O Livro das Sete Estatuas

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HENRY CORBIN

Extratos de

O LIVRO DAS SETE ESTÁTUAS DE APOLÔNIO DE TYANA Comentado por Jaldakî

PUBLICAÇÕES GARBHA



Estes extratos foram traduzidos para o português a partir do texto Le “Livre des Sept Statues” d’Apollonios de Tyane, apresentado por Henry Corbin no livro L’Alchimie comme Art Hiératique (L’Herne, 1986).


A seguinte representação gráfica [...] representa supressões realizadas no texto. Pode-se tratar da supressão de uma simples palavra, parágrafos ou várias páginas. As intervenções feitas pelo Grupo de Tradução Garbha são indicadas com fonte cinza claro. Qualquer outra intervenção indicada por parêntese, colchete, etc. em fonte preta constam do original.



Extratos de

O Livro das Sete Estátuas de Apolônio de Tyana

INTRODUÇÃO

[...]

O Livro das Sete Estátuas tem uma importância capital por várias razões. Em primeiro lugar, trata-se da transmissão de um texto grego do qual dispomos somente da versão árabe. Em segundo lugar, este texto é o testemunho maior da tradição hermética no Islã. Por fim, ele nos esclarece melhor sobre a concepção da alquimia como arte hierática, para retomar uma expressão de Proclo (árabe sinâ’a ilâhîya, ars divina). Essas estátuas designadas pela palavra árabe asnâm são, na realidade, estátuas vivas e falantes, e cada uma delas é o sacerdote do Templo que lhe pertence. Elas são os sete sacerdotes dos sete templos que correspondem às sete divindades planetárias. [...] Essas estátuas são vivas e falantes porque não são feitas de metal comum, mas do “metal filosófico”derivado da operação alquímica, e é isso mesmo o que as torna capazes de cumprir sua função sacerdotal em seu templo. Em resumo, são a “estátuas vivas sacerdotais”. O tema da estátua viva e o tema do sacerdote são os dois aspectos sob os quais a alquimia se apresenta aqui como arte hierática. [...]

De fato, o tema do “sacerdote” que caracteriza e domina essa concepção de arte hierática confere uma função sacerdotal à estátua, pois seu “metal” resulta de uma arte bem diferente da do simples escultor ou fabricante de imagens. Esse tema aparece já no alquimista Zózimo de Panópolis, (séc. III AD), que formulou muito bem a dupla operação que constitui de fato a operação alquímica: é preciso, de um lado, separar o espírito do corpo, depois reunir o espírito ao corpo, e é exatamente por isso que a


operação alquímica será meditada e contemplada de tal sorte que suas dimensões se ampliem até serem as das transmutações do homem interior. Que o espírito se torne corpo e que o corpo se torne espírito, que se trate então de um corpo regenerado sutil e totalmente espiritual é o que será, entre os metafísicos iranianos, a própria condição do mundus imaginalis. [...] O capítulo final de um tratado inédito de Jaldakî apresenta a nítida lembrança de outra visão de Zózimo. O capítulo tem o título O Sonho do Sacerdote, ou seja, a visão do sacerdote Ion, o sacerdote dos santuários mais íntimos e mais ocultos, que encontram diante do altar de quinze degraus. O mais interessante na visão é que ela coloca em cena Hermes e a Natureza Perfeita (o Anjo do filósofo) como figuras chaves da Obra alquímica. Jaldakî ressalta seu significado, em contraste com a impotência daqueles que ele chama os “Ignorantes” (jâhilîyûn), ou seja, os pseudoalquimistas que se contentam em manipular objetos materiais e são incapazes de imaginar as virtudes simbólicas que operam na transmutação interior do homem. A perturbação desses pseudoalquimistas resulta somente na morte de Hermes e no desaparecimento da Natureza Perfeita, que eles conseguem, os desafortunados, separar de Hermes. Somente uma apprehension áurea satisfaz as condições e operações “litúrgicas” da arte hierática. Essas simples lembranças preparam-nos da melhor maneira para adentrarmos os Templos do Livro das Sete Estátuas, composto por Apolônio de Tyana, o

célebre neopitagórico do séc. I de nossa era, a quem Filostrato, em sua hagiografia, erigiu o monumento de sua apoteose. Mas, se podemos ler hoje este livro em versão árabe, é graças à obra monumental de um alquimista de origem iraniana, Aydamor Jaldakî (séc. XIV), que conservou a versão árabe deste Livro das Sete Estátuas e lhe fez um amplo comentário que nos permite, na medida do possível, a compreensão de seus múltiplos símbolos. [...] [...] Aydamor ibn ‘Abdillah Jaldakî era de Jaldak, aldeia de Khorassan, a

quinze quilômetros ao norte de Mashhad. [...] Nosso filósofo alquimista residiu em Damasco e terminou por se estabelecer definitivamente no Cairo, totalmente dedicado à composição de seus livros. Morreu em 750 [1349-1350] (ou 761 [1360-1361], a data continua imprecisa).


Suas inúmeras obras se evidenciam por sua consciência bastante lúcida da finalidade espiritual e do sentido esotérico da operação alquímica realizada nas espécies sensíveis. Sua obra principal é o monumental Livro da Prova relativa aos Segredos Esotéricos da Ciência da Balança (Kitâb AL-borhân fi asrâr ‘ilm AL-mîzân [...] . É no segundo volume da obra que encontramos a tradução árabe, com um comentário tão desenvolvido quanto indispensável do livro atribuído a Apolônio de Tyana, cujo nome se tornou Balînâs em árabe (com algumas variantes, donde o latino Belinus) [...] . O original grego do livro de Apolônio perdeu-se. Ele se apresenta em árabe sob o título de Kitâb al-Asnâm (O Livro das Estátuas) ou de Kitâb al-Sab’a (O Livro dos Sete) e sob a forma de um relato de iniciação visionário que não deixa de lembrar alguns daqueles que devemos a Sohravardî, Shaykh al-Ishrâq. [...]

II. Indicamos que esse livro coloca a questão da transmissão desse tipo de literatura do grego para o árabe e, ao mesmo tempo também, a questão das origens da alquimia em língua árabe, o que, finalmente, coloca a questão de Jâbir

ibn

Hayyân.

As

pesquisas

sobre

alquimia

islâmica

devem

consideravelmente ao nosso saudoso amigo Paul Kraus, que, em sua grande obra, apresentou pela primeira vez análise e comentário dos grandes textos de Jâbir [...] . Contudo, nosso saudoso colega foi levado pelo impulso a um certo extremismo. Ele proclamou, em 1930, em termos um pouco sensacionalistas demais, o colapso da lenda de Jâbir [...] . Desse dito “colapso”, resultava que, contrariamente à tradição secular, nunca havia existido um personagem de nome Jâbir ibn Hayyân que tivesse sido discípulo do sexto Imã dos xiitas, o Imã Jâ’far al-Sâdiq (ob. 148[765]) e que tivesse sido o autor do corpus transmitido sob seu nome. [...] [...] são os grandes discursos gnósticos atribuídos ao primeiro Imã dos xiitas,

‘Alî ibn Abî Tâlib (ob. 40 [661]), principalmente o célebre Khotbat al-bayân (Discurso sobre a Grande Declaração) , que aparecem em sua verdadeira data, pois os alquimistas a ele se referem. Se as obras de Jâbir realmente apareceram no


século II [VIII], como quer a tradição, e só poderiam aparecer nessa época mesmo, não há dificuldade alguma em admitir que o Imã Já’far tenha tido conhecimento da alquimia e tenha sido o mestre de Jâbir ibn Hayyan. [...] Subjacente a esse grande debate histórico, resta outra questão que aponta, como dissemos anteriormente, para o próprio conceito da alquimia. [...] Parece essencial, [...], diferenciar vários níveis de significado. A mesma operação pode ser realizada, respectivamente, por um químico e por um alquimista: o nível da hermenêutica proposta, respectivamente, por um e outro de modo algum será o mesmo. O primeiro caso, aquele do químico, pode ser tipificado pela pessoa do médico Rhazes. O segundo caso, o do alquimista, na pessoa de Jaldakî, seus antecessores (um Zózimo) e de seus sucessores, cuja preocupação chega à tradição que fez identificar-se laboratório com oratório e levou à ideia litúrgica de uma Missa Alchemica. O historiador, ou ainda o fenomenólogo da alquimia, é, portanto,colocado diante de um simples dilema, chamando a opinar entre os “assopradores”, os “carvoeiros”, os charlatães e as pessoas sérias que fariam “obra científica”. Existe um terceiro termo, o único a representar

adequada

e

autenticamente

a

alquimia

como

ciência

e

experimentação espirituais da Natureza e do homem. Essa alquimia é eminentemente representada por Jaldakî, e a tradição se prolonga no Irã através da obra de um Mîr Fendereskî e até os nossos dias na Escola Shaykhie. A meditação da operação alquímica como experimentação espiritual da Natureza tende a separar o pensamento, a energia espiritual ( extrahere cogitationem) imanente aos metais que ela trata, para incorporá-lo ao homem interior. Simultaneamente, ela realiza o crescimento interior do corpo sutil, do “corpo de ressurreição”. Dito de outra forma, interiorizar a operação real é obter as reações psíquicas que se fundamentam em uma fisiologia mística do “corpo de ressurreição”. Em resumo, é isso a alquimia como arte hierática.

