MORDAZ #005

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EDIÇÃO #05 AGOSTO 2020 0€

PÃO, FIBRA E CIRCO

danjazzia / ENVATO


# fakepub


05#Agosto 2020

EDITORIAL CONSTITUIÇÃO MORDAZ

1 – A Mordaz, como revista totalmente independente, tem por princípio fundamental a liberdade de expressão dos seus convidados, não se imiscuindo nos conteúdos dos mesmos desde que estes respeitem a natural civilidade e regras da universal educação; 2 – A Mordaz não tem ideologia social, política ou de qualquer outro género senão a de defender intransigentemente o direito inalienável à abrangência, panorâmica e diversidade de estilos, princípios e opiniões. Tudo para todos; 3 – Como revista absolutamente gratuita (para autores e leitores), a única publicidade que a Mordaz aceita difundir é a sua própria criação inventiva naquilo a que chamamos Fake Pub, a página reservada aos nossos próprios delírios publicitários.

CULPA E CASTIGO Escolher o tema Culpa e Castigo foi fácil, tanto pela actualidade,

NESTA EDIÇÃO Francisco Segurado Silva, Pedro Baptista-Bastos,Ricardo

como por soar a Dostoiévski e à salvação pelo sofrimento, pre-

Silveirinha, Afonso de Melo, José Pimentel Teixeira, Artur Guilherme Carvalho, Jorge Arriaga, Luis Soares de Oliveira, Sara Sampaio Simões, Olga Derlgado Ortega, Philmore Stevens, Elsa Bettencourt.

sente em Crime e Castigo. O personagem principal, Raskólnikov é um homem muito pobre que divide os seres humanos em vulgares e extraordinários, ansiando por um momento de grandeza

ARTWORK E PAGINAÇÃO Francisco Segurado Silva, Gonçalo Pina

reconhecida. Já lá vamos.

IMAGENS Freepik, Macrovector, Pixabay.com, Pngtree, Envato.

O tema da nossa 5ª edição soa também a romance da era vitoriana. A moral desta época, difundida tal como hoje pela expansão da língua inglesa (no seu segundo salto quântico), reside num conjunto de valores que envolve restrição sexual, pouca tolerância para o crime e um código social de conduta pública rigoroso. E

ÍNDICE

é neste caldo global online que cada um de nós sente as dores da vítima, se arvora em juiz e depois enverga a máscara, brandindo o machado do algoz. Envia-se o eleito para o meio da arena, diz que é cristão, touro ou toureiro, rude ou labrego e anexam-se pedras,

4/5 Um Compêndio da Maldade Humana,, Pedro Baptista-Bastos

farpas, livros de etiqueta e gramáticas. A verdadeira pena de hoje 6/7 O Ùltimo Sonho do Toiro Antes de Morrer, Ricardo Silveirinha

é a humilhação pública, através de um banho digital de alcatrão e

8/9 Esqueci-Me. É Esse O Meu Castigo?, Afonso De Melo

cancarou a porta ao tribunal social, fácil, rápido e gerador de tur-

10/11 No Meu Tempo Não Havia Bullying, Francisco Segurado Silva

Estamos também prontos para a dedução rápida e um veredito

penas. A justiça dos tribunais, lenta e cheia de ancoradouros, esbas, em que o juiz procura sobretudo o holofote, ser o holofote. veloz, para quê perder tempo?

12/13 O Futuro, José Pimentel Teixeira

Há uns meses, uma amiga colocou no Facebook uma fotografia de um automóvel mal estacionado, ocupando dois preciosos lu-

14/15 Filosofia no Estádio, Artur Guilherme Carvalho

gares em espinha. E foi também sem espinhas que todos os co-

16/17 O Homem Que Queria Ser Feliz, Jorge Arriaga

mentários que li foram acerca da falta de civismo do respectivo condutor. Arrisquei uma pergunta: “Alguém sabe como estavam

18/19 O Castigo e Eu, Luis Soares de Oliveira

os eventuais outros carros quando este foi estacionado?”. Pelo que li pouco depois, sabiam até mais que eu sobre familiares com

20/21 Pão e Vinho Sobre a Mesa V, Sara Sampaio Simões

profissões de baixa moral vitoriana, ou ossatura na testa, num

22/23 Crime e Racismo, Olga Derlgado Ortega

minuto o carro já era meu. Recordo sempre um ditado de rua dos subúrbios perigosos da América do Sul “se uma bala tem o teu

24/25 Send Nudes, Philmore Stevens

nome, não há nada que possas fazer”. É a tal primitiva procura de sangue; não se consegue fazer com que o tubarão não goste

26 A Culpa É Tua, Elsa Bettencourt

do seu sabor.

27 Tibúrcio & Gervásio / O Inimgo Pronto

Francisco Segurado Silva

28 Vixit - Marco Neves Ferreira

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Mordaz

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05#Agosto 2020

UM COMPÊNDIO DA MALDADE HUMANA Pedro Baptista-Bastos

Quem quiser ler um compêndio da maldade humana, não pegue em livros de filosofia ou moral: leia um Código Penal. Um código penal é uma súmula, uma condensação, de toda a actividade humana que, pela sua repulsa, tem que ser punida. Essa repulsa é-nos dada pela lei. A lei determina a dimensão da condenação, o impacto do nojo que um acto causou, e ao lermos a descrição do homicídio, do furto, da injúria, da traição à pátria, da bigamia, notamos a frieza das descrições. Não há nenhuma emoção, nenhum arrebatamento, na descrição legal da maldade humana, porque se pretende que a malvadez esteja submetida à razão e à verdade. Castigar deve ser um procedimento racional, dedutivo, porque o castigo é, também ele, uma expressão da verdade. Se o crime decorre da mentira, o castigo firma-se na verdade. Nesta tensão da apreciação da maldade humana e sua punição se viveu, até à rapidez da sociedade digital. Quando se reconstitui um crime, faz-se uma viagem ao passado, recuperam-se provas, ouvem-se testemunhos. É necessário parar, contemplar. Ora, a sociedade digital é incessante, vive num presente perpétuo. Tudo é imediato, é revelado, tudo se torna um espectáculo. E o castigo também se quer mediático, sensacional, chocante, mesmo que tenha de violar a lei. Julgar um crime num incessante presente é entrar num mundo desaustinado, neurótico. O crime não se

enquadra na verdade, mas é empurrado para dentro do choque, em nome do impacto das audiências. Só há choque no momento presente. Ora, se julgar se torna um choque, o crime tem que ser ampliado, aumentado, distorcido – não se procura a verdade, mas o nível de audiência. Ampliar e distorcer um crime nestes termos, implica dar um valor económico ao crime, mas também dar um valor económico ao castigo. Esse valor é tanto maior quanto mais elevada for a expressão das audiências, mas também quanto mais irrazoáveis forem as opiniões da sociedade digital sobre o crime e o castigo a ministrar. Por irrazoabilidade não entendo somente o populista que amplia a repulsa das pessoas sobre um crime, mas também aqueles que nunca descrevem a verdade, ou tentam ocultar a apreciação de factos, em crimes complexos, como os crimes económicos, por exemplo. Daí que, diante de crimes sobre menores, há uma repulsa generalizada, mas sobre crimes económicos há um desinteresse sobre como o crime foi praticado. Alguma vez, nos últimos vinte anos, foi alguém condenado a restituir ao Estado ou a privados centenas de milhões de euros de que se tenha apropriado indevidamente? Porque, afinal de contas, a nossa sociedade precisa da possibilidade de praticar certos crimes, sem que deles haja um efectivo castigo.

