MORDAZ #003

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EDIÇÃO #03 25 ABRIL 2020 0€

A PRIMEIRA REVISTA CRIADA EM QUARENTENA Francisco Segurado Silva • Pedro Baptista-Bastos • Ricardo Silveirinha • José Pimentel Teixeira • Afonso de Melo • João Rebocho Pais • José Guedes • Luis Filipe Borges • Carlos Vila Maior Lopes • Gonçalo Pina • Elsa Bettencourt • Jel • Marta Costa Santos • João Rebocho Pais • Sara Sampaio Simões • Philmore Stevens Olga Delgado Ortega • Manuel Alegre • João Cotrim Figueiredo • Martinho Pereira • José Carlos Soares • João Pacheco • Márcia Balsas • Marco Neves Ferreira

Pacotes de Auxílio



03#Abril 2020

EDITORIAL

CONSTITUIÇÃO MORDAZ

O CÓDIGO ABERTO DA LIBERDADE

1 – A Mordaz, como revista totalmente independente, tem por princípio fundamental a liberdade de expressão dos seus convidados, não se imiscuindo nos conteúdos dos mesmos desde que estes respeitem a natural civilidade e regras da universal educação; 2 – A Mordaz não tem ideologia social, política ou de qualquer outro género senão a de defender intransigentemente o direito inalienável à abrangência, panorâmica e diversidade de estilos, princípios e opiniões. Tudo para todos; 3 – Como revista absolutamente gratuita (para autores e leitores), a única publicidade que a Mordaz aceita difundir é a sua própria criação inventiva naquilo a que chamamos Fake Pub, a página reservada aos nossos próprios delírios publicitários. NESTA EDIÇÃO Francisco Segurado Silva, Pedro Baptista-Bastos,

Ricardo Silveirinha, José Pimentel Teixeira, Afonso de Melo, João Rebocho Pais, José Guedes, Luis Filipe Borges, Carlos Vila Maior Lopes, Gonçalo Pina, Elsa Bettencourt, Jel, Marta Costa Santos, João Rebocho Pais, Sara Sampaio Simões, Philmore Stevens, Olga Delgado Ortega, Manuel Alegre, João Cotrim Figueiredo, Martinho Pereira, José Carlos Soares, João Pacheco, Márcia Balsas e Marco Neves Ferreira.

“A Liberdade é um sistema operativo, sendo o mais importante dos exemplos de colaboração de pessoas e processos livres. O código aberto é usado, modificado e distribuído por qualquer pessoa nos termos das suas licenças.” Ora as licenças, e o enorme rol de questões informáticas e legais, são precisamente aquilo a que não prestamos atenção durante uma instalação: vamos até ao fim do ecrã, pomos símbolos em quadrados e fazemos next. Seguidamente as nossas opções passam a gerir a máquina. E esta ora funciona bem, ora nem tanto, mas por se tratar de um código aberto temos a hipótese de o melhorar antes de cada instalação. Vamos evoluindo, daí as actualizações. Saber trabalhar com quem tem partes essenciais do código é a chave que nos leva a uma versão estável e duradoura do nosso sistema operativo. Os artigos produzidos no ecossistema português começam por 560.

ARTWORK E PAGINAÇÃO Francisco Segurado Silva e Marco Neves Ferreira ILUSTRAÇÃO PiniOne e Mário Santos IMAGENS Freepik, Macrovector, Pixabay.com, Pngtree.

ÍNDICE 4/5 Não Vivemos em Liberdade, Pedro Baptista-Bastos 6/7 Por Teu Pensamento, Ricardo Silveirinha

Por causa de um vírus que ataca a estabilidade do mesmo através do utilizador humano, estamos a repensar rapidamente a Liberdade, num ambiente sem a presença e contacto físico humanos. Na janela da nossa falível dimensão animal, criámos um sistema que nos coloca quase fora dele. Está assim em curso a reescrita de processos de trabalho, relacionamento humano e investigação e a nascerem muitas teorias antropológicas, políticas e de gestão e trabalho - o próximo tema da Mordaz. Temos filhos e pais, adoecemos, vamos a funerais, gozamos folgas e férias; como força de trabalho talvez estejamos ultrapassados e não façamos falta na equação. Ou então fazemos, mas onde nos encaixamos, humanos, nesta revolução industrial? Que quem a lidere saiba sair depois de a executar. ... No Reino Unido há um Captain Tom “Enquanto as pessoas pagarem para isto acontecer, vou continuar a fazê-lo”. A frase é de Tom Moore, de 99 anos e veterano da Segunda Guerra Mundial, depois de 100 voltas dadas à sua casa em 10 dias, angariando pela proeza mais de 16 milhões de libras para o SNS britânico. Agarrado ao andarilho vai direito ao assunto sem reservas, nem nada a perder; talvez tropece mais com os pés, tal a lucidez com que fala. Nota: depois desta frase chegou aos 27 milhões de libras, tendo como meta inicial as 1000.

8/9 Liberdade, José Pimentel Teixeira 10/11 A Liberdade é um Saco de Plástico, Afonso de Melo 12/13 Liberdade, João Rebocho Pais 14/15 Vamos lá Ver se nos Entendemos, José Guedes, 16/17 O Benfica dá Saúde e Rejuvenesce, Luis Filipe Borges 18/19 Liberdade, Generosidade e Fatalidade, Francisco Segurado Silva 20/21 Os Livros que nos Adoptam, Carlos Vila Maior Lopes 21 Antídoto, Gonçalo Pina 22 Liberdade, Elsa Bettencourt 23 Liberdade, Jel 24 A Realidade Segue Dentro de Momentos, Marta Costa Santos 25 8:42 -2- A Verdade Nua e Crua, João Rebocho Pais 26/27 Pão e Vinho Sobre a Mesa, Sara Sampaio Simões 28 Consultório do Dr. Phill, Philmore Stevens 29 A Liberdade e o Desamor nos Tempos do Coronavírus, Olga Delgado Ortega

Ainda no Reino Unido, legislou-se sobre o direito de dizer adeus. É caminho novo, regular sobre uma derradeira manifestação a quem parte. ... Como em qualquer edição da Mordaz, o diversificado painel de colaboradores é livre de falar e escrever sobre o tema sugerido. A este propósito, estreamos nesta página o código simples da revista, com três artigos apenas.

30 As Mãos, Manuel Alegre 31 Lutar pela Liberdade, Sempre, João Cotrim Figueiredo 32/33 SONAR José Carlos Soares, João Pacheco, Márcia Balsas 34 Ai o Caroço! - Coentros da Liberdade, Martinho Pereira 35 BD - Tibúrcio & Gervásio / O Inimgo Pronto

Francisco Segurado Silva

36 Vixit - Marco Neves Ferreira

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Mordaz

NÃO VIVEMOS EM LIBERDADE Pedro Baptista-Bastos

Dizemos que o mundo vai mudar - desenganem-se, o vosso mundo já mudou. Somos associais. Tornámo-nos associais e aceitámos esta condição. Não vivemos em liberdade. O impacto desta frase é terrível e deveria substituir a ideia de que vivemos em pandemia por vivemos sem liberdade. O mundo vive a maior experiência de isolamento de que há memória. O mundo parou, ninguém se movimenta, ninguém agita seja o que for. O movimento, um dos elementos da força da vida, está confinado, isolado. Não há sequer debate de ideias, tentativas de melhoramento do mundo futuro, correcções de problemas identificados, como o apoio social, por exemplo. Encontramo-nos isolados numa razão fechada ao outro e definhando em si própria. O isolamento impede o contacto com o outro. Recusamos interagir uns com os outros em confiança, desconfiamos se alguém, pelos seus hábitos, pode correr o risco de estar infectado. O mundo antes do vírus vivia no imediato, para o imediato: satisfação imediata, liberdade imediata. O agora era obsceno, pedíamos tudo imediatamente e nada dávamos em troca. Por isso, não sabemos nem queremos ver o esforço, a luta, o sofrimento daqueles que combatem pela vida e em prol dos outros, porque não dá satisfação imediata. Desconhecemos quem é o infectado.

O infectado é o novo pária. Sabemos o que se passa através de números, de mensagens, de discursos oficiais, de orientações das “conselhos superiores competentes”, assim diz a Lei nº 4-A/2020, de 6 de Abril, a Lei que ordena isto tudo. Mas não vemos os rostos do sofrimento, não ouvimos os enfermeiros e os médicos no terreno. Esta crise deveria ter libertado a nossa razão do egoísmo do imediato, em conhecer e auxiliar este novo pária, o infectado, mas não o fez. Cansamo-nos depressa. Mesmo as imagens dos italianos a cantar à janela e dos esforços dos portugueses em os imitar, esbarram contra

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O infectado é o novo pária. Sabemos o que se passa através de números, de mensagens, de discursos oficiais, de orientações das “conselhos superiores competentes”

eles se encontram aos “superiores competentes”, que sintomas têm, se precisam de ajuda. Mesmo a aparente bondade desta afirmação não mascara a imposição e aceitação de uma nova servidão, sob a veste do medo da pandemia se espalhar. Esse medo, consequência imediata da servidão voluntária, quer ser imediatamente satisfeito, para ser vencido - afirmam. Quantos de vós não disseram que, finda esta pandemia, vão passar os tempos seguintes em festa? Podem e devem celebrar, mas a festa que aí virá não vai mudar ou modificar nada para o futuro, e creio que o mundo regressará aos mesmos hábitos que tinha, antes deste tempo de vírus. Para a pessoa comum, tanto se lhe dá que a China se torne a primeira potência mundial, desde que tenha dinheiro no bolso e possa celebrar e esquecer este tempo que viveu. Se dantes, na sua melhor faceta, viver em liberdade implicava a virtude da acção em prol de um Bem Comum, a futura liberdade que viveremos será usada para nos esquecermos do negrume deste tempo. As recordações deste tempo talvez sejam relembradas pelo kitsch, pela caricatura, mas nunca relembrarão o medo. Seremos livres para esquecer. Por isso, vencido este vírus, nada mudará, lamento concluir. A próxima futura crise que passaremos, após este tempo, será a de uma humanidade sem humanidade alguma. Não mudaremos a corrupção, não mudaremos a demagogia triunfante, não mudaremos a falta de solidariedade das instituições supra nacionais que abandonaram nações, não mudaremos os fracos e imbecis chefes de Estado mundiais que estão a braços com esta crise.

o cansaço e o conformismo. Isto acontece porque o poder se tornou incapaz de criar esperança, de dar alento. O poder é vago e distante, tecnocrático. O poder não tem chama, rasgo ou fulgor. Apoia-se em números, mas não há proximidade. As televisões não mostram os rostos e os esforços do sofrimento. A sensação de alheamento, de alienação, é cada vez maior. A dita sociedade digital não substitui de modo algum a sociedade humana, a troca directa de experiências. Dizem ser o teletrabalho, a substituição do dinheiro físico pela compra e entrega digital o novo futuro - pessoalmente, parecem traços de servidão. Mesmo diante do vírus, aceitámos a servidão voluntária diante da ameaça do medo - mesmo que por razões profiláticas - e pior, aceitámos o discurso do medo. Marques Mendes já declarou publicamente que deverão ser criadas “apps” que fiscalizem os infectados e digam onde

Celebramos o 25 de Abril conformados ao medo. A doença da razão chama-se conformismo, mas a sua cura chama-se coragem.

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Mordaz

POR TEU LIVRE PENSAMENTO Numa velha mesa de madeira, enfiados para dentro das mãos e sem rosto, três homens jogam às cartas. Vemo-los de longe, observando-os em silêncio.

