Mordaz #004

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EDIÇÃO #04 JULHO 2020 0€

A PRIMEIRA REVISTA CRIADA EM QUARENTENA A primeira revista de maio a sair em julho

danjazzia / ENVATO


# FAKEPUB


04#Julho 2020

EDITORIAL

CONSTITUIÇÃO MORDAZ

PAGAR E PENSAR

1 – A Mordaz, como revista totalmente independente, tem por princípio fundamental a liberdade de expressão dos seus convidados, não se imiscuindo nos conteúdos dos mesmos desde que estes respeitem a natural civilidade e regras da universal educação; 2 – A Mordaz não tem ideologia social, política ou de qualquer outro género senão a de defender intransigentemente o direito inalienável à abrangência, panorâmica e diversidade de estilos, princípios e opiniões. Tudo para todos; 3 – Como revista absolutamente gratuita (para autores e leitores), a única publicidade que a Mordaz aceita difundir é a sua própria criação inventiva naquilo a que chamamos Fake Pub, a página reservada aos nossos próprios delírios publicitários.

“Não nos pagam para pensar e, às vezes, nem pensam em

NESTA EDIÇÃO Francisco Segurado Silva, Pedro Baptista-Bastos, José

nos pagar, que é pior”. São muitos os ditames e achaques en-

Pimentel Teixeira, Afonso de Melo, João Rebocho Pais, José Correia Guedes, Artur Guilherme Carvalho, Elsa Bettencourt, Gonçalo Pina, Rita Barbita, Valéria de Araújo, Sara Sampaio Simões, Philmore Stevens, Martinho Pereira, Olga Delgado Ortega, Pedro Sobreiro, Carlos Pinillos e Marco Neves Ferreira.

tre colegas de trabalho, dirão antes de ler o que vem a seguir.

ARTWORK E PAGINAÇÃO Francisco Segurado Silva e Marco Neves Ferreira

em que é o “monstro” a mandar; no mundo do trabalho, os

É que duvido muito que alguém trabalhe por gosto por conta de outrem, ou até na sua empresa para além do momento

EDIÇÃO/REVISÃO Ricardo Silveirinha

contratos são a responsabilidade e as contas a tarefa a resol-

ILUSTRAÇÃO danjazzia/envato

ver.

IMAGENS Freepik, Macrovector, Pixabay.com, Pngtree, Envato.

E faz-se porque tem de ser, digam lá se não vislumbraram outro mundo nos dias da Graça Freitas e da Marta Temido?

ÍNDICE

São, sobretudo, motivos de fora que nos levam lá para dentro, casa, carro e putos bem-educados e vestidos, férias, se-

4/5 Confinamento em Larga Escala, Pedro Baptista-Bastos

gunda casa, segundo carro, melhor educação para os filhos

6/7 (Como) O Amor, José Pimentel Teixeira

e marcas de roupa de luxo, melhores férias, mais longe, ter-

8/9 A Profunda Magia do Esquecimento, Afonso de Melo

educação dos netos…

ceiro carro na terceira idade, terceira casa, casa dos filhos e

10/11 O Trabalho, João Rebocho Pais

Manter, sofrer, ter mais. Deixar para alguém as marcas que

12/13 Voar, José Correia Guedes

alcançámos sob a forma de património, de conforto, deixar o não ter que trabalhar tanto porque alguém já conseguiu os

14/15 O Trabalho, Artur Guilherme Carvalho

mínimos de sobrevivência para as gerações seguintes. Acres-

16 Minha Querida Amiga..., Elsa Bettencourt

centemos mais um verbo à dupla “pagar” e pensar”: “amea-

17 Rola o Esmeril, Tóino, Francisco Segurado Silva

lhar”. Haja futuro para os nossos genes.

18 Fora de Pé, Gonçalo Pina

Quando o confinamento chegou, tendo ADN alentejano, pensei: “vai ser como limpar o rabo a meninos, estou programado

19 Teatro no Que Me Lembro, Rita Barbita

geneticamente para fazer isto.” Mas, pouco depois, fartei-me

20/23 O Lado Desumano do Ser Humano, Valéria de Araújo

de fraldas, alfinetes e do ócio do ofício; férias forçadas em casa são uma coisa sem graça que até nos impele a lançar

24/25 Pão e Vinho Sobre a Mesa, Sara Sampaio Simões

revistas. Voltando ao início, fechando o arco, diz-se que o úni-

26/27 Consultório do Dr. Phill, Philmore Stevens

co lugar onde o prazer vem antes do trabalho é no dicionário

28 O Borrego do Caroço, Martinho Pereira

e daí sairmos em Julho, quando planeámos sair em Maio. A

30 “A Perfect Enemy”, entrevista a Kike Maíllo, Olga Delgado Ortega

Dou comigo a pensar se a Mordaz será trabalho, quando não

todos os que nos apoiam um pedido de entendimento. há pagamento. Se é trabalho não sei, mas lá que dá trabalho, dá. Mas vocês, desse lado, fazem valer o atraso e a pena. Li-

32 SONAR: O Meu Lugar Sempre Foi Este Pedo Sobreiro

teralmente.

Francisco Segurado Silva

33 BD - Tibúrcio & Gervásio / O Inimigo Pronto 34 Vixit - Marco Neves Ferreira

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Mordaz

CONFINAMENTO EM LARGA ESCALA Pedro Baptista-Bastos

Um trabalhador isolado é um trabalhador perdido. Com o isolamento, deixou de haver produção em larga escala. Os trabalhadores viram-se “confinados”, palavra medonha, em casa. Layoff e teletrabalho substituíram ou tomaram o lugar do trabalho como era entendido a partir da industrialização até aos nossos dias: o trabalho remunerado, que participava e era regulado através da esfera pública. Regra geral, cada trabalhador recebia o salário correspondente ao que produzia. Desse trabalho se deduziam os respectivos impostos ao Estado. Isto cessou, e mesmo a gradual reabertura não garantirá a plena participação do trabalhador na esfera pública - a não ser que seja descoberta uma vacina que erradique a pandemia. Os seguros e as prestações sociais em caso de desemprego não sustiveram os layoffs e os despedimentos. Os benefícios fiscais e os apoios do estado em sectores como o turismo são bem-vindos, mas não garantem a reestruturação nem a criação de novos empregos. Por outro lado, vimos reerguer-se o chamado “capital social”: o voluntariado, a ajuda colectiva aos que necessitam, o conjugar de esforços e a união das pessoas e das populações, para evitar o descalabro social e a fome. A grande resposta à crise laboral surgiu através do voluntariado, que tem sido extraordinário no apoio a quem precisa. Mas que fazer, diante das empresas que encerraram, das contas aos fornecedores, dos impostos que a pequena e média empresa enfrentará? Não se pode exigir cortes nos salários, muito menos promover despedi-

mentos. As repercussões de miséria e desespero serão incalculáveis. É fundamental ajudar as empresas durante esta crise e assegurar o salário dos trabalhadores. Cada país terá que dar uma resposta, mas uma ideia radical começou a tomar forma: o Estado como pagador de último recurso, a União Europeia como pagadora de último recurso. Se o Estado não intervir, muitas empresas e trabalhadores não terão dinheiro para enfrentarem o pagamento das despesas, sejam empresariais, sejam familiares e individuais. De acordo com esta ideia, um trabalhador independente que esteja confinado e não produza deve ter a possibilidade de declarar a suspensão da sua actividade e receber um subsídio, mediante as declarações fiscais prévias. As horas de trabalho que produzia serão calculadas proporcionalmente ao que trabalhava e produzia, recebendo o correspondente subsídio. Quanto às empresas encerradas, devem declarar ao Estado o seu montante de despesas relacionadas com a sua actividade, devendo o Estado sustentar uma parte ou a totalidade dessas despesas, consoante os casos. O pagamento destas despesas ao Estado far-se-ia quando a empresa estivesse em plena actividade. Para esta ideia ter lugar, o Estado precisa de calcular as reduções de PIB anual e a percentagem da quebra de procura global, em serviços terciários, por exemplo. Esta ideia é muito frágil e sujeita a críticas. Portugal não tem

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Neste momento, um homem isolado é um homem perdido. Um homem isolado na busca do lucro sem intervenção do Estado é uma quimera.

liquidez. Mas a União Europeia deve apoiar as declarações e pedidos de Portugal, assim como o Estado deve ter uma rigorosa política de apoio no pagamento a pessoas e empresas, de modo a evitar fraudes e abusos. No fim de contas, existe a figura do trabalhador fechado em casa, das famílias com fome, do desespero crescente e o medo no futuro. Mesmo as televisões e as redes sociais não mostram a vergonha de ter fome, a solidão e a depressão causadas pela falta de trabalho. Ainda não vi a criação de algum meio, de um instituto de apoio a quem se sinta sozinho ou desesperado por não trabalhar e tenha vergonha de falar.

Uma ideia temos por certa: o individualismo que caracterizou os últimos anos desapareceu. O êxito a todo o custo, o dinheiro pelo dinheiro, tudo isso desapareceu. Estaremos nós diante de uma sociedade mais solidária, mais apoiada socialmente, que valorize o “capital social”? Neste momento, um homem isolado é um homem perdido. Um homem isolado na busca do lucro sem intervenção do Estado é uma quimera. A saída para um mundo melhor tem que assumir uma dimensão política de reconhecimento de necessidades e sectores básicos da sociedade, que precisam de funcionar de todos para todos.

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(COMO O) AMOR São Martinho do Porto, verão frio como sempre, é sábado, eu no quarto, já não no tempo de Verne ou Salgari pois já de “Vampiro”, ouço o meu transístor vermelho e na tarde desportiva Orlando Dias Agudo promete grande notícia para dali a uma hora, e logo caio no alvoroço, será que o rumor é verdade?, e depois vem o júbilo!

