Homossexualidade masculina na construção do espaço público: duas espacialidades paulistanas.

HOMOSSEXUALIDADE MASCULINA NA CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO URBANO: DUAS ESPACIALIDADES PAULISTANAS MALE HOMOSSEXUALITY IN THE CONSTRUCTION OF THE URBAN SPACE: TWO SPATIALITIES IN SÃO PAULO LA HOMOSSEXUALIDAD MASCULINA EN LA CONSTRUCCIÓN DEL ESPACIO URBANO: DOS ESPACIALIDADES EN SÃO PAULO EIXO TEMÁTICO: PRODUÇÃO DO ESPAÇO, OCUPAÇÃO, GESTÃO E CIDADANIA

CARVALHO, Gabriel Moreira Bacharel em Arquitetura e Urbanismo gabriel.m_carvalho@hotmail.com

HOMOSSEXUALIDADE MASCULINA NA CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO URBANO: DUAS ESPACIALIDADES PAULISTANAS MALE HOMOSSEXUALITY IN THE CONSTRUCTION OF THE URBAN SPACE: TWO SPATIALITIES IN SÃO PAULO LA HOMOSSEXUALIDAD MASCULINA EN LA CONSTRUCCIÓN DEL ESPACIO URBANO: DOS ESPACIALIDADES EN SÃO PAULO EIXO TEMÁTICO: PRODUÇÃO DO ESPAÇO, OCUPAÇÃO, GESTÃO E CIDADANIA

RESUMO: O presente artigo é um estudo sobre o território gay de São Paulo, constituído por duas espacialidades na cidade em que se identifica a aglomeração voluntária da população LGBTQ+. Tratam-se das espacialidades República e Baixo Augusta, estudadas nesse artigo sob a óptica da homossexualidade masculina. Procura-se entender a conformação desse território investigando a participação dos estabelecimentos de lazer segmentado e a ação do mercado imobiliário no processo de apropriação e significação de espaços da cidade pelos homossexuais masculinos. Dessa forma a pesquisa identifica as redes de sociabilidade homossexual presentes no território, discute os fatores que motivam sua existência, e analisa, criticamente, o processo de gentrificação atualmente em curso na região.

PALAVRAS-CHAVE: Homossexualidade; gentrificação; urbanidade; apropriações; Baixo Augusta; República.

ABSTRACT: The present article is a study about the gay territory in São Paulo composed of two spatialities in the city where a voluntary aglomeration (or CLUSTER) of the LGBTQ+ population can be identified. It is the neighborhoods of República and Baixo Augusta studied in this article through the lens of male homosexuality. It seeks to understand the conformation of the territory investigating the participation of the segmented leisure establishments and the actions of the real estate market in the process of appropriation and significance of the urban space for male homosexuals. This way the research identifies the homosexual sociability networks present in the territory, discusses the reasons that support its existence and analyzes critically the gentrification process currently under way in the region.

KEYWORDS: Homosexuality; gentrification; urbanity; appropriations; Baixo Augusta; República.

RESUMEN: El presente artículo es un estudio realizado sobre el territorio gay de San Paulo, constituido por dos espacialidades en la ciudad en la que se identifica la aglomeración voluntaria de la población LGBTQ+. Se Trata de las espacialidades República y Baixo Augusta, estudiadas en este artículo bajo la óptica de la homosexualidad masculina. Se procura entender cómo está conformado este territorio investigando la participación de los establecimientos de ocio segmentado y la actuación del mercado inmobiliario en el proceso de apropiación y significación de espacios de la ciudad por los homosexuales masculinos. De esta forma la investigación identifica las redes de sociabilidad homosexual presentes en el territorio, discute los factores que motivam su existencia, y analiza, criticamente el proceso de gentrificación actualmente en curso en dicha región.

PALABRAS-CLAVE: Homosexualidad; gentrificación; urbanidad; apropiaciones; Baixo Augusta; República.

INTRODUÇÃO Esse artigo resume algumas ideias elaboradas em um trabalho final de graduação em arquitetura e urbanismo. Trata-se de uma pesquisa de caráter qualitativo e indutivo que investiga a produção do espaço urbano de duas espacialidades localizadas na região central de São Paulo, a região da República e a região do Baixo Augusta, analisadas sob a óptica da homossexualidade masculina.

