Revista Redescricoes ano vii, n1, 2016

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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana

Ano 7, número 1, 2016 ISSN: 1984-7157

FOTO DE CAPA DESTA EDIÇÃO: Título: Étienne Gilson Resolução original: 480 x 640 Fotógrafo: (desconhecido) Disponível em: http://www.amormariano.com.br/artigos/a-situacao-presente-dos-cristaos/

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Revista Redescrições é uma publicação quadrimestral do GT-Pragmatismo e Filosofia Americana da Anpof. O conteúdo dos artigos publicados tratam de temáticas relacionadas ao pragmatismo, à filosofia americana de uma maneira geral, ou uma aplicação do método de investigação pragmatista a questões contemporâneas ISSN: 1984-7157 Corpo editorial: Paulo Ghiraldelli Jr. – UFRRJ e Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA) Susana de Castro – UFRJ Adriano Naves de Brito – Unisinos Gabriel Palumbo (Universidade de Buenos Aires – UBA) Bjorn Ramberg – Universidade de Oslo Luiz Eduardo Soares – UERJ Jurandir Freire Costa – UERJ Cerasel Cuteanu – CEFA James Campbell – Universidade de Toledo Leoni Maria Padilha Henning – Universidade Estadual de Londrina Michel Weber – Centro “Chromatiques whiteheadiennes” Inês Lacerda Araújo – PUC-PR Heraldo Silva – UFPI Maria José Pereira – UCG Vera Vidal – Fiocruz Ronie Silveira – UNILAB Reuber Scofano – UFRJ Cristiane Maria Marinho – UECE Narbal de Marsillac – UFPB Baptiste Grasset – UNIRIO Ricardo Corrêa de Araújo – UFES Marcelo Barreira – UFES Edna Maria Magalhães do Nascimento – UFPI Aldir Filho – UFMA Juliano Pessanha – CEFA e USP Marcos C. Lopes (Unilab) Expediente REDESCRIÇÕES Revista do GT-Pragmatismo e Filosofia Americana da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Filosofia ISSN 1984-7157 Editores: Paulo Ghiraldelli Jr e Frederico Graniço. Editores Executivos: Ricardo Mantovani, Paulo Francisco M. Ghiraldelli e Francielle Maria Chies. Editores Adjuntos: Naiana Carvalho da Cunha, Hugo Lopes de Oliveira, Diego Aquino Horta, Giovane Martins Vaz dos Santos.

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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana Ano 7, número 1, 2016

Sumário Editorial ------------------------------------------------------------------------------------------- 4

Artigos Liberalismo e liberdade religiosa: uma abordagem neopragmática ------------------ 6 (André Oliva Donadia)

A constituição das cidades em Agostinho de Hipona ------------------------------------ 23 (Ricardo Mantovani)

O limiar entre a filosofia e as ciências sociais em Habermas -------------------------- 44 (Luís Moreira Filho)

Corpos, incorporais e acontecimentos nos quadrinhos --------------------------------- 64 (Fabio Mourilhe)

Tradução Hilary Putnam (1926 – 2016) (Martha Nussbaum) ---------------------------------------- 76 (Giovane Martins Vaz dos Santos)

Resenha A pesquisa do Jesus histórico, de Giuseppe Segalla (Giuseppe Segalla) ------------- 79 (Hugo Lopes de Oliveira)

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EDITORIAL (Revista Redescrições, ano VII, nº 1)