Sim, o Senhor João Rocha resgatava Rui Jordão, salvaguardando-o em Alvalade, e eu adoro-o, ao Rui Manuel Trindade Jordão, paixão ganha, traição minha, no 3-5 d’antes, no jogo em que Jázalde, Hector Casimiro Yazalde, dito Chirola, casado com Carmizé, marcou cabeceando junto à relva, mas ali Jordão, então feiticeiro do Benfica, enfeitiçara(-me), ainda que em magnífico ano de campeões, esses que sei de cor, Damas, Manaca, Alhinho, Bastos, Carlos Pereira (ou Da Costa), Vagner, Nelson, Baltazar, Marinho, o tal imenso Jázalde, Dinis, que bateram o Porto no 16 de Março, jogo transmitido em diferido ao fim da tarde, coisa tão rara, devido a não sei o quê que se passou nas Caldas, mas que não

pude ver, maldição, pois a minha mana parira e obrigaram-me a visitá-la, como não vi ali o tal seguinte 3-5, esse quando o estádio todo, sem clubismos, se levantou a saudar Marcelo, o “tio” deste, mas, logo depois, também ao Chirola e ao Jordão, e não os vi porque o meu pai nunca foi de bola, nem lá ia, nem os meus irmãos, queques da vela e do “rugby”, e sozinho me ganhei sportinguista na 1ª classe, ano de opções em ecrã preto-e-branco, no Barça 4-Valência 3 e assim até ao Futre, no Arsenal 3 (2 golos do Charlie George, cabelo à Beatles)-Leeds 2, lá nas taças deles e, na nossa, num 4-1 ao Benfica, com o King, como o conheci décadas depois, a marcar, e nós (sim, naquele exacto durante

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04#Julho 2020 fiquei “nós”) com Damas na baliza. Vítor Damas, eu quero ser assim homem como ele, e ainda disso não desisti, no campo mas mais até cá fora, como se barbeia, com Palmolive, e aquela voz, cava, e com ele aprenderei, e não na tropa, a fazer o nó da gravata, naquele algo descaída, e por tudo isso sigo Agostinho na França, meu pai dando-me dinheiro para comprar “A Bola” para lhe ler as aventuras, ele gigante batendo-se com Ocaña, Merckx, Thevenet, até trepando mais que Van Impe, Tourmalets acima, “Tinô!”, “Tinô!”, por lá o cantavam, ao nosso herói, poderia lá eu então perceber o quanto o era de facto, até, bem depois, se morrer numa coisa menor, e nós a esperá-lo, em esquife, na volta ao José de Alvalade, devastado como nunca vi, e seguindo para o túmulo em estrada recoberta pelo nosso povo, num silêncio pesado como nunca ouvi, ledes a minha ainda dor disto?, por isso segunda-feira me baldei às aulas, subi ao aeroporto, junto ao Luís, azarado pois corcunda, nem corria nem nunca correria, merda de vida estará a ter se ainda a tem, a acolher os campeões Aniceto Simões, o barbudo, Carlos Cabral, Mamede e Carlos Lopes, o gigante, por quem Mariano Haro, o às espanhol, esperara quando ele caíra na lama, caval(h)eiro como já não havia, ao invés do bárbaro Lá-ce Viren, o maldito, o dopado que tanta dor causou até ao nosso Lopes daquela maratona olímpica, majestoso, correndo pujante, erecto, nada como os desengonçados que vieram a mandar, “vai Lopes!”, “vai, campeão!”, na angústia até às lágrimas mesmo, mas também venerando Mamede, intuindo-o Príamo d’agora, semi-divino nas suas dúvidas e fraquezas, assim vero herói, pois falho como todos, como eu, e que nem sequer cheguei ao topo…, esse

topo de Livramento, o mago, eu miúdo no pavilhão, esfuziante com Ramalhete, Rendeiro, Salema, Xana e … Livramento, e o triunfo contra os inimigos espanhóis, então únicos, e depois obrigado a crescer, ainda sem poder perceber o que significava o naipe de ex-moçambicanos no basquete nem o tão único mestre Manuel Brito, e nessa desatenção fervorosa, descer às casas de bilhar, tão saudosas, SG Filtro e bejecas mas reclamando-me da linhagem do genial Theriaga, que é nosso, mas nessa névoa amando Big Mal, o do maior exemplo, pois champanhe, mulheres, charutos, jogo e … vitórias, rock n’roll para os nossos ouvidos, e nisto a vida escorreu, lesta, eu desapercebido disso, e o milénio acabou, eu largo trintão e só me lembro lá em Maputo de um autocarro estrada afora noite adentro na tv, na via de Salgueiros para Alvalade, e a minha mulher, até surpresa, “andaste dias com um sorriso parvo”… e há pouco, já cá, em casa do mano Bill num jogo qualquer, Benfica, Europa, sei lá, e mesmo no fim o tal golo de sempre, a derrota, claro, e seguimos para os belos petiscos de sempre. Depois, indo para o carro, a minha filha já adolescente resmunga “é sempre a mesma coisa, perdemos no fim”, e respondo-lhe “não é importante”, e ela devolve-me “ mas é uma chatice”. Sorrio e insisto “não é importante” e seguimos… Não lhe disse, digo-lhe agora, se ela me ler, que não é importante: não tem causa, nem razão, nem ganhos. É (como o) amor. Sem divórcio. Um arquétipo.

José Pimentel Teixeira

Sim, o Senhor João Rocha resgatava Rui Jordão, salvaguardando-o em Alvalade, e eu adoro-o, ao Rui Manuel Trindade Jordão, paixão ganha, traição minha, no 3-5 d’antes

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A PROFUNDA MAGIA

do esquecimento Este nervoso miudinho está a dar cabo de mim. Devia enfiar um Lorenin ou um Laponex no bucho, e aí vai disto! Mas, e se fico com uma pedra de todo o tamanho e me esqueço dos truques? Ná! Que se quilhe! Não tomo é nada, dou aqui umas goladas na garrafinha da aguardente glup, glup ora, o melhor é dar mesmo três ou quatro glup, glup, glup, glup, glup, glup aaaaaaahhh!, Assim sim! Estou prontinho para tudo senhoras e senhores, meninas e meninos, como diria o Arsénio, mestre de cerimónias. Deixa-me espreitar quem é que está na pista. Ui! O Ruben Mariani e as suas vacas amestradas. Os números de que o patrão se lembra! Três vacas com guizos do tamanho de melancias pendurados ao pescoço, três cabras a subirem para cima de uma tábua e a passarem por cima das vaquitas, três porcos nojentos a focinhar no chão e a saírem em disparada com o Ruben Mariani empoleirado no mais gordo. E não tivesse

bebido só dois golinhos inofensivos desta aguardente que é uma maravilha até julgava que estava bêbado a ver este fungágá da bicharada. Por falar nisso, glup, glup, glup, aaaaaaah! As mãos já não me tremem e é muito importante que as mãos não me tremam. O que seria feito da minha carreira emergente de prestidigitador se as mãos me tremessem? Ainda por cima logo hoje, que é dia da minha estreia. E eu não quero deixar mal o meu grande mestre, esse génio incomparável da magia, o Mágico Mandrake, o único!, o enorme!, o inimitável!, o insuportável!... ou seria insuperável? Aquilo é que era. Fazia coisas impossíveis com aquelas

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russas do trapézio que fazem o turbilhão humano penduradas numa corda. São tão lindas as gémeas russas do trapézio! São mesmo tão lindas que quase me dão vontade de chorar. Devo estar apaixonado por elas, não sei é por qual delas pois são iguaizinhas como duas gotas de água, glup, glup, aaaaaaah! O melhor é esquecer isso por agora, o melhor é preparar-me para o meu número, vou deixar toda essa gente embasbacada com a minha perícia, vou dar-lhes com aquele truque do fogo nas palmas das mãos que dá sempre resultado. Quer dizer, acho que dá porque nunca o fiz na pista. Deixa-me ver se tenho o material todo enquanto o Homem Mais Forte do Mundo rasga listas telefónicas e a Mulher Barbuda levanta halteres. Ora bem: as pombas estão bem instaladas nos bolsos de dentro do casaco, ainda vou desistir deste número porque elas sujam-me a roupa toda, pareço uma estátua de jardim virada do avesso, glup, glup, glup, aaaaaaah!, os lenços de seda também estão bem encaixados nas mangas da camisa, vou desenrolá-los em série, amarrados uns aos outros, o problema vai ser com aquele truque de transformar água em vinho dentro de um cartucho de papel, não me estou a lembrar muito bem das manigâncias, ora bolas!, não devia ter bebido tanto, glup, gl... aaaaaaah! Olha, acabou-se. Enfim. Não há nada a fazer. Parece que me estão a dar umas brancas na memória, logo agora que o Arsénio está a anunciar o incrível e inacreditável Mágico Batráquio, eu próprio, claro está!, eu que já não faço ideia de como é que se tira um ramo de flores de plástico de trás da orelha de um dos meninos da primeira fila, eu que já não sei como é que hei-de sair daquela caixa onde me vão enfiar com algemas e com um saco amarrado à cabeça, eu que não estou bem certo de conseguir adivinhar a carta que o senhor da segunda fila vai escolher do baralho que lhe vou por nas mãos. Não devia ter bebido tanto, se calhar. Não importa. Vamos a isto! Afinal, conseguirmos esquecer-nos de tudo é também um grande truque de magia. Talvez mesmo o maior de todos...

mãos que nunca tremiam nos momentos cruciais. Pobre Mandrake. Havia logo de apanhar a porcaria do Parkinson ainda tão novo. Mas eu saberei estar à sua altura, tal como lhe prometi à beira do leito de morte, quando ele me olhou com os olhos mortiços que a cirrose consumia e me pediu: “Batráquio, não me desiludas!” Aí vai à nossa, mestre!!! glup, glup, glup, glup, aaaaaaah! Até me vieram as lágrimas aos olhos. Meu querido mestre! Que falta fazes para me ensinares como serrar a Georgette ao meio sem riscos para a rapariga, que da última vez que ensaiámos lhe dei um golpe com o serrote logo abaixo da anca e ela ficou fula comigo, como se eu tivesse a culpa, quem a manda estar a engordar daquela maneira que um dias destes ainda vai parar ao número das vacas amestradas do Ruben Mariani, com um guizo do tamanho de uma melancia pendurado ao pescoço? De repente vem-me esta saudade, esta tristeza que não sei explicar, e logo agora, que chatice!, deve faltar pouco para o Arsénio me chamar à pista, glup, glup, glup, aaaaaaah! Esta aguardente é um milagre, isso é que é! Já não me lembro muito bem se entro logo a seguir ao Mario Mariani, o mais jovem domador da Europa, e ao seu hipopótamo dançarino que anda à roda ao som do “Danúbio Azul”, se entro depois da Marisa e da Larissa, as gémeas