Essas duas espacialidades estudadas abrangem trechos das subprefeituras da Consolação e da Sé, e são caracterizadas pela apropriação da comunidade LGBTQ+1. Tratam-se de espaços urbanos marcados pela presença significativa de gays, lésbicas, travestis, transgêneros, transexuais, bissexuais e pessoas que possuem outras identidades de gênero e orientações sexuais diferentes do padrão heteronormativo. Essas pessoas habitam ou residem na região, considerada segundo Puccinelli (2017), o território gay da cidade.

Essas áreas são tratadas nesse artigo como espacialidades distintas porque as próprias pessoas que ali circulam distinguem espacialmente esses lugares, denominando-os popularmente de República e Baixo Augusta (PUCCINELLI, 2017).

Entretanto, é importante esclarecer que a pesquisa entende o território como uma área de barreiras porosas e com limites frágeis, ou seja, as áreas estudadas são delimitadas apenas para efeitos metodológicos: “O nômade, o espaço nômade, é localizado, não delimitado” (DELEUZE; GUATTARI apud PERLONGHER, 2005 p.

274).

Ainda, três outras ponderações devem ser feitas. A primeira se refere ao porquê de trabalhar a homossexualidade masculina em detrimento de trabalhar a sigla LGBTQ+ como um todo. Trata-se de uma estratégia metodológica para especificar o público-alvo da pesquisa e, assim, aprofundar as reflexões a seu respeito. As pessoas pertencentes às outras categorias que compõem a comunidade LGBTQ+ estão presentes nas dinâmicas da área de estudo, entretanto não podem ser analisadas mediante uma única abordagem.

Em segundo lugar é necessário esclarecer que o termo gay frequentemente utilizado na pesquisa é empregado como um termo aproximativo para pensar a homossexualidade, ou seja, é uma terminologia que tem a função de manejar identidades ou ideias de homossexualidade masculina (PUCCINELLI, 2017).

Por último se faz necessário esclarecer que a pesquisa faz uma leitura das redes de sociabilidade homossexual existentes no território recorrendo principalmente a estudos de antropologia urbana e percepções pessoais obtidas in loco. Observou-se os lugares e o comportamento das pessoas, e realizaram-se entrevistas informais com os atores sociais que integram o território.

1

A sigla LGBTQ+ designa lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros, transexuais, queers e outros. Diferentemente da sigla LGBT utilizada pelas entidades governamentais brasileiras como conselhos e secretarias, a sigla LGBTQ+ inclui o termo queer, movimento que abrange pessoas de orientações sexuais e identidades de gênero que fogem ao padrão heteronormativo (VIANA, 2018).

Estruturado em três partes faz-se primeiramente uma análise descritiva sobre os lugares homossexuais que definem a República. Em seguida estuda-se a formação do Baixo Augusta investigando a contribuição do mercado de lazer segmentado na definição da identidade gay da região.

Por último são feitas algumas reflexões a respeito das ações do mercado imobiliário no território, buscando entender de que maneira ele reforça a identidade gay da área de estudo e ao mesmo tempo a gentrifica.

Parte-se da premissa que os empreendimentos imobiliários ocasionam não apenas a valorização do solo e consequente expulsão dos homossexuais com baixo poder aquisitivo, mas também alteram as ideias de homossexualidade vinculadas ao espaço, reforçando as diferenças socioeconômicas entre o Baixo Augusta e a República.

NO CRUZAMENTO DA IPIRANGA COM A AVENIDA SÃO JOÃO: A REPÚBLICA Territórios nas cidades, são assim, elaborados pelos próprios moradores nas ruas, nos bairros e nas cidades, configurando cartografias subjetivas (BLASS Org.; PAIS Org., 2004, p.

220).

Por meio dos relatos contidos nas obras de José Fábio Barbosa da Silva (1958) e Néstor Perlongher (1987), antropólogos pioneiros nos estudos sobre homossexualidade no espaço urbano, identificase o cruzamento da avenida Ipiranga com a rua São João como o principal ponto de referência homossexual entre os anos 1950 e 1990, e constata-se que a partir da confluência dessas duas avenidas existiram diversos pontos de encontro e diversão homossexual.