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O ÚLTIMO SONHO DO TOIRO ANTES DE MORRER

A minha família não desgostava de touradas. Não que se babassem por ir ver o Tito Capristano à Moita ou o Nelo Cagarras a Santarém, mas lá em casa, se passava uma Corrida, a malta ficava a ver. 6


05#Agosto 2020 Nas férias andaluzes, chegados ao apartamento ainda com o sal mediterrânico a temperar o corpo, o meu Pai punha na TVE e até ao jantar sorvíamos a cantilena espanhola dos comentadores especialistas e 8 ou 10 toiros de morte a acompanhar o presunto, o queijo e a ensaladilla rusa. Lá e cá víamos aqui e ali. Não éramos aficionados mas gostávamos do fascínio. Do espectáculo. Da arte do matador. Da faena. Da orquestra. Do tribalismo. Só não podíamos ver os cavaleiros. Gajos de jaqueta brilhante montados num cavalo a espetar farpas que se transformavam em bandeirinhas que acenavam ao público. Degradante. O cavaleiro é o cobarde da tourada, é o puto que insulta e depois foge. Tínhamos, eu e o meu Pai, uma visão para a festa: unir a Ibéria numa só tourada: matadores espanhóis, forcados portugueses. Os cavaleiros passariam a alisar a areia, a limpar os estábulos e a dar água aos toiros.

mo-nos dentro dos golos do Benfica, mas, Pai, a TVE para mim acabou. As corridas RTP acabaram. A morte bárbara, para mim, acabou. Há qualquer coisa de profundamente degradante nas touradas. Não é só o sofrimento do animal, é o espanto com que ele observa os animais da bancada. A incredulidade de estar perante a maldade do mundo. O toiro leva nos olhos uma tristeza de estar assistindo à vileza do humano. Porte imponente, músculos fortes, cornos pontiagudos, nobreza de carácter, mas os olhos. É nos olhos do toiro que nós vemos a sua ingenuidade. Uma criança perdida no meio da multidão. O animal sorve a vida de forma natural. Passa anos a comer ervinhas, a ver pores-do-sol, a esfocinhar amorosamente com outros animais. Vive a vida em liberdade, em campos abertos de luz, por onde pode correr, parar, dormitar, ficar só a ver. Ficar só a viver. Recebe arco-íris com uma chuvinha que lhe molha a língua e as dentolas, afasta borboletas e mosquitos com um espirro, ressona e acorda os pássaros da árvore onde está encostado. O animal não reflecte sobre o mundo, mas vive-o. Sobretudo, sente-o. Os elementos da natureza são-lhe prazenteiros. É-lhe natural ir beberricar aquela água, mastigar este molhinho de ervas, cagar ou mijar onde lhe apetecer. O céu é-lhe natural, as nuvens e o Sol, os caminhos de terra, as plantas, os pássaros. Aquela brisa que vem em Agosto com cheiro a cereais. Ele levanta a cabeça, fecha os olhos e sente-a. Não pensa sobre ela, mas sabe-a.

Vejo na televisão o canal público a passar tourada. Aquelas mesmas caras de sempre, de olhar bovino. Caras de gente laranja, de bigodes falsamente aristocráticos, as famílias da “tradição”, os betos e os que querem passar por betos, as calças caqui, os penteados, as patilhas, uma portugalidade meio bizarra que parece advir de promíscuas relações entre primos e irmãos. Esta gente que ali está atrás das tábuas funde-se com as vacas em noites de Inverno: por isso aquele bovino olhar, a mansidão das carecas reluzentes, a lhaneza. Pai, eu já não posso continuar a ver isto. Custa questionar as coisas que enquanto crescemos nos eram naturais, mas talvez seja por isso que os anos passam sobre nós e sobre o mundo. Já não enforcamos pessoas, não as queimamos em grandes fogueiras, a escravatura já lá vai, as mulheres deixaram de ser bibelôs de homens bárbaros. Tradicionalmente, temos de evoluir. Claro que é difícil quando confrontamos hábitos que vivíamos junto aos que amamos – por isso, a minha compreensão com tanta e tanta gente que simplesmente não consegue ver-se por dentro, renovar-se, olhar para a tourada com olhos outros que não aqueles com que foi ensinada a olhar. A radicalidade dos argumentos deve dar lugar à bondade dos encontros. Sem o preconceito do ódio.

De repente, uma arena! Um cubículo de areia com milhares de pessoas e vozes e urros! De repente, o horror. Chamam-no, assustam-no, dão-lhe palmadas na cabeça, espetam-lhe ferros frios no lombo. Encosta-se às tábuas, sente a madeira, procura um caminho para voltar para o campo. Está cercado. Cornetas, luzes, gritos. Rios de sangue escorrem-lhe pelo corpo. O peso das bandarilhas coloridas enquanto corre. Não entende aquilo, não sabe o porquê. Cansado, ofegante, em pânico, investe contra o carrossel de homens e cavalos que o rodeiam. Baixa a cabeça, com as patas tenta furar o chão como se pudesse abrir um alçapão que o fizesse cair da arena para um prado onde corresse e lambuzasse as bochechas de outro toiro. Um campo aberto a céu aberto. Sem cornetas, sem pessoas, sem gritos, sem bandarilhas coloridas, sem bigodes quase aristocráticos, sem ferros frios no lombo, sem rios de sangue pelo corpo, sem maldade. O último sonho do toiro antes de morrer.

O meu Pai gostava de ver a festa brava e eu via e também gostava porque gostava dele. Pai, vamos continuar a ir aos nossos sítios a que íamos sempre juntos. Vamos a Moledo, a Ceuta, a Sevilha, a Mijas, ao Forte de Peniche, às Caldas do Luiz Pacheco, a Vilarelho ouvir o Maestro Coca-Cola Killer ensinar Bach às gentes do campo, vamos continuar a ir ao Estádio da Luz e a abraçar-

Ricardo Silveirinha 7


Mordaz

ESQUECI-ME.

É esse o meu castigo? Esqueci-me do sabor da tua boca: é esse o meu castigo? É estranho. Sei de cor a tua nudez específica, a tua intimidadetímida,oteujeitodetentarestaparqualquerpartedetiquandojánãohavianadaparaesconder.

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05#Agosto 2020

Na planície de toda tu, corri até perder o fôlego. Ficava cansado de te querer, talvez até cansado de te ter. Era um nunca mais acabar de sons e cores.

Sabes? Já não sei ao que sabes… Tenho a ideia vaga de algo impossível. Do tempo de antes, compreendes? Do tempo de não haver nós e apenas eu e tu. Olhava para a tua boca que brotava sons feitos de ar e de vento como todos os sons e apetecia-me calar-te bruscamente com um beijo. Aí sim, conheceria o teu sabor como depois o vim a conhecer. Mas o tempo passa, e por que é que o tempo passa? Os dias correm tão devagar e os anos tão depressa. Acho que era o Wagner que dizia: «A tristeza não está nas coisas, está em nós». Tenho a certeza de que era o Wagner que o dizia. A minha tristeza não está em ti, está em mim. É como o esquecimento, esse castigo injusto que carrego ao longo das madrugadas da minha solidão.

O vermelho despetalado das papoilas por entre a brancura da gipsofila; o amarelo enlouquecido dos crisântemos em fúrias de Van Gogh; o verde plácido dos arrozais dobrados pela brisa quente que vem do mais fundo de mim e do mundo que em mim criaste sem saber como, talvez apenas com um silêncio.