Afonso de Melo

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O TRABALHO Coisa sagrada. Dá trabalho tê-lo, dá mil trabalhos não tê-lo. Ainda agora aqui há pouco foi o seu dia. Como naquele da liberdade, também neste parecem saltar a terreiro muitos donos. E em exclusivo. Nada mais injusto. Não se trabalhou na data, muito por força alheia desta vez, mas noutros anos também tal não se faz, aí por homenagem. Como se no dia das mães fosse sensato elas não mãezarem, no dos pais não se paizar, ou no dos mortos eles ressuscitarem, imagine-se. Não me tomem por ofensivo ou descarrilado na opinião, calma na curva que a seguir vem recta. Graças a deus, modo de dizer, tenho trabalho em meses consecutivos há trinta e cinco anos, posso por isso dizer que ele não me assusta, direi ainda que acho até que estou numa franja de sortudos. Ter trabalho que dá trabalho e dinheiro. Mas não é por isso que no 1º de Maio desato a não trabalhar e a brandir por justiças. Essas clamo-as diariamente, dando e exigindo, pensando em quem o tem mal pago e em quem o não tem. Essas clamo-as por princípio e carácter, por isso posso bem homenagear o trabalhador, e o que gostava de ser trabalhador mas não consegue, posso fazê-lo orgulhosamente no 1º de Maio, sem ter de ir a correr mostrar bandeiras e gritar o de sempre, banalizando a figura do trabalhador de todos os dias num reclamador a soldo do mesmo de sempre. Dá trabalho, não sendo remunerado, pensar nas coisas comoelassãoeusandoacabeçaquenoscolocaramemcima. É bastante mais fácil e dá-o em muito menor escala, se-

guir seguindo, gritar gritando, mais ainda quando todos sabemos que alguns, muitos alguns, dos que por ali pululam, de trabalho na vida o único que tiveram foi o de se esgatanhar na escadaria das facas longas, onde se vai peneirando da corja de mandriões qual subirá ao púlpito do faz de conta. Que trabalha. Poupo-vos o mesmo, não percam tempo a etiquetar-me, não cola bem a coisa e dá-me nas indiferenças, assim como quem olha para o interlocutor e lhe busca o

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04#Julho 2020 brilho no olhar. Não há brilho nos olhos de quem repete lengas compradas em feiras antigas, e por isso, mesmo sendo o trabalho o tema deste escrito, a ele não me darei quando a prosápia numa boa pendenga vem engatada naquele marcha-atrás canino de almejar a própria cauda. Roda que roda, que trabalheira e para quê? Para nada, um nadica de nada que confrange. Como confrange observar os salteadores dos dias comemorados. Dá trabalho a coerência. O raciocínio. Dão trabalho o amor e amizade, e estes são nesse campo de uma exigência atroz para os fracos e uma recompensa grande para os fortes, já viram? Dá trabalho ir sozinho no caminho porque parece que não temos ajuda, assim parece a alguns, mas olhe-se a trabalheira que teriam se tivessem de limpar a sua alcatroada incongruência, sorte a deles, não carecem, poucos lho exigem, daria trabalho e muito, antes a morte que tal sorte, trabalho sim mas que não dê trabalho, e trabalho que dê para comemorar em festa do dia dele sem o praticar, mas que homenagem mais torpe, gritam-se-lhe louvaminhas fugindo-se-lhe. Perguntei-me várias vezes que caminho tomaria em escrita desta edição, sabendo bem que trabalhoso seria falar do trabalho sem mencionar a malandragem que tanto o apoquenta em seus dias do ano sem direito a bandeirada. Os patrões que morrerão de ganância e de estupidez, os atentíssimos aos direitos e esquecidíssimos dos deveres, os que comem tudo, comem tudo, comem tudo e não deixam nada, e estes caríssimos trabalhadores que me honraram com a leitura deste texto, cuidado que estes não vindo de patrões burros e tinhosos, serão por vezes meninos para virem de palradores ou papagaios. Trabalho não lhes dá, muito, até ao dia em que ao Povo lhe regresse a vontade de bem pensar. E, honestamente, VIVA O 1º DE MAIO.

QUE LINDO … TRABALHO Viajo livre pelo tempo, sem barreira que me obstaculize com minudências o prazer de saltitar à bruta. Não de nenúfar em nenúfar, tão pouco entre nuvens lá no alto, ambiciono algo mais, coisa tridimensional. Salto na cor, no tempo, na geografia. Olivais Sul, anos de 1970, mais coisa menos coisa. É franzina esta nossa Paula Fonseca. São a preto e branco muitas das memórias. Diz a canção, escondes-te no tempo, porque o tempo tem asas. Seja. Voemos. Kihei, ano de 2020, mês de Abril para ser preciso. A fragilidade do antigamente é agora uma sereníssima imagem de quem brinca com o tempo, ficando nele, parecendo não deixá-lo gastar-se. Paula é Ana Doolin e revela um surpreendente segredo a todos os de sua infância. Pinta-nos a vida numa dança por entre a cor viva e o encanto das cores frias e belas também. Quase pede desculpa por entrar assim, tão perfeitamente bela. Consegui descobri-la e aqui vo-la trago. Trouxe para Carcavelos, onde envelheço feliz, os meus Olivais e a imensidão de Kihei. Por que esperam?

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João Rebocho Pais

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VOAR É TRABALHO Tudo terá começado no Paraíso. Depois de pecar, conceito que muito evoluiu desde então, o homem terá sido amaldiçoado com um terrível castigo. Consta mais ou menos assim do Livro do Génesis (3,17): “Comerás do suor do teu rosto, do cansaço do teu trabalho”.

Diz a Bíblia que, depois do pecado, Adão e Eva foram expulsos do Paraíso. Adão teria que trabalhar para providenciar o sustento da família, Eva ficava condenada ao “trabalho” de parto. Qualquer deles ficava mal. E os descendentes, que somos nós, muito pior.

Há, porém, excepções. Anda por aí muita gente para quem o trabalho significa prazer e alegria. Êxtase, nalguns casos. Juntando a isso o facto de esse mesmo trabalho poder gerar o sustento da família, teremos então o regresso ao Paraíso por parte de quem conseguiu fazer um “bypass” total ao anátema do Criador. Não faltam exemplos: Cristiano Ronaldo - pagam-lhe milhões para fazer o que mais gosta na vida. Aposto que ficará muito triste quando deixar de trabalhar. Maria João Pires - continuará a tocar piano até ao fim, para seu belo prazer e encantamento de todos aqueles que a ouvem. Trabalha oito horas por dia e não se cansa nem reclama. Paula Rego - nunca fez outra coisa senão pintar. Faz vida disso e consta que não se dá mal. Não sabemos se ganha milhões (os galeristas ganham) mas faz o que gosta e chegou mais longe que a maioria dos pintores. José Saramago - viveu da escrita e para a escrita até ao

fim. Nunca se queixou da sorte que lhe tocou, nem podia. Bem pior andaram Baltasar e Blimunda, às voltas com as obras do Convento. Estes são apenas alguns exemplos. De figuras grandes entre as maiores. Dos gigantes de tanto nos orgulhamos. Mas também há os pequeninos. Eu, por exemplo. Filho de um Juiz Conselheiro austero e distante, à moda antiga, de mim esperava-se que “saísse” ao pai. Curso de Direito, para começar, depois logo se veria. Em alternativa, com algum desgosto paterno, poderia ser médico ou engenheiro. Mais nada. Ainda tentei engenharia, mas fui apanhado pela tropa ainda nem a meio tinha chegado. Guia de marcha para Angola com estatuto de Alferes Miliciano de Transmissões. Poderia ter sido bem pior. Dois anos depois, a queda no vazio. Que fazer? Acabar o curso? Tentar outro? Arranjar trabalho em qualquer lado? Estava neste preparo quando comecei a ver anúncios nos jornais: “Este lugar de piloto pode ser seu, mesmo que

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04#Julho 2020

dos fazer o curso de piloto. Fui a correr despedir-me da família. Uma vez mais iria estar ausente durante um par de anos. O Conselheiro não ficou muito impressionado: “Sempre quiseste ganhar a vida sem trabalhar, não é? Boa sorte!” Estava cheio de razão. Aquilo não era, nunca foi, “trabalho”. Era um misto de alegria, prazer e encantamento. Era ver o mundo de cima, era o êxtase perante paisagens de cortar a respiração, era a sensação de liberdade. Era também conhecer novas terras e novas gentes, uma catadupa de experiências que me marcaram para sempre. E ainda me pagavam por cima. Dá para acreditar? Um dia, acabou. A Lei era clara e definitiva, incontornável. Não me lamentei um instante sequer. Tive uma vida fantástica e um trabalho que só me deu prazer. Ah! E “fintei” a maldição do Génesis. Agradeço ao Adão o ter pecado. Que lhe tenha feito bom proveito.

nunca tenha voado”. Era a TAP, desesperada, a querer crescer e a lutar com falta de pilotos. Verifiquei as condições, os requisitos. Tinha tudo. Não fazia a mínima ideia no que me ia meter, mas lá preenchi os papéis. Para sobreviver enquanto saltava exames atrás de exames, fui trabalhando como comissário de bordo. Uma maravilha. Grandes viagens, melhores estadias, montes de amigos. Se não der para mais nada, estou muito bem aqui. Mas deu. Um belo dia recebi um telegrama a dizer que estava aprovado e partiria em breve para os Estados Uni-

José Correia Guedes

Um belo dia recebi um telegrama a dizer que estava aprovado e partiria em breve para os Estados Unidos fazer o curso de piloto. Fui a correr despedir-me da família.