A região principal que tem sobrevivido, por muito tempo, como ponto de encontro de grande parte do grupo homossexual de São Paulo, pode ser caracterizada por um grande T, formado pela confluência das Avenidas São João e Ipiranga, tendo como pontos cardeais os cinemas Oásis, ArtPalácio e início da Rua São Luiz (SILVA in GREEN Org.; TRINDADE Org., 2005, p. 73).

A Galeria Metrópole por sua vez foi considerada em 1967 “o ponto quente da vida gay paulistana” (PERLONGHER, 1987, p. 80), constituindo-se importante ponto de encontro e resistência homossexual durante a década de 1960.

Embora sua inauguração tenha se dado no mesmo ano do golpe da ditadura militar, os seus efeitos não foram sentidos de imediato entre as pessoas, sendo o ano de 1967 o auge da Galeria Metrópole (PERLONGHER, 1987, p.80).

O ponto quente da vida gay paulistana era a Galeria Metrópole. Cheia de bares, boates, inferninhos, fliperamas, galerias, livrarias, escadas rolantes, etc., a Galeria misturava não só o mundo gay, mas também intelectuais, artistas, poetas, encucados, suicidas, prostitutas, gigolôs, cafetinas, músicos, e mais a bossa nova, o jazz, o rock, a tropicália, a psicodélica, o álcool, as drogas e é claro, a polícia. (PERLONGHER, 1987, p.80).

Hoje os principais pontos de referência homossexual na República são a sua praça homônima, o Largo do Arouche, a avenida Vieira de Carvalho e os estabelecimentos comerciais e de lazer situados nas suas proximidades.

Afim de analisar as redes de sociabilidade homossexual existentes atualmente no território, o artigo recorre às noções de pedaço e mancha urbana, conceitos originalmente elaborados por José Guilherme Cantor Magnani (2003) para o estudo dos laços de sociabilidade presentes nos bairros da periferia de São Paulo, e mais tarde adaptados para o contexto da metrópole.

Nas obras “Da periferia ao centro: trajetórias de pesquisa em antropologia urbana” (2012) e também em “Na metrópole: Textos de antropologia urbana” (2008), pedaço é descrito como um ponto de referência para a distinção de um determinado grupo de frequentadores como pertencentes a uma rede de relações.

Enquanto na periferia o importante era ser conhecido por meio de laços de vizinhança, parentesco e coleguismo, na metrópole as relações sociais são mais impessoais. Logo, “pertencer a um pedaço no centro significava reconhecer-se como membro de uma teia de relações mais vasta e ser reconhecido por meio da exibição de símbolos compartilhados”. (MAGNANI, 2008, p.305).

Mancha urbana por sua vez é definida como a aglomeração de diferentes pedaços contíguos e que se torna ponto de referência para um número mais diversificado de frequentadores. ” (MAGNANI, 2008).

O que diferencia o pedaço da mancha é que essa apresenta uma implantação mais estável tanto na paisagem como no imaginário. As atividades que oferece e as práticas que propicia são o resultado de uma multiplicidade de relações entre seus equipamentos, edificações e vias de acesso, transformando-a em um ponto de referência físico, visível e público para um número mais amplo de usuários (MAGNANI, 2008).

Já o pedaço, ao contrário, é restrito a um número menor de pessoas que possuem símbolos e códigos comuns, e como o que determina o pedaço são as relações sociais entre seus membros, eles podem facilmente mudar de localização na cidade (MAGNANI, 2008).

Dessa forma, a República pode ser lida como a mancha urbana de encontro homossexual mais antiga da história de São Paulo, onde coexiste uma grande diversidade de pessoas, de orientações sexuais variadas, e estabelecimentos ligados ao mundo homoerótico como saunas e cinemas pornôs.

Ao longo da avenida Vieira de Carvalho identificamos pedaços frequentados por públicos muito distintos, sendo que alguns deles inclusive possuem apelidos caricatos segundo o presidente do Coletivo Arouchianos, Helcio Beauclair2. Esses apelidos sinalizam as diferentes apropriações da comunidade LGBTQ+ de um mesmo território, e permitem o mapeamento da apropriação de diferentes perfis de homossexuais.