Diz-me, por favor: a que sabe a tua boca? Esqueci-me, percebes? Esqueci-me do sabor dos teus lábios perfeitos e do sorriso que lhes fica por detrás, um sorriso que acendia o meu sorriso como se acende um cigarro com a ponta de outro cigarro. Esqueci-me, simplesmente. Dentro desse esquecimento cabe o silêncio da noite que me rodeia. Não, não digas nada. Deixemo-nos ficar assim, neste momento que não volta e eu cumpro o castigo de não te ter guardado para sempre na serenidade de um beijo que tinha a luz do interior das conchas…

Sempre te disse: diz-me algo para te sentir ao alcance curto da voz. E emendava: não me digas nada para te sentir ao alcance ainda mais curto de um silêncio. Agora é do silêncio que falo: é ele o meu crime? Diz-me, se puderes, o lugar em que te perdi para que possa revolver o céu e a Terra até te reencontrar, senhora dos meus sonos, princesa dos meus palácios cristalinos onde sonho imagens negras, mulher do meu corpo caído na berma do carinho dos teus dedos.

Afonso de Melo

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02#Abril Mordaz 2020

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05#Agosto 2020

NO MEU TEMPO NÃO HAVIA BULLYING Francisco Segurado Silva Não havia. E olhem que eu era um menino da mamã, gago e o melhor da turma, até da escola. Tudo junto a juntar malta para me fazer a folha no recreio encimado por umas letais placas de amianto. Mas não havia bullying: havia mesmo era “levar nos cornos”, ou comerem-me o lanche, ou tentarem palmar-me o relógio digital. Chegasse eu a casa dos meus avós, na Quinta das Fontainhas, a dizer - Ai e tal fui vítima de bullying e ainda levava no trombil por cima das maldades que trazia, por não saber defender-me de coisa com nome de coiso depois de “vítima”. Na cabeça arrumada dos meus avós, o medo primevo fazia sempre com que se corresse à paulada os perigos que se nos atravessassem ao caminho. Mai’ nada. - Pelo sim, pelo não dá-lhes com força num lado qualquer. Onde? Dos joelhos para baixo. Quando levava nos cornos, no dia a seguir levava para a escola o derradeiro arsenal: as botas caneleiras alentejanas com protectores de metal na biqueira. Sem aviso, o queque-gago-sabi-

chão da turma alçava da pata não para um chichi, mas para um caramelo qualquer ficar três semanas sem a titularidade, por entre chispas no asfalto graúdo. As minhas botas punham os mais ratos a sete léguas e por isso usava-as até final do ano lectivo, ridículo com calções - ou talvez seja apenas exagero meu de agora. Sem desprezar por um segundo o sofrimento das vítimas, a palavra bullying soa-me a uma “espera” gourmet por um grupo de rufias saído do michelinizado El Bully, ou coisa parecida. Dizia a minha professora primária, a D. Aida - Tende cuidado no recreio. E ó Chiquito - tão bom ser Chiquito, só ela ainda me chama assim -, se houver sinónimos em português não uses palavras estrangeiras. E eu nestas coisas era o tal bom aluno. Quando o recreio acabava, se alguém tinha tido descuidos para comigo em inglês era sinónimo de aparecer com as canelas desfeitas. Sem chibanços nem raspanetes. Tudo fácil à distância de quarenta anos. Voltando à D.Aida Capucho, - Noves fora nada, resto zero.

“... a palavra bullying soa-me a uma “espera” gourmet por um grupo de rufias saído do michelinizado El Bully, ou coisa parecida.”

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Mordaz

O FUTURO

Sexta-feira, são para aí 2 de manhã, subo a Guerra Popular vindo do Kampfumo, viro à direita, e sigo já na 25 de Setembro, e toca-me o telefone, surpreende-me a esta hora, até em quase susto mas vejo que é um camarada, encosto para atender mas já (sub)entendera pois cruzara o África-Bar de esplanada apinhada e decerto que alguém ali me teria visto passar no meu vetusto e rejubilante Ssangyong, o rino Musso. E assim é, ele, até parente, num “mais-velho, estamos aqui, e à tua espera ...”. E logo salto do arção, avanço para esse tal ali, tanta gente que o gang da antropologia se concentrara no átrio do Cine-África, tudo de 2M na mão, eu vindo dos uísques lá dos CFM e assim um pouco desarmado mas algum mais-novo logo me traz companhia, durante as risadas do “onde andavas tu, mais-velho?” enquanto eu junto a boca ao gargalo recém-chegado, e a vida é assim, corre, afinal sou o único

quarentão no círculo, onde abundam ex-alunos agora, e até desde há já muito, colegas. Festiva a noite continua entre conversas flanantes, festa ombreada. E alguém chega, de todos eles conhecido, jovem trintão, um palmo maior do que eu, para cima e de ombros, que não de barriga, e ali colhe grande e geral agrado, rodada de abraços, daqueles das palmadas nas costas. Diante de mim aperta-me a mão olhando para o quem do lado, e eu, o tal mais-velho, na noctí-

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05#Agosto 2020 vaga variante bem-disposta, digo-lhe em sorriso jocoso “pá, olha para mim quando me apertas a mão!”. O que fui eu dizer!, o tipo investe “que é que tu queres, branco de merda!?” e por aí em diante, sempre para pior... Estanco, de tão surpreso, deste modo nunca vira isto nesta terra! Racismo aqui? Sentira-o, muitíssimo, nos tempos em que aportara, mas cuspido por moçambicanos brancos, invectivando-nos “tugas” como se peçonhentos, algo execrável mas contextualizável, daquela tribo sentida como desamada, mas assim nunca... E tranco, enquanto ele é logo afastado, rodeado num “então, calma, é o Teixeira, o nosso mais-velho!”. Tiram-no do átrio, esse que em tempos anteriores foi vivido como foyer, e planta-se ele no passeio ainda desabrido. A mim não só me amornou como azedou a 2M, e pergunto(-me) “que é isto? quem é este gajo?”, e um dos meus mais-novos esclarece, “é nosso colega, de Economia, fez o mestrado em Portugal e diz que lá sofreu muita merda”, e eu disparo, “e o que é eu tenho a ver com isso, caralho?!”, filhodaputa, professor universitário ainda por cima… Mas o tipo não se cala, sonoro nas invectivas, e forçam-no a recuar até ao separador das vias, apinhado de carros pois tantos os clientes que enchem a rua. Ali encontra pedras e paus, que brande em gritaria, ameaçando-me, que já estou na breve escadaria da entrada. E nisso, sem que eu o esperasse, algo se me quebra, perco a cabeça como nunca me acontecera, pois uma merda destas eu não aceito, não posso aceitar... E avanço para ele, a passo cruzo o passeio e a rua, só depois imaginarei o que toda aquela multidão terá pensado do maluco daquele “branco” ou “tuga”, nestas condições assim ali quase-único, ou mesmo “velho”, que já estou encanecido, a avançar para um louco aos gritos com pedras na mão num “atira lá, meu cabrão!”. A meu lado, logo, C., que é, sempre eu o disse, como se um príncipe, e o mais influente da sua geração, num