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O TRABALHO Estamos a viver tempos únicos de uma estranheza infinita que nunca nenhum de nós imaginou. Tempos de contágio, solidão, medo, incerteza e morte. Imagens até hoje impensáveis povoam o quotidiano dos meios de comunicação. Numa o Papa celebra sozinho a missa nas escadarias do Vaticano, noutra um homem carregando a bandeira nacional sobe sozinho a avenida da Liberdade em comemoração do 25 de Abril. 14


responsáveis enquanto a existência humana se desvalorizava a cada dia que passava reduzida a simples e descartável mercadoria. O tempo que de repente terminou era aquele onde a colheita de um agricultor dois anos antes de ser concluída já tinha um valor especulativo atribuído que lhe ditava o fracasso ou o sucesso numa bolsa anónima de valores. Serve isto para dizer que o valor do trabalho se veio ao longo do tempo a degradar e a submeter ao valor do capital e da pura especulação que o alimentava. Quando tudo isto terminar vamos ter que decidir quem queremos ser no futuro: seres livres ou dados de estatística; circuitos de computador ou pais, filhos, amigos; humanos ou peças de uma estrutura mecanizada; seres comprometidos com a sua natureza ou computadores biológicos de uma máquina anónima e gigantesca que nos utiliza e elimina. Em tempos de epidemia, dois grupos profissionais vieram-nos relembrar a importância decisiva do seu trabalho. Falo dos profissionais de saúde e dos criadores/artistas. Se uns são essenciais para a nossa sobrevivência, os outros são-no para a saúde da existência. Se uns arriscaram as próprias vidas para que outros não morressem, outros devolveram-nos o significado de estarmos vivos. Ambos esquecidos em tempos de normalidade, mal pagos, pouco respeitados, nem por isso deixaram de fazer o que sempre fizeram: o serviço aos outros. Médicos, enfermeiros, técnicos, escritores, actores, pintores. Precisamos tanto deles como do ar que respiramos. Essa foi a sua grande lição. Ninguém sobrevive sozinho, ninguém consegue existir sozinho. Por mais que se anuncie o fim da História e a inevitabilidade da injustiça; por mais que se estimule o egoísmo e glorifique a ganância; por mais que se idolatre a lei da selva. Só conseguimos ser alguma coisa com os outros. Só nos conseguiremos safar se trabalharmos uns para os outros. O resto é tecnologia e ciência saloia.

Para além da extrema carga simbólica que estas duas imagens representam, o tempo de medo e incerteza que se abriu inesperadamente aos nossos pés inaugurou um espaço de reflexão e de possibilidades novas até aqui improváveis ou sequer inexistentes. O tempo que de repente terminou é o tempo em que os bancos não só não podiam ir à falência como ainda premiavam a incompetência dos seus gestores

Artur Guilherme Carvalho

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02#Abril Mordaz 2020

MINHA QUERIDA AMIGA, ESCREVO-TE NO MOMENTO DE ÓCIO DESIGNADO DO DIA Em pleno século XXI dou por mim a ser tolhida pela memória pré revolução, aquela onde éramos consideradas inferiores a qualquer homem, por legislação e convicção de grande parte da sociedade. Ganhávamos menos quarenta por cento do que eles, precisávamos da autorização deles para viajar, só podíamos votar se tivéssemos a escolaridade mínima obrigatória, e não nos podíamos casar se fôssemos enfermeiras, telefonistas, ou assistentes de bordo. Tudo isto porque a nossa função era sermos dóceis e obedientes esposas, procriadoras e gestoras da lida da casa que se queria tão imaculada como a virgem, e não podíamos ter nenhum emprego que nos desviasse do maravilhoso desígnio de fada do lar. Por isso te falo do fantasma do passado, o que me assombra quando o pó começa a ganhar forma sobre a superfície das coisas, ou uma meia descasada perturba o espírito do cesto de roupa que jamais engomarei. Não consigo deixar de pensar que, depois de todas as conquistas pós revolução, o que grande parte de nós fez foi somar funções, esquecendo-se de as dividir com quem partilha a vida. Vejamos a quantidade de mulheres que tem o mesmo emprego que o marido, trabalha no mesmo horário, chega a casa no mesmo minuto, e até se deita à mesma hora, mas nesse espaço de tempo monopoliza as tarefas impostas na pré revolução: o jantar, as crianças, os

TPC, a loiça lavada e a cozinha imaculada. Neste momento que é a observação das janelas à minha volta, constato que, em cada dez mulheres a estender roupa, há sete homens a descansar da exaustão de carregar no botão. Até sonhei que um deles se esforçava a raspar o fundo da panela do almoço que queimou pela terceira vez, e que isso aconteceu com palmas de encorajamento dadas para as redes sociais e filmado pelo primo vizinho no prédio em frente. Nas legendas do pequeno filme de família, a ressalva ao herói que aprendeu a cozinhar sob o jugo da confinação. Resumida à sua invisibilidade, a prima que tudo faz, além da responsabilidade de desinfetar as compras acabadas de chegar, e da nova função de tele-encarregada-de-educação, nem resiste ao manguito que se lhe solta dos braços em plena emissão. Amiga, já estamos tão longe desses tempos e ainda demasiado perto. Prometo não voltar a chamar ócio ao momento entre o fazer e desfazer. Temos tanto direito de descansar como de trabalhar. E, milagre, não há nenhuma cruz para carregar! Abraço-te sempre!

Elsa Bettencourt

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04#Julho 2020

ROLA O ESMERIL, TÓINO Rola o esmeril a afiar a chuva em fagulhas na vez das gotas. Um gato que espera pombos que esperam milho distrai-se com os espirros incandescentes na calcada.

Há jacarandás floridos, já cá andarás florida Lisboa, numa tarde mole de quente de cinza-azul. Nem fantasmas, nem vivalmas no centro da cidade - e os fantasmas não usam máscara, toda a gente sabe. Abanam-se varetas de guarda-chuva, ao som dos trovões abafados. - Raio da bicicleta - Diz ele. O Tóino está mesclado debaixo de um toldo de uma loja que não abriu, pouco vê, poucos o vêem. Sem a visão toldada, vê-se que o Tóino está de cara encardida, do sol e do desmazelo. A tesoura está de perna aberta para lá, chovem chispas. Os dedos negros até à ponta das unhas escondem feridas, há lá coisa melhor para esconder o negrume que o encardido da tez. Leva dois dedos para anular duas gotas de suor, como lágrimas na testa. - Estava romba, hã, dona? e ela que sim, a única da casa, a cortar desde

sempre tecidos e frangos, linhas e papéis com modelitos para as toalhas de naperon. Lavores femininos, almocinhos e cortes por dar - Tem durado. É ainda pior que a minha sogra que não há meio de morrer. Quer levá-lo todo para cova, mão de vaca que guarda, grão a grão, todo o graveto que ela e o falecido senhor Antunes ganharam. Esse sim, um senhor. - Pois. Nem uma faca me pede para afiar, a sua sogra. - Quer levá-lo todo para a cova, como os faraós. Língua afiada, e tesoura pronta logo depois, o Tóino percorre a escala de Pã para cá e para lá, com a bicicleta pela outra mão. Há quem diga que a é a flauta que invoca a chuva, outros que o amolador está sempre atento ao boletim meteorológico. Tóino acredita nas moedas do dia - e que o esmeril tem de ser aplicado com esmero.

Francisco Segurado Silva 17


Mordaz

FORA DE PÉ Há uns tempos, numa matinal deslocação a caminho do trabalho, ouvi uma pequena reportagem, porque os dias podem já não ser os da rádio mas a magia subsiste, com pescadores numa das nossas vilas à beira-mar plantadas, em que um dos visados confessa já o seu cansaço pelo terço de vida passado naquela labuta, que se confundia quase com a sua idade, e que previa não ficar muitos mais anos naquela situação também determinada pela tradição familiar. Quando inquirido acerca do futuro, responde decidido “vou abrir um talho”. Estes tempos, mais do que uma tradicional planificação e projecção dos nossos planos de vida num amanhã ainda longe de nos bater à porta, obrigam-nos a uma urgência e capacidade de responder ao imediato como forma de acompanhar o ritmo dos dias que correm sôfregos. Ultrapassados pela nova realidade, não nos podemos basear apenas em modelos e referências passadas para prever e imaginar o futuro. A forma como trabalhamos acompanha outras dimensões da vida, e também ela é alvo de rápidas e profundas mudanças que apelam ao nosso sentido de urgente reinvenção como forma de mantermos o foco e, tantas vezes, a cabeça fora de água. Esta situação expõe também a fronteira entre aqueles cuja natureza do seu trabalho lhes permite substituir o seu até agora tradicional espaço de trabalho pela casa, e todos os outros que só o podem continuar a fazer onde sempre o fizeram. As reuniões em modo vídeo que expõem a cenografia mais ou menos cuidada da bolha em que vivem e alimentam o “concurso das estantes”, contra a tensa “valsa dos 2 metros” imposta pelo risco sempre presente de quem continua a precisar de trabalhar fora das paredes destas novas celas. Pelo meio, aquela legião de invisíveis, sem rosto apreensível e reduzidos a mero número estatístico. Por outro lado, pode ser que uma certa desconfiança que ainda molda uma estrutura hierarquizada e de vigilância vertical vá dando lugar a uma maior relação de autonomia, cumplicidade e interdependência, porque não perder a força socializadora que cimenta todas as relações, incluindo as laborais, faz sempre parte do desafio. A vertigem e o imediato passaram a agarrar-se ao presente, e a mera ideia de planificação a prazo torna-se por agora relativa. Recorremos à simplicidade no olhar e na acção, que os filtros definidos pela experiência acumulada nos vão garantindo, na tentativa de agarrar alguma da areia que nos escorre das mãos. A casa de partida está, como quase tudo, em constante movimento, mas precisamos de mexer a mão para fazer a jogada. Quanto ao pescador, que sonhava estacionar o barco, pode ser que tenha ido a tempo de abrir o desejado talho. E que sonhe agora com um restaurante que lhe desempate a equação.