O Café Vermont, apelidado como “lagoa” é um bar frequentado por lésbicas, do outro lado da rua a lanchonete Nova Vieira, o Soda Pop Bar, o Caneca de Prata e o 63 Bar, constituem o pedaço apelidado de “geriatria”, em que gays mais velhos se reúnem, e um pouco mais adiante identifica-se um conjunto de bares apelidado por “favela”, nomenclatura pejorativa que o associa a um público de classe social mais baixa ali presente.

2

Os apelidos dados aos pedaços da República foram obtidos por meio de entrevista com Helcio Beauclair realizada em novembro de 2017.

Já na rotatória do Largo do Arouche cinco bares são frequentados por gays de classe média, muitos bancários e operadores de telemarketing, e receberam o apelido de “bar dos bancários”. O Largo do Arouche por sua vez recebeu o apelido de “berçário”, por ser frequentado pelo público LGBTQ+ com uma média etária de 18 a 30 anos, negros e pobres da periferia de São Paulo. É interessante observar também que esses lugares da República se transformam em momentos muito específicos da semana. Os bares ao longo da avenida Vieira de Carvalho ganham vida às sextas-feiras e sábados à noite. Já o Arouche se transforma aos domingos à noite entre às 19:00 e 22:00 quando, segundo Helcio Beuclair, aproximadamente 2000 jovens se reúnem.

Esse fato é um dos exemplos mais ilustrativos da força dos pedaços LGBTQ+, que também pode ser explicada por meio da meta de propinquidade, definida por José Fábio Barbosa da Silva (2001) como uma vontade de viver ao lado de seus semelhantes.

O Largo do Arouche ao longo da semana é um lugar de passagem, onde pessoas marginalizadas como mendigos e travestis circulam e coexistem com muitos outros atores sociais. Entretanto em um dia específico da semana, em um intervalo de três horas, jovens da periferia atravessam a cidade para se encontrarem.

Certamente existe entre essas pessoas um desejo muito forte de estar entre seus iguais, de compartilhar de símbolos e códigos em comum, de poderem ser quem eles realmente são, livres da censura e do preconceito.

Caminhando da Paulista em direção a Roosevelt: o Baixo Augusta Nos finais dos anos 1970 acontece a expansão das boates para além do centro novo de São Paulo, trata-se da expansão do circuito da paquera gay aos jardins, como a inauguração da boate Saloon, uma das primeiras a sair do centro novo (PERLONGHER, 1987).

Mas as opções de lazer direcionadas ou frequentadas por homossexuais nos Jardins duraram pouco, gradualmente elas foram se deslocando para as ruas que partem da Avenida Paulista em direção ao baixo augusta, devido às pressões do mercado imobiliário e das associações de bairros contrárias a esses espaços.

Entretanto, deve-se ponderar que, como afirma Puccinelli, “não se trata de uma ida das mesmas casas ou empresários para essas regiões, mas de uma mudança em termos de estilos, opções e lideranças de mercado” (PUCCINELLI, 2017, p.40).

Nasce então uma nova espacialidade gay, a Augusta, mas também conhecida popularmente como Baixo Augusta. Trata-se de um espaço territorial que tem como polaridades lineares a rua Augusta e a rua Frei Caneca, e que conecta dois pontos de referência na região central, a avenida Paulista e a Praça Franklin Roosevelt.

Reconhecida por muito tempo como um lugar perigoso e sujo, ponto de prostituição e vícios, os significados associados à região da Augusta foram se transformando com a ação do mercado de lazer segmentado, fazendo com que a região passasse a ser considerada um “agregador polissêmico” (PUCCINELLI, 2017, p.58) que vincula, principalmente, noções de diversidade e tolerância.

Nesse momento as construtoras identificam o valor agregado à Augusta e inicia-se um processo de especulação imobiliária que expulsa parte dos empreendimentos de lazer. O mercado imobiliário passa a

produzir alterações irreversíveis na quantidade de casas noturnas e bares da região “já que opera principalmente por demolições em regiões já bastante ocupadas, como a rua Augusta”. (PUCCINELLI, 2017, p. 44) O empreendimento pioneiro desse processo de ressignificação do espaço urbano foi o Vegas Club, casa noturna direcionada a homossexuais fundada em 2005 pelo empresário Facundo Guerra3. A partir de sua inauguração, bares, casas noturnas, salões de beleza, supermercados e outros empreendimentos abriram suas portas, e iniciou-se uma coexistência e diversificação de públicos no território, como afirma o jornalista e DJ Lúcio Ribeiro: “Fez prostitutas e cafetões dividirem espaço com a galera da noite (...) Fez nascer a fama do Baixo Augusta, provocou abertura de clubes, outros bares, botou a região no mapa das artes de São Paulo”. (RIBEIRO apud PUCCINELLI, 2017, p.50).