Nesta edição de REDESCRIÇÕES contamos com o artigo Liberalismo e liberdade religiosa: uma abordagem neopragmática, de André Oliva Donadia. Nele o autor discute a questão do liberalismo e suas consequências no pensamento do filósofo americano Richard Rorty. Como o liberalismo anti-fundacionalista de Rorty lida com a questão da religião no contexto dos debates públicos? Como pode ser interpretada a afirmação de Rorty de que a religião deve ser “privatizada”? Essas e outras questões instigantes são colocadas em discussão pelo autor. Além disso, contamos com o artigo A constituição das cidades em Agostinho de Hipona. Nele Ricardo Mantovani investiga a formação das sociedades tal como pensada por Agostinho de Hipona em A cidade de Deus. Seu trajeto contém uma análise do Da República de Cícero e de seus pressupostos estoicos, bem como um detido estudo dos conceitos agostinianos de queda, populuse amor. Na sequência o leitor também entrará em contato com O limiar entre a filosofia e as ciências sociais em Habermas, de Luís Moreira Filho. O artigo tem por objetivo iniciar de forma pragmática uma discussão sobre os pontos em comum e as distâncias existentes entre filosofia e as ciências sociais na contemporaneidade. Nele o autor visa esboçar um princípio de discussão a partir das obras A lógica das ciências sociais (1967) e o Agir comunicativo e razão destranscendentalizada (2001), de Jurgem Habermas. Por fim, ainda na seção de artigos, temos o texto de Fabio Mourilhe: Corpos, incorporais e acontecimentos nos quadrinhos. Nele o autor tem por objetivo apresentar as ideias de corpo e de incorporais próprias à filosofia estoica, com vistas a compreender os elementos básicos das histórias em quadrinhos. Considera-se os elementos dos quadrinhos uns em relação aos outros, o que supõe não as ligações que os vinculam, mas “efeitos de superfície”. Quanto à Tradução, este número de REDESCRIÇÕES traz o texto Hilary Putnam (1926 – 2016), de Martha Nussbaum. O trabalho é uma homenagem ao filósofo morto aos 89 anos e também uma proposta de reflexão sobre os rumos da filosofia na sociedade da tecnologia e do entretenimento. É possível reduzir problemas filosóficos a soluções puramente físicas? Os filósofos são guiados pela razão ou

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frequentemente caem no dogmatismo? No texto sucinto de Nussbaum diversas pautas importantes sobre a filosofia são colocadas em debate. Por último, oferecemos à apreciação do leitor a Resenha de A pesquisa do Jesus histórico, de Giuseppe Segalla, escrita por Hugo Lopes de Oliveira. Segundo Segalla, a pesquisa sobre o Jesus histórico, iniciada no séc. XVIII, teria passado por uma série de mudanças ao longo do tempo. De acordo com o autor, idas e vindas podem ser verificadas nas tendências da pesquisa sobre a temática. No entanto, se a maioria dos pesquisadores concorda quanto à existência de três momentos diferentes na empreitada, não há consenso sobre a divisão dessas fases, bem como de suas características. Assim, Giuseppe Segalla constrói sua própria divisão conceitual desses períodos, divididos em “Paradigma Iluminista”, “Paradigma Querigmático”, e “Paradigma Judaico PósModerno”." Desejamos a todos uma boa leitura! Os Editores.

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LIBERALISMO E LIBERDADE RELIGIOSA: UMA ABORDAGEM NEOPRAGMÁTICA LIBERALISM AND RELIGIOUS FREEDOM: AN APPROACH NEOPRAGMATIC André Oliva Donadia*

RESUMO Este artigo tem como objetivo examinar os elementos centrais da filosofia política liberal e uma descrição do que Rorty entende como justificativas para a defesa das instituições liberais. Analisaremos a estratégia anti-fundacionalista de Rorty para a defesa das instituições liberais contemporâneas. Feito isso, será tratado a utopia liberal de Rorty. Nesse contexto, Richard Rorty defende que o discurso religioso está em desacordo com seus ideais liberais. Como resultado, ele defende, em um primeiro momento, que a religião deve ser privatizada com o intuito de que o Estado liberal possa se manter neutro. Depois de demonstrar as escolhas que constituem a visão de Rorty, o trabalho apresentará, em particular, três posicionamentos que Rorty defende em seus escritos. O primeiro argumento é de que a religião deve ser privatizada, o segundo é a defesa da marginalização de organizações eclesiásticas e o terceiro é de que defender o pragmatismo resulta em defender uma utopia liberal secular. Neste artigo,será explicado como esses argumentos surgem do compromisso de Rorty com seu neopragmatismo e como eles se encaixam dentro desta lógica. A começar com uma descrição, depois será demostrando que esses argumentos estão em desacordo com alguns dos pressupostos “filosóficos” de Rorty, mas que criam problemas práticos que extinguem o ideal que social e político que Rorty defende. Palavras-chave: Liberalismo; Religião; Neopragmatismo