Ricardo Silveirinha

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03#Abril 2020 (Foram-te longe encerrar) Afastado do cinco de ouros pousado no tampo, um copo de vinho e, ainda mais distante, no outro topo, de pé, olhando-os de espanto, uma mulher com rosto. (Tão longe que o meu lamento) Aqui sentado a escrever, Lisboa 2020, salto para dentro desse desenho que me desenha da parede do escritório. Vejo a mão fina de Álvaro Cunhal a traçar agora a luz sobre a mesa velha de madeira. (Não te consegue alcançar) Uma lanterna caída do tecto humilha os homens, ilumina a mulher. Mostra um bêbado a dormir ao fundo. Passo as mãos sobre o seu chapéu cheio de pó, tento levantá-lo, mas a fina mão de Álvaro Cunhal, Forte de Peniche 1959, apaga-me do desenho. (E apenas ouves o vento) Quando este homem entrou algemado pela ponte do Forte de Peniche, já ia com isto na ideia: uma mulher com rosto a observar de espanto três homens bêbados, absurdos e sem cara. Álvaro sonhou com ela. Imaginou-a ao som do vento e do mar. (E apenas ouves o mar) A sua farta cabeleira enchia-se de maresia numa noite quase igual a esta e a mulher do desenho já o amava ainda tão longe de existir no desenho das paredes do meu escritório.

(Levaram-te a meio da noite) - Para sermos livres, não basta a inteligência. É preciso coragem, Aníbal! É preciso trazer a verdade dentro de nós! (A treva tudo cobria) O guarda prisional Aníbal sem rosto não entendeu os dedos finos de Álvaro Cunhal, a sua cara fenomenal, os seus traços claros de luz e sombra. (Foi de noite numa noite) - O que é que está a desenhar, Doutor? (De todas a mais sombria) - A tua história, Aníbal. A nossa história. Os vultos redondos da miséria. (Foi de noite, foi de noite) Quando eu passava a ponte com o meu Pai, Forte de Peniche 1995, e via a cela de Álvaro Cunhal e o vento e o mar e a ideia da fuga e trazia para casa os desenhos da prisão, eu ainda não sabia que a liberdade era não morrer por dentro. (E nunca mais se fez dia) A liberdade é conseguir nunca ser envenenado. (Ai! Dessa noite o veneno Persiste em me envenenar Oiço apenas o silêncio Que ficou em teu lugar E ao menos ouves o vento E ao menos ouves o mar.)

CAPITÃO COUTO NO ESCRITÓRIO COM UM CRAVO (EN)CRAVADO Cansado de jogar Cluedo consigo próprio, Capitão Couto No

se vai a lado nenhum!, resmunga para dentro das vísceras

Escritório Com Um Cravo (En)cravado pousou o jogo dentro

Capitão Couto No Escritório Com Um Cravo (En)cravado

do armário de vidrinhos, rodou a chave e ficou por uns se-

enquanto volta a sentar-se à secretária de mongo mogno

gundos a espreitar as medalhas alinhadas por ordem cro-

e tenta um poema que o liberte e lhe dilacere o cárcere de

nológica de conquistas. Afinal, no Abril de 74, quem é que

subúrbio de burros burburinhos. A pena flui-lhe, ao som

ganhou e, logo a seguir, assassinou a Liberdade?

de uma flauta de Pandemia:

Já se esqueceu. Tudo se confunde agora, se esbate como

(escolhe o título, sem invenções de poetas menores)

as cores dos veludos rasgados que ainda seguram, frágeis,

Liberdade.

as condecorações bafientas. Troféus, tacinhas, diplomas,

(principia o poema, afastando as sílabas) Li ber da de.

revólveres, candelabros, canetas, charutos, boinas e cartas

(gosta do som da palavra alargada) Liberdade que li ber ta.

da guerra. Apetece-lhe agarrar naquela merda toda e atirá-

Liberta-te (sorri) li vre.

-la pela marquise do seu terceiro direito. Tudo estatelado

(esfumaça o charuto, saboreia as palavras) Livre de i da de.

no asfalto, a ser atropelado por trotinetas, tróleis, tuk-tuk e

(Isso mesmo!) Idade livre como um livro livre sem idade.

trens de cozinha. Isto era para ser um país, um planeta de

(entusiasma-se) Em roda livre. Em poema livre. Roda-te

praias ao sol. De música e musas. De poetas sem petas, de

como rodas um livro. Viagem de quatro rodas sobre ti

livros livres de tortura.

mesmo. Lê-te, livre. Lê-te, liebe.

Era para ser mas não foi. Não é. Assim é que não se é nem

(comove-se) Meine liebe… meu lindo e livre livro de Abril.

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Mordaz

LIBERDADE? Durante muito tempo vivi longe. Conheci gente. Alguma de mim gostou, outra nem tanto. Um desses homens não me deu simpatia ou ser-lhe-ia eu indiferente. Vivia de escrever. Um dia mataram-no. Ele tinha um colega, qual concorrente. Esse gostava de mim, e partilhávamos uns uísques noctívagos. Meses antes, em deriva madrugadora, encomendara-lhe cautela com o que botava. Indignou-se, de vozear e perdigoto, como se eu ali censor. Recuei e, por carinho, resmunguei-lhe que pelo menos não guardasse informação, afixando o “nada na manga”. Nem me respondeu, só levantou o queixo em esgar. “Tuga”, terá pensado. Mas pelo menos não mo disse, e isso valeu.

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03#Abril 2020 No funeral grassava o medo. Denso. Três conhecidos pediram refúgio em minha casa, qual asilo. Anuí, mas lembrando não ser porto seguro. Outrem fez o elogio fúnebre, belo, qual pegando no facho. A meu lado alguém murmurou “ele está a fazer para ser o próximo”. Findo o discurso cruzou-me e disse-lhe “calma, ninguém está seguro…” e ele replicou, cavo, “queres que me cale, Zé?” assim calando-me. Esta era gente do mesmo partido, que cruzara tétrica guerra civil, enormes mudanças, e vivia ríspidas eleições entre os velhos inimigos. Um jornalista, que então já não estava, até ao fim batalhara e batera, até nos seus próprios correligionários, apontando políticos e polícias, estrangeiros e nacionais. Sarcástico, escrevera um “cabricionário”, dicionário do cabritismo, aquilo de “o cabrito come onde está amarrado”, que alguns dizem africano mas é universal. Outro passou anos enfrentando aleivosias do seu partido e dos outros. Prometera clamar “até ficar rouco” e amigos picavam-no, dizendo-o na senda de mártir, ao que ele casquinava. Continuou para além de rouco, já só com um fio de voz, até à sua última semana. Eu era professor. Então, como acontece nas universidades, a geração do meio empurrava a mais velha. Mas ali e então tudo tinha um tom político. O café do campus era à frente do meu gabinete. Nas mesas as polémicas viviam-se, com críticas magoadas aos poderes. Estrangeiro e jovem estava sem ser parte. E notava os engravatados fatos azuis nas mesas vizinhas. Meneava para os sinalizar e aqueles mais-velhos, gente também do mesmo partido, mas sem locais de recuo, outros ofícios ou riquezas, só professores, encolhiam os ombros. Alguns, a velha guarda mesmo, elevavam a voz. Para que os esbirros não perdessem pitada. Anos passaram. Escritores foram até ao osso, explícitos ou em subtexto, seguindo os passos do poeta que para isso, convocando os plácidos citrinos, reinventara a literatura do seu país. Investigadores vasculharam, e por

isso foram ameaçados. Suportaram o que puderam, e alguns partiram para sabáticas involuntárias ou para outras vivências. Um dia, à saída do café que frequentava, um colega jurista foi morto. Depois um politólogo foi raptado e, avisado de ordens para não o matarem, dispararam-lhe sobre as pernas. A outro raptado iam-no matar decepando-lhe as pernas mas os assassinos fugiram à chegada da população. Todos por terem opinado livremente na tv. E refiro apenas quem conheci. Os sobreviventes continuam, como outros, investigadores, professores, jornalistas, a trabalhar, a criticar. E muitos deles com vínculo afectivo ao partido do poder. E, note-se, num país onde o Estado tem enorme peso na redistribuição, directa ou indirecta, dos recursos. Cinquentão, voltei a Portugal. País temperado, seguro, pouco crime e nada de violência política, nem da vigilância abrasiva e das ameaças soezes. Afinal democracia já instituída, sinal do envelhecimento da minha geração. E conflitualidade tépida entre linhas políticas, nada do abrasivo a que vinha habituado, pois enormes linhas de consenso real entre os grandes partidos. E grande homogeneidade na população, bem diversa do mosaico que conheci, passível de exacerbar conflitos. E sim, o Estado muito influencia na distribuição de recursos, através de empregos, subsídios, etc. Mas bastantes empregadores alternativos. Uma coisa me espanta. Não encontro quem bote em público criticando o seu pequeno partido, o seu “nós”. Reina a defesa a todo custo, o pobre catenaccio político. Gente tão diferente, tão mais escassa do que alhures. Liberdade? Sim, decerto. Mas tão fraca gente.

José Pimentel Teixeira

Prometera clamar “até ficar rouco” e amigos picavam-no, dizendo-o na senda de mártir, ao que ele casquinava. Continuou para além de rouco, já só com um fio de voz, até à sua última semana. 9


Mordaz

A LIBERDADE

é um saco de plástico Há carícias que as mãos do vento não repetem. É preciso guardá-las para sempre na verdade de um olhar. Às vezes é o simples desejo de partir e não haver horas para os regressos; às vezes é apenas o desejo de morrer e não morrer ao mesmo tempo, como se isso fosse possível de explicar de outra forma que não a dos versos de Ruy Belo: Tinha estado na morte e não pudera/Aguentar tamanha solidão.

A liberdade é só qualquer coisa sem importância que começa a crescer devagarinho por dentro e toma o lugar do que, entretanto, se foi perdendo. Pode ser mais coisas. A liberdade é a liberdade de cada um escolher a sua liberdade preferida. É gesto suave de quem segura o cigarro e vê o fumo escapar-se pela chaminé curva dos dedos, o barulho das folhas nas árvores do jardim em frente, um carro que passa ignorando semáforos, imagens tranquilas de infâncias distantes e de gente e de lugares que não existem mais. O vento nas cidades vem em corredores e não é plano como nos campos de milho da minha aldeia antiga. Não

tem, portanto, liberdade. Infiltra-se dobrando esquinas, assobia contrariando ângulos. O vento nas avenidas empurra lixo pelo chão como danças solitárias de bailarinas desajeitadas. Ninguém. Ninguém como nós conhece a noite. Um saco de plástico atravessa a estrada com a pressa incompreensível de uma alma que não tem. Foge de um destino tristonho de mercearias, do arrastar dos chinelos da porteira do quarenta e dois, do peso dos quilos de arroz Cigala, da secura do feijão branco e do pão ralado, do cheiro da lixívia no patamar, do barulho mecânico dos carros do lixo, das conversas de bêbados em

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Não, ninguém como nós conhece a noite... Ninguém como nós sabe para onde voam os cisnes. Para mim a liberdade são os cisnes. És tu e aquele lugar dentro de ti que me esforço por tocar.