Ao longo da rua Augusta alguns cruzamentos ajudam a localizar pedaços de sociabilidade gay frequentados por públicos distintos. No cruzamento da rua Augusta com a rua Antônio Carlos, o Restaurante Athenas e o Urbe Café constituem populares pontos de encontro de homossexuais com um poder aquisitivo elevado, são lugares também frequentados por muitos casais gays.

Já um pouco mais adiante a rua Dona Antônia de Queirós e a rua Marquês de Paranaguá cruzam a rua Augusta e delimitam o pedaço das casas noturnas frequentadas por gays mais jovens, são elas o Espaço Desmanche, a Blitz Haus, o Beco 203, a Lab Club e a casa noturna 1007.

Existem ainda muitos outros pedaços gays ao longo da rua Augusta, como o bar do Netão frequentado por homossexuais mais velhos em um ambiente informal, ou a casa noturna Le Rêve Club destinada para quem procura um ambiente mais sofisticado. É importante ressaltar que muitos lugares de lazer que antes eram considerados exclusivamente gays passaram a ser frequentados por um público mais diverso, na própria rua Augusta alguns empreendimentos comerciais destinados especificamente ao público LGBTQ+ como a casa noturna The Society (2011-2013), o Vegas Club, o clube de sexo Playground Club (2013-2015) e a sauna 269 (2007-2011), deixaram de existir.

(PUCCINELLI, 2017). Assiste-se hoje na Augusta uma mistura de público, os empreendimentos de lazer promovem festas gays, mas são frequentados também por heterossexuais. Já outros estabelecimentos passaram a acolher o público LGBTQ+ denominando-se de gay friendly4. Muitos penduram bandeiras do arcoíris como símbolo dessa hospitalidade.

Todavia, enquanto ao longo de toda a rua Augusta é notável a existência de bares e casas noturnas, na rua Frei Caneca esses estabelecimentos se concentram no cruzamento com a rua Peixoto Gomide.

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Facundo Guerra é descrito por diversos meios de comunicação como o “rei da noite” pelo fato de ser dono de diversos estabelecimentos de lazer frequentados por homossexuais e abertos durante a existência do pioneiro Vegas Club. São eles o Z Carniceira (bar – Augusta, posteriormente mudou para a Faria Lima), Yatch Club (casa noturna – Bela Vista), Volt (bar – Augusta), Club Lions (casa Noturna – Sé), Cine Joia (casa de shows/casa noturna – Liberdade), Bar Riviera (bar – Consolação), PanAm (casa noturna – Bela Vista) e Cine Drive-In (sala de cinema no Cine Belas Artes – Consolação) (PUCCINELLI, 2017).

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A nomenclatura gay friendly foi criada para aproximar os estabelecimentos comerciais do público LGBTQ+, afinal se auto intitulam como lugares em que esse público é bem-vindo, e mesmo constituindo uma estratégia mercadológica, ela representa a aceitação pública da homossexualidade.

Pode-se inclusive dizer que esse cruzamento constitui o pedaço da rua Frei Caneca que mais integra o mundo da noite tão característico da rua Augusta. Lá observa-se uma aglomeração intensa de gays predominantemente homens em frente aos estabelecimentos comerciais, a rua é tomada por essas pessoas que bebem, conversam e trocam demonstrações de afeto na via pública, praticamente impossibilitando o trânsito de veículos. É interessante notar que o perfil dos gays que frequentam esse cruzamento é muito variado, percebe-se uma mistura de gays mais femininos, outros mais masculinos, pessoas de classes sociais também variadas, mas se trata de um público jovem, que aparentam ter entre 18 e 35 anos.

A partir desse pedaço a ambiência da rua Frei Caneca muda, mais adiante verifica-se a concentração de estabelecimentos comerciais mais refinados, não tão mais voltados para o mundo da noite, trata-se de um comércio de restaurantes e lojas que procuram atender aos moradores da rua.