III. Aliás, esse é o conceito que está por trás do Livro das Sete Estátuas, de Apolônio/Balînâs e o amplo comentário feito por Jaldakî. A versão árabe do


livro de Apolônio, como dissemos anteriormente, foi inserida por Jaldakî no segundo volume de sua opus magnum, o Livro da Prova Relativa aos Segredos Esotéricos da Ciência da Balança. [...] Desde o começo, ele menciona que a tradução do grego para o árabe foi realizada no tempo do califa al-Ma’mûn, mas lembra expressamente que a tradução havia sido feita anteriormente pelo príncipe omíada Klâlid ibn Yazîd. [...] Perceberemos melhor, sem dúvida, as ressonâncias quando dispusermos, enfim, da edição, há muito esperada, de uma grande obra de Apolônio/Balînâs, o Sirr al-khalîqa (O Livro do Segredo da Criação e da Arte de [Reproduzir] a Natureza). É a grande obra no início da qual Apolônio/Balînâs declara: “Eu era um órfão originário de Tyana” [...] e cuja parte final é constituída pela célebre Tabula Smaragdina (Távola de Esmeralda), que é o testamento alquímico de Hermes. Digamos somente que, se o Livro das Sete Estátuas, em sua versão árabe, contém muitas referências que revelam o texto grego original, contém também, inevitavelmente, alguma aparência islâmica devida ao tradutor árabe ou a algum devoto copista. [...] Jaldakî relata-nos ao longo do Bâb V duas questões do primeiro Imâm

dos xiitas, ‘Alî al-Mortadâ, relativas à alquimia. Uma primeira questão nos remete ao célebre discurso gnóstico já mencionado acima e conhecido como Khotbat al-bayân, discurso ao longo do qual os discípulos interrogam o Imã Ali sobre a alquimia.

Eles lhe perguntam: “Ela existe?” O Imã responde:

“Certamente. Ela existiu no passado, existirá no futuro e existe no presente”. Uma segunda tradição relata outro diálogo ao longo do qual os discípulos levantam questões ao Imã sobre o assunto alquimia. “Vocês me perguntam”, diz o Imã, “sobre a irmã da profecia [okht al-nobowwa] e sobre a garantia da suprema dignidade humana.” A resposta do Imã, que faz da alquimia a irmã da profecia, é de uma importância inestimável, sendo o profeta não um adivinho do futuro, mas o porta-voz do Invisível expressando-se em parábolas e analogias. Quanto aos termos pelos quais ele a designa como “garantia da suprema dignidade humana”, ‘isma, é o estado de integridade, impecabilidade e imunidade dos Catorze Imaculados (o Profeta, sua filha Fátima, os Doze Imans). A morowwa é a dignidade alcançada que faz do ser humano um homem. Ela se prolonga na


ideia da fotowwa, a “cavalaria espiritual”, que, por sua vez, reconduz à ideia da walâya como aspecto esotérico da profecia e como a iniciação espiritual que é o carisma e o ofício do Imã. Todo o questionamento sobre a alquimia “irmã da profecia” prolonga-se assim, em arpejos onde vibra a ideia esotérica do Imamato xiita. [...]

IV. [...] No início do Bâb VI, Jaldakî

faz uma breve introdução que antecede o

“Grande Livro do Sol. [...] Ele começa lembrando-nos que Apolônio/Balînâs foi um dos transmissores do ensinamento de “Sócrates, o pitagórico”, o que está de acordo com a tradição pseudoepigráfica da qual testemunha igualmente Jâbir ibn Hayyân.

“Ele se destacou em seu tempo manifestando sólidos atingimentos de Filosofia e de teurgia extraordinárias. Seus esforços permitiram-lhe penetrar até o subterrâneo obscuro onde havia penetrado Hermes e acessar ele mesmo o tesouro de Hermes.”

[...] Jaldakî lembra-nos que Hermes, o Grande ( al-akbar), outro não é senão

aquele que os hebreus chamam Enoch, filho de Jared, e aquele que a profetologia islâmica conhece com o nome de Idrîs. [...] Tendo sido Apolônio assim restituído, sob os auspícios de Hermes, cujas pegadas seguiu na grande tradição hermética, Jaldakî prosseguiu:

“Quanto a Apolônio, ele investiga os segredos da Natureza e os princípios de Criação, e esse ensinamento ele havia obtido das ciências do profeta Idrîs [=Hermes =Enoch]. Ele mesmo compôs valiosos livros relativos às ciências da Natureza e as teurgias. [...] Sem dúvida, o eminente mestre Jâbir ibn Hayyan nele se inspirou e com


ele se sintoniza em seus livros sobre as Balanças, sobre os Sete Metais, as Propriedades intitulados Setenta, o Livro da Ciência Reservada e o do Segredo Velado. [...] ”

V. Como pudemos prover a tradução que se vai seguir somente com o mínimo necessário de notas, já razoavelmente longos, parece-nos preferível, a título de introdução, agrupar alguns grandes momentos do comentário de Jaldakî com relação à parte traduzida aqui. Sem dúvida, não podemos retomar o vasto sistema de correspondências exposto por Jaldakî entre os astros, os metais, o simbolismo de suas respectivas cores, a anatomia do corpo humano, etc. Copiaremos apenas essencialmente o que diz respeito à composição de suas Estátuas vivas e falantes, sacerdotes de seu Templo. Já insistimos no fato de que o ouro do qual é constituída a estátua do Filho do Sol e sacerdote de seu Templo de modo algum é o ouro comum do qual falam as pessoas comuns, mas o ouro dos Filósofos, o ouro alquímico, que é chamado “Pedra Filosofal”. Esse ouro alquímico é o ouro que, primeiramente, foi necessário extrair de sua mina natural, a matriz onde Deus decidiu seu futuro na origem da criação. Foi necessário transferir esse ouro para a “mina dos filósofos”, onde ele teve de permanecer por longo tempo. Vemos então, de início, que não se trata, de modo algum, de produzir ouro para enriquecer; trata-se de produzir um ouro mais precioso do que o ouro. Tendo-o transferido para sua mina, os Filósofos submetem o ouro natural a um tratamento: eles o elevam, o retificam pelos atos da Filosofia. Em resumo, devem educá-lo e nutri-lo. Sua nutrição é a Água que brota da rocha de Horeb, a “Rocha sublime que está no vale santo”. [...]

Essa Estátua imaculada cuja natureza está entre dois mundos, entre o mundo do puro inteligível e o mundo sensível, é o fruto da “união nupcial” entre o Filho do Sol e sua branca esposa, a Virgem imaculada. Esse é um tema


fundamental pelo qual a alquimia se parece aqui às teogonias de outras gnoses. Existem as uniões nupciais entre os Eons do pleroma valentiniano. Existem as uniões nupciais na teosofia de Ibn ‘Arabî, das quais a primeira tem como fruto a teomorfose, o nascimento eterno do Deus pessoal, revelação do Absconditum a si mesmo. E essas uniões se repetem de nível em nível dos mundos. Mas Jaldakî especifica: no nível da Natureza onde opera a alquimia, não se trata da primeira união nupcial, entre os metais naturais no seio da Terra, mas da segunda união nupcial, cujo local pode ser somente, de fato, entre dois mundos, ou seja, entre o mundo mediador, ou mundus imaginalis do qual Jaldakî falará mais adiante. Não pode ser, portanto, no nível da Natureza pura e simples, mas no nível da Natureza malakûtî. Por isso a Estátua era visível somente em sonho visionário. Não é ela, enfim, a própria Estátua interior do alquimista, aquela que ele mesmo produziu?

“A prova disso é”, diz Jaldakî, “que a estátua torna-se uma Estátua somente depois que a extraímos e transferimos para fora de sua matriz original [a mina telúrica]. E ela se torna uma estátua que possui um corpo somente depois de uma série de trabalhos, de tratamentos e de operações. E nós lhe erigiremos um minbar somente quando ela tiver alcançado o fim do tratamento. E ela fala somente a língua que fala por si mesma de seu estado no mais eloqüente dos discursos quando se torna espiritual, humana, angélica, solar, brilhante, irradiante, luminosa, de uma classe sublime.”

Semelhante texto não deixa dúvida alguma sobre a maneira com a qual Jaldakî concebe o sentido e a finalidade da operação alquímica, realizada nas espécies concretas e sensíveis, mas cujas mutações são percebidas em outro nível de percepção: aquele no qual é percebida a edificação progressiva da “estátua interior” do homem celeste, Filius Philosophorum.


É o que confirmam as explanações de Jaldakî acerca do segredo da união nupcial à qual faz alusão o “Filho do Sol”.