“calma, Teixeira, calma, mais-velho”, e o sacaninha, cobarde, nos gritos a atirar as pedras e paus, às minhas nove horas e às três horas, e depois às sete e às cinco, e eu avanço-me, no passo a passo descerebral, e é ele rodeado, enfiam-no num carro e lá segue à vida. Semanas passam, surge o jantar final do ano lectivo, em casa de colega, um tipo porreiro. Connosco alguns dos finalistas, agora novos doutores também. E de súbito entra o tipo, com a mulher, afinal é ali família. Fico estupefacto, numa amálgama de sentimentos, não posso desatinar, pois sou convidado e a anfitriã está presente, e dever-me-ei retirar, ofendido?, mas não deixo de pensar, “oops, agora, sem aquela adrenalina toda, o sacaninha parte-me todo”, e até penso que ele virá dizer-me, mentindo claro, “professor ou Teixeira, desculpe lá, havia bebido demais”. Mas nada disso, ele apenas me fita, com sarcasmo, em injúria altaneira, supremacista... Janto, converso, rio, pois é festa e também minha. Entretanto o casalinho sairá. Nisto fui fumando na varanda, olhando a Drenagem. Sem deixar de pensar, entre outras coisas, que aqueles meus queridos amigos não sentem nem percebem o quão inadmissível é juntarem-me com aquilo. E, pior, o conviverem eles com aquilo. Porque isto não é apenas o passado. É o futuro, compõe-no. Não tenho culpa. Nem aceito castigo. E, aqui, agora, para o negar podem chamar os demagogos, letrados, atrevidos. Esta pobreza da gente da “petty-corruption”. Que eu avançarei, na mesma. Passo a passo. Desde que, claro, perca a cabeça.

José Pimentel Teixeira

E avanço para ele, a passo cruzo o passeio e a rua, só depois imaginarei o que toda aquela multidão terá pensado do maluco daquele “branco” ou “tuga”

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Mordaz

FILOSOFIA NO ESTÁDIO

No discurso religioso somos culpados assim que nascemos por via de outros que fizeram qualquer coisa; no discurso tributário somos culpados assim que conseguimos algum rendimento do nosso trabalho; no discurso desportivo somos culpados e castigados a torto e a direito porque pagamos quotas e bilhetes e ainda nos arriscamos a ver a nossa equipa perder.

Como na religião, em Kafka a culpa não é uma questão voluntária de escolha do indivíduo, basta este existir para ser culpado (“O Processo”). A vida é uma sucessão de encontros e desencontros com o castigo e a punição sem se chegar a perceber bem porquê. Em Dostoiévski o homem é culpado voluntariamente se assim o decidir na sua consciência, marcando-se desta forma a responsabilidade de cada um ao fazer o seu destino. Mas nada como o mundo da bola para nos iluminar o esclarecimento e ilustrar o labirinto do comportamento hu-

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05#Agosto 2020 mano. Mesmo não esclarecendo nada não deixa de dizer muito acerca dos paradoxos da existência. É num estádio de futebol que muitas vezes se escondem as mais inesperadas surpresas acerca de quem somos, do que somos, enfim, aprende-se muito quando estamos dentro de uma multidão.

pediam-lhe que o prendesse, era um ordinário que tinha estado a gozar com o povo da bancada. O policia foi até ao jornalista e trocou umas breves palavras e gestos com ele. Quando se dirigia outra vez à assistência o jornalista sentou-se no chão, facto que motivou uma salva de palmas da parte daquele pequeno grupo da bancada. Foi então que o polícia se dirigiu a nós em tom pedagógico. - O homem é um jornalista sueco. Por isso não percebia nada do que vocês estavam a dizer. Se calhar pensou que estavam a gozar com ele. Mas pronto, agora ficou tudo resolvido.

Há muitos anos, era eu ainda um adolescente em fim de carreira quando fui até ao estádio da Luz assistir a um jogo entre duas selecções, Portugal e Suécia. Contrariamente ao que era habitual fui parar lá abaixo às primeiras filas da bancada do peão, uma área onde se consegue ver o jogo quase ao mesmo nível dos jogadores em campo. Agitação habitual após o tocar dos hinos nacionais, apito para início do jogo e… um fotojornalista dentro do perímetro do campo resolve sentar-se numa das caixas de som do estádio e apontar a câmara para obter o melhor ângulo das jogadas. Ora acontece que o jornalista, mesmo sentado, bloqueava uma parte da visão de jogo da nossa bancada. As bocas começaram a voar, primeiro num tom civilizado (“Sai da frente… cabeçudo… olha aí que a gente não vê…) até que se percebeu que o jornalista não nos ouvia. Mudou-se a intensidade e o tom (“Ó boi, baixa a corneta… ó filha da p… ó urso do c… sai da frente que a malta quer ver o jogo…”). Às tantas, o jornalista percebe que estavam a falar com ele e olhou para nós. A gritaria aumentava. O jornalista não teve melhor ideia do que nos mostrar o dedo do meio. Nessa altura já ninguém queria saber do jogo. Era o holocausto, a terceira guerra mundial, o ataque final. Começavam as ameaças de levar uma tareia, de ser chacinado já ali, um ou dois abanavam a cerca de arame e tentavam saltar para o lado de dentro. Entretanto chegou um polícia atraído pelo barulho. Alguém se lembrou de falar com o polícia.

O holocausto foi adiado, as bombas nucleares recolhidas e o linchamento cancelado. Os comentários no entanto continuavam, dada a força da excitação não se conseguir apagar de um momento para o outro. “O homem é sueco, como é que haveria de perceber o que a gente estava a dizer”; “Bem se podia estar aqui a gritar o resto da noite que não se conseguia chegar a lado nenhum”; “O rapaz afinal está ali a fazer o seu trabalho, nem percebeu que nos estava a tapar a vista”, etc,etc,etc. Meia hora depois, já todos de volta ao foco no jogo, houve alguém que decidiu encerrar o episódio com algum brilhantismo. Esperou-se que o jornalista olhasse de novo para a bancada e, em jeito de assinatura do fim das hostilidades, alguém gritou: “Ó cámone…tira aí uma fotografia à gente…”

Artur Guilherme Carvalho

- Ó shô guarda, diga aí a esse gajo que saia da frente que a malta não consegue ver o jogo. - outros mais exaltados

O jornalista não teve melhor ideia do que nos mostrar o dedo do meio. Nessa altura já ninguém queria saber do jogo. Era o holocausto, a terceira guerra mundial, o ataque final.

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Mordaz

O HOMEM QUE QUERIA SER FELIZ

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05#Agosto 2020 Logo que chegou à idade do entendimento das coisas, Justino decidiu que iria fazer tudo o que fosse possível para ser feliz. Havia de merecer um epitáfio assim: “Aqui jaz Justino, que viveu para ser feliz e por isso morreu feliz”, imaginava já ele, numa idade em que ninguém pensa em morrer e muito menos em epitáfios.

nunca se vai. Armado de todas estas armas, assim viveu Justino até ao dobrar dos setenta anos, organizado e convencido da sua felicidade. Um dia sentou-se, reformado, na cadeira de baloiço da varanda e, com todo o vagar, perguntou-se se teria de facto sido feliz.

À partida, houvera logo um acontecimento a seu favor, de que a mãe gostava de se gabar: nascera com o peso, o comprimento e as demais características exigidas a um recém-nascido todas bem certinhas. Interpretou esse equilíbrio original como um bom augúrio.

Nunca experimentara afinal a excitação de uma vida frenética, nunca possuíra uma mulher bela, nunca cometera qualquer excesso, nunca gozara as mordomias que o dinheiro podia oferecer. Nunca nada. Agora que as forças começavam a faltar-lhe, insinuava-se-lhe a suspeita perversa de que aquelas águas por onde decidira navegar não o tinham conduzido à felicidade. Passara ao lado. Restava-lhe esperar pelo resto da vida.