Conforme o mapeamento feito por Puccinelli (2017) em seu doutorado, nota-se que os empreendimentos residenciais lançados entre 2011 e 2016 na rua Frei Caneca se localizam justamente abaixo do cruzamento acima citado.

Existe nas proximidades do shopping Frei Caneca uma ambiência de bairro devido à predominância do uso residencial nesse trecho da rua. É possível dizer que ali existe um espírito de vizinhança, ritmado pelo fluxo das pessoas que descem a sobem a rua. É interessante assistir a uma espécie de peregrinação dos moradores principalmente da rua Paim que caminham até o shopping Frei Caneca, muitos deles têm o hábito de fazer compras no supermercado que fica dentro desse estabelecimento comercial. Os moradores desse pedaço de vizinhança gay são em grande parte homossexuais brancos de classe média alta, um perfil de homossexual que se distingue dos frequentadores da República. Um dos fatores que podem contribuir parcialmente para essa distinção de público é o processo de gaytrificação explicado adiante.

Os pedaços caracterizam tão fortemente os lugares que a rua Augusta, paralela à rua Frei Caneca, possui uma ambiência muito diferente principalmente nas noites de quinta a domingo. Os homossexuais que integram sua vida noturna não são moradores necessariamente do Baixo Augusta e possuem um perfil mais heterogêneo.

. Figura 1: mapa síntese do território gay. Observa-se os empreendimentos comerciais e de lazer frequentados por homossexuais (GUIA GAY SÃO PAULO, 2017), os empreendimentos imobiliários lançados entre 2011 e 2016 (PUCCINELLI, 2017), e os pedaços apropriados por homossexuais.

Fonte: Gabriel Moreira Carvalho, 2017

O MERCADO E A GAYTRIFICAÇÃO O enobrecimento não é apenas uma política de exclusão, mas uma faceta delicada das dinâmicas urbanas, uma vez que quanto mais afirma o valor e o papel da cidade, lembra que o ar da cidade liberta apenas aqueles que sabem e podem viver nela. (RUBINO, 2009 apud PUCCINELLI, 2017, p. 19)

Verifica-se uma retomada dos investimentos do mercado imobiliário no centro, e parcerias público privadas que objetivam revitalizar a área central. Mas quais seriam as reais consequências desse enobrecimento para a população LGBTQ+?

Figura 2: Gráfico sobre o número de unidades residenciais lançadas em 1999, 2005 e entre 2010 e 2015.

Fonte: PUCCINELLI, p. 96, 2017

Em São Paulo o termo revitalização segundo Puccinelli (2017) é utilizado para naturalizar o discurso de agentes públicos e privados que tentam intervir em certos territórios. Logo, é importante chamar a atenção para o significado negativo desse termo: “A ideia de “revitalizar”, contudo, supõe um lugar “sem vida” ou cujas vidas não importam” (PUCCINELLI, 2017, p.42). Por de trás do discurso de revitalização pode-se aventar a hipótese de uma gentrificação5.

Smith observa que gentrificação é frequentemente sinônimo de regeneração urbana, ou revitalização, e encarada pelas municipalidades em acordo com o setor privado como uma estratégia urbana que tem como discurso a transformação dos centros das cidades em lugares mais agradáveis para serem frequentados (SMITH apud QUEIROZ, 2008).

O incremento imobiliário na região central de São Paulo, vem transformando a paisagem urbana e as dinâmicas sociais das espacialidades estudadas. Inicialmente sentido com mais intensidade no Baixo Augusta ele vem se deslocando em direção à República (PUCCINELLI, 2017).

Um dos impactos iniciais percebidos principalmente na rua Augusta é a expulsão dos empreendimentos comerciais que não conseguem competir com a força do mercado imobiliário. Segundo Puccinelli dois grandes empresários da noite, Guerra e Yousseff, donos dos respectivos Vegas Club e Studio SP “localizaram no mercado imobiliário os motivos de suas respectivas saídas, argumentando que seus endereços seriam derrubados para a construção de novos edifícios” (PUCCINELLI, 2017, p. 53).