frente da cervejaria em cuja montra se empilham as santolas a arranhar os vidros em desespero. A liberdade para mim é um saco de plástico. Foge dos cães vadios como se fosse também um deles, branco como os dedos de um gesto ainda por fazer. Ninguém como nós conhece a noite, e de que fugimos nós? Dos gestos que não se esquecem ou somente do próprio esquecimento? Do alto da varanda vêem-se as árvores. E por entre as árvores, as carícias infinitas das mãos do vento. Do alto da varanda adivinha-se o mar, adivinha-se o barulho irrequieto das ondas a trepar na areia, adivinha-se a ansiedade das marés, adivinha-se o vento e o nervoso miudinho dos seus dedos a desacertar o voo das gaivotas. Gaivotas brancas como sacos de plástico de asas abertas - se não fosse para voar, para que teriam asas os sacos de plástico? A liberdade para mim são gaivotas… a soltarem gritos enferrujados como portas velhas de elevadores velhos que teimam em não subir, que teimam em deixar-nos parados no rés-do-chão da contrariedade do nosso desejo, a porta da rua envidraçada na transparência das pessoas que viajam ainda para lá das madrugadas. A liberdade, para mim, é fumo subindo na chaminé tranquila dos dedos, é um rouxinol que cantará as suas mágoas nos ramos das araucárias, são sapos que coaxam as suas felicidades húmidas de charcos, são cães vadios que farejam as sarjetas. A liberdade, para mim, é um saco de plástico branco no meio deles, também cão, também correndo numa mistura desordenada de patas e narizes e latidos até ficar para trás, desistindo de ser cão para ser outra coisa qualquer, mas cão não, de cão já chega! A liberdade soprava como o vento, deslizando na varanda do teu quarto, multiplicado em carícias por entre cada um dos teus cabelos. Não, ninguém como nós conhece a noi-

te... Ninguém como nós sabe para onde voam os cisnes. Para mim a liberdade são os cisnes. És tu e aquele lugar dentro de ti que me esforço por tocar. A lua por cima, também branca, mas de um branco baço, de um branco estranho, as estrelas uma a uma à espera de quem as conte, as luzes nas janelas, alguém que espreita por detrás de um cortinado. A liberdade, para mim, espreita-se pela janela. Um saco de plástico branco empurrado para longe, cada vez mais para longe, a darem-lhe a vida que não tem. As santolas fervem de inveja na montra da cervejaria, esgravatam com as pinças das patas o vidro grosso numa raiva de fugas, amontoam-se na multiplicação histérica do fascínio dos candeeiros de luzes amarelas e não têm liberdade. Um saco de plástico branco abre as asas aos braços do vento e levanta-se do chão no voo trôpego da imitação dos cisnes. Ninguém como nós conhece o silêncio. E o silêncio é liberdade. Ninguém como nós sabia o segredo das carícias que as mãos do vento não repetem. Ninguém como nós sabia que os sacos de plástico têm asas para voarem como os cisnes sobre as árvores da cidade nas noites em que a lua é baça e as estrelas continuam à espera de quem as conte, uma a uma. Não. Ninguém como nós conhece os dedos. A liberdade, para mim, são dedos misturados. Ninguém como nós escutou alguma vez aquele choro distante de meninos que vem a pouco e pouco desse lugar distante onde os autocarros não passam.

Afonso de Melo

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LIBERDADE A liberdade quando nasce é para todos, temo-lo por fé e crença, mas constatamos contristados que quando sai da Maternidade já a coisa vai baralhada, o que é pena, esta é afinal e talvez uma das palavras mais importantes da nossa vida, sem dúvida, mas apenas e quando é mais que apenas um conjunto de nove letras, essa é que é essa e muitos esquecem-se disso, e que para além disso não é exclusiva de cada um ou de seu rincão de apaniguados, é para todos como o sol, mas parece que muita malta a vê mais à sombra, uns da ausência, outros da bananeira. Em Abril, a 25, em 74, os mais velhos sabem ao que me refiro, ela chegou para Portugal, para muitos que a não tinham, esse foi um bem precioso, uma dádiva impagável a quem fez a Revolução, não vou politizar a coisa, há um nome de certa pessoa e bem o sabemos, pronto, sigamos adiante.

são outros quinhentos. Quinhentos ladrões. Quinhentos corruptos. Quinhentos dobrões esbanjados na Banca. Quinhentos Compadres, quinhentos boys e quinhentos amigos mais. Quinhentas Comissões Parlamentares de Inquérito. Quinhentas Quase Nulidades. Quinhentos tudos e quinhentos nadas. Viva Quinhentos, diria Vargas!

Em 75, anito depois, já ela andava aos trambolhões, e de que tamanho, saltitava de trancos a barrancos, vestia-se de gritalhada, barbas e grafitis como se fosse única e exclusiva de quem se barimbava para a gilete e para os decibéis. Repito que, e para que não subsista a mais pequena dúvida, a liberdade foi uma dádiva impagável a quem fez a Revolução, e assim percebem que não a estou a vestir com cores de partidos, tampouco a vou irmanar com faces mais ou menos pilosas, admito que eram tempos em que a imaginação era pouca, digamos que era o prelúdio das partilhas que hoje povoam as redes sociais, vamos dar de barato que possa ter sido o primeiro ensaio de um vastíssimo grupo de uótsape, Os Gajos Com a Barba Como o Barros e o Moinhos, deve ter sido o nome do grupo, imagino.

É muito, é obra, admita-se, é quinhentaria que dá para dar e vender, ninguém se está a queixar, é apenas um reparo, um pequeno reparo, pequeno, humilde e inútil, de quão melhor se poderiam ter aproveitado os cravos de Abril que poeticamente floriram na ponta das G3’s, era escusado deixá-los murchar tão à bruta, nem um afagozinho, uma rega carinhosa, aquilo foi deixar secar, atar e pôr ao fumeiro. Liberdade. Uso-a agora para escrever o que penso, é um bem precioso, sei bem que muitos irão de imediato a correr e a buscar etiqueta para marcar com o ferrete da incongruência helicoidal este que tem o topete de se achar decifrador da liberdade. Pois façam-no, é para isso que ela serve, é disso que estamos a falar, a liberdade é como o cérebro, cada um dá-lhe o uso que lhe vê de proveito, uns dão muito, outros plasmam o emplastro das tv’s e exibem sua pobreza de espírito, outros que nem uma coisa nem outra.

Posto isto, tomemos a liberdade como uma coisa não só de direito universal como também a mais ignorada nesse seu direito de omnipresença, parece-me bem que há gente que pega nela com a avidez de um chef de cozinha a atirar-se à cebola em início de refogado, pega nela, na linda liberdade e vai-a descascando a seu prazer e conveniência, distribui-a com parcimónia, aos pedacinhos pequenos e sempre de trela, não vá a maldita espraiar-se e sair da mão, se há coisa que há gente que gosta é dela bem fatiada, para uns tudo para outros nada, mas isso

Mas isso são outros quinhentos, aliás se calhar não são, são os mesmos, curioso como nunca houvera pensado nisso, se a tanto e afinal a liberdade me permitia, observar no marasmo pensante o maior crime contra ela, a seguir às botas dos militares, a auto-bota calcando a poesia das flores nas espingardas e das pombas bran-

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... mas isso são outros quinhentos. Quinhentos ladrões. Quinhentos corruptos. Quinhentos dobrões esbanjados na Banca. Quinhentos Compadres, quinhentos boys e quinhentos amigos mais. Quinhentas Comissões Parlamentares de Inquérito. cas a voar, as armas e a estupidez inimigas figadais da liberdade, o desconsolo do poeta que cantava não haver machado que cortasse a raiz ao pensamento, então e a estupidez, homem, então e a estupidez? ... se o não corta deixa-lhe mossa, e da grande, bom homem, e da grande!

sobredita, os Democrash, banda musical de gente que aprecio, tocam uma música que eu imagino com origens nas mais profundas catacumbas dos confins do Capeta, isto para ser meigo, vai daí descubro que um número apreciável de amigos meus os escutam com gosto e concluo que bela e infinita é a liberdade que nos permite escolher uma coisa ou outra, e eu escolho tê-los a todas em minha vida e assim me torno mais rico e feliz, isto é liberdade, será respeito também, mas isso são outros quinhentos. Talvez um dia sejam o tema da prosa, quem sabe, estas tais cinco centenas.

Tanto, mas tanto haveria que dizer, o tamanho dela escrita não reflecte seu infinito valor, liberdade sim e sempre, mas senhores, e senhoras, façam-lhe um favor, a ela, à imensa, à preciosa, à gasta em palavras vãs, não a levem para casa como alguns levaram o papel higiénico, julgando-se os únicos cujos rabos seriam dignos da fofura das folhas duplas.

João Rebocho Pais

Termino, prestando justa homenagem, à liberdade e a quem a utiliza, obrigando-me a utilização recíproca da

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VAMOS LÁ VER SE NOS ENTENDEMOS Liberdade é voar. Ou voar é Liberdade. A ordem dos factores é totalmente arbitrária. Palavra de aviador.

Quando digo voar, digo voar como os pássaros. Voar baixinho, sobre a copa das árvores e sobre os rios. Encher os olhos do verde das pradarias, sentir a maresia, aproveitar os calores da tarde para voar mais alto e ver o mundo de mais longe. Sim, que de perto nem sempre tudo é tão belo quanto parece. Voar é a Liberdade de viver segundo três eixos: para cima e para baixo, para a direita e para a esquerda, para a frente e para trás. Sim, para trás. Basta fazer cento e oitenta graus. Nada mais simples. Para voar, há que ter asas. Não temos. Ficamos desde logo em desvantagem em relação aos pássaros. Mas como temos (mais) cabeça, podemos até ser melhores nalguns domínios. Nunca vi uma gaivota em voo invertido ou uma cegonha a fazer um “looping”, mas um humano treinado faz isso e muito mais com uma perna às costas. Não sei como se faz seja o que for “com uma perna às costas”, não deve dar jeito nenhum, mas é assim que o povo fala e quem somos nós para duvidar. Voar não é apenas Liberdade. É libertação. É deixarmos esta gravidade que nos amarra ao solo e partir por aí fora ao sabor do vento. O problema é que temos sempre que voltar. Culpa de um senhor chamado Newton, que determinou que tudo o que sobe tem que descer. Enfim, ele lá saberá (sabia), mas que fique lavrado em acta o protesto do signatário: essa Lei é abusiva e claramente limitadora da Liberdade de cada um, humano ou pássaro. Inconstitucional, provavelmente. Se não é, devia ser. A Liberdade de voar pode ser um vício, uma obsessão. Uma droga, até. Experimentamos uma vez e depois passamos o resto da vida a olhar para o céu. Queremos mais.

Muito mais. Não há cura para tamanha dependência, mas também não conheço ninguém que se queira curar. Voltemos aos pássaros. Ninguém os ensina a voar. Não estudam altas ciências nem aprendem em simulador. Instrutores é coisa que não existe nas famílias dos melros e dos estorninhos, era o que faltava. Um dia fincam-se nas pernas, dão um impulso, batem as asas e seja o que Deus quiser. O primeiro voo não é grande coisa (também passei por isso) mas a partir daquele momento é sempre a melhorar, prometo. As asas são feitas para voar, já disse. Por isso é importante deixarmos os nossos filhos testarem as suas próprias asas e fazerem-se ao mundo. Tropeçam, caem, levantam-se. Poderão nunca ser águias ou falcões, mas o que importa é que sejam livres. Também há asas que não voam, o que confirma que até o Criador vez por outra faz mal as contas. Sou testemunha. Como? Foi a minha primeira angústia aeronáutica, teria uns cin-

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co ou seis anos de idade. Lá em casa havia capoeira e, dentro da capoeira, galinhas. As pobres batiam as asas mas o melhor que conseguiam era erguerem-se três ou quatro centímetros acima do chão. Era falta de treino, garantia eu. Para resolver a questão convoquei os delinquentes do costume, os meus amigos de infância, e levámos um par de galinhas para o único “arranha céus” da pequena vila, um terceiro andar onde um deles vivia. Para demonstrar a teoria tinha que dar algumas garantias de segurança ao piloto de testes, neste caso a própria galinha. Amarrei a bicha a um guarda chuva aberto e lá vai ela janela fora. Có-có-ró-có-có!, lá vai ela a bater as asas por ali abaixo. A aterragem não foi perfeita, longe disso, mas o objectivo tinha sido cumprido: a galinha sobreviveu e teve tempo mais que suficiente para aprender. A próxima seria sem guarda chuva. Correu mal. A galinha, se calhar pouco inteligente, afinal não tinha aprendido nada. Em consequência, ao jantar houve canja não programada e mais coisas que agora não digo.