“A Natureza se regozija com a Natureza, disseram os antigos Sábios. A ordem do mundo se conserva pelo amor, e o amor tem como causa o reconhecimento mútuo do Amante e do Amado, a homogeneidade de sua natureza, a conformidade de um com o outro.”

[...] A posição da alquimia como arte hierática desvela o sentido oculto de

sua operação real como uma parábola do Amante e do Amado. Quando eles se encontram, “eis que aparece sobre as linhas do rosto o segredo da Luz e da Beleza”. “Do mesmo modo, como o Filósofo operou a união nupcial entre o Filho do Sol e a Filha da Lua, engendra a partir de si um semelhante, um ser tão belo quanto ele, ao qual nada pode ser comparado quanto ao charme da beleza. Compreende bem! Passamos ao redor de teu pescoço, como um colar, este magnífico segredo”..., o segredo do Filius Philosophorum.

O ouro natural foi então transferido para fora de sua matriz original, em sua mina dos Filósofos. A Nobre Pedra tornou-se uma criatura espiritual, ao mesmo tempo humana e angélica, toda de luz. Apolônio, pela língua do Filho do Sol, ilustra ainda o mistério de sua união nupcial pela “parábola do trigo” [...].

“Os Filósofos semeiam em sua Terra somente a semente que produz as coisas desejadas, comparáveis ao trigo e aos outros alimentos, bebidas e vestimentas [...]. A semente dos Filósofos produz o Elixir, e o Elixir produz o Ouro.”


O ouro que é neste mundo o “Filho do Sol”. Mas é somente quando o Filósofo transferiu esse “filho” de fora da Terra para dentro da matriz dos Filósofos, quando ele lhe aplicou o tratamento da Chave sublime e completou sua educação, quando nele operou a conjunção com sua nobre esposa, somente então se engendrou para o Filho do Sol seu semelhante, ou seja, Filius Philosophorum, pelo duplo Elixir solar e lunar, masculino e feminino.

“Não pode ser aniquilado e jamais desaparecerá o que Deus dispensou a seu casal, pois existe em seu casal o Segredo divino [ al-sirr al-ilâhî], aquele do Nome al-Karîm, o Nobre-Benfeitor.”

Recordemos essas especificações quanto à “Terra dos Filósofos”, pois elas podem auxiliar-nos a compreender melhor certas diferenças entre a versão árabe e a versão latina da Tabula Smaragdina. Talvez tenha havido a tendência no Ocidente de interpretar uma de suas estrofes em um sentido conforme o dogma cristão oficial da Encarnação. A versão latina contém esta estrofe: Vis ejus erit integra si conversus fuerit in terra . Porém, essa frase não possui equivalente no texto árabe, o qual fala simplesmente da Pedra “cujas forças são perfeitas, cujas luzes fazem triunfar seu direito [ mohiqq al-anwâr]. É do Fogo que

se

torna nossa Terra,

etc.

Era possível aos

alquimistas cristãos

compreender a Pedra como uma “alegoria” do Cristo e de sua encarnação. Era impossível ao alquimista islâmico supor ou admitir algo que pudesse levar a esse dogma. Falou-se, sem dúvida, da condição que permite à Estátua assumir um corpo (tajassom), mas é para descrevermos agora a Estátua como “ espiritual, ao mesmo tempo humana e angélica”. Porém, essa simultaneidade caracteriza as criaturas do intermundo imaginal. É uma maneira de situar e de compreender a coincidentia oppositorum, que de modo algum é aquela que entendem atualmente os intérpretes


ocidentais. Era preciso, de fato, que o ouro fosse elevado à sua mina natural, ou seja, ao mundo perceptível pelos sentidos externos, para se submeter ao tratamento que lhe torna apto a constituir a Estátua sacerdotal no Templo do Sol. Essa Estátua não é visível no mundo exterior dos olhos de carne, ao qual ela não pertence. Ela é visível somente no intermundo, ao qual se abrem os olhos espirituais do iniciado, lá somente onde se pode produzir e se perceber a coincidentia, ou seja, no Templo da Visão. O oratório do alquimista é um laboratório a produzir o invisível aos sentidos externos. Nós já indicamos acima a concordância entre a ideia da união nupcial da qual falam Apolônio e Jaldakî e a das uniões nupciais no pleroma da gnose valentiniana e na cosmogonia de Ibn ‘Arabî. O que um gnóstico cristão perceberá no segredo da operação alquímica não é nada assimilável ao dogma oficial da Encarnação, mas o que sempre tipificou no léxico gnóstico a expressão caro spiritualis Christi (ainda no século XVIII, F. –C. Oetinger, ao cruzar as correntes derivadas de Jacob Boehme e de Swedenborg, fala essencialmente de Geistleiblichkeit, corporeidade espiritual). Diferença fundamental da qual depende o sucesso ou o fracasso da Clavis Hermeneutica da alquimia. [...]

COMENTÁRIO DE JALDAKÎ AO TEXTO DE APOLÔNIO

[...] Incumbe-nos agora explicitar o discurso do eminente sábio Apolônio

para os buscadores da Sabedoria [hikma] com relação aos fundamentos dos ensinamentos iniciáticos [ta’lim]. Ele mesmo é um dos transmissores dos ensinamentos de Sócrates, o pitagórico, o eminente sábio, o asceta cujo elevado ensinamento espiritual, conhecimento e sabedoria ninguém coloca em dúvida. Muitos são aqueles que concordam em considerá-lo um profeta. [...] Quanto a Apolônio, investigou os segredos da natureza e os princípios da criação. Ele retirou esse ensinamento das ciências de Idrîs. Ele mesmo compôs


preciosos livros relativos às ciências da natureza, à ciência dos talismãs e à dos princípios universais e desenvolveu métodos notáveis cujo uso permanece até nossos dias em diversas localidades. [...]

O Livro das Sete Estátuas Vivas

Prólogo [...] Este é o Livro das Sete Estátuas Vivas, obra de Apolônio/Balînâs, o Sábio,

segundo a tradição que ele transmitiu baseada na autoridade do eminente Sócrates, seu mestre, dentre tudo o que ele relatou a outros com relação aos sete astros e os sete corpos [metais], seguindo o método da filosofia. Apolônio disse: Os antigos sábios expressaram-se em símbolos e por esses símbolos sugeriram múltiplos significados aos quais deram o nome de “revelação”, no sentido de que os Filósofos faziam a “revelação” a seus discípulos. [...] A intenção dos filósofos ao agir desse modo era manter as ciências elevadas ocultas ao profano que não fosse digno. [...] A elevada ciência da qual tratamos aqui merece que sejamos parcimoniosos e que lhe coloquemos um véu, preservando-a dos profanos por uma estrita disciplina do arcano [kitmân]. Por essas razões os Filósofos disseram que esse era um conhecimento concedido por revelação divina. Alguns dentre eles compuseram livros sobre essa elevada ciência por si mesmos, com conteúdo próprio. De fato, fazia parte do conteúdo de sua revelação a ideia do Retorno e do local do Retorno. Sem dúvida, eles consideravam impossível qualquer contaminação do mundo do alto, precisamente por ser o mundo do alto [...] . Era então uma firme convicção que eles professavam dizendo: “Nós retornaremos, nós recomeçaremos, nós retornaremos à vida, mas após um longo tempo determinado”. Por isso eles escreveram, sendo os livros escritos por eles mesmos, com seu próprio conteúdo [pois eles os reencontrariam um dia], sendo esses livros


depositados em seus Tesouros. Esses livros continham a revelação que fazia parte dos segredos esotéricos, preservados e ocultos. [...] E no conjunto de convicções que eles ensinavam, havia esta: os setes astros errantes [os planetas], considerados quanto a seus aspectos e influência que exercem, têm participação ativa em todas as coisas deste mundo. É o que mostram todos os indícios, vestígios ou assinaturas. Alguns têm, exclusivamente, influência privilegiada sobre determinadas coisas às quais infundem sua força. Assim é que são adequadamente atribuídos: ao Sol, o ouro; à Lua, a prata; a Saturno, o chumbo; a Júpiter, o estanho; a Marte, o ferro; a Mercúrio, o mercúrio; a Vênus, o cobre.