A rua Paim é um bom exemplo da transformação que os empreendimentos imobiliários vêm promovendo no espaço urbano. Percebida pelos moradores da região como uma continuidade da rua Frei Caneca, era 5

A definição adotada de gentrificação é a retomada de espaços físicos degradados dos centros das cidades por classes média-alta para uso normalmente residencial, fazendo com que as classes populares que ali moram se desloquem para outros lugares. Um fenômeno de deslocamento/expulsão de um grupo pré-existente por outro economicamente distinto, redefinindo o espaço social da área (QUEIROZ, 2008).

considerada ponto de drogas e de prostituição, entretanto entre 2011 e 2016 recebeu seis empreendimentos de alto padrão.

Figura 3: Possível casal homossexual na rua Paim (Baixo Augusta) Fonte: autoria própria, 2017

Figura 4: Possível casal homossexual na rua do Arouche (República) Fonte: autoria própria, 2017

Apesar da falta de números concretos que comprovem a fixação de residência homossexual na área, ainda assim é possível afirmar, a partir de observações empíricas, que existe uma aglomeração significativa de homossexuais que residem na região do Baixo Augusta, e também se constata que o perfil dos gays que circulam, frequentam ou moram no Baixo Augusta é muito diferente dos gays presentes na República. Podese explicar essa diferença de público por meio da noção de gaytrificação.

Gaytrificação é um neologismo que surgiu de uma conversa informal com Bruno Puccinelli sobre o poder da gentrificação de segregar os homossexuais na cidade, devido à diferenciação de poder econômico. Mas além disso, a gaytrificação teria o poder de deslocar as ideias presentes no imaginário popular sobre o tipo de gay que habita determinado território.

Trata-se da promoção pelo mercado imobiliário da crença de que o gay que habita a região do Baixo Augusta possui o seguinte perfil: “pessoas solteiras, de formação superior, profissionais liberais, com refinamento no consumo de bens duráveis e nos espaços de lazer” (PUCCINELLI, 2017, p. 99), associando ao lugar a ideia de um tipo de gay ideal, um gay que segue os padrões heteronormativos que regem a sociedade.

Uma das formas de se verificar o desejo do mercado imobiliário de atrair um público gay com um perfil específico é por meio dos anúncios publicitários coletados por Puccinelli em seu doutorado. Esses anúncios também evidenciam que os investimentos imobiliários não se restringem à região do Baixo Augusta, eles têm atuado mais recentemente na área da República. Nessa tentativa de elitizar a área percebe-se a contradição

entre os compradores homossexuais almejados e a realidade sobre os gays que de fato se apropriaram dessa mancha urbana: Há uma predominância das ilustrações em apresentar um homem jovem, magro, branco e bem-sucedido, que conhece novas tecnologias, as utiliza e se preocupa com seu impacto no ambiente da cidade e no meio ambiente de forma geral. Isso não poderia ser mais distante do que observamos em parte da dinâmica massiva de frequência e circulação no Arouche: rapazes jovens, efeminados, negros e moradores das periferias em sua maioria. Cabe a esses materiais, portanto, conjugar um comprador que está na região sem que este seja identificado com a presença homossexual frequente e mais visível no largo. É no interstício deste jogo de valorização do espaço a partir de uma masculinização específica, antenada, moderna e cosmopolita que se criam movimentos de presença gay distintos (...)

(PUCCINELLI, 2017, p.134-135).

Figura 5: Peça publicitária de um lançamento imobiliário no distrito da República Fonte: PUCCINELLI, p. 96, 2017

Esses anúncios publicitários frabicam imagens e ideias não correspondentes à realidade do lugar, e podem ser lidos como uma tentativa de desestigmatização do território. Segundo Smith a desetigmatização (apud QUEIROZ, 2008) faz parte do processo de gentrificação que ao livrar os lugares de algum tipo de estigma, promove a valorização do solo.

Hiernaux-Nicolas (apud QUEIROZ, 2008) também identifica esse processo como uma das consequências da gentrificação, está associada a ele ideias higienistas que tentam mudar a imagem das áreas centrais da cidade.

Sarah Schulman (2008) em seu livro “The gentrification of the mind: witness to a lost imagination” tem um pensamento semelhante ao de Smith e Hiernaux-Nicolas, ela adverte que a gentrificação homogeneíza a complexidade, a diferença, e a substitui pela semelhança.