Gonçalo Pina 18


04#Julho 2020

TEATRO NO QUE ME LEMBRO Lembro-me das minhas primeiras aulas de teatro. Devia ter uns nove anos e deparei-me com a poesia. Estou a falar tanto da poesia das palavras, da construção de um texto, de um entendimento profundo do mesmo, como da poesia do corpo. Ambas constroem um ator. Ambas são ocultas por detrás de uma aparência. Essas aparências surgem sob a forma de palavras ou de movimentos, mas que, na sua profundidade, são uma miríade de sonhos e construções.

somos todos um mesmo. O teatro tem a capacidade de unir as almas e os corpos e mostrar que sofremos todos do mesmo, mas em tempos e casas diferentes. O corpo tem essa capacidade de ser dual. Tanto estamos fora como dentro ao mesmo tempo. É maravilhoso sentir isso no teatro. Essa constante ligação com o que está fora – seja auditivo ou visual – com o que está dentro. É um verdadeiro paradoxo. No teatro e na performance acontece que nos estamos sempre a perguntar onde estão as duas verdades das coisas: a que está no plano tridimensional (o eu, nós e o outro) e a que se subdivide no plano uni ou bidimensional (o eu, ou o eu e o outro). Tudo tem camadas. Tudo são na verdade pequenos monstrinhos disfarçados de seres belíssimos. Mas outra coisa que aprendi sobre o ser humano é que estamos longe de ser belos, daí procurarmos tanto ser perfeitos. Porque estamos cheios de falhas e dúvidas em relação aos outros, e em relação a nós próprios… Mas o verdadeiro trabalho de ator não é compreender que isto existe, ou é-o numa primeira instância, mas numa segunda instância é entender que isto não existe. Que nós na verdade não pensamos; agimos de acordo com o que sentimos. E a vida é isso – e o teatro é isso – uma roda em volta do nosso próprio corpo, até já não podermos mais. E essa exaustão do próprio corpo é que leva ao próximo passo. Daí aquele cliché: chora que te faz bem. Ensaiar para um espetáculo, para mim, é chorar muito durante muitas horas. Também pode ser rir muito. Porque chorar ou rir muito durante muitas horas leva-te a outro lugar. E esse é o nosso destino. Caminhamos porque sentimos. Porque na maioria das vezes desejamos chegar a outro lugar. O corpo é o manifesto do inconsciente. O inconsciente é, portanto, o nu. Ou seja, ao contrário do que talvez se achasse, o teatro é o silêncio.

Com nove anos, percebi o poder de criação a partir da voz e do corpo, instrumentos fundamentais para nos conhecermos a nós próprios. Porque é que não gostamos da nossa voz? Porque é que escondemos as mãos dentro dos bolsos das calças? Ao longo dos anos, enquanto atriz e performer, fui obrigada a olhar para mim mesma. Ou seja, encarar o facto de que tomo certos gestos em certos lugares, e aprender a largá-los. Porque, para que nasça a personagem, é necessário que nós a tratemos com olho clínico. E isso implica controlar movimentos e também a voz. Há qualquer coisa de fundamental no teatro. Diria que passa por algo muito simples, na verdade. É essa coisa de que falei em cima. É o entendimento de nós próprios. Costumo dizer que toda a gente devia fazer teatro. É por isso que amo o que faço. Cada jornada é uma possibilidade de encontrar tesouros sobre mim própria. Mas, para encontrar isso, é nos outros que procuro. É por isso que cheguei à conclusão que na verdade

Rita Barbita

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Mordaz

O LADO DESUMANO DO SER HUMANO Cresci numa aldeia transmontana e até aos 25 anos nunca tivera a sensação de passar numa rua e ver alguém no chão a pedir dinheiro para comer. Alguém que dormisse na rua, em pleno asfalto. Alguém que vivesse há anos num recorte de passeio, no vão de uma escada ou debaixo de uma varanda qualquer. Cheguei a Lisboa e dei de caras com essa realidade. Conhecia-a, obviamente, de ouvido, mas nunca a tinha visto assim, bem na frente dos meus olhos. Em determinada altura, e em muitos lugares da cidade, a cada virar da esquina. Pessoas no chão. Era muito desconfortável para mim. Como podiam aqueles seres humanos viver assim, e pior, chamar vida àquela condição? Durante uns meses, pelos locais que faziam parte do meu dia-a-dia, cumprimentava-os, dava-lhes alguns trocos e tomavam-me dois pensamentos: será que os estou a ajudar ou será que os estou a ajudar a enterrar-se ainda mais na sua condição? O tema foi sendo cada vez mais inquietante para mim. Rodava-me dentro do peito e da cabeça. Cheguei à cidade no pior ano de crise e, num verdadeiro ápice, as pessoas a dormir em cima de papelões foram aumentando cada vez mais! Já não era uma ou duas pessoas a dormir naquele canto de calçada, de repente já eram grupos! Pessoas que pareciam o meu pai ou a minha mãe. Pessoas que, aparentemente, não estavam ali pela adição ou por uma outra qualquer loucura do foro psicológico. Aqui, dentro do meu peito, aquele sentimento desconfortável ia aumentando a cada dia porque me dei conta de algo muito triste: a vergonha na cara de cada um. A vergonha de estar ali. E aliado a isso: o medo e uma incerteza tremendos. O desemprego bateu-lhes à porta e a Banca foi tomando cada

uma das suas casas. De dia para dia essa realidade aumentava, ali, bem diante dos meus olhos, e dos olhos do mundo. Até dezembro de 2015, lidei com a situação ajudando de todas as formas que me eram possíveis e me pareciam plausíveis tendo acabado com o dinheiro. Deixei de dar dinheiro. Esse não era o impacto que eu queria ter junto deles. O Manuel, que estava em frente ao Pingo Doce, via-me passar e não dizia nada sequer. Absolutamente nada. Isso aconteceu durante algumas semanas. O desalento era tanto! Um dia disse-lhe: Olá, como te chamas? Vem tomar o pequeno-almoço comigo. Arregalou os olhos: Eu? Consigo? - Sim! Rápido que não tenho muito tempo! Hesitou. Hesitou como quem ouve algo que não esperaria, jamais! Insisti com este jeito brusco: vamos embora que não tenho muito tempo, mexe-te! Levantou-se e, a medo, acompanhou-me. Disse-lhe que pedisse o que quisesse e que aproveitasse para levar algo para comer mais tarde. Enquanto comíamos, não lhe falei da sua condição; perguntei-lhe se gostava de pão com queijo, falei-lhe do meu gosto pelo leite com chocolate pela manhã. Disse-lhe que não estava para dietas. Pedi-lhe que comesse com calma porque eu é que já não tinha muito tempo. O ar incrédulo dele e os olhos a brilhar de agradecimento fizeram o meu dia. Despedi-me. Pedi-lhe novamente que tomasse o seu tempo. Sorri e fui embora. Entrei no carro e chorei de uma forma descontrolada. Raiva, tristeza, revolta, medo, dor

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Valéria de Araújo


04#Julho 2020

e muita, muita pena. Não do Manuel. Mas de todos os outros e de mim, principalmente de mim. Sempre tive o hábito de tomar o pequeno-almoço no trabalho ou em casa mas depois desse dia passei a ir ali. Se ele lá estivesse, lá ia eu. Quando me via: um sorriso. Um sorriso! E de seguida, com vergonha e um baixar de olhos: Valéria. - Vem Manuel, estou atrasada! Isto aconteceu durante uns meses, tentava falar com ele de forma a que não se sentisse inferior a mim ou que tivesse vergonha de estar ali na cafetaria a meu lado, vestido daquela forma, e todos sabendo que ele era o pedinte que ali se apresentava todos os dias na porta. Era difícil esta tarefa de tentar que ele se sentisse bem e tranquilo comigo, mas com este meu jeito desajeitado ia conseguindo que a conversa fluísse e ele se abstraísse, por uns minutos, de como a sua vida estava uma merda. A adição do álcool levou-o até ali. Nunca conhecera o pai, e a mãe infringia-lhe maus tratos juntamente com o padrasto. Tinha uns 30 anos e sentia que a vida dele já estava arrumada. Dormia num “ocupa” e durante o dia o objetivo era o de fazer uns trocos para o álcool. Houve um dia em que não estava. Depois, no outro também não. Coração apertado. - Onde raio se meteu o rapaz? O

que lhe terá acontecido? – Esta é a primeira fatura que quem se dedica a alguém que não tem ninguém começa a pagar: quando a pessoa desaparece e isso gera uma preocupação que pode nunca mais ter resposta. Passados alguns anos vim viver para o centro de Lisboa e conheci o Jorge, o Carlos, o Diogo, o James… tantos outros! Estreitei relações, umas mais que outras dependendo da abertura que me permitiam e da frequência com que nos encontrávamos. Uns trocos. – Vá, só isto senão vocês perdem-se e eu não sou vossa mãe. Riam-se. E eu gostava de os ver rir. Quando permitiam, uma conversa mais séria e bruta (às vezes em transmontano), e eles admirados: uma rapariga. Punham-se em sentido e diziam-me aquilo que sabiam que eu queria ouvir - todos nós, de alguma forma, o fazemos, e sabemos o que os outros querem ouvir de nós em determinadas situações - mas não passava disso: diziam exatamente aquilo que eu queria ouvir. E eu acreditava. Acreditei durante alguns anos até decidir ir fazer (ou tentar) o dito voluntariado. Ser voluntária. Oferecer algo meu, ou de mim, de forma gratuita a alguém. Em novembro de 2015, sou desafiada por duas voluntárias da Comunidade Vida e Paz (CVP) que me haviam

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Mordaz

Separei-me. Não tenho filhos. Aqui estou. Farto desta merda e, principalmente, farto de seres humanos. Acreditas que estou sentado no cartão e há pessoas que passam e me cospem em cima?”