Comentário: [...] O primeiro aspecto dessa participação relaciona-se com as Qualidades Naturais [tabâ’i’]: ao Sol, a Júpiter e a Marte pertencem os indícios e as assinaturas [âthâr] do Calor; a Saturno, a Vênus e à Lua, os indícios e as assinaturas que têm a natureza do Frio; ao Sol, a Marte e a Saturno aquelas têm relação com a Secura; a Júpiter, Vênus e à Lua, as da umidade. Os indícios e as assinaturas de Mercúrio correspondem à inversão [inqilâb] e à mistura, de uma natureza à outra. Tais são os indícios da participação quanto às Naturezas [al-tabâ’i’]. Os indícios da participação quanto aos Elementos [al-‘anâsir] são os seguintes: ao Sol e a Marte correspondem os indícios e os vestígios [âthâr] do Elemento Fogo; a Júpiter e a Mercúrio, do Elemento Ar; a Vênus e à Lua, do Elemento Água; a Saturno e a Mercúrio, do Elemento Terra. A partir das correspondências com as Naturezas e com os Elementos, segue-se uma participação nos três reinos — mineral, vegetal e animal. E mesmo no homem e em todos os animais, quanto aos órgãos da vista e da visão e relação destes com o sol e a lua. Assim, quando começa a se produzir o nascimento da criança e esses dois luminares estão em posição nefasta ou em eclipse, isso resulta em uma ação [ta’thîr] — com a permissão de Deus — sobre a doença que afetará a vista dessa criança. Em muitos casos, ela será cega se os aspectos benéficos não contrabalançarem isso. O mesmo ocorre com relação ao ouvido direito com Saturno e com o ouvido esquerdo com Júpiter; com a narina direita com Marte e com a narina esquerda com Vênus. O toque é uma função comum. A gustação e a língua são relacionadas com Mercúrio, de


modo que, quando a criança nasce e Mercúrio está em uma posição benéfica nos signos zodiacais “falantes”, essa criança será eloqüente. Inversamente, se Mercúrio se encontra em posição nefasta e nos signos zodiacais “não falantes”, isso implica o mutismo. E se isso está em conjunção com Saturno em um aspecto nefasto, isso anuncia o mutismo e a surdez. Tais são os indícios da ação específica dos astros quanto às assinaturas e aos indícios sobre os órgãos externos [zâhira]. Quanto aos órgãos internos (batina): o coração e o pneuma vital (al-rûh al-hayawânî) dependem da Balança do Sol. O fígado e a bile dependem da Balança de Marte. O sangue que circula no corpo do homem e em todo o corpo dos animais, o baço, os nervos, os ossos, a pele, a bile negra, tudo isso depende da Balança de Saturno. Do mesmo modo, o sangue puro, as veias, as artérias, o estômago dependem da Balança de Júpiter. E os rins e os órgãos sexuais estão em relação com a Balança de Vênus. O tórax, os pulmões e a fleuma dependem da Balança da Lua; e os intestinos, da de Mercúrio. [...] Do mesmo modo, a associação e a diferenciação se produzem nas partes que

compõem os vegetais e os minerais, bem como nas cores. [...] Agora voltemos ao texto do grande mestre, o eminente sábio Apolônio, no Livro Maior do Sol. [...]

O Grande Livro do Sol [...]

Eu me encontrava na Cidade Central, no país perfeitamente temperado 1. Cheguei ao Templo do Sol [haykal al-shams], todo cercado de radiância e luzes, e estava na companhia de grupo de piedosos Filósofos. Ao redor de todo esse Templo, havia correntes de água viva, jardins, flores, pássaros canoros. [...]

Ou seja, no local onde tudo está equilibrado, temperado [...] . A Pedra Filosofal, resultante da aplicação da ciência das Balanças, é precisamente uma matéria que alcançou um perfeito equilíbrio interno. 1


[...] O solo desse país e tudo o que o cercava — montanhas, campos e colinas —

eram semelhantes a fontes de ouro e tinham a cor do açafrão. [...] Tudo estava no estado de uma Balança, em equilíbrio e em ordem perfeita. [...] Nas proximidades desse Templo, bem como nas montanhas ao redor, havia

minas de ouro, de jacinto vermelho e de rubis. Lá mesmo havia uma elevada montanha vermelha, e é nas cavernas, no interior dessa montanha, que nasce o enxofre vermelho de substância absolutamente pura. Ele é incombustível. Seu perfume é ainda melhor do que o fragrante almíscar, a cânfora e o âmbar. Isso diz respeito às cercanias do Oriente do Templo. Quanto às cercanias do Ocidente do Templo, havia uma preciosa mina de mercúrio, de uma constituição totalmente pura. Lá mesmo se encontravam outras minas preciosas, nas quais havia cintilação, brilho e irradiações de luz. Agora compreendi que esse país tão bem temperado [equilibrado] era o mais belo de todos os países. Nós ali permanecemos durante toda a jornada tranquilamente e com conforto. Depois, passamos a noite no Templo, em um abrigo magnífico, um castelo elevado, construído em tijolos de ouro. As colunas eram de ouro, a mobília era de ouro incrustado com diferentes espécies de jacinto e de pedras preciosas de múltiplas cores e resplandecentes irradiações. Mas enquanto dormíamos, enquanto nos encontrávamos num estado intermediário entre a vigília e o sono, eis que ouvi o chamado de um arauto, que fazia ouvir sua proclamação com uma voz ressonante. Ele ordenava às pessoas que se reunissem em vista da Manifestação [epifania] do Filho do Sol [zohûr ibn al-shams], cercado de esplendor e irradiações de luz. Isso para ouvirmos seu discurso, acolhermos as palavras e a eloqüência e assimilarmos o que havia para dele aprender sobre as elevadas ciências da Filosofia. [...] Estavam presentes os iniciados [khawâss], os notáveis, os soberanos e os

auxiliares. [...] O púlpito [minbar] havia sido erigido a certa distância do Templo, no local mais belo de todos. Esse púlpito era de jacinto vermelho, incrustado de todo tipo de pérolas e de jóias. Os degraus do púlpito eram de jacinto amarelo. Acima do púlpito, havia uma


cúpula cujo brilho fulgurante cegava os olhos. Eu fiquei maravilhado e sem fala diante desse espetáculo, e um temor reverente tomou conta de mim diante dessa multidão reunida nesse lugar. De repente, eis que lá surgiu uma estátua de ouro vermelho, altiva e soberana. Sua veste estava cingida de um cinto vermelho. Em seu pescoço havia colares feitos de todas as espécies de pedras preciosas. Em sua mão esquerda havia uma tabuleta de jacinto amarelo, e na sua mão direita havia um bastão de jacinto vermelho. A tabuleta de jacinto amarelo estava coberta de escritos. Ela continha sinais cujos traços eram feitos dessa mesma luz e desse mesmo brilho que cegavam os olhos. Sobre a cabeça da estátua havia uma coroa [ou uma mitra, tâj] de rubis, e no topo da coroa havia uma jóia de Elixir de intenso brilho e, em volta, uma grinalda . A estátua vestia uma túnica sem mangas, sobre a qual alternavam as pérolas e o coral. Em seus pés, duas sandálias de pura cornalina. Ao redor de seu rosto um halo irradiava-se do alto, como se ela fosse o Sol irradiando luz. E a estátua estava montada em um carro feito de ouro absolutamente puro. Quatro cavalos puxavam esse carro. A cor desses cavalos era semelhante à cor do sol. [...] Quando a estátua se aproximou do púlpito, desceu do carro e se colocou a andar com um passo hierático. Eu meditava e refletia. Então vi em cima da cúpula do púlpito um pássaro de ouro; era uma águia. Essa estátua inspirava tal veneração e manifestava tal beleza, que os espíritos penetrantes permaneciam em estupor admirado diante dela. Em seguida, eis que a estátua subiu os degraus do púlpito, um após o outro, enquanto as pessoas a contemplavam nesse local. O número de degraus do púlpito era dezenove. [A estátua viva os subiu lentamente] até que alcançou o último degrau. Depois ela avistou a assistência. [...] Em seguida, disse: Glória a Deus que está nas alturas e que domina. [...] Ele criou os Céus e fez as Esferas girarem. Ele instaurou a Inteligência [‘aql, o Nous] como guia que mostra a Balança do equilíbrio a se considerar e observar. Ele deu, inicialmente, origem aos Espíritos e às Almas. Ele configurou as Formas e impôs uma regra a todas as criaturas. Ele constituiu as naturezas originais regionais [fitar, plural de fitra]. Ele assinou o decreto que pôs em vigor o


Destino [qadar]. E no conjunto de seus Sinais, há os Anjos e as Esferas que eles governam; há a Terra e as plantas; há os corpos terrestres e os corpos celestes; há dois luminares: o Sol e a Lua. [...]