Para terminar, há que falar no cinema, a Arte que durante tantos anos nos fez voar em total Liberdade sem tirar os pés do chão. Nalguns casos, era pura magia. Ora vejam. Quem se lembra do Steve McQueen a voar de planador ao som dos Windmills of your Mind enquanto a Astrid Heeren aguarda fascinada o seu regresso à Terra? São dois minutos e meio de puro encantamento que vale a pena recordar (https://youtu.be/Osl6EJGwFyM) Mas o melhor de todos é o que se segue. Ainda hoje me arrepio quando vejo esta sequência de imagens que tão bem define aquilo que é voar. O filme chama-se “Áfica Minha” (Out of Africa, no original) e os protagonistas são Meryl Streep e Robert Redford. Agora deliciem-se: https://youtu.be/Pzo3m3tOkdM

José Guedes

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O BENFICA DÁ SAÚDE E REJUVENESCE Já contei esta história algures na TV mas a caixinha, por muito mágica que possa ser, é transitória e efémera. Deve invejar saudavelmente a dignidade do papel impresso e seu acrescido bónus de poder ficar para sempre. Tentemos pois.

Tenho 42 anos no Cartão do Cidadão e já vou sentindo os ecos distantes de algumas dores do envelhecimento.

Mas dispenso Calcitrin e Cogumelos do Tempo, pois tenho algo que me rejuvenesce em 7 anos. O Sport Lisboa e Benfica. Explico. Tempos do preto e branco, a 1500 kms da capital, na casa açoriana. Profunda incompreensão deste escriba em criança, quando o pai se sentava defronte do televisor para ver uns fulanos correr atrás dum esférico durante eternidades curtas. Um dia, no final da 1ª classe, surgiu a conversa (que não adivinhava) inevitável. Um coleguinha perguntou aos outros: qual o vosso clube? Este que assina, subitamente da cor da equipa que ainda não sabia vir a ser sua, tentou escapar entre os pingos da chuva, deixando-se ficar o mais para o fim das respostas possível – naquele pânico tão humano, mesmo aos 7 anos de idade, de nos sentirmos à parte do grupo. “Benfica”, “Porto”, “Sporting”, “Benfica”, “Porto”, “Sporting”, um mantra repetido de palavras misteriosas, num coro de miúdos entusiasmados.

O meu cérebro infantil fez o seguinte raciocínio: Porto soava mal, lembro-me de tentar rimas e não gostar das palavras que ocorriam; Sporting era esquisito, distante, seria estrangeiro?; já Benfica, Bem Fica, Fica Bem, atraiu um sorriso de empatia. Chegou a minha vez e foi a resposta que dei, em puro pânico relativamente a desenvolvimentos do tema. Jogador favorito? Cores do equipamento? Golo mais bonito? Ao chegar a casa perguntei: Pai, o que é o Benfica? Meia hora depois sabia dos 120 mil lugares da velha Luz, das duas Taças dos Campeões Europeus, de Eusébio, Simões, Coluna, José Augusto, Chalana, da Farmácia Franco e da Chama Imensa, e o número de jogos do Glorioso que perdi de então até hoje devem contar-se pelos dedos das mãos. Hoje não há jogo e pergunto-me se isso interrompe a passagem do tempo ou antes me envelhece. E essa ausência dá um fruto inesperado: não é tanto da bola que sinto falta mas da bancada. Da comoção. Do bruá das roulottes e da antecipação em marcha apressada. De anónimos aos calduços e a torcer por nós, por eles, por todos. Da liberdade de

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03#Abril 2020 nos perdermos na multidão de desconhecidos para os mesmíssimos estampidos de emoção, ameaços de AVC, alegrias orgásmicas. Percebo, apenas hoje, que gosto muito de futebol mas essa apetência não me define. A minha identidade é ser Benfica. Replay: faz 11 anos. Meia-final da Taça da Liga e último derby de Rui Costa. O eterno 10 encarnado até marca e, quando abandona o terreno de jogo, sensivelmente a meio da 2ª parte, os visitantes vencem por 2 a zero. Então, a primeira de duas acções extraordinárias sucedeu. As bancadas de Alvalade levantam-se para aplaudir o maestro encarnado num inesquecível momento de fair-play e admiração desportiva. A segunda atitude inolvidável, sobretudo para os meus amigos sportinguistas, foi uma remontada épica. A partida terminou 5-3 e Yannick Djaló só não teve a melhor noite da sua vida porque ainda não teria nessa altura conquistado Luciana Abreu. Assistência de letra: a ver com urgência na Netflix o documentário Becoming Zlatan, peça de enorme curiosidade e capacidades premonitórias. Acompanha os últimos dois anos do talento precoce no Malmo e os dois no Ajax que lhe permitem o salto para a Juve. Devia ser de visualização obrigatória nas Academias de todo o mundo, sobretudo para os jovens talentos entenderem o quanto serem-no… não basta para vingar no desporto-rei. Entrada a pés juntos: anos 80. Um avançado de Vera Cruz era apresentado no Restelo. Compungido, emocionado, declarou aos jornalistas: “É um prazer e uma honra jogar no time da terra onde Cristo nasceu”.

Luís Filipe Borges

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LIBERDADE, GENEROSIDADE E FATALIDADE Na taberna do primo Juvenal tudo começou bem. Quando o

claro. A balança estava agora desequilibrada com tantas con-

negócio deu o pontapé de saída, foram logo a penáltes: gran-

tas por cima e por baixo que se aguentava tanto nas pernas

de inauguração na aldeia, vinho em jarros e jorros, a tudo e

como o caderno dos devedores nas canetas.

a todos. Tudo por conta da casa: queijos e beijos, abraços

Tanto deu o Juvenal, nada vendendo, que passou a enco-

e amassos. Jogo limpo, sem faltas, só excessos. Aqui, só do

mendar vinho para bebê-lo sozinho, até a cooperativa lhe

bom e do melhor, coisa mai’linda, nunca vista por estas ban-

cortar as vazas. “Como pagar aos fornecedores? E a luz e a

das. O Juvenal foi o maior enquanto deu e não cobrou, não

água? E à filha do Marcolino que limpa a taberna de vez em

tinha igual em toda a planura do Universo.

quando? E os impostos? E… “

A alegria prometia toda a noite e todo o dia, até haver vinho

- Vá, Juvenal - diz-lhe a garrafa, uma amiga de seis estrelas - li-

entornado na calçada madrugadora. Paralelos negros por ali

berta-te libertando-me, lambe-me o cu por dentro, deixa-me

tingidos, em frente aos dois lanços de xisto a encimar uns pa-

ir-te aos fagotes, isto do teor alcoólico é só teor de conversa

res de tijolos. Quanto ao caldo já lá vamos. Queijos de Serpa,

fiada e tu de fiado tens quanto baste. Vá, Juvenal, despacha-te,

salpicão de Arronches e lenguriças, rábanos e maçãs - ou eram

despacha-me, avia-me, num copo de três, de quatro, és um

pêros esmolfe? - para cortar a euforia. O pão? Epá que mara-

gajo de mão cheia, não tens teu, só tens para todos. Vá, sabes

vilha, não sabes o que perdes: casqueiro de azinho em brasa.

bem que boi em terra alheia qualquer vaca o encorneia, vá…

Se alguém o cheirasse em superstição, o fermento em quantidade faria logo espirrar a Soror Mariana Alcoforado, em Beja.

- Boi? - parou Juvenal a garrafa metida a José Mário Branco.

Aos quinze minutos de jogo já havia pessoal de joelhos mais

- Boi. - Respondeu-lhe imaturamente a verdinha.

próximo do buraco da cagadeira-de-chão que de uma ida a Fátima. Naquele tempo, “cordão sanitário” era o sisal que

Saltou a rolha a Juvenal, espumando como um miura rabia-

pendia do autoclismo de bronze lá em cima, no condomínio

do. Raspou as botas caneleiras, fungou o quanto pôde, bai-

das aranhas e que vinha, por fim, dar alguma candura ao

xou a cabeça com dois altos e partiu a taberna até ao ponto

quadro. Mas, alto lá, também havia ali culto Mariano, a ava-

de esta nem taberna parecer. Escavacou tudo, do stock ao

liar pela quantidade de pessoas em que o

estuque, móveis que deixaram de o ser, grades e caixas, rasgando facturas, baralhos com cus e mamas e outras intimações. Havia peças de dominó em fuga para o buraco da refe-

- Ai Mãe, acode-me!

rida retrete de chão, atrás da cortina. Desfez até uns posters apelava a uma intervenção superior depois de se enjorcar

quase castanhos de uma faena a que não pôde ir, em Cádis.

muito mais que a nula conta. Curioso como depois de uma

A sua liberdade tinha ido à vindima, espezinhada, passada

alarvidade de vinho bom e mau, queijos, enchidos e até fru-

pela prensa e pelo mosto. Tinha agora um sabor demasiado

ta, se consegue vomitar uma sangria de tão boa tonalidade.

adstringente, com nuances de filhadaputice da vizinhança e

Depois da inauguração da taberna do primo Juvenal, tudo

dos bons amigos do gargalo. Com notas florais do primeiro

começou a ser normal.

dia de Novembro. Era uma liberdade a martelo, mas

Nos dias seguintes, o Juvenal estreou-se a receber o Land Rover da GNR e algumas barrigas pagas com garrafões e pe-

- Boi não, porra!

tiscos de ouriços, perdizes, cilarcas e míscaros. E contas para pagar que iam para debaixo da velha balança Avery.