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04#Julho 2020 contactado em contexto profissional e, sem sequer pensar, aceito o desafio e convenço duas amigas a ir comigo. Chegado o dia e com o aproximar da hora marcada para partir, um frio na barriga misturado com medo: o que iria eu encontrar? A própria noite impunha respeito. Seria eu, com este coração fraco, capaz de fazer bem a alguém durante aquela noite? Na CVP apelidam os quatro circuitos que saem diariamente da Sede para a cidade de Lisboa, todos os dias do ano sem exceção, de Volta. A minha primeira Volta, em novembro, foi um valente murro no estômago. Mas alguma vez eu poderia ajudar todas aquelas pessoas, ou uma única que fosse, em alguma coisa? Reduzir-lhes a dor, o frio, o desânimo, a falta de coragem, o desalento, a culpa, o orgulho? NUNCA! Regresso a casa desfeita. Esfaqueada. Então, afinal, esta realidade existe mesmo e ultrapassa tudo aquilo que eu poderia esperar. Passo a noite completamente em claro com Como ser perfeito, de Ron Padgett na cabeça: “Não dês conselhos. Sê amigável. Isso vai ajudar-te a ser feliz. Tem esperança por tudo. Não esperes nada. O desejo por ser perfeito é provavelmente uma expressão velada de outro desejo – o de ser amado, talvez, ou de não morrer. Escolhe as tuas atividades de modo a que demonstrem um equilíbrio agradável e variedade. Imagina o que gostarias de ver acontecer, então, não faças nada para tornar isso impossível. Se fores tomado pelo medo de que nadaste longe demais oceano adentro, vira e volta ao barco salva-vidas. Chora, de quando em vez, mas só quando estiveres sozinho. Aprecia o quão melhor te sentirás. Não te envergonhes por te sentires melhor.” Naquela noite levei comigo cada uma das pessoas que encontrei em condição de sem abrigo nas ruas da cidade de Lisboa. Sem casa. Sem cama. Sem nada. Sem nada! Estavam todas ali, comigo. A decisão e vontade de voltar não tardaram. Precisava de ir. Precisava de os voltar a ver. De voltar a saber se o Paulo tinha ido falar com a Assistente Social, se o Ricardo teria reduzido o consumo do Álcool como me havia prometido, e se o senhor Joaquim estaria mais consciente da sua loucura. Que bonito, não é? Eu voltaria passados 15 dias, e estas e todas as outras pessoas já estariam com muitas mudanças para me contar, ou então, melhor ainda: já não estariam lá porque o vento mudara e o barco teria já tomado outro rumo, a navegar por marés de maior feição. Não! Eu que sou tão pessimista transformei-me, durante aqueles 15 dias, numa otimista! Numa enorme otimista.

Voltei. Os loucos, os alcoólicos, os toxicodependentes, os orgulhosos, os fracos, os abandonados, os solitários, os que viviam “nos seus locais” há anos e um ou outro novo, lá estavam eles. Todos. Mais histórias, mais sofrimento, mais derrotas e eu a ver-me ali. Sentada ali. Junto a cada um deles. A frustração não surgiu logo de forma a que eu suspendesse ali o meu compromisso (ainda não oficialmente assumido perante a CVP) de voluntariado. Não. Fraca mas nem tanto assim. Passados seis meses tive a sorte de integrar uma Volta cuja motivação de cada uma das pessoas ia ao encontro da minha. Tive também muita sorte no Coordenador que vestia a camisola do voluntariado com a maior das dedicações e, tudo isso, foi fundamental para que fosse ganhando forças para estar próxima de seres humanos nas mais diversas condições físicas e psicológicas que alguém possa imaginar. “Sabes, Valéria, eu era jardineiro, muito bom jardineiro, gostavam muito de mim, mas acabou o contrato com a Junta de Freguesia, veio esta crise e aqui estou. Separei-me. Não tenho filhos. Aqui estou. Farto desta merda e, principalmente, farto de seres humanos. Acreditas que estou sentado no cartão e há pessoas que passam e me cospem em cima?” – Não, Francisco, eu não queria acreditar. Foram precisos 3 anos de Voltas consecutivas, de 15 em 15 dias, das 20h00 às 4h00, de conversas de horas com as mesmas pessoas, de utilização de todos os argumentos e mais alguns, de ajuda “fora das voltas”, para perceber que: sim, a minha presença era importante; sim, foi ali que aprendi a importância de abraçar; sim, o meu sorriso era importante e gerava outros sorrisos; sim, confortei corações em horas em que estavam desfeitos; sim, confortaram-me a mim em dias em que também eu estava desfeita; sim, levei esperança por mais que fosse momentânea; sim, fiz rir à gargalhada; sim, fizeram-me chorar de emoção; sim, aprendi que qualquer pessoa, qualquer um de nós que possa ler este texto, pode estar ali também um dia. Qualquer um de nós pode chegar ao fim da linha. E, sim, estabelecer relações com pessoas em situação de sem abrigo é tão ou mais enriquecedor para alguém do que o fazer com qualquer uma outra pessoa que não esteja nessa condição. Foram precisos 3 anos de Voltas para perceber que não, não depende de mim que uma pessoa em situação de sem abrigo retome o seu caminho e se insira nisto a que chamam sociedade.

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Mordaz

PÃO E VINHO SOBRE A MESA Sara Sampaio Simões não contente, arame farpado à volta. O arame não chega a meio porque Marta ouve aquele som irritante de Marte a bater com a pata na tigela da comida. Ela quer também pôr-lhe arame farpado à volta. A história de Marta e Marte é simples: ela foi convencida, teve pena, levou-o para casa, mas nunca lhe tomou o gosto. Agora, olha-o, de caneta na mão, e sente a mesma pena. - Se calhar, eras mais feliz se tivesses ficado com os Fraga. Desabafo depois, serve-lhe a ração que já não eram mais de três pecinhas em forma de peixe. Marte andava, há trinta dias, a comer três pecinhas em forma de peixe por dia. E, de repente, Marta começa-lhe a ganhar o gosto. Até é fácil gostar do bicho nesta altura. Não manda memes que lhe enchem o espaço do telemóvel, não passa o dia a fazer pão, bolos e a partilhar nas redes sociais, não desenha arco-íris e não é como as amigas dela que estão sempre impecáveis. - Como aquela parva da Rute que partilhou as raízes pintadas, tirou o buço com “uma pinça espetacular que mandei vir da net” e as unhas retocadas pelo namorado. Que

Mesa número 4: A mesa não tem toalha. Nunca lhe fez sentido. Na verdade, a garrafa de rosé, que tinha comprado para um almoço com a mãe, fazia ainda menos. Se houvesse um prémio para «O mais sem sentido do mundo!» seria para aquela merda de vinho que nem se sabe bem se é cor-de-rosa ou laranja. Mas a mãe bebia daquilo amiúde. Fresco. Mesmo fresco, com “duas ou três pedrinhas de gelo”. Não. Afinal o prémio iria, de certezinha, para o cabrão do diário em que escreve desde que está fechada em casa e que, riam-se!, tem uma gaiola aberta na capa. Num ataque de fúria, Marta começa a riscar a gaiola, desenhando-lhe, por cima, um portão, com nove fechaduras e depois,

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04#Julho 2020 fofos… Olhando para as suas unhas com metade pintada e na outra metade um gelinho morto, Marta sente ainda mais raiva de quem consegue cuidar de si nestes tempos. Será raiva ou… Inveja? - Odeio-as. Ah ok. Ódio. Ódio de quem, ao contrário dela, não achou que “isto são só uns dias” e decidiu ficar sozinha em casa. O melhor amigo convidou-a, os pais chamaram-na, mas ela ficou nas suas quatro paredes. “Isto são só uns dias”. Passaram-se 62. Marta arrisca tudo e estende a mão. Faz uma festa ao gato que já come. E, naquela festa, sentiu tudo. Havia ali vida. A vida que já não encontrava na empresa que a mandou embora. Era a trabalhadora menos antiga e o seu nome foi o primeiro ouvido na reunião com o diretor. A vida que também já não vivia nas videochamadas parvas da família. Marte olha-a. Quando a nova dona o foi buscar a casa dos Fraga, tinha ao pescoço um laço e um bilhete. «Começa aqui a dupla Marta&Marte». Os Fraga achavam graça à repetição dos M’s, mas Marta nunca a viu até agora. - Se calhar, devia ter ficado com a irmã. Gata Lua. Dizem que é muito educada, toda sossegada. Já tu destruíste-me meia casa. É, devia ter ficado com a puta da Lua. Marta dizia cada vez mais palavrões. Já eram a sua forma de comunicar antes de tudo isto. Agora que a liberdade está fechada na gaiola do seu diário, nada melhor para a ilustrar. Já Marte, indiferente a eles, passou a sua cabeça pela perna de Marta. Mais vida ali. - Ao menos, tu não costuras máscaras em casa com pijamas antigos “para reutilizar tecidos”. E, ali, Marta começou a gostar de Marte. E, por começar a gostar tanto, quis partilhar a manta para onde ele sempre obstinou em subir e ela não permitiu. Marta foi sacudi-la à janela, mas a puta da manta caiu para a rua. Três palavrões depois, ela senta-se no sofá e Marte ao seu colo. Percebeu que já não precisava da manta. O gato-de-quem-já-começava-a-gostar transformou-se ali em calor e no gato-de-quem-já-gostava. A manhã seguinte veio e Marta abriu a porta da casa-de-banho para que Marte lhe fizesse companhia. Foi buscar uma tinta antiga. Retocou as raízes brancas. Enquanto o castanho escuro atuava, procurou uma pinça em várias gavetas. Não a encontrava. Marte deu um toque com a cabeça, apontando para uma caixinha que estava no chão. - Ah, está aqui! Obrigada, Marte! És o meu herói! A dupla M&M começou, então, a cumprir o sucesso que

lhes estava destinado. Cabelo pronto, buço inexistente, depilação feita. Seguia-se agora colocar o creme hidratante pelo corpo. Bisnaga quase vazia, dali nascia pouca coisa. Mas Marte – mais uma vez, ele – mostrou a Marta a tesoura. Ela fez um rasgo e conseguiu tirar de lá uma mão cheia de creme. Besuntou-se toda, abafando as linhas desenhadas pela lixívia. Depois, Marte ajudou-a a pintar as unhas. Transparente nos pés, rosa velho nas mãos. Agora, Marta também já tinha um companheiro. E, quando aquilo acabasse, ia mandar logo um áudio ao grupo de amigas. - Um áudio, não. Um vídeo! Filma aí, Marte! Enquanto Marta escolhia a roupa para vestir ao jantar, Marte fez-lhe um chá para reforçar o sistema imunitário. Juntou a ele, biscoitos rijos, fora de prazo, mas que valeram por todos os que ela já não podia comer da avó. - Falta só o rímel. Não, não quero chá. E se abrisse aquele rosé? Traz-me duas a três pedrinhas de gelo, Marte. Marte cumpria tudo o que Marta lhe dizia com lealdade e amor. A dona estava pronta e rodava sobre si. Depois, pegou em Marte ao colo pela primeira vez. - Amar-te, Marte. É essa a minha missão. Marta deu um gole no rosé, sentou-se à mesa e abriu um livro de receitas que lhe tinham dado quando foi viver sozinha. Agradeceu o dia ao companheiro e começou a escolher o jantar. Mas Marte já tinha os seus planos. Ligou o forno a 200 graus. E pegou na melhor faca da casa, que a dona tinha recebido numas promoções de supermercado. Da janela, veio uma brisa que fez dançar o diário de Marta, ainda em cima da mesa. A dança escolheu a sua página. Lia-se lá «Estou farta que me digam que vai ficar tudo bem. Claro que não vai ficar tudo bem, foda-se, merda!”. Quando escreveu aquilo no dia 27 da quarentena, Marta não imaginava o sentido que ia fazer. O prémio para «O mais com sentido do mundo!» ia para aquele diário de gaiola vestida de arame. E o Gato Marte, de faca na pata, avançou para aquela que agora era, finalmente, sua dona. E, quando o fez… Marta desperta. Olha para as horas. Mas já não era o mesmo dia. Percebeu que tinha estado a dormir vinte e quatro horas seguidas. Olhou para o gelinho morto, suspirou e levantou-se para lavar a cara e dar três pecinhas em forma de peixe ao atrasado mental do Marte de quem nunca gostou.