E agora eu digo 2 : Ó homens, prestai atenção ao discurso que vou pronunciar. Fixai em vossas mentes as ideias que são de uma clareza perfeita para quem for dotado de compreensão. Sabei que meu pai, o Sol [abi al-shams], enviou-me a vós para vos transmitir saudações de sua parte e para que vos faça recordar daquele cujo Deus atribuiu o privilégio a meu pai: a soberania, a glória, a grandeza, a perfeição, o brilho, a Luz que expande sua luz matinal sobre os outros corpos. Deus Altíssimo fez do Sol, meu pai, a fonte de todas as energias vitais. Ele o constituiu soberano, reinando sobre os outros astros e corpos celestes. Além disso, ele o impôs como ato de poder, para o bem de vossas vidas, pela persistência de suas revoluções. Assim, sua existência é a causa da existência das noites e dos dias, da claridade e das trevas, do movimento e do repouso, da conjunção e da nova junção. Sem cessar, ele busca preencher a deficiência das condições de vossa vida ao longo das noites e dos dias. Ele caminha com seu séquito, passando em revista o que falta de país em país, no conjunto das regiões. [...] E dentre os presentes que Deus Altíssimo deu a meu pai, o Sol, foi dar-me à luz como seu filho no seio da Terra. Tenho vários nomes dos quais cada um me designa como Ouro puro, Ouro sem mistura. [...] Aquele que me possui em grande medida tem, dentre seus semelhantes, uma posição gloriosa; ele é semelhante a um farol que domina. Aquele que de mim possui somente uma pequena medida cavalgaria, entre seus semelhantes, a besta da humilhação, da pobreza, da necessidade, da condição cativa. Por conseguinte, eu sou o Filho do Sol, [...] , o tesouro tido em reserva pelos reis. Sou eu que concedo o poder de triunfar e de se estabelecer em todos os reinos e suas capitais. No meu sentido esotérico [bâtinî, o segredo de mim mesmo] existem segredos [asrâr]. No meu sentido exotérico [zohûrî, minha aparência externa], existem os símbolos e as assinaturas. 2

Tudo o que precede constitui, de fato, uma doxologia como encontramos encabeçando todas as composições islâmicas. Agora a Estátua-Sacerdote vai falar em seu próprio nome.


Bem-aventurado é aquele que está de posse, em certa medida, “daquilo que eu sou” [amrî] e que é informado do segredo oculto em mim [meu sentido esotérico, sirrî al-bâtin3]. Esse conhece uma ampla expansão, atrai para si a fama e a glória. Um de meus segredos exotéricos [asrârî al-zâhira] é que faço chegar aquele com quem estou a tudo aquilo a que aspira. Ele se eleva, e eis que o faço se elevar até o grau supremo. Um de meus segredos esotéricos [asrârî al-bâtina] é aquele que fascina os pensamentos e as inteligências por sua abundância de dádivas. Quando alguém possui algo desse [segredo] esotérico, sua influência é das mais benéficas. Quanto àquele que possui, ao mesmo tempo, meus segredos exotéricos e meus segredos esotéricos, esse se eleva à classe dos Justos 4. [...] Tudo o que é criado submete-se a ele por causa desse Segredo divino [sirr ilâhî]. E sabei que possuo diferentes modos de ser. Eu me submeto à transferência, acumulação e ocultação. Quanto àquele que entrou no subterrâneo obscuro de Hermes e dele saiu à luz do dia e à radiância da Luz que é o adorno do Filósofo, com aquele que produziu a matéria da iniciação que recebeu, apreendeu algo do meu segredo5.

3

Pois é esse sirr al-batîn que diferencia o trabalho do alquimista daquele do químico simplesmente. Um e outro podem praticar as mesmas operações; o que eles descobrem difere totalmente. Foi o que não discerniram todos aqueles que fizeram a alquimia entrar na história das ciências como um simples capítulo precursor da química. Comparemos com o Missa alchemica, de Nicholas Melchior de Hermannstadt (cf. C.G. JUNG, Psychologie et Alchimie, trad. H. Pernet e R. Cahen, Paris, Buchet-Chastel, 1970, PP. 503 ss.) Para um químico, as espécies santas são somente pão e vinho. Para o alquimistasacerdote, elas dão vida a seu corpo espiritual sutil, uma vida que de modo algum é uma metáfora. Compare aqui o convite imperativo a distinguir entre o ouro dos alquimistas e o ouro comum. Não se trata de fabricar o “falso dinheiro”, mas de realizar uma liturgia da Natureza. Dito de outra forma, não é a fabricar o ouro negociável que se dedica o alquimista, mas a transformar o ouro comum em “ouro filosófico”, aquele do qual é constituída a Estátua-sacerdotisa. O filho do Sol, o ouro, está na Terra, no elemento com esse nome. Ele é transplantado para a “Terra dos Filósofos” para sofrer a operação alquímica que o purifica, o despoja de sua natureza profana e para que ele possa ser modelado em uma Estátua viva e falante que é o sacerdote do Templo de seu pai, o Sol. Assim, esse ouro é mais do que o ouro, é o ouro transmutado. E isso ele se torna quando se une à sua branca esposa (ele é, então, mas femineus). E é em um sonho visionário, in mundo imaginali, que ele se manifesta. 4 [O manuscrito B traz: “a uma classe extraordinária”.] 5 Ver En Islam Iranien, II, PP. 301 ss., a tradução (a partir de Pseudo-Majrîtî, Das Ziel des Weisen) desse episódio do reencontro iniciático de Hermes com sua Natureza Perfeita. É esse mesmo relato que Apolônio/Balînâs adota como seu. Algumas passagens aqui do Livro das Estátuas estão literalmente de acordo com aquilo que se pode ler no Sirr al-khalîqa (O Segredo da Criação, intitulado também K. al-‘ilal, Livro das Causas). Cf. Julius RUSKA, Tabula Smaragdina, op. cit. PP. 132-135 do texto árabe e PP. 135139 da tradução alemã. Evidentemente, seria interessante comparar. Nós não temos nem tempo nem lugar aqui.


Portanto, compreendei! Vou sugerir qual é minha “história”. Vou vos informar o segredo oculto daquilo que sou [amrî].

Comentário: [...] Digo como comentário a tudo isso: o templo do Sol, a terra perfeitamente temperada, os seres dos três reinos que ali se encontram e dependem do Sol e aos quais o Sábio fez alusão, tudo isso constitui uma linhagem 6 para o Sol e com ele está relacionado. [...] Quanto ao sonho que relata o autor, ele o menciona porque sabe que o sonho [visionário] transmite uma revelação divina [wahy], do mesmo modo que a ciência que ele explica e à qual se refere em seu Livro das Sete Estátuas é uma revelação divina. A assembleia ao chamado do arauto, o púlpito [minbar], a estátua de ouro [sanam], tudo isso faz parte do ritual, quando se manifesta o rei ou o soberano no esplendor de sua soberania ou quando ele assume seu lugar em seu minbar ou no trono de sua realeza, em virtude da regra que as pessoas se reúnam a seu redor — até porque se trata do Filho do Sol e do ministro7 de sua soberania sobre a Terra. Mas as pessoas se reúnem, na realidade, em torno do ouro, pois ele é a mais aparente das causas da qualidade superior da linhagem. Ele é a causa da assembleia e da decisão resoluta por todo objeto de busca, e de toda busca. E todas as qualidades desse local que Apolônio menciona, as espécies dos três reinos naturais que aí se encontram, os animais selvagens, os pássaros e os atributos da estátua, o minbar e o jacinto, a cúpula e o pássaro, as pedras preciosas e todo o restante que descrevemos, tudo isso diz respeito às Balanças do Sol e são seu suporte neste mundo de baixo. E tudo o que o Sábio [Apolônio] menciona dando a palavra à Estátua é uma evidência perfeita de que isso conduz então aos segredos esotéricos e exotéricos dessa Estátua. Aquele que os possui

6

[“Uma linhagem”, árabe nisba. Originalmente, “relação de consangüinidade” e, em sentido mais amplo, “relação”.] 7 [O termo khalîfa, traduzido por “ministro”, “subalterno”, “’príncipe herdeiro” designa o substituto ou o sucessor de um soberano ou de um mestre. Assim, os sucessores do Profeta Mohammad à frente da comunidade muçulmana assumiram o título de “califa” (o Enviado de Deus). Em sentido mais profundo, o Corão (II,28) anunciou que o homem, Adão, foi criado por Deus como seu califa sobre a terra.]


alcança determinação condição, e que condição! Há aqui alusão implícita ao mundus artificiosus [al-‘âlam al-sinâ’î] para quem estiver à altura de compreender os segredos da Filosofia [hikma] , para quem for um desperto. [...]

III. Em seguida, o Sábio (Apolônio), falando por meio da Estátua que ele viu em sonho visionário quando esta ascendeu ao minbar e iniciou o discurso, disse:

Sabei que quando me uno à minha esposa branca e bela, pura e doce ao toque, produz-se aumento de sua beleza e de seu brilho. A beleza de seu rosto indica que ela está em harmonia comigo. Pois o que sou é tal que, quando a ela me uno, nada há neste mundo que seja de classe superior à nossa, que seja mais perfeito do que nós em poder e magnificência, nada que seja de dignidade mais grandiosa do que a nossa. Não surge de mim semelhante a mim, a não ser depois de minha união nupcial com minha esposa, que gera a partir de mim um semelhante a mim 8. Quando a semente foi semeada e germinou, é, em seguida, colhida, depois é moída e, a seguir, transformada em pão. Ela se torna o alimento dos homens e dos animais9. O mundo prospera, as criaturas vivem. Graças a nós, eis que vive confortavelmente aquele que não teria poder de nada. Nunca [esse alimento] desaparece nem é aniquilado, pois ele é uma sublime dádiva de Deus que nós é concedida.