No dia em que cortou as rodadas da casa, tornara-se um fas-

Festa passada, na taberna do primo Juvenal tudo começou

cista, diziam. Que perdera a cabeça, com um negócio daque-

a correr mal.

les, tão bom, imagine-se, o único na aldeia, com tudo para

Nem um só cliente de porra alguma - que na taberna do pri-

dar certo. Não sabe, vizinha?, há pessoas que não sabem

mo Juvenal havia de tudo, de alfinetes a gasolina. Fosse a

mesmo a sorte que têm.

preço que preço fosse, o pessoal da terra gostava mesmo

Na taberna do primo Juvenal a liberdade foi-lhe fatal.

era de atrombar à conta da folia do Juvenal. E, no final, o preço a pagar pela generosidade tinha apenas um divisor, está

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Francisco Segurado Silva


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OS LIVROS QUE NOS ADOPTAM Isto de ler tem que se lhe diga. É como espreitar pelo buraco de uma fechadura que nos abre janelas para o mundo, mesmo que o mundo tenha, por exemplo, a dimensão de uma juventude (a minha) igual a muitas outras passadas nos distantes anos 80. Comecei a gostar de livros desde muito cedo. De policiais, por exemplo. Mas também de outros que nada têm a ver com policias e com ladrões. Vamos crescendo para lados diferentes, isso é certo e seguro, mas hoje a memória leva-me a um tempo preciso, tão preciso que ainda hoje o recordo de bom grado. Lembro-me do meu fascínio muito precoce pela Coleção Vampiro. Eram muitos, os que se viam lá por casa. Os que mais desejava ter em mãos vinham da pena de um belga absolutamente genial. Simenon, Georges Simenon (dito assim mesmo, à maneira de Bond, James Bond). Maigret começou a ser um bom companheiro e com ele investiguei muitos casos. Fui uma espécie de Janvier ou de Lucas, embora sem qualquer referência no papel do texto. Ainda bem. A minha timidez não resistiria a tamanha projeção. Mas fui dizendo presente, página a página, livro a livro. Talvez não tenha ajudado nas investigações, mas gosto de pensar que sim, que ajudei, que dei pistas importantes para esclarecimentos decisivos. De qualquer das formas, Jules Maigret foi meu parceiro em tardes de chuva e em noites sem sono. E viajei à volta do meu quarto, como também houve quem o tivesse feito no século XIX. Nada de novo, portanto. Também eu ia no comboio que trouxe Pietr, o famoso Letão, à Gare du Nord. Mais tarde, frequentei bares de pouca ou nenhuma seriedade, conheci prostitutas e dançarinas, andei por Paris enredado em mistérios que me foram levando por ruas e bairros (Pigalle é um bom exemplo), por pessoas que morreram, como o célebre senhor Gallet. E entrei, tive essa sorte, na casa do famoso Comissário, privando não só com ele, mas também com a sua boa esposa, a senhora Louise

Maigret, sempre terna e paciente. Chegou a dar-me receitas culinárias, entretanto perdidas nos anos que passaram e no meu pouco ânimo em relação às coisas do estômago. No entanto, comemos e bebemos sandes e cerveja noites a fio, e muitas vezes não nos deitávamos (eu na cama, Maigret quando eu fechava o livro), sem um bom copo de Pernot ou de Calvados. Lembro-me, ainda, que me cruzei, com algum receio, com um cão amarelo que teimava em aparecer nos locais onde se cometiam crimes, na cidade de Concarneau. Foi uma vida farta, aquela que tive nas centenas e centenas de páginas que Simenon escreveu, creio eu, apenas para mim. Estes foram alguns dos livros que me adotaram quando era miúdo. Os livros do Comissário Maigret! Outros foram surgindo, em quantidades maiores e mais diversificadas, até hoje. Mas a memória serve para muito. Serve até para sermos felizes em tempos em que a felicidade escasseia. Os livros, como a música, por exemplo, estarão sempre ao nosso lado, na eterna cabeceira do nosso contentamento.

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Carlos Vila Maior Lopes


03#Abril 2020 1) Sabíamos que a distância era grande, e que o tempo nos levaria ao sítio desejado. Sabíamos tantas coisas, e estávamos tão seguros das nossas certezas... No entanto, e ao longo do caminho, fomos percebendo que os instantes do percurso eram os momentos mais apetecíveis, os melhores, e que já não importava tanto o destino traçado à partida. E, assim, fomos sendo mais um pouco do que já éramos, a cada momento. Depois, muito mais tarde, percebemos ser essa uma das grandes lições da vida: o que importa chegar, se em todos os passos do caminho não conseguirmos ficar? 2) Ouvi muitas vezes dizerem que andavas nas nuvens, e nunca percebi a verdade dessas palavras. Andavas sempre a meu lado, isso sim! O resto, aquilo que diziam a teu respeito, era coisa de gente adulta, que já não sabia há muito o sabor dos dias claros. Uns dias aparecias, e estava sol quando brincávamos. Noutros dias estranhava a tua ausência, até surgires, dias depois, pronta para horas de balouço e gargalhadas. Esses são os dias que nunca mais surgirão por trás das nuvens. Esses eram os dias de mãos dadas. 3) Sempre sonhei com o dia em que fugiríamos, eu e tu, sem nada dizermos a ninguém. Imaginava o momento em que, ao entardecer, saltarias da janela para o aconchego dos meus braços. Depois o mundo seria tão nosso quanto o nosso desejo de sermos nós dois, o mundo. Mas nesse dia não dei por entardecer, a janela não se abriu, e a realidade toldou o sonho ambicionado. É tantas vezes assim, a vida: um lugar onde se está sem que se esteja preparado. 4) Deus desceu à terra, de elevador. Apercebeu-se, ainda em plena descida, de que uma crescente multidão avançava até ao local do encontro. Notou também que esses milhares de humanos não mostravam sinais de satisfação. Vinham de rosto fechado, de gestos férreos e firmes. Deus franziu a testa, incrédulo. Já a poucas centenas de metros do chão, Deus sentiu uma enorme dor dentro do peito: tinha perdido a fé nos humanos! E, nesse momento, travou a sua divina descida, seguindo a emergência de outros planos.

ANTÍDOTO O simples aperto de mão, com origem em tempos imemoriais onde a necessidade de se mostrar não armado se materializou num sinal de paz e de relacionamento pacífico, representação do verbo “dar” nos hieróglifos gravados para a eternidade nas paredes dos templos egípcios, encontramo-lo por ora suspenso dos nossos gestos comuns nestes tempos de toques interditos, e onde a palma da mão serve agora como medida padrão sujeita a multiplicação para marcar a distância física ao outro. O exercício da liberdade requer confiança no próximo, partilhamos na prática a mesma grande aventura e a nave onde o fazemos é a mesma, por mais compartimentado que seja o pequeno canto onde julgamos reinar sobre o nosso domínio. Somos todos parte da mesma construção. Como procurar novas formas de continuar a exercer a liberdade num mundo em sobressaltada mudança, onde se escondem tanto os perigos como as oportunidades? É aí que nos valemos da solidez das nossas convicções, moldada pelos passos que demos até aqui, lembrando-nos de que responder aos novos desafios que os tempos nos colocam sem ceder no que nos torna livres é também em si um acto de resistência face ao medo que surge com a mudança inusitada. Reinventamos os comportamentos e definimos novas formas de cultivar os necessários gestos de confiança, enquanto testamos a nossa capacidade de adaptação que é uma das maiores marcas do nosso poder de sobrevivência enquanto espécie. Precisamos da liberdade para respirar. Com ela soltamos os pensamentos da caixa onde os fermentamos, concretizamos e damos corpo aos desejos, projectos e ideias, expressamos a nossa inata dependência de afecto e confiança pelo próximo, e sentimos também o amargo gosto da desilusão que nos serve de baliza para as caminhadas que se seguem. Não podemos ficar à espera dos dias felizes, eles precisam de existir nesta realidade que sentimos em suspenso. E com eles o exercício da liberdade contra o medo, que é sempre o seu principal adversário e veículo da perigosa ideia da falsa segurança. E celebrá-la, não apenas nos gestos com que brindamos o correr dos dias, mas no poder simbólico das datas que nos fazem não esquecer o que caminhámos até aqui. Porque não podemos deixar de sentir o vento na cara, nem a areia debaixo dos pés.

Gonçalo Pina

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LIBERDADE CABRÓN!, escrito a ketchup, a escorrer pela parede. No chão, a cesta de roupa que tinha engomado há menos de duas semanas e que, agora que ela não estava para arrumar, ele ia meticulosamente tirando à medida que precisava duma camiseta sem um único vinco.

Dirigiu-se à casa de banho para lavar os pés, sem pressa. Chegou à Doutora com a cara lavada e sem lágrimas. Sorria como uma manhã de sol. - Estou pronta. Podemos ir, para nunca mais voltar. Seguiram as duas, de braço dado, pátio fora em direção ao carro. Levava consigo a carteira de sempre, pequena e suficiente, e o quadro com a imagem de Nossa Senhora de Guadalupe que a mãe lhe deu antes de emigrar. Quando chegou ao Centro de Acolhimento a Mulheres Espancadas, foi ter com a filha que estava com as outras crianças, filhos de mães iguais a ela. Mariazinha nem correu para a mãe de tanto que brincava. Acenou-lhe com força e de sorriso aberto, enquanto corria pelo jardim. Maria contou à Doutora, que contou a uma amiga, que me contou a mim, que enquanto não perdesse o medo nunca seria completamente livre. Que ainda tinha muito medo e que cada medo era como o elo duma corrente. No dia em que não tremesse com o rodar da chave na porta de entrada, com o abrir dessa porta, com os passos em direção a ela, com o olhar de reprovação, com uma chávena por lavar, com as mãos no pescoço, ou com um abraço apertado, nesse dia, nesse preciso momento, com a filha já sem sinais de dedos roídos e de nenhum pesadelo, seria completamente livre. E quem disser o contrário está errado. - Quando era pequena, vivia com tão pouco que achava que a felicidade estava na torneira duma casa alheia. Esqueci-me das canções que cantávamos quando íamos à fonte logo que comecei a ter água corrente. Quando fiquei maior, achei que a felicidade vinha com um príncipe encantado. Quando ele chegou fui-me embora com ele. O resto da história a Doutora já sabe. A felicidade batia-me com força e revelou-se o oposto dela. Agora que estou aqui, sei que a felicidade é somente serenidade, e que esta é como a irmã mais velha da liberdade.

O cabrão não gostava de vincos apesar de ter a personalidade mais amarfanhada do que um lenço de papel cheio de ranho seco no fundo do bolso. - Temos que ir embora, Maria. Só precisas do que é teu. - Só mais um pouquito, doutora. Ni una blaguita se quedará limpia. Agarrou em todos os ovos disponíveis, despejou a cesta debaixo da inscrição a ketchup espalhando a roupa pelo chão, e começou a última operação. A Doutora esperava, olhando pelo óculo que ligava a porta ao pátio. Sabia que ele estava no trabalho a organizar papéis por ordem alfabética e a acariciar o colarinho impecavelmente branco e engomado. Maria dispôs os ovos sobre a roupa espalhada e pisou-os sem cuidado nenhum, saltou aos gritos de braços para o ar como uma campeã. Gritava: CABRÓN! E saltava, saltava, saltava e voltava a saltar até perder a voz sem perder as forças. Nenhum vizinho estranhou os gritos. Talvez estranhassem não serem de desespero e dor. Mas não, ela sabia que eram todos surdos, muitas vezes cegos. Maria chorava a saltar sobre os ovos partidos. Nunca na vida tinha chamado nomes a ninguém, muito menos ao pai da filha. Mesmo que, quase todos os dias desde o princípio dos onze anos da menina, ele lhe tenha apertado o pescoço quando chegava do trabalho. O primeiro pontapé que apanhou fê-la cair de vinte degraus com a filha de sete meses no ventre. A chave rodava na porta, e logo de seguida tinha sempre algo a apontar. Uma chávena fora do lugar, uma jarra mal colocada, um talher no compartimento errado, um grão de poeira no chão, uma janela fechada ou uma janela aberta. As costas doíam-lhe das últimas pancadas com um cabo de vassoura. O peito doía-lhe ao lembrar-se dos dedos roídos da filha e, mais ainda, por não ter posto termo naquela vida triste de pancada e aparências, no momento em que a menina começou a dar sinais de espancamento sem ele (quase) nunca lhe ter tocado.

Elsa Bettencourt

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LIBERDADE Nascido no ano em que ela chegou, Sonhada, sentida, cantada, vivida Casada, solteira e viúva carpida Dançaram na rua de saia garrida.