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Mordaz

CONSULTÓRIO DO DR. PHILL

Philmore Stevens

Profissão: Super-Vilão

recreativas. Ou seja, a Santíssima

bastante bem, só podemos ficar do

Trindade dos motivos para viver. O

seu lado na disputa com a jovem

A eleição de Donald Trump como

único vício conhecido aos bons da fita

Branca de Neve, uma moça que parece

é o de meter nojo. Sendo este um tema

não entender uma piada à primeira,

de uma complexidade extrema, decidi

que passa os dias a dormir com

fazer a lista dos cinco melhores piores

anões vadios numa floresta e a beijar

super-vilões de sempre para que,

batráquios. Pelos valores tradicionais

de uma puta vez, vos ajude a tornar-

da família, a escolha é clara.

Presidente dos Estados Unidos colocou a sociedade do politicamente correto em convulsão e pintando o bom-velho Donald como uma espécie de supervilão, vivendo numa sombria mansão no alto de um penhasco, rodeado de um vasto exército privado e modelos em trajes menores, cuja única e secreta missão é destruir o mundo (acariciando um gato, de preferência). Na realidade, penso que ser catalogado

vos melhores piores pessoas e que, principalmente, pensem duas vezes antes de postar coisas com gatinhos e corações no Facebook.

Lex Luthor, de Superman

como vilão só poder ser encarado

Hannibal Lecter, O Silêncio dos Inocentes O aparecimento de Hannibal Lecter, no início dos anos noventa, representa um upgrade significativo no que toca

de forma positiva. Afinal de contas,

Neste mundo infestado por “Personal’s

à imagem do super-vilão. Um super-

e pelo menos na ficção, os super-

Trainer’s”, “Community’s Manager’s”,

vilão culto, de discurso calmo e fluido

vilões parecem ser mais livres e

“Gurus da autoajuda” e demais

e tão perverso como inteligente. Com

descomplexados que os bons e são

mariconços, um homem que se

ele aprendemos que se ficas durante

sempre bem mais interessantes: são

apresenta como “a maior mente

alguns minutos olhando fixamente (e

menos pirosos e piegas e sem questões

criminal do século XX” merece o

em silêncio) para alguém, parece que

éticas ou legais que os demovam de

nosso respeito e veneração. A luta de

estamos a ler-lhe o pensamento e

executar planos bastante inteligentes

Lex Luthor contra o Super-Homem

psicanalisando a sua infância quando,

e sofisticados. E há, ainda, a questão

representa a luta da inteligência contra

na realidade, apenas estamos a pensar

dos prazeres carnais. Os super-vilões

força bruta; da meritocracia e esforço

que nos esquecemos de comprar

promovem uma vida sexual bastante

contra os dons genéticos recebidos

SKIP Pastilhas no supermercado

activa e variada em contraponto à

pelo nascimento; da humanidade

ou tentar lembrar-nos do nome da

castidade que devasta as hormonas

contra o invasor alienígena.

pessoa. Outro facto assinalável é que

dos super-heróis, tão politicamente correctos que são incapazes de usar os

A Bruxa Má, da Branca de Neve

super-poderes para engatar gajas. Ou

os polícias, a partir de aqui, não são suficientes para resolver os crimes. Agora são necessários um criptologista,

seja, os super-heróis são uma espécie

Mais um caso de família

um teólogo, um licenciado em servo-

de Paulos Coelhos e Pedros Chagas

desestruturada, tão comum nos

croata, uma vidente, um cozinheiro e

Freitas (pausa para vomitar) com

nossos dias. O pai arranja uma mulher

um mecânico-torneiro para fechar um

capas coloridas e maillots apertados.

mais nova e a filha deste não aceita a

caso.

Para além de engatar as melhores

Madrasta e faz-lhe a vida impossível

gajas, os vilões também sabem

auxiliada por um violento gangue de 7

apreciar a bebida, o tabaco (charutos

anões. Sendo a madrasta uma mulher

de preferência) e até algumas drogas

culta, bem-parecida e que cozinha

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Darth Vader, Star Wars Este homem sabe o que quer.


04#Julho 2020

Quer governar, manter a ordem intergaláctica e transformar a Galáxia num lugar unido por uns valores e uma política comum. Não suporta a incompetência nem a traição. E isso só é possível com mão dura e sem contemplações. As coisas devem ser executadas e devem ser executadas nos prazos previstos. Este homem ama a família e quer que os seus filhos partilhem o Governo do Universo com ele. Acredita na família e nos laços de sangue. Só um homem assim pode levar o Universo por bom caminho. E se isso significa destruir um planeta de vez em quando, destrói-se e já está. E se isso significa matar o professor da primária na escola Jedi, mata-se e já

Joker, de Batman

E tudo é mais gritante quando o

O Joker representa a luta contra

milionário que se disfarça de morcego

os estereótipos numa sociedade aborrecida, sombria e sem graça. Só porque um homem se veste com trajes coloridos, se pinta como um palhaço e comete assassinatos bastante cruéis é imediatamente estigmatizado com a etiqueta de “monstro” ou “psicopata”. O Joker transporta a bandeira da luta de poder combinar umas calças com riscas e uma camisa aos quadrados, de poder combinar o laranja com o verde, a liberdade de vestir gravata e fato de treino simultaneamente e reivindica o direito à maquilhagem para homens.

está. Existe outra maneira de manter o controlo sobre milhares de planetas e com uma resistência que não lhe reconhece um único mérito e é mais histérica que a FENPROF do Mário Nogueira? Não me parece.

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seu antagonista, o Batman, é um para o combater e tem um ajudante que se disfarça de Elfo Gay. Contra a discriminação, sempre com o Joker. Enviem as vossas perguntas para o Dr. Phill: drestranhoamor1@gmail.com


Mordaz

O BORREGO DO CAROÇO

Compadres, gostam de borreguinho? É que, caso não saibam, ninguém cozinha o borrego como o alentejano. Ah, mas têm dúvidas? Para quem só sabe lamber os dedos, a influência árabe no Alentejo é tão marcante que o ensopado de borrego é cozinhado nos nossos dias da mesma forma como o era (segundo receitas) no século VIII. E esta, hã? ’Tá boa. Neste período de quarentena é um dos pratos que mais tenho feito, acho até que esta porra de tempos têm sido mais inspiradores para cozinhar do que propriamente para escrever. Ao contrário do Sérgio Godinho, bebo hoje as minhas incertezas num copo de vinho - e têm sido muitos, os copos. Em silêncio às vezes, outras nem por isso, é preciso desabafar, mas ainda é mais prioritário acreditar que melhores dias virão. Para o borrego é que não. Adoro o ensopado de borrego, ou assado no forno, mas também as costeletas grelhadas. É mais justo haver três borreguinhos e um pastor, eu. Mas voltando à conversa, estes pratos levam-me de volta a sentar à mesa com os meus avós maternos, aqueles com quem vivi desde o dia em que nasci até ao dia em que eles morreram. Não sou propriamente um saudosista, mas pontualmente tenho falta de mergulhar no meu rio de memórias, faz-me bem ficar ensopado. São tantas estas memórias, tão reais quanto palpáveis. O meu avô sempre me disse que, além da qualidade do borrego, as batatas também tinham grande influência no resultado final. E na’ é que tinha muita razão, porra?

Os ensopados que fazemos no nosso Campo são já conhecidos além-fronteiras. Pois, as do Alentejo e as de Portugal, ‘tá bom de ver. A receita? É fácil: refogado com azeite, cebola, alhos, louro e sal. Acrescentamos salsa, uma bagalheta de piri-piri e um tomate desfeito, nã’ tenham cá pena dele. Esperem pelo amolecer de toda esta situação. Metem-se lá dentro as partes do borrego já partidas aos pedaços e envolvem-se no refogado. Em cima, um cálice pequeno de vinho branco. Espera-se mais um pouco. Duas folhas de hortelã, deita-se água para cozer a carne. Esperem outra vez um pouco, é a tal moenga da virtude, juntem as batatas e deixem cozer tudo. No fim rectifiquem o sal. Está feito. Mas fiquem sabendo que a qualidade de todos os produtos é imprescindível para o resultado final. Principalmente das batatas e do borrego. Este tem de ser criado no extenso campo alentejano sem comer farinhas uma única vez. Se tentaram fazer e saiu uma boa murraça, joguem tudo fora. Venham até ao Campo do Caroço (quando abrirmos) c’a gente ajuda a entender como se faz. Fica em Albernoa, porra.

Martinho Pereira

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NÃO PENSAR.

NA CALÇADA MEDIEVAL CONTRIBUTO DA EDP PARA A CLASSIFICAÇÃO DE MARVÃO A PATRIMÓNIO MUNDIAL. 29

(POSTE IMPLANTADO NA ZEP DA MURALHA DO CASTELO).