IV. Comentário

8

A própria Estátua-Sacerdote é Filius Philosophorum, e porque ela reúne o masculino e o feminino, ela possui a virtude de produzir ela mesma, na pessoa do alquimista praticante e meditante, esse mesmo Filius Philosophorum [...] . É precisamente a esse mistério que são iniciados aqui os adeptos reunidos em sonho visionário no Templo do Sol. Tudo isso é confirmado pela afirmação repetida no comentário de que a Estátua é feita não de ouro comum, mas do “ouro dos Filósofos”. 9 [...] O trigo, sem dúvida, não é Pedra Filosofal. Esta é equivalente, simbolicamente, aos alimentos terrestres que crescem do seio da terra. “Contudo, comenta Jaldakî, os Filósofos semeiam na sua Terra somente a semente que produz as coisas desejadas, semelhantes ao trigo e aos outros alimentos, aos líquidos, às vestimentas, a tudo do que se necessita. E assim, eis que a semente dos Filósofos produz o Elixir, e o Elixir produz o ouro abundante e precioso. Quando algo assim está à disposição do Filósofo, basta-lhe uma pequena quantidade para nutrir uma grande multidão de homens e animais”, uma multidão de homens que serão os Filii Philosophorum, enquanto os animais serão os animais simbólicos que povoam os arredores do Templo do Sol.


Eu digo: a alusão da Estátua de ouro a si mesma, a seu pai, o Sol, a suas vestes, a seu minbar em jacinto, à cúpula que o cobre, à águia sobre a cúpula, aos degraus do minbar e a tudo o que o Sábio [Apolônio] descreveu, a ação de graças que a Estátua proferiu a seu Criador, em resumo, todas as descrições que ele nos deu são indícios de que o ouro do qual é feita a estátua que possui essas qualidades é o ouro dos Filósofos [al-‘âmma]. Ele é transferido da mina na qual Deus o produziu originalmente para a mina dos Filósofos. Ele aí permanece por um tempo: os Filósofos o tratam, o elevam, o educam, o retificam pelas operações da Sabedoria [hikma] e pelos trabalhos dos Sábios que consistem em todo tipo de retificações, de educação e de alimentação para a nutrição apropriada ao seu crescimento, aquela que brota da Rocha Sublime, que está no Vale Sagrado. [...] [...] a estátua torna-se uma Estátua somente após a fazermos sair de sua mina

original. E ela só se torna uma Estátua dotada de um corpo após uma série de trabalhos, de tratamentos e de operações. Só lhe erigimos um minbar e ela só sobe os degraus até o mais elevado quando ela chega ao fim da operação. E ela só expressa seu estado com perfeita eloqüência quando se torna espiritual, humana, angélica, solar, brilhante, radiante, de classe elevada, concedendo seu ensinamento, com suas palavras e sua eloqüência, a toda a criação. O Filho do Sol explica que sua esposa é branca, possui beleza, graça e esplendor e que tem uma pele sem máculas, o que implica que ela é pura de todas as impurezas e contaminações, de toda deficiência e que é doce ao toque. [...]

V. [...]

VI. Quanto à explicação das palavras pronunciadas [pela Estátua]: Eu sou aquele que, quando me uno a ela [ou seja, à sua branca esposa], nada há, então, neste mundo que seja de classe superior à nossa, nada que seja mais perfeito do que nós em poder e em magnificência, nada que seja de dignidade mais grandiosa do que a nossa, eu digo: nos segredos das naturezas das conjunções, Deus Altíssimo colocou indícios que revelam as


modalidades associadas aos seres, porque elas são os sinais [‘alâmât], sobretudo a conjunção do sol e da lua que se produz uma vez ao fim de cada mês. Assim se produz a consociação [al-ijtimâ’] entre os dois. Quando se produz essa consociação, nada há neste mundo que seja de classe superior à deles, nem mais perfeita do que os dois em poder e magnificência, nem de dignidade mais grandiosa. De fato, Deus os elevou e tornou os dois, respectivamente, os sinais da noite e do dia. Na forma [sûra] de sua consociação ao fim de cada mês, Ele colocou os símbolos e os indícios que notificam todos os acontecimentos que ocorrerão no próximo mês nos Elementos, nas Naturezas [al-tabâ’i’] nos três reinos, na abundância das águas e dos rios, nas mudanças da atmosfera e no conjunto dos movimentos relativos às grandes cidades, [...] . Do mesmo modo ocorre quando se produz a segunda composição e quando o Sol e a Lua estão consociados no princípio produzido pela Arte [alquímica] em uma conjunção favorável, escolhida em seu momento preciso dentre os dias e as noites. Foi por isso que o Sábio anunciou, dando a palavra à Estátua de ouro, o que convém ao casal que forma os dois luminares [o Sol e a Lua] quando estão reunidos. Nada é, então, de classe superior à deles, nada é mais perfeito em poder e magnificência nem de dignidade mais grandiosa. Do mesmo modo também, [ocorre] no “mundo produzido pela Arte”, quando eles estão reunidos e em conjunção [...] . [...]

VII. Quanto ao sentido das palavras (pronunciadas pela Estátua): Não surge de mim semelhante a mim, a não ser depois de minha união nupcial com minha esposa, que gera a partir de mim um semelhante a mim, é a isso que aludem os Sábios quando dizem: As coisas produzem seus semelhantes e fazem surgir de si mesmas seus semelhantes. [...] Eu digo: do mesmo modo que o Sábio [isto é, o alquimista] operou a união nupcial entre o Filho do Sol e a Filha da Lua, esta engendra dele seu semelhante, um ser tão belo quanto ele [...] . Quanto ao sentido das palavras: Quando a semente foi semeada e germinou, é em seguida colhida, depois é moída e, a seguir, transformada em pão. Ela se torna o alimento dos homens e dos animais. O mundo prospera, as criaturas vivem. Graças a nós, eis que vive


confortavelmente aquele que não teria poder de nada. Nunca [esse alimento] desaparece nem é aniquilado, pois ele é uma sublime dádiva de Deus que nós é concedida , eu digo: mostramos os fundamentos da geração segundo uma relação de linhagem [nisba] e segundo o ascendente original. A geração do homem depende da realidade da espécie [naw’iyya] humana; a da planta, da realidade da espécie vegetal; a animal, da realidade da espécie animal. Do mesmo modo, o mineral, quanto à sua mina, remete à realidade da espécie mineral. [O Filho do Sol] compara esse fato, em parábola, com a semente que, quando foi semeada, germinou e, em seguida, foi colhida, moída e convertida em pão e se tornou o alimento dos homens e dos animais, e o mundo prospera, as criaturas vivem. É por isso mesmo que as pessoas designam comumente o pão sob o nome de ‘aysh, como se o pão fosse uma metáfora da vida, porque é para ela o alimento. [...] [...] De fato, a semente dos Filósofos produz o Elixir, e este produz ouro em

abundância. Assim, quando o trabalho do Filósofo engendra um resultado análogo, basta uma pequena quantidade para alimentar uma grande multidão de homens e de animais. [...] Em resumo, o Filho do Sol proclama o que Deus Altíssimo concedeu a seu pai, em seguida a ele mesmo, em abundância de dons. De fato, Deus, por um lado, atribuiu adequadamente e concedeu a seu pai, o Sol, uma luz e um estado que não concedeu a nenhum dos corpos celestes: ele o tornou um rei nos céus, um soberano entre as sete esferas, ao qual os nobres anjos obedecem. Por outro lado, atribuiu adequadamente a seu filho, o ouro, no mundo de baixo, pela mina da atribuição específica, a nobreza e a glorificação. Quando o Filósofo o educa, o transfere para a “mina dos Filósofos”, aplica-lhe adequadamente a Chave Sublime e conclui sua instrução pelos ingredientes da Nobre Pedra, em seguida, o associa à sua nobre e doce esposa, como foi mencionado anteriormente. Assim, dele nasce seu semelhante, ou seja os dois Elixires do Sol e da Lua. Então, nenhum espaço contém a superioridade que Deus concedeu a seu casal e nenhuma duração poderá aniquilá-los ou destruí-los, pois a produção do segredo de seu casal é um dom de Deus Altíssimo, porque ele contém o segredo divino que é o segredo de seu Nome, o Generoso [al-Karîm]. Compreende, meu irmão, os fundamentos do ensinamento iniciático que te explicamos. Produz em teu pensamento


a forma da estátua de ouro, o templo do Sol, o minbar, a cúpula, a água que a cobre e solicita a Deus, o Generoso, o Doador, que te faça chegar à chave e levantar o véu diante de ti.

VIII. Em seguida, o Sábio [Apolônio] realiza, por meio da Estátua, um discurso firme e preciso dirigido ao objetivo dos iniciados, da parte de seu pai, o Sol, dizendo: Eu sou aquele pela luz de quem o Ar é iluminado. Eu sou aquele que aquece a Terra e dela faz saírem as maravilhas vegetais. Eu sou aquele que, por sua autoridade soberana, afasta a obscuridade das noites. Sou eu que faço se renovarem os dias do mundo. Sou eu que faço crescerem todas as flores. Sou eu que revisto de luz todas as coisas que possuem a luz. Todas as coisas belas, todas as coisas graciosas e brilhantes dependem da minha arte e da minha obra. Aquele a quem revisto de uma parte de minha veste recebe a completa beleza e brilho total, pois a minha cor é a mais bela, a melhor e a mais brilhante das cores...