Jel

O tempo passou e nem tudo levou, A festa primeira brotou muita vida, Na rua espalhada, em casa bebida, Por fim alcançada e sempre temida. Seguindo o guião que o velho deixou Sopram na flauta que é muito atrevida, Lasciva, sedenta, selvagem, despida, Pérfida sedutora em desgraça caída Quem nunca partiu também não voltou, Nem sabe da Luta já quase esquecida, Por muitos cantada, por poucos vivida, Quem te ama sabe que nunca és garantida

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A REALIDADE SEGUE DENTRO DE MOMENTOS Isto não é a vida real. Talvez por estar em negação, interessei-me subitamente pela teoria do multiverso. O termo é usado para descrever todos os universos hipotéticos possíveis – incluindo este em que vivemos e que acabo de renegar. Trocando por miúdos, vamos supor que existem universos paralelos e que estamos a viver num que está a correr muito mal. Dá algum consolo. Tenho, então, assumido que, numa realidade paralela a esta, prosseguimos com as nossas vidas. E lá somos livres. Explicando a quem a memória já começa a falhar, a liberdade é… difícil de descrever sem recorrer a metáforas. Podia dizer que é um peixe colorido, não fosse estar a vê-lo, na minha cabeça, confinado a um pequeno aquário redondo, muito mais em consonância com este mundo novo. Esta imagem talvez seja melhor: a liberdade é um pássaro prestes a saltar pela primeira vez para fora do ninho. Sim, nesse mesmo e preciso instante. Um passarinho com o coração a bater descompassado perante o abismo. A liberdade pode muito bem ser um pássaro a aprender a voar. E há também a associada às papoilas. Ou sou só eu? Há poucas imagens de liberdade no meu cérebro melhores do que campos imensos de papoilas, cabelos ao vento e amoras acabadas de colher. De preferência, tudo ao mesmo tempo. A liberdade é relativa. E subjectiva. Mas também delicada e efémera. Frágil, portanto. Quem não sabia disto, fosse por falta de imaginação ou por inexperiência própria, está a descobri-lo agora, aqui, neste universo paralelo. Isto não é a vida real. Havemos de voltar ao sítio onde nunca deixámos de dizer adeus à família e aos amigos que morreram, nem de dar beijos e abraços de consolo aos que, como nós, ficaram sem eles. Já chegámos?

Marta Costa Santos

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“8:42” - 2 - A VERDADE NUA E CRUA João Rebocho Pais (CONTINUAÇÃO) A verdade, nua e crua, ainda assim melhor vestida que ele, pobre exemplar de ser humano enrodilhado nas encruzilhadas do inesperado, um golpe de vento e à humanidade segue informação íntima voando, e quantos não dariam um dedinho da mão para lha esculhambar directo na fuça, assim dela se apoderassem, da informação, informação é poder, já dizia Steve Jobs nos Piratas do Vale do Silício, e se um gajo daqueles diz uma coisa assim num filme destes, quem sou eu, mero Madruga a quem alguns chamam de Nando, quem serei para desdizer semelhante sentença? A scooter, último lugar onde vira pousado o pedacinho de desgraça que se adivinhava, desse-se o caso de erradas mãos o fisgarem, essa era já uma pequeníssima silhueta que se confundia com o perfil das árvores que ladeavam a avenida, e dela guardara apenas a cor, amarelo torrado - mas quem raio compra mota de cor assim? - bem como a matrícula, olha lá, espera aí, falo com o Machado, amigo de tintos e traçadinhos, homem de bem e da Lei, ele saberá por certo indicar-me a quem pertence tão precioso motociclo e seu adereço de aflições, aquele maldito rascunho onde afiançara ser último este meu pedaço de vinte e quatro horas, mãezinha, desgraça, o que não iriam pensar de teu pobre mas honrado parido. Deveria ter dado ouvidos ao povo, de Espanha nem casórios nem ventanias, estando onde estava e com isto das nortadas o mais certo era a coisa meteorológica ter vindo de Badajoz, quase apostava, longe ia o tempo dos caramelos à borla, teria a rajada passada e cadência de peregrino, coisa de não desistir, e lá veio ela, lá veio ela até ao meu recatado terceiro piso de edifício da velha Lisboa, veio pela sorrelfa esse vento ‘ hijo de un cabrón’, sem outro propósito que não o de atazanar a vida de santa gente e nessa me incluía eu, não vejo o porque não! Praceta das Flores, esquadra da Polícia para queixas e

outros costumes, eis que Fernando espera em café da esquina, Estrelinha Alice assim chamado o espaço, um café com cheirinho, que bica despida de um niquinho de medronho nem era bica nem era nada, são as onze horas da manhã e lá antes do meio-dia sairá de turno seu amigo Machado, amanuense de gabarito e rápido teclar, pesadelo dos rufias que ali adentravam em conflito com as boas regras da convivência do bairro, e disso tomava nota o Machado num matraquear nas teclas que assustava o mais pintado, afamado declarante ao género de justiceiro Zorro do QWERT e mais nada. (CONTINUA)

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PÃO E VINHO SOBRE A MESA Sara Sampaio Simões rado que não via há semanas. No seu colo, cai um prato de bolachas. - Obrigadão, mãe! Cheiram bem. - Acabadas de sair do forno. O avô do Tiago já apareceu? - Nem sinal. Filomena desloca-se agora em direção à mesa, passando de mãe a esposa. Pousa lá outro pratinho de bolachas. - Nem imagino a angústia da mãe do Tiago. Deve estar tão aflita... Mas vamos concentrar-nos nas coisas boas. Prova essas bolachas. - O site das Finanças está lento. Aqueles incompetentes do supermercado já disseram alguma coisa? A contabilista ligou ou, pelo menos, mandou mensagem? Vou ter de fazer a simulação das duas maneiras. Pá, o puto da Morais Soares ainda não nos transferiu nada, pois não? Chegaste a ligar à minha mãe? - Experimenta as bolachas. Têm canela. Fica um cheirinho tão bom na cozinha… - Ela quer dar-te umas receitas. - A seguir à minha meditação, ligo-lhe. - O Tiago mandou-me agora mensagem. Foram a casa do avô e ele não está lá. Coitado do meu boy… - Manda-lhe um beijinho meu de força. - Lembrei-me agora: temos visto o correio? - Posso ir lá a seguir à meditação. - Tinhas dito que a seguir a essa treta, ligavas à minha mãe. - Vou lá depois de ligar para a tua mãe. Prova as bolachas. - Estamos a viver uma pandemia mundial. Achas que eu quero bolachas? - Já reparaste que, mesmo estando fechados, há sempre uma certa liberdade? Tomamos banho quando queremos. Escolhemos o que queremos para o jantar. Vemos fotografias dos amigos, podemos telefonar aos familiares. O bebé da Constança está tão grande, não achaste? Deu um pulo.

LIBERDADE MORDAZ Mesa número 3: Uma pasta cheia de papeladas, outra de declarações. Dois envelopes com faturas. Três cartas de contas com um «a pagar!». E um copo de água natural. - Temos mesmo de pôr os papéis do IRS. Disseram que, quanto mais cedo, melhor. Já verificaste o estado da encomenda? Tinham falado em cinco dias úteis e já vamos no sexto. Enfim… Gostam de se aproveitar destas fases. Tudo a mesma coisa! A contabilista chegou a dizer-te se era melhor pormos isto juntos ou em separado? Ainda não caiu a transferência do inquilino. Aquele gajo ainda vai arranjar maneira de não pagar este mês. Eu avisei-te. Estou mesmo a ver “Senhor Fraga, agora não me dá muito jeito…” A gata não tinha de levar uma vacina por esta altura? Ah! Liga à minha mãe. Ela quer passar-te umas receitas. Já te tinha dado o recado ontem. Esqueces-te sempre. Era todo um rol de palavras, burocracias, problemas e reclamações que saía da boca de Eduardo. Gi já estava tão habituada que nem olhava para a zona da mesa. A sua liberdade era-lhe dada pelos headphones roxos que tinha recebido no Natal. Enquanto curtia a música e a ausência de rol de palavras do pai, Gi ia trocando mensagens com o namo-

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03#Abril 2020 - Já te responderam da segurança social? Como se não bastasse não poder sair à rua, ainda somos reféns de todas as burocracias que sempre existiram e ainda as que surgiram agora. Vê se a gata tem ração suficiente porque nesta última encomenda não trouxeram. E demoraram mais de uma semana para devolver o valor. - Respira fundo, Eduardo. Somos uns privilegiados. Ao mesmo tempo que Eduardo pensava o quanto o irritava aquele otimismo desmedido da mulher, Filomena respirou fundo para não se deixar afetar pelo pessimismo desmedido do marido que via tudo a preto e branco. Aliás, preto. - O teu problema é que vês tudo a cores. Aquelas cores enervantes de roupa de adolescente. - Prova as bolachas. - Não estou para viver assim. Uma mulher irresponsável e uma filha desligada. - Eduardo, estás a tempo de parar. O que é que achas de meditar comigo? Podia fazer-te bem e… - Alguém tem de tratar do que há para tratar. - Vá lá, Edu. Vamos usar isto a nosso favor. - Ainda não pagámos a luz este mês. - Também ainda não fizemos o jantar juntos. O que é que achas? - Vai meditar ou lá o que é isso antes que eu… - Quero que saibas que, se voltares a dizer o que disseste ontem, eu cumpro. O meu coração não é de elástico… - Quem é que diz isso? Coração de elástico… O teu não é nem o de ninguém porque isso não existe. - Queres mesmo que vá para casa da minha mãe? Repete se for o que queres. Levo a Gi e a Lua, ficas tranquilo. E nós ficamos bem no sótão. - No sótão deve meditar-se, ou lá o que é isso, bem. Filomena pega no prato de bolachas, faz sinal a Gi e a Lua que a seguem, a dois pés e quatro patas. Uma pasta toda organizada. Envelopes com contas e um «pago!» por ordem alfabética. Papéis do IRS imprimidos. Declaração certa. Correio visto. Encomendas entregues. Receitas da mãe também. Nova encomenda agendada para dali a duas semanas. O inquilino pagou. A seguran-

ça social respondeu. Um copo de leite natural. - Pronto. Agora posso sossegar. Eduardo olhou em redor e deu conta de que se passou uma semana. Tinha tudo organizado. Tudo em dia. Nasceu por ele afora uma vontade de reclamar. Mas não tinha com o quê. Gi não deixou a cozinha desorganizada quando fez massa porque agora ela já não faz massa ali. Não se ouvia pela casa a música de meditação de Filomena porque ela foi pregar o otimismo desmedido para outra casa. Eduardo encolheu os ombros e acabou o leite. Mesa vazia. Nem pastas. Nem contas. Nem burocracias nem problemas. Um copo com uísque natural. Eduardo olhava em redor e a semana era a segunda. Rumou à cozinha onde não lavou os tachos de uma massa que Gi costumava fazer. Depois, procurou na internet um tutorial sobre meditação. A música ouviu-se em todo o prédio. Mas Eduardo nunca chegou a ouvi-la. Tinha acabado de se lembrar que precisava de ligar ao gestor de conta. Deu um pulo, desligou com brusquidão o som irritante e procurou o telemóvel com os olhos. Os olhos encontraram-no e Eduardo sentou-se à mesa para fazer a chamada. Tinha mesmo de falar com o homem do banco que também nunca mais lhe ligou. - Uma vergonha! Os dedos de Eduardo bailam pela lista telefónica. E param. Encontrou o que queria. O que realmente queria. O sinal de chamada que dura demasiado tempo é agora a pior das burocracias. - Olá. Sou eu. Como é que elas estão? Cumpri os catorze dias de isolamento, já dá para ir para aí, sogra? Eduardo sorriu. Tinha sido aprovado. - Vou a correr para aí! Deixe-me só ligar para o banco.