Mordaz

“A PERFECT ENEMY” Entrevista a kike maíllo

A Mordaz quis saber como o coronavírus está a afectar os trabalhadores da sétima arte. Entrevistámos Kike Maíllo, vencedor de um Prémio Goya, no meio de inúmeras aventuras em vários países do mundo para terminar de filmar a sua última longa-metragem, “A Perfect Enemy”, desde que foi declarada a pandemia da Covid-19. Podem ver algumas destas aventuras na coleção de histórias “Confinados”, que publicou na sua conta de Instagram. (Olga Delgado) Kike, como viveste toda esta a situação nos diferentes países em que estiveste? Sentiste que as diferenças culturais influenciam o modo como a pandemia está a ser vivida em cada país? (Kike Maíllo) A Covid-19 e o início da pandemia apanhou-me primeiro em trabalho no México, França, Alemanha, Espanha e depois - já de Férias - na Nova Zelândia e na Indonésia. Vi que o coronavírus é vivido de formas muito diferentes em cada país, tanto pela situação geográfica, como pelas diferenças culturais, mas em absolutamente todos, havia uma coisa em comum: não se falava de mais nada. Quando ouvia as pessoas na rua houve algo que me chamou a atenção: a sensação que todos tinham de que era uma coisa distante que afectava outros países, mas que não lhes iria afectar a eles. Até em Espanha, quando o problema já era muito grave em Itália, os espanhóis pensavam que este não os iria atingir.

KM Quando estávamos na Nova Zelândia, antes de voar para Bali, a companhia aérea disse-me que o voo de regresso de Bali para Espanha tinha sido cancelado. Tivemos que estar em constantes conversas com a Embaixada para tentar regressar e tal não foi possível desde Bali. Tivemos que apanhar um voo a partir de Jakarta. Este voo foi muito complicado, porque os voos entre ilhas começaram também a ser cancelados. Voltando às diferenças culturais, enquanto na Europa muitos países já estavam em confinamento depois de várias semanas, em Jakarta fizeram um lockdown de dois dias, estavam convencidos que seria suficiente para controlar tudo. OD Fala-nos sobre o teu último filme, “A Perfect Enemy”, que novos desafios te esperam nos tempos do Coronavírus para poder lançar a tua longa-metragem?

Em relação a esta observação do Kike Maillo saliento que, na análise de acidentes aéreos e marítimos, descobriu-se que há cinco atitudes que são as principais responsáveis dos acidentes provocados pelo factor humano. Uma destas é a invulnerabilidade, que consiste em acreditar que as coisas más só acontecem aos outros, como constatou o realizador em vários países, relativamente ao coronavírus. OD - Kike, foi-me dito que ficaste retido numa ilha em Bali, sem saber quando poderias voltar para casa. Como foi?

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KM É um thriller psicológico baseado numa novela da escritora Amélie Nothomb, que acontece maioritariamente numa sala de espera dum aeroporto, onde se conhecem os dois protagonistas, o Thomasz Kot e a Athena Strates. Nós tivemos a sorte de acabar de rodar o filme mesmo a tempo. Muitos dos meus colegas não tiveram essa sorte; por exemplo, o diretor de fotografia dos meus dois últimos filmes estava a rodar em Madrid com o Antonio Banderas e a Penélope Cruz e tiveram que deixar o filme a meio. Não sei se aconteceu antes, mas este filme está a ser montado e sonorizado totalmente à distância. Nunca me sentei com o montador e, como estávamos em diferentes fusos horários, adiantámos tudo muito rapidamente. Ele enviava-me o seu trabalho e eu fazia a revisão enquanto ele dormia, fizemos tudo via Skype, com todas as suas limitações. O problema principal vem agora com a distribuição do filme: de momento não há cinemas, não sabemos como vai ser quando voltarem a abrir e não há festivais de momento. As plataformas são o único canal que está a tirar proveito da situação. OD Qual é o teu próximo projeto de filme? Foi afetado pela situação atual? KM Sempre trabalhei em paralelo em publicidade e cinema, e a primeira é muito absorvente, deixando-me pouco tempo para desenvolver os novos projetos que tinha na cabeça. Agora estou a aproveitar o estar em casa obrigado para começar a escrever estas histórias. Neste aspecto, a situação afetou-me positivamente, mas obviamente o coronavírus vai trazer muitas coisas más. Não só a doença, mas uma recessão bastante importante e isso vai afetar o mundo por inteiro e, muito negativamente, o cinema em particular. As pessoas vão ter menos possibilidades económicas e os governos vão ter menos disposição para

apoiar o cinema, portanto vai ser bom para a criação. Haverá mais tempo para pensar em histórias, mas vai ser muito mais difícil encontrar financiamento para as filmar. OD Certamente o coronavírus será o principal protagonista de muitos filmes que serão rodados no futuro. Já tiveste alguma ideia de trazer para a tela uma história que acontece durante a pandemia? KM Sim, sem dúvida o coronavírus será o principal protagonista de muitos filmes que serão rodados no futuro. A ficção científica sempre trabalhou com este tipo de medos, normalmente através de metáforas. Durante os anos 50, com a proliferação da energia atómica, houve muitos filmes de terror, não falavam diretamente das centrais nucleares, mas de monstros que tem sido transformados a partir desta energia. Durante a guerra fria havia muitos filmes que falavam de extraterrestres, a ficção científica sempre soube pegar nos medos e transformá-los - não a explicá-los directamente. O filme que mais fala deste assunto, Contagion - de Steven Soderbergh, fez muito dinheiro aproveitando-se do medo de que houvesse uma pandemia. A influência do coronavírus no cinema vai depender muito de como consigamos sair desta situação: se a saída for rápida e fácil e nos esquecermos rapidamente, não vai afectar tanto como se as coisas se complicarem e perdermos a nossa forma de ser, de nos comportarmos, relacionarmos e beijarmos, de fazer amor. Nesse caso tudo mudará.

Olga Delgado Ortega

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Mordaz

O MEU LUGAR SEMPRE FOI ESTE Na sociedade em que vivemos, ter um trabalho é uma necessidade que se assume vital por dois motivos essenciais: sermos capazes de nos tornarmos numa peça funcional na engrenagem, logo válida, e também porque legitima a nossa existência, garantindo-nos os recursos fundamentais. O nosso trabalho pode não ser aquele com que sonhámos um dia, mas cabe-nos conseguir dar-lhe o melhor sentido, justificando-o, para que o possamos aceitar da melhor forma possível. Licenciei-me em Comunicação Social no ISCSP, muito bem segundo classificado no final do curso entre pares e, por força maior das contrariedades da vida, nunca tive a possibilidade de tentar carreira numa capital onde fervilhavam as oportunidades naturais do boom das televisões privadas. Tentei encontrar o meu caminho regressando ao Alentejo natal. Hoje, apesar de tudo, sou um feliz funcionário da Autoridade Tributária e Aduaneira na capital do meu concelho, Marvão, situada a escassos quilómetros da terra de onde sou natural. Aqui, encontrei o meu lugar, que afinal, sempre foi este. Sim, eu sou

tão português que acredito que o destino está traçado à nascença. Numa região sem oportunidades já naquela altura, quando regressei, no início do milénio, concorri ao maior concurso da função pública em Portugal até essa data, que reuniu cerca de 80.0000 candidatos para guarnecerem pouco mais de 2.000 vagas de uma Direção Geral das Contribuições e Impostos desfalcada pelas aposentações, e natural desgaste de quadros. Pediam uma prova de cultura geral, com português, história, lógica e conhecimentos diversos. Depois da seleção neste pré-acesso, quando pensava já estar dentro, tive de me esfalfar nas exigentes provas específicas, sobre cada imposto, com muito custo e dedicação. Só assim consegui ficar no meu concelho, que sempre foi o meu grande objetivo, onde atingi o generalato, não existindo hoje, cargo ou promoção que dali já seja capaz de me mover. A paixão pela escrita, muito mais que um hobby, antes um escape, uma forma de viver, quase tão importante como respirar, manifesta-se no blogue que criei há 13 anos, “Vendo o mundo de binóculos do alto de Marvão”, que conta com mais de meio milhão de visualizações, e onde, ajudado pelo mural do facebook, divulgo os textos e pensamentos, respiro o dia a dia e o imediato. Os dois acabam por me preencher enquanto homem, ser pensante, humano completo.

Quem entra naquele serviço local, encontrará um funcionário que procura sempre a competência e eficiência, máximas que sempre tive como orientadoras na vida, mas quem não me conheça destas lides literárias (1.406 publicações até à data, só neste espaço) desconhecerá que tem pela frente não um mangas de alpaca submisso, que idolatra e se esgota nas atualizações dos codigozinhos, decorados com recortes feitos a régua e esquadro, mas o alter ego convencional do Tio Sabi (alcunha de sabichão com que os colegas me batizaram no ciclo preparatório, como bulllying pela esperteza e fome de saber), um agitador de província que se realiza quando consegue chegar aos outros, e recebe um comentário de quem não sonhava sequer que o lesse. Coisas da vida: se quando andei a caminho de Lisboa, de automotora, para aprender a ser jornalista profissional, me tivessem dito que o meu estrelato acabaria por ficar a escassos quilómetros da minha casa de sempre, para trabalhar nas finanças da minha sede de concelho... o mais certo teria sido ter-me atirado sem pestanejar para debaixo do 15, que cruzava a rua da Junqueira sobre carris, e me deixava no Palácio Burnay, a caminho de Belém. A vida poderia ser sempre outra se... mas os ses, quando não se concretizam, e não se “arrumam” numa estante racional da nossa vida, ficam sempre por aí a pairar, e nada mais fazem que nos deixar num suspense inóspito, a assombrar e a incomodar. Mas sei que estas deambulações literárias só são possíveis, geralmente quando já tudo dorme, em casa, porque, lá está, existe um trabalho por detrás que as suporta, e as permite. Um homem quando não trabalha e está dependente de subsídios, subvenções familiares, heranças, apoios diversos acaba por sucumbir perante o seu ócio.

Pedro Sobreiro

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DESTACAR PELO PICOTADO

@INSTAGR A M .CO M /O I NI M I GO_ PRO NTO/


VIXIT

SIGNIFICADO: VISTO POR AÍ NAS REDES (PODIA SER). TAMBÉM, PALAVRA LATINA QUE SIGNIFICA “VIVEU”

Este número da revista tem como tema o trab(/&%$#”... o quê? O trab%$#$%, essa palavra, repetida nestas páginas ao expoente da loucura. Estes dias, coisa que não me tem apetecido fazer é isso, só porque passámos 3 meses enfiados em casa sem fazer nada, não significa que agora tenha de fazer. Não gosto, não quero, recuso-me, pelo simples facto de dar muito trab(/&%$%#!$.

@markuneves


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