Comentário - [...] XII. [...] Existe em tudo isso os sinais manifestos do poder preeterno vitorioso, para que saibas, ó homem, que está lá aquilo que engendra a vida. Aquele, portanto, cujo estado de luz aparece manifesta também a vida. Aquele que perde o estado de luz, sua própria essência afunda-se nas trevas, mesmo se ele estiver entre os vivos 10. De fato, a luz manifesta [zâhir] é o resplendor auroral que se levanta no horizonte, e a luz oculta [bâtin] é o conhecimento que guia em direção à proclamação da unidade [tawhîd] do Verdadeiro Deus, Instaurador, Criador. 10

Ou seja, mesmo que ele esteja entre aqueles que estão biologicamente vivos, ele está espiritualmente morto. A vida biológica é um derivado, um fenômeno momentâneo devido ao fato de que o corpo orgânico é um habitáculo de uma luz. Por meio dessa Luz, que é a essência da Vida e dhât, forma essencial, no homem, deve-se vencer a morte no verdadeiro sentido, a morte espiritual, o desaparecimento da luz. É a isso que tende a operação alquímica meditada nessas três fases, é esse o objeto principal do ensinamento do Livro das Sete Estátuas. A propósito do sentido da vida, que é a eclosão da luz no homem, veja esta passagem do romance iniciático ismailita, Le Sage et le Disciple: Sâlih então está morto? Não, de agora em diante, ele nunca morrerá... (Cf. H. CORBIN, L’Homme et son Ange, Paris, Fayard, 1983, PP. 159-160), que não é uma metáfora; a metáfora é a vida biológica.


Essa luz manifesta, causa da vida do homem, é um acidente [‘arad] que dele se separa no momento de sua morte física, mas dizemos que ela é um acidente somente porque consideramos que ela se retira do corpo 11. Quanto à luz oculta, gnóstica, esta nunca é suprimida nem se retira no momento da separação (da alma do corpo 12). Ela continua a irradiar, com a permissão divina, sobre a alma humana após a “morte”. Sua vida retorna à alma, cujos elementos restantes de sua essência interior espiritual [dhât batina rûhâniyya] se unem novamente. As partes em questão são as seguintes: - intelecto material humano; - espírito material humano; - espírito comum [al-rûh al-mushtarak]; - espírito sensível [al-rûh al-hassâs]; - espírito sem fumaça satânica mista [al-rûh al-mârijî al-khannâs al-mumâzaj 13]; - a Natureza Perfeita [al-tibâ al-tâmm]. O conjunto dessas partes constitui a individualidade interior humana. Quando sua vida retorna à alma após sua “morte” pela iluminação da luz da gnosis, em seguida pelo auxílio constante concedido pelo Deus Altíssimo em retribuição e recompensa de suas boas obras, o homem conhece após sua morte o que realizou ao longo de sua vida. Ele percebe que morreu e que retornou à vida, mas que, no entanto, o corpo que para ele era uma morada e um instrumento e com o qual ele fazia o que desejava ao longo de sua vida neste mundo está agora corrompido, morto. Ele se mantém então nessa luz permanente por essência14 nas delícias do Paraíso, ainda que esteja no mundo

11

Encontramos a mesma observação em Sohravardî: em si, a luz é, na verdade, uma substância permanente, ela não é chamada “acidente” somente com relação ao corpo no qual ela reside momentaneamente. 12 Portanto, é essa luz que constitui a individualidade espiritual que o ensinamento alquímico busca despertar e comunicar. Uma alma pode morrer, a imortalidade não é dada eo ipso: ela é uma conquista espiritual. 13 [...] O adjetivo khannâs, traduzido aqui por “satânico” significa “furtivo”, “pronto a se afastar” e qualifica Satã no Corão (CXIV, 4) e o hadîth. Podemos, portanto, supor que é a zona instável, frágil e facilmente instigada da composição que é considerada aqui. [...] 14 Outra leitura possível: “Ele se mantém nessa luz permanente, em sua própria essência”, bi-dhâti-hi, em sua individualidade espiritual interior.


intermediário [barzakh]. Assim, a luz aumenta diante daqueles que crêem segundo sua fé. E isso persistirá após a ressurreição. Mas aquele a quem Deus não concede luz não terá luz (Corão, XXIV, 40). Pois aqueles cuja personalidade anterior está em trevas são os cadáveres entre os vivos. Assim, ele estará a fortiori nas tumbas! De fato, eles sofrem um castigo que são as trevas do véu até o Dia da Grande Ressurreição15, e rogamos a Deus que nos guie, que nos auxilie. Que Ele nos assegure a salvação, o perdão e todo desvio de caminho. Compreende! Eis aquilo que nós quisemos explicar e provar, ou seja, que a luz, a claridade é o soberano manifesto na existência e que ela é o alimento constante que alegra a vida de tudo o que existe, com a permissão de Deus Altíssimo. Quanto a estas palavras [do Sol]: Sou eu que faço se renovarem os dias do mundo, eu digo como comentário: os dias são os fragmentos dispostos arbitrariamente 16 no quantitativo instável que chamamos “tempo”. Eles são objeto de conhecimento para cálculo e de reflexão para os pensamentos. Ele é conhecido pela evidência de que as noites sucedem aos dias e que as noites e os dias são mantidos pela repetição da noite e do dia e do alvorecer e do pôr do sol sobre as regiões terrestres. Como Deus Altíssimo criou [abda’a] os dois mundos, do alto e de baixo, revelou a cada céu sua função, colocou em movimento as esferas, fez aparecer a noite e o dia, fez se levantar e se pôr perpetuamente o sol pelo movimento e pela repetição, assim, desde o começo, conheces os dias do mundo, e o intelecto pode dar-lhe a demonstração. O ponto é que esses dias do mundo têm necessariamente um começo, pois o Criador é Ele mesmo a origem, e a criação apareceu a partir de Seu ato existenciador. É por isso que o começo é um instante determinado, um momento que é conhecido em Deus Altíssimo. E mesmo se as criaturas o ignoram, este momento é conhecido por Deus, exatamente medido e pesado. Do ponto de vista da Sabedoria [hikma], aprendemos certo número de coisas sobre essa questão:

15

Sobre as noções de “Grande “ e “Pequena Ressurreição”, confira nosso Corps Spirituel et Terre Céleste, op. cit. PP. 194 ss. (texto de Mollâ Sadrâ) e PP. 211 ss. (texto da Escola Shaykhie). 16 Ar.: quita’ mafrûda, ou seja, em geometria, os segmentos colocados por hipótese, a priori. Trata-se então de cortes, de fragmentações que são essencialmente obras do pensamento, representações mentais.


- Uma é o conhecimento da realidade dos “dias”, como são chamados. São os “dias” e as “noites” segundo a expressão comum; mas não segundo o conhecimento da realidade do tempo como tal [min haytho howa howa 17]. [...] Os dias e as noites são, de fato, divisões do pensamento, cujo total resulta do cálculo de sua repetição a partir de seus próprios começos. Compreende! - Uma segunda coisa que aprendemos é que cada coisa criada, que aparece ao ser, tem um início e que a cada início [mabda’] corresponde um instante determinado, um momento definido nessa quantidade inconstante que chamamos “tempo”, por metáfora, pois ele não é a Realidade [metafísica] do Tempo [haqîqat al zamân]. De fato, imaginar a Realidade do tempo é tão difícil que os intelectos mal podem concebê-la. A prova disso é a divergência que reina entre a comunidade dos Filósofos 18 quando é preciso compreender aquilo do qual se trata realmente: eles reconhecem que são incapazes disso. Eles concordam sobre o movimento da Esfera e o designam por uma expressão elevada, grandiosa, que expressa bem o que ela significa. Eles dizem que ele é “a quantidade inconstante” [al-kamiyya al-ghaur qârra]. Compreende! - Uma terceira coisa que aprendemos após termos compreendido a realidade dos inícios [sihhat al-mabâdi’] e de sua aparição imediatamente a partir do Ato Criador do Deus Instaurador [mobdi’] é que a cronologia desses inícios é ignorada pela ciência dos homens, ainda que a demonstração de seu aparecimento efetivo exista. Compreende! E a causa da ignorância dos homens em relação a esse assunto, apesar de sua existência [sobre a Terra] desde Adão até o presente momento, é o fato da geração e da decomposição, da morte que faz desaparecerem os homens, as nações e os acontecimentos, o que conduz à interrupção dos relatos registrados que nos informam das pessoas passadas e das gerações desaparecidas. Contudo, digo que, na interrupção das informações sobre os inícios, existe um indício evidente de que os acontecimentos ocorreram entre os humanos, tais como as guerras, as conquistas, as pilhagens, as 17