Historicamente as cidades oferecem a possibilidade de criação de novas ideias, contribuindo assim para a liberdade dos indivíduos (SCHULMAN, 2008). A gentrificação por sua vez aniquilaria a energia vibrante que a diversidade produz nas cidades, removendo a mistura dinâmica que define a urbanidade.

Para Schuman “Existe a gentrificação que acontece em edifícios e bairros, e existe a gentrificação que acontece com ideias”6 (SCHUMAN, 2013, p.29). Nesse sentido, a gaytrificação da República e do Baixo Augusta começa a se apresentar como uma hipótese palpável.

CONSIDERAÇÕES FINAIS À medida que a pesquisa se aproximou das especificidades dos lugares por meio das noções de pedaço e mancha urbana, pôde-se enxergar as diferentes escalas que o território comporta, ora tendo uma visão sistêmica e mais abrangente, ora possibilitando ao leitor um olhar “de perto e de dentro”7. Ou seja, as regiões da República e do Baixo Augusta deixam de ser percebidas como territórios neutros, muito pelo contrário, passam a ser lugares caracterizados pela cultura gay, vivenciada nas relações sociais do cotidiano.

Assim, foi possível identificar as redes de sociabilidade homossexual presentes nas espacialidades estudadas e a percebê-las como processos humanos, construídos a partir das relações sociais.

Fica claro também que por de trás da complexa infraestrutura mercadológica direcionada ao público gay, diferentes significados em torno da homossexualidade são associados ao espaço urbano e estão em constante mutação.

O comércio de lazer transformou os significados em torno do Baixo Augusta, promoveu a positivação etimológica (PUCCINELLI, 2017) da região, e ao mesmo tempo criou uma nova mancha LGBTQ+ em São Paulo.

Logo, a região passou a ser conhecida como um dos principais destinos de lazer noturno na cidade, atraindo um público com orientações sexuais variadas que coexistem no mesmo espaço urbano.

6

Tradução livre do trecho: “There is a gentrification that happens to buildings and neighborhoods and there is a gentrification that happens to ideas” (SCHULMAN, 2013, p. 29).

7

De perto e de dentro é o nome do VII capítulo do livro “da Periferia ao centro: trajetórias de pesquisa em Antropologia urbana” (MAGNANI, 2012).

O mercado imobiliário por sua vez passou a investir no Baixo Augusta, transformando a rua Frei Caneca e a rua Paim, anteriormente conhecidas como pontos de droga e prostituição, em lugares descolados para se morar.

A rua Augusta também tem sido alvo dos empreendimentos residenciais e comerciais que vêm expulsando os equipamentos de lazer. Verifica-se ainda que esses empreendimentos se deslocam em direção à República.

Discutiu-se, por fim, os efeitos da gentrificação no território estudado, partindo do princípio que as ações do mercado imobiliário valorizam o solo e elitizam os seus habitantes. Logo, naturalmente a comunidade LGBTQ+ acaba também por ser segregada. Muitos gays com alto poder aquisitivo fixam residência ou apenas frequentam o Baixo Augusta, enquanto os gays com menor poder aquisitivo, em sua maioria moradores das periferias (BEAUCLAIR, 2017), se apropriam da República.

O Baixo Augusta transformou-se no point gay paulistano, e o mercado imobiliário o associa a uma homossexualidade específica, ajustada aos padrões socialmente aceitos, que ignora todas as outras formas de expressão homossexual. Na presente pesquisa, esse processo foi denominado gaytrificação.

Conclui-se dessa forma que as ideias sobre a homossexualidade vinculada às espacialidades estudadas vêm sendo orquestradas de acordo com os interesses de mercado que silenciosamente homogeneíza a diversidade.

REFERÊNCIAS: BLASS, Leila Maria da Silva, Org.; PAIS, José Machado Org. Tribos Urbanas: Produção artística e identidades. São Paulo: Annablume, 2004.

MAGNANI, José Guilherme C. Da periferia ao centro: trajetórias de pesquisa em antropologia urbana. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2012.

MAGNANI, José Guilherme C. Festa no pedaço: Cultura popular e lazer na cidade. São Paulo: Editora Unesp, 2003.

MAGNANI, José Guilherme C.; TORRES, Lilian de Lucca (Org.). Na metrópole: Textos de antropologia urbana. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Fapesp, 2008.

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