Então, começou a tomar as suas medidas. Com todo o cuidado. Logo no liceu, depois na universidade, não se aplicou muito. Ouvira que os bons alunos conseguem os grandes empregos, mais tarde dominam as grandes empresas e a vida passa a ser um rodopio de graves assuntos, reuniões a desoras e dramáticas decisões. Tudo contra a felicidade. Por isso, apagou-se. Foi estaudante medíocre, cosido às paredes da escola; não dava opinião sobre nada e ninguém lha pedia. As mulheres foram outro dos seus maiores cuidados. Mulher bonita é, mais tarde ou mais cedo, fonte de ciúmes, infidelidades e sabe-se lá que mais. Mulher inteligente sobrepõe-se ao marido e daí à tirania vai um passo pequenino, é uma questão de tempo. Nesta convicção, começou por guardar para a universidade a escolha do primeiro amor. Quanto mais adiados os problemas, mais tempo de felicidade. Pura aritmética. Depois, andou em busca de uma mulher nem muito bela, nem muito inteligente, que não atraísse olhares lascivos, nem fosse dada a resolver grandes equações. Não teve que procurar muito, as difíceis eram as belas e as inteligentes. O emprego foi escolhido pelo mesmo método. Enquanto os seus companheiros de curso se batiam pelas melhores ofertas, Justino, fiel ao seu propósito, percorreu solitários caminhos subterrâneos que o conduziram a ocupações pacatas e eternas em escritórios esquecidos. Não teve filhos, porque os filhos, nos maus tempos que corriam, eram uma cruz que se acarretava a vida toda. Não comprou residência secundária, porque bem sabia pelos amigos as trapalhadas que espreitam uma casa aonde

Assaltou-o um sentimento irreprimível de culpa. Culpa pelo que não fora e podia ter sido. Levantou-se a custo da cadeira e dirigiu-se, lento e curvado, à pequena gaveta onde, desde há muito, guardara num sobrescrito o texto futuro do seu próprio epitáfio. Pegou numa caneta e alterou cuidadosamente a frase: “e por isso morreu infeliz”. Então, de repente, um ímpeto de revolta sacudiu-lhe o corpo. O sangue pulou-lhe nas veias. Ainda ia a tempo, caramba. O sol brilhava lá fora e os pássaros cantavam. Organizou farras com os raros amigos. Tudo à discrição: carne, marisco, vinho, cerveja. Até de manhã. Comia, bebia, berrava. Sentia-se mal. Vomitava todo o dia seguinte. Contratou prostitutas caras, que se despiam, provocantes, à sua frente. Mas já se sentia murcho por dentro e por fora. Despachava-as com pagamento por inteiro e serviço por metade. Inscreveu-se em cruzeiros e atravessou mares e oceanos, isolado no meio de multidões. Depois trabalhou, voluntário, numa obra social, de onde foi despedido por falta de obra feita. Por fim, regressou à sua cadeira na varanda. Concluiu que o destino, feito juiz, se encarregara de o castigar, recusando-lhe a recuperação da vida que perdera ao escolher a sua própria insignificância. Por ali ficava dias inteiros, com o olhar fixo em algum ponto no horizonte, embalado pelo canto dos pássaros e pelo ruído do vento nas folhas das árvores. Um dia morreu assim, sem nunca ter entendido se vivera feliz ou infeliz.

Jorge Arriaga 17


Mordaz

O CASTIGO E EU Guardo da minha meninice a ideia de que o triunfo do Cristianismo deveria ser lido como a vitória do castigado sobre o castigador, de Cristo sobre César. Teria levado tempo - mais de três séculos - mas aconteceu. (Que me desculpe o meu professor de História - a quem a turma chamava o Teixeira Asneira - mas Gibbon e Diocleciano fizeram a leitura correcta: o Cristianismo deu cabo do Império). Quem me meteu tal interpretação da história na cabeça não terão sido as bondosas e piedosas senhoras que me prepararam para a primeira comunhão - as irmãs Bruskie - mas, mais provavelmente, meu irmão José Manuel, ano e meio mais velho, que então me servia de piloto em questões de ética, substituindo-se a meu pai, oficial de Marinha, que, por esses tempos, estacionava em Xangai - logo lá nos antípodas - integrado na força naval internacional que ali zelava pela

segurança das Concessões estrangeiras ameaçadas pela invasão japonesa. Meu irmão, já então consciente da ambivalência cósmica, entendia - e bem - que deveríamos estar ser sempre do lado dos desfavorecidos, dos humildes, dos esquecidos e quejandos. Daí as grandes opções pelo Benfica, a ida a pé de S. João do Estoril até à estrada de Sintra para ver passar o José Maria Nicolau na Volta

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05#Agosto 2020

Gradualmente, fui compreendendo que a ordem estabelecida - cá e lá, agora e sempre - usa o castigo para esconder e colmatar as suas próprias imperfeições.

a Portugal, a preferência pelas brincadeiras brutas da rapaziada do Livramento e da Galiza e o apoio moral a Negus, quando Mussolini invadiu a Etiópia - então chamada Abissínia. Aqui acabaram as opções claras pró-fraco pois nosso pai, entretanto chegado da China, chamou-nos a capítulo e fez-nos ouvir a cantata do fardo do homem branco. Mussolini levava consigo a civilização e iria punir um selvagem troglodita que recusava os benefícios do progresso ao seu povo!

Nos meus tempos de Colégio - inevitavelmente, o Militar - fui castigado. A primeira vez por ter feito “miau” numa formação de alunos que estava ser passada em revista pelo oficial de serviço. Este tinha a alcunha de Gato. Não reparei que por perto andava um sargento e este tinha ouvido apurado de cachorro vadio. Detectou logo donde viera o miau. Denunciado, o oficial castigou-me. Mandou o sargento levar-me ao barbeiro para uma tosquia. Mais tarde, Dostoievsky ajudou-me a compreender por que miei. Eu quis mostrar que existia, que era algo mais do que um da formação, quis ganhar aficionados. Como diria Frank Lloyd Wright, “até um tijolo quer ser algo mais do que um simples tijolo”.

Apesar desta lavagem cerebral, grande foi a minha surpresa e dolorosa a minha confusão quando aprendi que, séculos após o Edito de Tessalónica, a Igreja usou o nome de Cristo para castigar rebeldes e professos de outra fé e o fez com um grau de crueldade que superou tudo quanto a história até então registara. Afinal foi César quem triunfou. Até a veste dos novos cardeais lembrava a purpura que outrora revestia os imperadores romanos. (O meu professor de História tinha razão,mas não sabia porquê). Gradualmente, fui compreendendo que a ordem estabelecida - cá e lá, agora e sempre - usa o castigo para esconder e colmatar as suas próprias imperfeições.

O que ali ficou evidente foi a falta de preparo do oficial de serviço para enfrentar a situação. Podia ter respondido com humor e vexar-me com ironia cáustica; poderia ter feito um sermão e tornar-se célebre. Mas não, o homem tinha galões no braço mas era vazio no coco. Castigou porque não sabia fazer mais nada. O seu castigo fez-me notado: deu-me a aura de vítima de um vilão. Saí do anonimato, e pela continuação acabei por descobrir entre os castigados os meus melhores amigos de sempre.