Sobre essas questões de “tempo absoluto” e de “tempo limitado” no pensamento islâmico, cf. H. CORBIN, Temps Cyclique et Gnose Ismaélienne, Paris, Berg International, 1982, pp. 39 ss. 18 Essa expreessão jomhûr al-hokamâ’ evoca o titula Turba Philosophorum dado a um texto alquímico latino, provavelmente traduzido a partir do árabe no século XII, que relata a reunião de uma espécie de “sínodo” dos alquimistas mais célebres, onde cada um transmite seu ensinamento ou seu ponto de vista sobre os princípios e as operações da Grande Obra.


destruições, as devastações que causam o desaparecimento de livros e relatos que haviam sido elaborados sobre as folhas de papel nos dias em que reinavam a justiça e a segurança em toda época e estação. Naquela época em que se produziram a violência, as devastações, a alteração de costumes pela destruição e pela opressão, que os papéis foram destruídos pelas devastações, que a duração das vidas humanas tornou-se curta demais para fixar os dados do passado e que nos preocupamos somente com o instante presente, produziu-se o esquecimento, a negligência atingiu toda organização por escrito, e não resta história alguma, independentemente do que tiver ocorrido. Foi por isso que o abandono atingiu toda fixação por escrito e a conservação de tudo o que não foi declarado por intermédio dos enviados [al-rusul] e dos profetas [alanbiyâ], sobretudo pelo fato da obstinação fanática [ta’assob] que envolve pessoas de diferentes religiões, [pelo fato] das divergências, das alterações, das mutações ocorridas por causa de acidentes que causaram um hiato na transmissão [tawatôr]. Por causa disso tudo, compreendemos que o início da criação nos seja ignorado, não obstante o acontecimento ter de fato ocorrido. [Assim,] o momento primordial da queda de Adão, precipitado sobre a terra, é ignorado. Existem divergências sobre esse ponto, e é impossível concluir com certeza por causa dessas divergências, dada a ruptura da transmissão, a não ser que, por Deus!, isso seja confirmado, no entanto, confirmado pelas palavras dos profetas. Encontramos somente afirmações que não dão certeza, pois essas coisas não foram fixadas por escrito. [...] XIV – Em seguida, o Sábio diz, por meio da Estátua de ouro, ela mesma relatando a fala do [seu pai] Sol: Sou eu que faço se renovarem os dias do mundo. Sou eu que faço crescerem todas as flores. Sou eu que revisto de luz todas as coisas que possuem a luz. [...] As coisas revestidas de luz existem entre os minerais extraídos de sua mina, brilhantes, luminosos, transparentes e sólidos, como o jacinto, o ouro, a prata, as pérolas e outras matérias semelhantes. Entre as plantas, as luzes são manifestas sobre as flores, nos jardins. E entre os animais, existem as belas e graciosas aparências, os olhos atentos, os olhares contemplativos e todas as cores possíveis. O Sol é, então, a causa da manifestação de todas essas coisas, desses revestimentos suntuosos, dessas belas cores, desses matizes límpidos. Assim, compreende!, pois que na própria origem


do ser da existência da criatura que emana do domínio divino [hadrat al-haqq] está uma luz que Deus faz se difundir. Em seguida, Ele criou a mais sutil das criaturas, a mais elevada em poder, aquela cujo nível de ser é o mais próximo do Criador, cuja condição é a mais sublime, cuja demonstração é a mais elevada: é a Inteligência Universal [al-‘aql al-kollî], que é a mais cara das criaturas a Deus. Pela Inteligência se produziu uma efusão de Luz divina pela qual foi preenchido seu momento e concluída sua existência. Em seguida, emanou da Inteligência uma Luz divina que é uma perpétua substanciação, de modo que Deus deu existência [awjada] ao mundo da Alma Universal, até que foi preenchido o mundo da Alma e concluída sua existência pela conjunção da Luz com o segredo do imperativo divino. Em seguida, a luz emanou e ampliou-se de modo que Deus criou o “Espírito que delimita”19, os eixos de orientação e que é o primeiro dos Corpos; é o mundo do glorioso Trono, até que foi concluído seu ser e que ele se pôs a realizar rotações e girar pelo movimento universal, pelo qual reconheces os dias do mundo. Em seguida, a luz emanou e se ampliou a partir do mundo do Trono, e Deus criou, então, o mundus imaginalis [‘âlam al-mithâl] e os corpos e as figuras que ele contém. Quando se concluiu sua existência, que a luz havia emanado e foi ampliada e aumentada, Deus criou o mundo das coisas singulares, os sete céus e os sete luminares. A luz emana ainda e se amplia: Deus criou o mundo de baixo, que começa pelo Elemento Fogo. Após vem o elemento Ar, depois a Água, depois a Terra, em seguida, as outras criaturas. Assim a origem do espírito da vida é, como demonstramos, a emanação da Luz divina.

POSLÚDIO

19

“Que delimita”, mohaddid, é um adjetivo geralmente associado com a nona esfera, onde, na maioria das vezes, está situado o Trono (‘arsh) divino que envolve toda a criação. A afirmação que se segue, que qualifica esse espírito (rûh) de primeiro dos corpos, designa somente uma entidade de uma matéria absolutamente sutil.


[...] O discurso da Estátua de Ouro, Filho do Sol, agora vai retornar ao mistério do

ouro no seio da Terra para rastreá-lo até no microcosmo humano. Sua conclusão provocará da parte de Jaldakî a intervenção do texto do célebre Diálogo da Rainha Cleópatra com os Filósofos seus Discípulos. É esse Diálogo que confere então todo seu sentido ao discurso pronunciado pela Estátua sacerdotal do Filho do Sol. [...] Citemos aqui algumas linhas para indicar sob qual perspectiva se encaminha o discurso do Filho do Sol: “Tendo pedido a palavra, Ostanes e seus companheiros dirigem-se a Cleópatra: Em ti se manteve oculta a totalidade do mistério terrível e extraordinário [...] 20. Diz-nos como as águas consagradas descem do alto para visitar os mortos caídos, acorrentados, oprimidos nas trevas e na obscuridade do Hades [...]. A alma e o espírito se regozijam de as trevas terem fugido para longo do corpo, e a alma chama o corpo que se tornou luminoso: desperta do fundo do Hades, ressuscita para fora da tumba, levanta e sai das trevas! Pois tu revestiste a espiritualização [pneumatôsis], a divinização [theiôsis], pois a senda da ressurreição veio a ti e a poção da vida se introduziu em ti [...] E os três uniram-se no amor — o corpo, a alma e o espírito — e tornaram-se um, e nisso está oculto um mistério. Por causa dessa reunião, o mistério está completo: o tempo foi marcado com o selo, e uma estátua se ergueu, plena de luz e de divindade [...].” Assim se encontram reunidos os três componentes do cerimonial da alquimia como arte hierática: tema da estátua, tema do templo, tema do sacerdote. Vislumbramos bem, portanto, como o diálogo de Cléopatra com seus discípulos forma o horizonte ao qual se elevam os temas do templo e da estátua do Filho do Sol, o primeiro dos sete templos e a primeira das sete estátuas do Livro das Estátuas Vivas, de Apolônio de Tyana, e como foi sensata a iniciativa de Jaldakî ao recorrer ao diálogo de Cleópatra para comentar o Livro de Apolônio. Do mesmo modo que aqui é necessária a reunião dos três para que a estátua se erga, do mesmo modo, Jaldakî insiste, como vimos, no fato de que a estátua se torna uma Estátua somente após o ouro ser transferido para fora de sua matriz original natural para adquirir natureza espiritual, humana, angélica, solar... Estátua in mundo imaginali. [...] 20

Presente no texto. (N.T.)


Ao fim de seu grande comentário ao Diálogo da Rainha Cleópatra com os Filósofos seus Discípulos, Jakdakî introduz então o Grande Livro da Lua, de Apolônio. Virão em seguida os pronunciamentos de cada estátua das cinco outras divindades planetárias, cada uma constituída do metal “filosófico” que lhe corresponde, e se manifestarão em seu Templo com um cerimonial análogo àquele ao qual nós assistimos acima no Templo do Sol. O pouco que dissemos aqui dará alguma ideia do trabalho imenso que resta a se realizar para inserir detalhes das profundezas da alquimia islâmica, herdeira de tudo o que a precedeu, como “ciência da Ressurreição”, que pode ser revelada somente aos iniciados. Até nossos dias, a Escola Shaykhie, no Islã iraniano, produziu importantes tratados de alquimia. Todas as pesquisas recentes acerca dos textos alquímicos latinos mostraram, certamente, que a alquimia é totalmente diferente de um capítulo da História das Ciências, precursora da química. Mas quantos textos latinos ainda estão em manuscritos, como quase todos os da alquimia islâmica, para não falar da alquimia taoista, da alquimia da cabala! A esperança de chegar a reconstituir a visão alquímica do mundo é uma esperança escatológica? Quando começamos o estudo de um tratado de alquimia, a leitura das primeiras páginas em geral flui muito bem. Bruscamente caímos no vácuo, pois nos falta a clavis hermeneutica. O segredo da arte hierática está perdido para sempre?



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