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CONSULTÓRIO DO DR. PHILL Da Mentira e dos seus efeitos benéficos para o tratamento da Hipertensão Já imaginaram um mundo sem mentiras? É uma visão terrível, não é? A mentira - a par do duche - é uma das maiores criações do homem e a mais sólida razão da sobrevivência e prosperidade da espécie humana. Ao longo dos tempos existiram homens que reconheceram, pontualmente, a riqueza e valia da mentira. Homens como Maquiavel, Platão, a classe política em geral e os meteorologistas, mas, incompreensivelmente, a arte da mentira ganhou má reputação junto da população, que renega da mentira como um vegano renega do toucinho. Se Eisenhower tivesse telefonado a Hitler para dizer: “Olha, Adolfo, estivemos a ver as coisas e afinal vamos fazer o desembarque surpresa na Normandia e não em Calais. Espero que não te importes”, teriam os Aliados vencido a II Guerra Mundial? Se o Otelo, na noite de 24 de Abril, tivesse optado por publicar um post no Face anunciando o Golpe de Estado para substituir uma ditadura por outra, ainda hoje seria Presidente do Conselho algum afilhado do Marcelo Caetano. Histórias tristes.

Philmore Stevens

E será que estas gentes, estes

para nós, fujam para as montanhas

dementes adoradores da verdade,

pois o fim está próximo” ou “os meus

já se pararam a pensar como seria a

interesses pessoais estarão sempre

sua vida quotidiana sem mentiras?

em primeiro lugar. Quero que vocês

Não me parece. Caso a verdade fosse

e a nação se lixem”. Só a mentira (e o

tão boa como se apregoa, poderiam

duche diário, repito), meus amigos, nos

dizer tranquilamente à sogra: “Sogra,

permite prosperar, ser razoavelmente

hoje está mais repelente que nunca.

felizes, manter a paz social e,

A parte traseira de um frigorífico é

sobretudo, sobreviver.

a Miss Universo a seu lado”, ou ao vosso chefe: “Chefe, você tresanda a

Eu farei a minha parte para que a

40 passos, seu gordo fedegoso”. Mas

felicidade que a mentira proporciona

não o fazem, pois não? E que dizer se

seja duradoura. Espero que vocês

os maridos, após o coito, recebessem

cumpram a vossa. Agora ide. Ide e

por resposta da esposa: “Não, não foi

espalhai mentiras pelo mundo e afastai

bom para mim. Fornicas pior que o

de vós o ameaçador cálice da verdade.

Stephen Hawking com hipotermia”.

E não esqueçam: quando falarem mal

E as senhoras detestariam ouvir os

de vocês, que o façam sempre pelas

parceiros dizer: “Estás cada vez mais

costas. De frente apenas mentiras,

gorda. Pareces uma foca. Espero

doces, bonitas e maravilhosas

que este ano, na praia, te atirem

mentiras. Faz bem à saúde.

com sardinhas e te peçam para saltares e tocares com o nariz na bola

Enviem as vossas perguntas

colorida”. Isto, como já perceberam,

para o Dr. Phill:

é insustentável e apenas a utilização

drestranhoamor1@gmail.com

massiva da mentira proporciona aos frágeis sistemas correctivos do universo o indispensável equilíbrio. Sem a mentira tudo ruiria à nossa volta. Até o sistema político, mais “lie friendly”, seria caótico se a verdade prevalecesse. Imaginem o discurso de um político, em campanha eleitoral: “Prometemos que vos vamos espoliar até aos limites da dor”; “Não há futuro

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03#Abril 2020

A LIBERDADE E O DESAMOR NOS TEMPOS DO CORONAVÍRUS O confinamento está a atuar como catalisador para engrossar o número de separações (na China já se fala de um aumento do 25%), e o acréscimo de corações partidos, sem que seja uma metáfora, é mais um dano colateral do Covid-19. Ficarmos fechados em casa é uma prova de fogo, tanto para os casais cuja relação não está no seu melhor, como para os que a acabaram há pouco tempo.

forte dor torácica. A insuficiência cardíaca provocada pela síndrome de Takotsubo, junto a um sistema imunitário debilitado pelo desequilíbrio emocional, eleva consideravelmente o risco de morte pelo Coronavirus. Para as vítimas do Liebeskummer a solidão é a pior das armadilhas, e em tempos do Covid-19, o isolamento é uma imposição forçada, que pode ter consequências nefastas para a saúde. Todo o mundo merece ser livre, feliz, viver em paz e desfrutar de uma vida plena com saúde e bem-estar. Se se encontra nessa situação, não afunde, não se deixe capturar pela armadilha, seja forte. A pior prisão é a dos nossos medos. A liberdade tem que se encontrar primeiro dentro de nós. E não é fácil. É preciso desenvolver uma consciência situacional realista e positiva, há que liberar-se do passado e do futuro, aprender a perdoar e a não se sentir culpado, a permitir que as coisas fluam livremente, e a viver no presente; sem tentar controlar ou manipular os elementos externos, sentir-se-á mais confiante ao encarar a realidade como ela é, e poderá definir novamente o seu caminho para alcançar o que você merece. Dedicando o tempo preciso e com a orientação certa, é sempre possível recuperar as rédeas da sua vida. Não há momento melhor do que agora para investir em si, recuperar a sua força interior, conquistar a sua liberdade e criar a melhor versão de si próprio. E para os que talvez estejam à beira de sofrer Liebeskummer num futuro não muito distante, talvez estejam a tempo de aproveitar o fogo desta prova para devolver a chama à sua relação, porque tempo agora não nos falta.

Quem está bem com a vida, está bem dentro e fora de casa, sozinho ou acompanhado. Para os que a chegada do estado de emergência coincidiu com alguma viagem interna ao inferno (os abandonados, traídos ou menosprezados), para os que, como o Willy Loman, trabalharam a vida inteira para pagar uma casa, para logo descobrir, que não há ninguém para viver nela; para eles, o isolamento pode ser mais perigoso do que qualquer vírus. Em países como a Alemanha, as pessoas obtêm baixa médica por causa do “Liebeskummer”, o que significa estar a sofrer “Kummer” (um turbilhão de emoções como tristeza, dor, mágoa, depressão, angústia) por causa do “Liebe” (amor). O Liebeskummer pode ser devastador e provocar insónia, desordens alimentares, problemas respiratórios, ansiedade e dor no coração. A miocardiopatia de Takotsubo, disfunção/discinesia apical transitória ou síndrome do coração partido, pode chegar a provocar a morte, como no caso do Willy Loman, o protagonista da obra de Arthur Miller premiada com um Pulitzer, “A morte de um caixeiro viajante”, que retratou na perfeição esta doença já em 1949. A miocardiopatia de Takotsubo na maioria dos casos é erroneamente diagnosticada, e a causa é atribuída a um ataque cardíaco. O nome japonês “Takotsubo” vem da forma em que se dispõe o ventrículo esquerdo na doença, que é parecido com um tipo de armadilha para polvos usada no Japão. Trata-se de uma condição desencadeada por stress emocional, como a separação de um companheiro, que afeta o músculo cardíaco, debilitando o miocárdio repentinamente e provocando os mesmos sinais de um ataque cardíaco, acompanhados de uma

Olga Delgado Ortega

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03#Abril Mordaz 2020

AS MÃOS Com mãos se faz a paz se faz a guerra. Com mãos tudo se faz e se desfaz. Com mãos se faz o poema – e são de terra. Com mãos se faz a guerra – e são a paz. Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra. Não são de pedras estas casas mas de mãos. E estão no fruto e na palavra as mãos que são o canto e são as armas. E cravam-se no Tempo como farpas as mãos que vês nas coisas transformadas. Folhas que vão no vento: verdes harpas. De mãos é cada flor cada cidade. Ninguém pode vencer estas espadas: nas tuas mãos começa a liberdade. Manuel Alegre

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LUTAR PELA LIBERDADE, SEMPRE Não há maior ironia do que celebrar o 25 de Abril em Estado de Emergência. As nossas liberdades estão hoje suspensas, em nome da segurança, dizem-nos. A Iniciativa Liberal lutará sempre pela Liberdade e não aceitará que a limitem, sem real fundamento. Nas palavras de um grande pensador liberal, “a liberdade não se perde de uma vez, mas em fatias, como se corta um salame”. Não seremos talhantes da Liberdade, seremos os seus defensores. A quem diz que agitamos papões, dizemos que apontem a mira para outras paragens. Para a China, onde os cidadãos são controlados para lhes atribuir um social score. Para a não tão distante Hungria, que suspende a democracia sine die. Ou, para mesmo aqui ao lado, em Espanha, onde o governo socialista ensaia a censura à imprensa livre. Foi por isso que votámos contra as renovações do Estado de Emergência, contra medidas que em nada têm que ver com o combate à epidemia e que passaram várias linhas vermelhas. É, portanto, bizarro comemorar o fim de um regime autoritário limitador das liberdades individuais numa altura em que várias dessas liberdades estão limitadas. É bom recordar que o 25 de Abril não trouxe logo a verdadeira Liberdade. Nesse dia, ganhámos o direito à opinião, ao voto, às manifestações, apareceram partidos livres e pôs-se fim à censura prévia na imprensa. Mas cedo houve quem quisesse substituir um regime autoritário, coletivista e anti-liberal por outro de igual natureza, mas de sentido oposto. O objetivo desses não era a liberdade. A liberdade era apenas uma um meio de chegar ao poder e implantar uma ditadura de esquerda. Só a 25 de novembro se venceu o extremismo de esquerda e se instauraram as bases da

verdadeira Liberdade em Portugal. É por isso que a Iniciativa Liberal grita orgulhosamente nestas datas “25 de abril sempre. Fascismo nunca mais” e “25 de novembro sempre. Comunismo nunca mais”. Somos a única força política que o faz. E somos a única força política que não vacila na defesa da Liberdade. Porque uma pessoa é livre por direito próprio, não porque o Estado lhe concede esse direito. Não compete ao Estado definir ou permitir a liberdade individual. Antes deve o Estado limitar-se em função da liberdade de cada um. Muito menos é o indivíduo livre porque uma maioria lhe outorga liberdade. Não se é livre apenas quando se faz ou diz o que a maioria quer. Estar sozinho, como eu tantas vezes estou no Parlamento, a votar sozinho em representação dos liberais deste País, é um supremo ato de liberdade individual. Assim continuarei e assim continuaremos. A lutar por uma revolução de ideias. Ideias que não toleram o compadrio, a corrupção ou a tirania dos que se acham donos da democracia. Ideias que zelem pelo bom funcionamento da Justiça, sem tiques Orwellianos que espezinhem as liberdades. A lutar pela liberdade de cada um escolher e assumir o estilo de vida que quiser, nos moldes que quiser, com quem quiser, sem que o Estado paternalista imponha a sua moral. A lutar pela liberdade de cada um trabalhar e empreender como quiser, de ficar com os frutos do seu trabalho e de usufruir deles como entender. Assim continuaremos, a lutar por mais liberdade política, social e económica. A lutar pela liberdade, sempre.