Se admitirmos que a sociedade tem prevalência sobre o indivíduo - premissa básica do progresso - tudo encaixa. A sociedade exige coesão e esta necessita de ordem o que, por seu turno, impõe a hierarquia. Como tal, os desobedientes serão reprimidos - ou até mesmo excluídos - porque põe a sociedade em risco. Lógico, sim; certo, não. Não está certo porque os espíritos fortes continuarão a rejeitar a ética da sociedade piramidal, onde se entende que a salvação passa pelo vértice da pirâmide. A perfeição vem do céu; quem ascende, merece. Será assim? Talvez não: na subida, a virtude mostra o caminho, mas o vício revela o atalho…

Não raro na história, o castigado sai beneficiado, ainda que por vezes desperdiçado. A disparidade do efeito leva-me a admitir que a instituição do castigo deveria ser repensada. Para já, se o castigo causar ressentimento, diria que será “pior a emenda do que o soneto.”

Luis Soares de Oliveira

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Mordaz

PÃO E VINHO SOBRE A MESA Sara Sampaio Simões - Já tu tens onde cair morta, não é? Isabel desvia de forma genial para a vizinha de cima. - Olha lá, nunca mais vi a rapariga do gato. Tem a caixa do correio a abarrotar. - A Marta sabe como é que se faz nestes tempos, não facilita como umas e outras. - O cancro na mama não me matou e agora ia ser um vírus que me ia levar desta para melhor, queres ver? - Discurso igual ao cão do teu marido. Não há que tirar de um para pôr noutro. - Não fales do Alfredo. - Já lá está a pagar pelas que fez. E não foram poucas. - Acho engraçado que enchas a boca para falar do meu falecido quando, na verdade, era o teu que nem sequer tomava banho. Achava que a limpeza lhe gastava o corpo. - O meu Eurico sempre foi asseado. Queres guerra, é? Então senta-te aí, no lado laranja da coisa que eu já tas canto! Isabel não se sentou à mesa. Foi lavar o fogão. Há dias que o havia prometido. Na realidade, estava a escapar. Era perita em fugir. A culpa mordia-lhe os tornozelos desde que, em jovem, roubou o namorado da irmã. O «Celeste versus Isabel» começou aí. Isabel ficou-lhe com o Alfredo, Celeste ia ficando para tia, não fosse conhecer um dia, no bingo, Eurico. Os ossos dele contavam mais quinze anos do que os de Celeste, mas a cavalo dado não se olha o dente. Pelo menos, tinha ali uma companhia. Os anos foram passando, as fronteiras entre as irmãs Gaspar tornavam-se cada vez mais altas e espessas, até que se encontraram o ano passado, na festa da aldeia, para novo duelo. Música popular portuguesa + abraços a familiares emigrantes + cheiro a carne + jarros de vinho + olhares lancinantes entre as Gaspar. Nem um olá. Só muitos foguetes raivosos a saírem-lhes dos olhos. Falando em foguetes… Foguete 1! Foguete 2! Foguete 3! E o raio da pirotecnia avia, num ápice, a banca onde se ia buscar mais pinga. Agora Isabel já se senta no seu lado da mesa enquanto espera que as ervilhas fiquem no ponto. Celeste já lá está e bebe a mesma pinga que a faz lembrar o último dia de vida do seu rico Eurico. O assunto instala-se nos dois la-

Mesa número 5: A Uma mesa, duas toalhas e uma pilha de revistas cheias de pó a fazer fronteira. Se havia pessoas que precisavam de claras definições territoriais eram as irmãs Gaspar. A metade de Celeste, a mais velha, tinha tons de bege e rendas. Herança da mãe. A outra metade pertencia a Isabel e sabia a cores vivas como o pai tanto gostava. 70 e 67 anos. Bege contra laranja. Celeste versus Isabel. - Deixa as coisas como encontraste, se fazes favor. Já tinha o fogão limpo. - Trato disso depois. - Quando bateres a bota? - Vais tu primeiro que és a mais velha. - Ou vais tu antes que nunca te desinfetas. Achas o quê? Que o bicho não chega à mercearia do senhor Zé? - Sempre foste muito medrosa, Celeste. Daí teres perdido o… Isabel não acabou a frase. Preferiu limpar o fogão. Conviver com Celeste já era duro. Conviver com uma Celeste irada era o inferno ao cubo. Nove dias depois… Celeste irada – ou o inferno ao cubo – olha com um certo grau de loucura e uma elevada dose de ódio para os sacos não desinfetados que, mais uma vez, vêm da loja da esquina. - Nem te descalças à porta? Gostas de brincar com o fogo, não é? - Se estás mal, muda-te. Ah, não, espera. Não tens para onde ir. Este apartamento velho dos pais é o único teto que tens.

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05#Agosto 2020 obrigadas a partilhar a casa deixada pelos pais. Um ano e uma pandemia depois, a mesa era uma e os lados ainda dois. Mas sabiam. Isabel sabia que os seus tornozelos continuavam em sangue deixado pelas mordidelas da culpa. Celeste sabia que tinha dado um castigo demasiado severo para aquela que era a sua verdadeira e única companheira de vida. Só falavam disto no cemitério, cada uma junto à campa do respetivo falecido. Celeste engasga-se com um gole da pinga e duas migalhas de pão. Isabel salta para o outro lado da mesa e dá-lhe várias pancadas. Passa pelas costas, pela cabeça, pelo rabo, até às pernas ela vai. Leva depois um pancadão da irmã mais velha. - Olha lá, eu engasgo-me e tu aproveitas para me encher de porrada? - Fiquei com medo. Não te pode acontecer nada. Aquele desabafo era mais forte do que qualquer lado, qualquer fronteira, qualquer bege ou laranja. Calam-se outra vez durante, pelo menos, oito minutos. - As ervilhas já devem estar todas empapadas. Isabel levanta-se, prova a iguaria, coloca-lhe um ovo por cima. Hesita. Coloca dois. Escalfa ali também o «Irmã Gaspar mais velha versus Irmã Gaspar mais nova». Uma mesa, duas toalhas, uma pilha de revistas cheias de pó a fazer fronteira e um tacho do lado laranja da coisa. - Fiz a contar contigo. - Temos um acordo. Cada uma faz o que come. - Pronto. Quebrei o acordo. E então? Calam-se, parte três. - Não te devia dizer isto, mas antes que me morras com esse vinho e muito pão entalado na garganta, o Alfredo – num dia em que também ele já estava muito entalado de pinga na garganta – disse-me que gostava muito de mim, mas que tu tinhas sido o grande amor da vida dele. Celeste sente qualquer coisa nos olhos. Já não chora há muitos anos, para aí desde os vinte. Isabel, que sempre foi a mais chorona, deixa cair sem pudores o líquido esquecido pela irmã. - Ele disse isso para te chatear. Sempre foi maluquinho por ti. Refaz-se da generosidade. E segue. - Amanhã vou eu ao senhor Zé. Sempre tenho mais cuidados. E agora tira lá essa merda das revistas da frente que eu quero chegar ao tacho. As ervilhas cheiram bem. Bege com tons de laranja. Dois ovos escalfados. Celeste com Isabel. Isabel com Celeste.

dos da fronteira. - Parece que ainda me lembro do cheiro. - Do teu Alfredo chamuscado? - Podia vir do teu Eurico esturricado. Calam-se. Ambas querem falar da coincidência que foi ficarem viúvas no mesmo dia. Ambas sabem também que esse dia, o dia da morte, foi também o dia em que renasceu a relação das duas. Ficaram sem nada e foram

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Mordaz

CRIME E RACISMO Segundo o artigo 1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, nada, absolutamente nada, justifica a discriminação por motivo de raça, género ou religião, entre outros aspectos. Os crimes cometidos por esses motivos têm de ser condenados.

