia, lógica, gramática, medicina e arte aplicada.

125


126 vijnapti (rnam par rig pa) Conceitualização. O termo descreve a cognição comum, pela qual a percepção de uma coisa dada é distorcida por sobreposições, julgamentos e conceitualizações de todo tipo. No sistema de Asanga, o termo é freqüentemente um sinônimo para vijnana (rnam par shes pa). vikalpa (rnam par rtog pa) – Pensamento discursivo indisciplinado de todos os tipos, sejam nomes, imagens, julgamentos ou o que quer que seja. Segundo a explanação de Asanga, o pensamento discursivo gera tanto os nomes, quanto as coisas, isto é, tanto as atribuições, quanto as bases de atribuição, respectivamente. Assim, devido ao pensamento discursivo, há a presença da natureza parikalpita (nomes), bem como a natureza paratantra (isto é, coisas, aqui vastus). Contudo, nenhuma dessas duas naturezas é "absoluta" (parinişpanna), por isso a grande ênfase do capítulo no atingimento de nirvikalpa-jnana, ou "conhecimento não discursivo". Os oito tipos de vikalpa, em seus equivalentes sânscritos e tibetanos, são: (1) svabhavavikalpa = gno bo ngid du rnam par rtog pa; (2) visheshavikalpa = bye brag tu rnam par rtog pa; (3) pindagrahavikalpa = ril por ‘dzin pa’i rnam par rtog pa; (4) ahamiti vikalpa = bdag go snam pa’i par rtog pa; (5) mameti vikalpa bdag gi snam pa’i rnam par rtog pa; (6) priyavikalpa = sdug par rnam par rtog pa; (7) apriyavikalpa = mi sdug par rnam par rtog pa; (8) tadubhayuaviparita vikalpa = de ga ni lãs bzlog pa’i rnam par rtog pa. viparyasa (phyin ci log) Aqui, traduzido como “visão obstinada”, o termo refere-se, na literatura budista, às quatro visões errôneas: (1) considerar permanente o que é, na verdade, impermanente; (2) considerar possuidor de uma essência o que não possui essência; (3) considerar puro o que é impuro e (4) considerar agradável o que, na verdade, é desagradável. yathabhuta (yang dag pa ji lta ba bzhin du) Termo descritivo utilizado para caracterizar o estado último de realidade, livre de todas as sobreposições. Traduzido aqui pela frase “como ela realmente é”, ou seja, em si mesma. yoga (rnal ‘byor) Da raiz sânscrita yuj, “unir”, o termo, geralmente, refere-se às práticas — tanto físicas, quanto mentais — que objetivam trazer à tona o estado de integração holística. Yogacara Nome da escola de explanação budista fundada no século IV d.C. por Maitreya e Asanga. Posteriormente, também referida como Vijnanavada. yukti (rigs po) Tipo de raciocínio que emprega princípios lógicos e análise.

126


127

127


128 Tradução realizada por Grupo Garbha (Brasília, agosto de 2012)

128


129

129


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.