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João Cotrim Figueiredo


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SONAR Willie, o cachorro livre Willie The Tower era um garboso Serra da Estrela de pêlo dourado e olhos cor de amêndoa. Com menos de seis meses, foi adotado e passou a viver numa casa de campo nos arredores de Lisboa. Brincalhão impetuoso, tudo o que gostava era correr pelo quintal, enroscar-se no sofá e comer. O que Willie comia, não lembrava a ninguém. Rapidamente Willie cresceu, ganhou peso e uma personalidade vincada. Sempre que tinha oportunidade saltava o muro e partia à aventura. Quase todos os dias, ao chegar a casa, o seu ‘tutor’ tinha que correr estradas e caminhos à sua procura. Por força dessa rebeldia ‘canina’ e dos horários complicados do seu ‘tutor’, Willie passou a ficar confinado a uma arrecadação: ampla, mas em formato ‘prisão domiciliária’. Por vezes Willie passava dias inteiros ‘aprisionado’ e só à noite era libertado, mas por pouco tempo... Os meses foram passando e o confinamento de Willie aumentava. De alguma horas passou a dias, três e quatro por ve-

zes, tudo porque o seu tutor, por motivos profissionais, viajava frequentemente. Certo dia, ao perceber-se que lhe iam abrir a porta, Willie nem pensou duas vezes: saiu disparado da ‘prisão’ onde estava e ‘voou’ por cima do muro, caindo enrolado nos campos vizinhos. Durante uma semana, a busca por Willie foi incessante. Finalmente, foi encontrado a mais de cinco quilómetros de casa. Trazido de volta, Willie era um cão triste, notava-se no olhar, distante e sonhador, sempre que, agora preso a uma corrente, se sentava nas patas traseiras e olhava o horizonte. Ao fim de um mês de ‘liberdade condicional’, confinada às amarras de uma corrente, não houve volta a dar: Willie conseguiu libertar-se das grilhetas que o aprisionavam e fugiu uma vez mais. Desta vez não houve buscas, aceitou-se a vontade e o grito de liberdade de Willie, o Serra da Estrela garboso de personalidade e espírito indomável. Meses depois foi avistado, brincalhão e feliz, a correr perto da Serra da Arrábida. Feliz e Livre... José Carlos Soares

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A liberdade neste tempo Desde que faço caminho na Igreja – e já lá vão uns bons anos - que escuto recorrentemente a expressão: “A verdadeira liberdade está em Jesus Cristo.” Quando recebi a notícia de que seria importante resguardarmo-nos em casa, recebi também a notícia de que as Igrejas iam fechar as portas. Nesse momento, disse para comigo próprio: “até a expressão da minha fé ficará prisioneira e extremamente comprometida”. Afinal, mais uma vez acabei enganado pelo meu próprio entendimento e verifico que Deus é, de facto, muito superior a tudo isto. Interessante como tenho podido experienciar a liberdade riquíssima de algumas ordens contemplativas com que tanto me relaciono, mas que tantas vezes questionava. De facto: quando temos fé, temos a maior liberdade do mundo! Desde que me isolei em casa – e já lá vão quase 4 semanas –, que me sinto bem mais próximo de Jesus e do coração daqueles a quem fisicamente não posso chegar. Tomando minhas as palavras de Santa Teresinha - “a oração é a respiração da alma” -, confesso que há muito tempo não respirava tanto! Esta liberdade, que alguns consideram falta dela própria, tem-me permitido limar algumas condições de vida para as quais nem sempre estava disponível. A resiliência, a penitência, o entendimento e a esperança são agora circunstâncias bem mais estruturadas na minha vida. Graças à fé, consigo experienciar um caminho de liberdade enorme, rezando e “conversando” com Deus em qualquer circunstância do meu dia. Não fosse esta experiência causada pelos dramas que todos conhecemos, era capaz de agradecer a Deus por este tempo, por este tempo de tamanha liberdade que nunca pensei poder passar...


03#Abril 2020

O Evangelho de João diz-nos a certa altura: “Conhecereis a verdade, e essa verdade vos libertará.” Pois é isto que tenho sentido: na falta da vivência citadina e da correria diária, Jesus aparece mais nítido que nunca: a paciência traz mais entendimento, a fé traz mais amor. E tudo isto, indiscutivelmente, tem-me trazido mais liberdade... Graças a Deus. João Francisco Pacheco

Memória Ter memória é como ter grades na cabeça. As ideias em círculo, sempre as mesmas, à roda, à roda, mais cruas a cada volta. Pensamentos confinados. Penso nisso enquanto espero na lavandaria self-service. Sento-me depois de meter a roupa numa das máquinas e de adicionar o detergente e o amaciador. O banco corrido senta muita gente, mas hoje apenas eu. Procurei a lua quando estacionei, olhei pelo para-brisas, a cabeça numa posição esquisita e, já fora do carro, de nariz para o ar, olhos a varrer a escuridão. Uma ou duas estrelas, foi o que encontrei, não mais. Atravessei o parque de estacionamento com o cesto de roupa nos braços. O frio atingiu-me o rosto como agulhas a furar a pele. Senti medo, o mesmo percurso, de dia, é mais fácil. Mera ilusão, repito para mim, convencendo-me que se assim fosse ninguém era atacado de dia.

Podia ter ficado em casa, aninhada no sofá, debaixo da manta quente, a roupa que esperasse. Ver um filme de comer sem mastigar, daqueles para dar descanso à cabeça. Não sei como é, dar descanso à cabeça. Não pensar. Em nada. Eu sou como a máquina de lavar à minha frente. Cansada, horas de roupa aos tombos dentro, nódoas, aquela mancha na camisola favorita mesmo na frente, onde toda a gente vê, que vai sumindo, mas nunca definitivamente. Tenho sempre restos de passado comigo, coisas que se esbatem a custo. Mas não ficam mais fáceis. Trouxe um livro que não leio. Está pousado ao meu lado no banco, traço a perna direita por cima da esquerda e cruzo os braços. Observo a roupa às voltas. Vejo passar uma meia preta na porta do tambor. Nunca vos aconteceu? Separar a roupa com cuidado, branca para um lado, escura para o outro, tudo bem afastado para não haver problemas, e depois a maldita meia preta na frente dos nossos olhos; preocupação extra ao conjunto de coisas que trago sempre aos tombos na ideia. Ter memória é lixado. Ainda sentada, descruzo os braços e penso que a meia pode não ser minha, ter ficado da máquina anterior, ser de outra pessoa, obrigar-me a lavar a roupa novamente, ficar mais uma hora longe da manta quente e do filme para não pensar que, de certeza, me levaria a pensamentos novos, e a associações a todas as coisas que tenho atrás das grades da memória. Devíamos vir com botão para o esquecimento. Nada de muito elaborado, um interruptor pequenino que podia ficar, por exemplo, debaixo de um dos braços,

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apenas para uso em caso de emergência. Premir e deixar de ter a cabeça feita máquina de lavar roupa durante a centrifugação. Carregar para eliminar as próprias fronteiras, abrir barragens estanques e permitir inundações, atirar com tudo para fora de nós. Saberíamos viver sem limites? Deixar de poder arriscar para o lado de fora por conceitos como “fora” e “dentro” serem eliminados? Precisamos de limites para saber a partir de onde somos livres? O programa de lavagem termina com um alarme que imita uma sequência musical, som eletrónico fácil de trautear, difícil de esquecer. Uns segundos e a porta da máquina fica pronta a abrir, encho o cesto com a mesma roupa, inspiro a “explosão de perfume” prometida no rótulo do detergente. Deixo ficar a meia preta, apesar de confirmar que é minha. Um abandono simbólico, talvez uma resolução ou meta, ainda não sei. Treino a suspensão da consciência, pensamentos em stand-by, obrigo-me a não pensar na meia até chegar a casa. Treinar a mente: inspira, expira, medita, alivia o pensamento com prados, ou flores, ou um banho de mar. Mergulhar e sentir apenas frio, sem medo da constipação. Sentir o que for para sentir, sem a lembrança da consequência. Como podemos ter memória e, ainda assim, ser livres? Márcia Balsas


Mordaz

AI O CAROÇO! COENTROS DA LIBERDADE - Vivá mulher do Teixeira!!! Vivá mulher do Teixeira!!! É sempre nesta altura do ano que ê cá ouço esta história. Era minha vizinha. Velhinha, anafada e extremamente bondosa. Era assim a mulher do, igualmente meu vizinho e tio, Teixeira. Recordo-me dela pelas grandes lêras de coentros que tinha na horta, coentros que nunca negava a quem lhe pedisse uma machinha. Alembro-a também pelo seu característico nome, já que nas amenas cavaqueiras no mês de Abril, dava azo a sorrisos irónicos e saudosos. Atão pois, mas não me quero adiantar para já. Sosseguem. A origem dos coentros é incerta comá porra, mas sabe-se que os antigos egípcios já os utilizavam para embalsamar os corpos e como planta medicinal. Além de possuírem efeito afrodisíaco, diz quéra isso que os fazia andar de lado. São originários da bacia do Mediterrâneo, onde gregos e romanos os utilizavam em pratos e bebidas. Cá no meu Alentejo, é a erva aromática que mais nos identifica, porque dois dos pratos mais tradicionais desta região são enriquecidos por ela. A tradicional açorda alentejana, que é fácil fazer e dá pouco trabalho, é água a ferver, coentros e alho - e as geniais e saborosas sopas de cação. Cação? A origem das sopas de cação remonta ao século XVI. Na altura, o cação era dos poucos peixes de mar que chegava com alguma abundância ao interior alentejano, sendo introduzido na gastronomia através do já existente ‘caldo branco’. A receita é fácil mas requer muita atenção na quantidade de vinagre e de farinha para engrossar o caldo. Aqui no restaurante optámos pela forma mais antiga. Tacho com azeite como deve de ser, alhos laminados, folha de louro. Amolecem-se os alhos e deita-se um molhinho de coentros picados. A seguir metem-se as postas de cação, previamente cortadas e já com sal. Deixam-se fritar um pouco de um lado e de outro, elas gostam. Deita-se depois a água para que cozam. À parte, num recipiente com água fria, dissolve-se a farinha e junta-se uma golada de vinagre. Já cozidas, retiram-se para se acrescentar a solução de farinha e vinagre, que

se mexe até engrossar. Depois é servir o cação num tarrinho, envolto no caldo branco avinagrado e umas fatias de pão frito. Aqui no pão não facilitem, tem de ser da nossa terra. Fica soberbo. Se tentaram fazer e saiu uma boa murraça, joguem tudo fora. Venham até ao Campo do Caroço (quando abrirmos) c’a gente ajuda a entender como se faz. Fica em Albernoa, porra! Mas a história da mulher do tio Teixeira não termina com a receita. Calma, não sejam apressados, não ouviram dizer que as cadelas apressadas parem os cães cegos? Vá: nos meses que se seguiram ao 25 de Abril, onde a informação não chegava atravessou-se um período conturbado, principalmente nas regiões rurais onde a imposta Reforma Agrária podia causar chatices até ao homem mais justo e sensato. Na minha aldeia, por receio de se ser mal interpretado, não se gritava “Vivá Liberdade!!!”. Perceberam? Os tempos eram bem mais complicados do que entender isto. Vai daí que se gritava, sim, sem medo: - Vivá mulher do Teixeira!! E não era só pela bondade e pela estima que o povo da aldeia lhe tinha: a mulher do tio Teixeira chamava-se Liberdade Maria. Há os filhos da Liberdade, eu sou sobrinho dela.

Martinho Pereira

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DESTACAR PELO PICOTADO

@INSTAGR A M .CO M /O I NI M I GO_ PRO NTO/

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VIXIT

SIGNIFICADO: VISTO POR AÍ NAS REDES (PODIA SER). TAMBÉM, PALAVRA LATINA QUE SIGNIFICA “VIVEU”

LIBERDADE! Tinha de começar assim, para ligar com o resto da revista... Esta semana fui à rua, às compras. Tomei banho, vesti uma roupa lavada, coloquei um desodorizante, e fui. À saída do supermercado, enquanto punha as compras no carro, passou por mim uma senhora que ficou a olhar, parecia bastante revoltada, até um pouco ofendida... Percebi que a causa de toda aquela ira era a minha máscara. Sim, usei uma máscara para ir às compras. Naquele momento apeteceu-me dizer-lhe, “a senhora também devia usar máscara, mas no seu caso, sempre!” Mas não, resolvi continuar a encher a mala do carro, enquanto a outra personagem também seguiu o seu caminho. Isto é liberdade.

@instagram.com/quarentenacronica

@markuneves


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