Vem este intróito a propósito do português de origem guineense, Bruno Candé, assassinado há dias, num bairro de Lisboa, por um ex-combatente da guerra da Guiné de 76 anos, que disparou seis tiros com uma arma que pertencia à Polícia de Segurança Pública (PSP, o equivalente em Moçambique à PRM) e que estava desaparecida desde os anos 1990, após proferir numerosos insultos racistas três dias antes do homicídio, que foi anunciado, premeditado, calculado, planeado e cometido a sangue frio. Da mesma forma que os crimes machistas devem ser condenados como violência de género, os crimes racistas também devem ser reconhecidos e condenados para que não se repitam, e o facto de a sociedade estar a atravessar graves problemas económicos não serve de desculpa para ignorar estes crimes. Os meios de comunicação internacionais, por unanimidade, apresentaram o caso do actor Bruno Candé como crime racial. Pelo contrário, os meios de comunicação portugueses (por sorte não na sua totalidade, mas sim, lamentavelmente, na sua maioria) esforçaram-se por defender que o povo português não é racista, e pediram que não se misturassem estes crimes com o racismo. Houve, assim, receio que se acendesse uma chama que não faz sentido, porque, pelo que dizem, o povo português convive pacificamente com povos de outras raças. E pronto, dito isto, acabou o assunto e não se falou mais. Os estudos sociológicos revelam que os preconceitos raciais diretos, abertos e manifestos estão a ser substituídos, nas sociedades modernas, por novas e ocultas formas de preconceitos, mas que estes não foram ainda erradicados. O ra-

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05#Agosto 2020

cismo aversivo é um termo criado pelos psicólogos sociais Samuel L. Gaertner e John F. Dovidio para identificar formas de racismo e comportamento xenófobo subtil, usado por indivíduos que ideologicamente estão abertamente posicionados contra o racismo tradicional. São indivíduos que negam serem racistas, mas que exibem atitudes implicitamente racistas nos testes de associação implícita. A estratégia que demostrou ser mais efetiva para combater este tipo de preconceitos raciais, tanto a nível individual, como intergrupais, é consciencializar as pessoas sobre os seus preconceitos. A nível de grupo, a estratégia de recategorização é um método muito eficaz para reduzir estes preconceitos.

ses não são racistas porque, ao contrário dos outros europeus, misturamo-nos e temos relações sexuais com todas as raças” (pensava eu que havia mestiços de outros países, mas pelos visto é algo exclusivo dos portugueses), “nós, portugueses, não somos racistas pelo luso-tropicalismo” (até há uma teoria imperial a justificá-lo!), “os portugueses não são racistas porque as diferenças entre raças são factos objetivos” (wtf?!?!), “os portugueses não são racistas porque os insultos aos pretos, da geração que combateu nas guerras coloniais, estão justificados pela perturbação de stress post-traumático” (wtf outra vez?!?!), “os portugueses não são racistas, porque os pretos entre eles são mais racistas do que nós” (novamente uma justificação para o inadmissível).

Mas há algo que não bate certo. O último inquérito da European Social Survey - uma pesquisa transnacional de cariz académico que tem sido realizada a cada dois anos por toda a Europa desde 2001 e que se debruça sobretudo em questões sociais - revelou que 62% dos portugueses tem pensamentos racistas, respondendo afirmativamente a pelo menos uma das seguintes perguntas: “Há grupos étnicos ou raciais, por natureza, mais inteligentes? Há grupos étnicos ou raciais, por natureza, mais trabalhadores? Há culturas, por natureza, mais civilizadas que outras?” 62%! Estamos a falar de mais de metade, da maioria e não da forma mais subtil de racismo, não do racismo aversivo que poderíamos encontrar em uma parte dos restantes 38% dos portugueses, mas de um racismo aberto e manifesto.

A realidade é que em Portugal há pessoas racistas, e após uma longa história de colonialismo, escravidão, exploração, guerras no ultramar (Guiné-Bissau, Angola e Moçambique), e todo o legado racista que essa história gerou, Portugal, em vez de criar campanhas estruturadas de combate ao racismo para impedir que pessoas inocentes como o Bruno Candé morram injustamente, optou por negar a realidade, e afirmar que os portugueses não são racistas. Basta olhar para o mapa do racismo por países na Europa feito pela Universidade de Harvard para ver o quão falaciosa é esta negação. Se as pessoas não tomam consciência dos seus preconceitos raciais, o racismo jamais será erradicado. Como escreveu o escritor James Baldwin, nem tudo o que é enfrentado pode ser alterado, mas nada pode ser alterado até que seja enfrentado.

A maioria dos jornalistas portugueses defendeu (poderíamos pensar que de uma forma concertada?) que os portugueses não são racistas, sem qualquer rigor científico, só pelo facto dessa premissa ser uma crença disseminada pelo povo. Em que se baseia essa afirmação? Se o povo português não fosse racista, não teria classificado esta morte como crime racista? Não teriam participado mais brancos nas manifestações organizadas por SOS racismo? Mas não foi o caso. Eu quis saber e fui à rua perguntar. E eis as respostas que obtive, uma e outra vez, as respostas que se repetiram pela maioria: “Nós, portugueses, não somos racistas porque bebemos do mesmo copo que pessoas de outras raças” (imagino que estariam a falar antes do covid-19, nesse caso conheci muita gente de muitos outros países da Europa que fazia o mesmo), “os portugue-

Se os crimes raciais como o do Bruno Candé não se condenam, está-se a aprovar o uso de vocabulário racista e, dessa forma, a incitar a discriminação, impedindo assim que se cumpra em Portugal algo tão básico e importante como o artigo 1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. E nada, absolutamente nada, nem sequer a negação coletiva de uma realidade apoiada por uma aparente concertação jornalística, justifica o seu incumprimento.

Olga Delgado Ortega

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Mordaz

SEND NUDES COMPATRIOTAS DO PASSADO,

causas e da justiça social. Ainda há coisas

oral de carpetes para as senhoras.

Escrevo esta carta desde o Portugal do

a fazer, claro, como abrir a eleição para

Há depravados e depravadas que,

ano de 2037 como incentivo à vossa

cargos públicos a bovinos e elfos, mas

desafiando a lei, praticam secretamente

árdua luta para a construção de uma

estamos no caminho certo. Sei que vocês,

a abominável heterossexualidade

melhor sociedade e para que sejam

em 2020, ainda vivem numa era sombria,

escondidos em catacumbas e grutas nas

conscientes que todos os vossos esforços

quase primitiva, mas não cedam na luta.

montanhas. O Ministério Rosa Fúcsia,

serão recompensados. Portugal é hoje,

Permitam que vos comente algumas das

liderado pela Ministra Isabel Moreira,

em 2037, uma nação mais livre, mais

nossas conquistas sociais que, com o

mantém um rigoroso aparelho repressor

progressista, mais multicultural, mais

tempo, alcançareis:

para combater estas práticas desviantes.

inclusiva, mais tolerante e mais verde.

Sexualidade: Conseguimos abolir a heterossexualidade. Hoje, todos somos

Alimentação: O Veganismo é agora

A nossa presidenta, uma anã lésbica,

homossexuais, lésbicas, transsexuais,

a nossa religião oficial e a Sagrada

vegan, afro-europeia e não-vacinada,

necrosexuais ou zoófilos. Incentivamos,

Congregação do Brócolo Mártir a nossa

de nome Marcela Costa Mortágua

até, o pansexualismo, ou seja, as relações

Igreja. Ainda existem alguns hereges

(nome adoptado em homenagem aos

sexuais de humanos com arbustos,

selvagens que, secretamente, consomem

pais da pátria), cuja residência oficial já

árvores, leguminosas e tubérculos para

salpicão de Vinhais, pezinhos de

não é o Palácio de Belém mas sim um

conseguir a plena libertação sexual da

coentrada e nauseabundas farinheiras

catita edifício em forma de Courgette

flora. A heterossexualidade representava

de forma ilegal e secreta. O Ministério do

desenhado pela Ministra da Cultura,

a opressão do homem sobre a

Tofu e da Soja trava uma dura batalha

Joana Vasconcelos, representa a vitória

mulher. Agora, apenas é permitida a

para travar os mercados negros destas

sobre a discriminação das minorias, das

sodomia para os senhores e a limpeza

substâncias estupefacientes. Os pratos

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nacionais são, agora, a Caldeirada de

racionada e apenas utilizável para

transplante de rim ou uma simples

Raízes de Hortênsias e o Empadão de

produtos de primeira necessidade

operação às cataratas na mesa da

Aloe Vera. Todos os anos, o Cardeal

como Iphones, Ipads, Playstations

cozinha de casa, apenas com o auxilio

Cláudio Ramos publica inúmeras

e consoladores anais. Os trabalhos

da avó com Parkinson e de um cutelo. O

encíclicas com deliciosas receitas vegan.

agrícolas e industriais, não existindo

Tabagismo foi eliminado, em boa parte,

energia para a maquinaria existente e

por acções informativas e pedagógicas

Educação: A figura fascista e opressora

estar proibida a utilização de animais, é

levadas a cabo por este Governo, como

do Professor foi extinta. Agora, são

feita pela própria mão humana. Assim,

o pendurar os fumadores, por testículos

divertidos palhaços e animadores

assistimos a bucólicos quadros em que

e clitóris, no tabuleiro

socio-multiculturais os que lecionam

humanos puxam harmoniosamente o

da Ponte Eduardo

as aulas. As disciplinas inúteis como a

arado pelos campos ou trabalhadores

Beauté (a antiga

Matemática, História ou

Português

de

Ponte 25 de

foram suprimidas e

substituídas

uma

fábrica

Abril).

por outras bem mais úteis e divertidas

Defesa Nacional: Somos uma nação de paz e, como tal, não necessitamos nem como

armas nem soldados. O Exército

“Teoria

foi substituído por grupos altamente

Universal

qualificados de ativistas cuja acção se

da Selfie” ou “Mannequin Challange - As

manufacturam o bico dos palitos, um a

efectua, principalmente, através das redes

Origens”. Nas Universidades, os cursos

um, com uma bela e tradicional navalha

sociais, lançando devastadores hastag’s

mais procurados são os de “Amigo”,

Suíça. Escusado será dizer que os únicos

e publicando fotos de gatos fofinhos que

“Ativista” e “Decorador de Interiores –

meios de transporte autorizados são a

desarmam qualquer exército. Também

Mestrado em Feng Shui”. As avaliações

bicicleta e o patinete. A A1 é agora uma

dispomos de um assustador arsenal de

aos alunos terminaram, evitando, assim,

bonita ciclovia.

citações do Paulo Coelho e do gajo do

traumas desnecessários e a Taxa de sucesso escolar subiu para os 100%.

Querido Mudei a Casa para situações Saúde e Medicina: A pérfida indústria

mais complicadas. Esperamos nunca ter

farmacêutica foi destruída e substituída

que utilizar estas armas de amor maciço.

Desporto: Os únicos desportos

pela Homeopatia. Surpreendentemente,

autorizados em 2037 são o Step, o

as poções de framboesas silvestres e

Running, o Pilates, a Zumba e o Crossfit.

mel parecem não curar os constipados

Como podem constatar, caros

Para além de terem nomes fixes e

e os cremes de bolota e canela

concidadãos do passado, vivemos

modernos, estes desportos não dão

não funcionam como analgésicos.

agora felizes, seguros, confiantes e,

origem a vencedores nem a vencidos

Suspeitamos que os nossos laboratórios

sobretudo, de forma ecologicamente

evitando traumas desagradáveis.

estão a ser alvo de sabotagem pelo

sustentável. Mesmo que esta realidade

Também o Xadrez foi abolido pois,

grupo terrorista M.A.C.H.O. (Movimento

vos pareça uma utopia em 2020, vocês

durante a sua prática, eram proferidas

dos Amantes da Carne e Heterossexuais

já iniciaram o caminho que vos vai

expressões machistas e homofóbicas

Orgulhosos) pois, como todos sabemos,

trazer até a esta era de amor fraterno.

como: “Cavalo come Rainha” ou “Rei

a Homeopatia é infalível. Também

Estão em boas mãos.

come Bispo”.

substituímos o Serviço Nacional de

Aceitem um abraço -e uma palmadita

Saúde por acesso universal ao Wi-

nas nádegas como sinal de afecto-

Industria, Energia e Ambiente: Como

Fi. Assim, todos podem consultar a

deste vosso amigo do futuro.

é óbvio, já não existe energia nuclear,

Wikipedia e o Youtube permitindo o

petróleo ou qualquer coisa que possa

auto-diagnóstico e tornando possível

O Ministro do Amor, Paz e Concórdia

poluir o ambiente. A electricidade é

a cada cidadão efectuar o seu próprio

General Manuel Luís Goucha

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Mordaz

A CULPA É TUA...

A culpa é tua e o meu castigo é a felicidade. Desde o dia em que me abriste a porta para me aventurar no mundo lá fora, que os meus joelhos nunca mais foram os mesmos, os pés passaram a exibir erosões e assoreamentos de superfície lunar, e as mãos apresentam socalcos em vez de linhas profundas com significados determinados.

O castigo é a descoberta do caminho mais plano no plano mais inclinado e, sem escorregar, ou escorregando violentamente, adquirir a capacidade de lamber as feridas e arranhões, fazendo da minha espinha a dorsal mais maleável deste minuto. O deus das coisas importantes não é castigador, é o meu treinador pessoal. Ele, como nada nem ninguém, sabe da minha capacidade de vergar, dobrar, esticar e enlaçar. E sabe que eu sei que a causa e efeito fazem parte do trajeto, e que a culpa é só um nome com castigo atribuído pelos grilhões da consciência.

O coração, a vida e a cabeça são linhas como as ravinas de Seirós, Corgo e Folque, bem definidas e intensas, profundas e marcadas pelas intempéries de cada hora (se entendermos a hora na pele como o século na crosta deste planeta). Tens tanta culpa por forçar o meu sorriso com brisas e vendavais e de desgastá-lo até à gargalhada. Castigo após castigo, acusada de ser livre, musculei a existência à imagem dum grande desfiladeiro, com declives acentuados e subidas tão íngremes que nenhum sinal as poderia prever.

Elsa Bettencourt

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DESTACAR PELO PICOTADO 05#Agosto 2020

@INSTAGR A M .CO M /O I NI M I GO_ PRO NTO/

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VIXIT

SIGNIFICADO: VISTO POR AÍ NAS REDES (PODIA SER). TAMBÉM, PALAVRA LATINA QUE SIGNIFICA “VIVEU”

@markuneves

FUI DE FÉRIAS.


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