ABSTRACT This article aims to examine the central elements of liberalism‟s political philosophy and a description of what Rorty understands as justification to the defense of liberal institutions. We are going to analyze Rorty‟santifoundadionalism strategy to defend the contemporary liberal institutions. After that, we will examine Rorty‟s liberal utopia. In this context, Richard Rorty argues that the religious speech is at odds with his liberal ideals. As a result, he argues, in a first moment, that religion must be privatized so that the State remains neutral. After exploring the views that constitute his choices, the article shows, in particular, three of Rorty‟spositions that he argues in his writings. The first argument is that religion should be privatized, the second consists in the defense of *

Mestrando em Filosofia pelo Programa em Pós-Graduação em Filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), bolsista CAPES. E-mail: andredonadia@gmail.com Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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marginalization of ecclesiastics institutions and the third is that defending pragmatism is, as a result, to defend a secular liberal utopia. In this article, it will be explained how these arguments are entailed to Rorty‟s commitment to his neo-pragmatism e how they fit inside this logic. We will start with a description, then it will be demonstrated that these arguments are at odds with some of “philosophical” assumptions that Rorty has made, which create practical problems that might eliminate the social ideal that Rorty designed. Keywords: Liberalism; Religion; Neo-pragmatism.

Filosofia política liberal Richard Rorty se considera um liberal, deste modo, uma descrição do que seja uma filosofia política liberal será tema desta parte do trabalho. O termo liberalismo tem muitos significados dentro da filosofia política, e há também divergências do que os autoresque se consideram liberais entendam por ser liberal, porém há algumas ideias centrais que conectam o que é considerado liberalismo dentro deste vasto espectro da tradição liberal. O liberalismo está preocupado com a relação entre o individuo e a sociedade, deixando todas as questões substantivas, tais como o que pode ser uma boa vida, serem respondidas “pelo indivíduo, e não pelo coletivo (GRANDER, 1998, p. 11)”. Desse modo, “sociedades liberais protegem o individuo garantem a livre escolha nas questões do principio correto” (GRANDER, 1998, p. 12). Isso não resulta em um desregulamento do comportamento, porque

uma sociedade liberal deve se manter neutra para qualquer concepção pessoal de bom, permitindo os indivíduos o direito de escolher qualquer ação, até o ponto que tais ações interfiram com as ações de outros indivíduos (GRANDER, 1998, p. 12)

Em adição a esse comprometimento com a neutralidade, do qual brota do princípio liberal de igualdade ou igualdade de liberdade, o liberalismo preza pela autonomia. “O liberalismo defende que a personalidade é a habilidade de fazer escolhas dentro de uma variedade de opções” (GRANDER, 1998, p. 12). De acordo com este princípio de autonomia, um indivíduo que não pode escolher livremente não pode ser considerado uma pessoa. Como um liberal, Rorty adota esses aspectos práticos delineados. Como Eric Grander escreve Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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que em meio uma sociedade composta de pluralidade de pessoas, cada uma com uma concepção diferente de bem, a justiça demanda que nós deixemos que cada indivíduo possa agir de acordo com sua visão de mundo(GRANDER, 1998, p. 16)

Tais ações, porém, precisam ser consistentes com o princípio que esses indivíduos evitem prejudicar uns aos outros. Para nossos propósitos, porém, destacaremos um aspecto específico da “teoria” política de Rorty. Embora Rorty seja vago quanto ao seu tratamento das instituições políticas liberais que ele pretende defender (GRANDER, 1998, p. 9), serão consideradas as declarações de Rorty sobre o papel da religião na sociedade. Em particular, será examinado seu posicionamento no que diz respeito à privatização da religião, sua intenção de minar organizações eclesiásticas e seuprojeto de comunidadeliberal.

A defesa kantiana do liberalismo A sociedade contemporânea ocidental é marcada pela pluralidade de doutrinas morais. Esta pluralidade de visões de mundo resulta em tensões quando se debate sobre a forma apropriada de conduzir uma nação. De fato, a tarefa de legitimar uma autoridade capaz de acomodar variedades de crenças é árdua. O liberalismo político defende o ambiente moral que pode de algum modo se manter neutro entre as doutrinas morais e servir de “base” para um debate público em uma sociedade marcada por pluralismo religioso e moral (LARMORE, 1996, p. 121). O liberalismo político ganhou legitimidade pela virtude de ser capaz de exercer poder político e por apresentar um consenso sobreposto de doutrinas abrangentes

que desenvolve princípios de justiça a partir das ideias públicas e compartilhadas da sociedade enquanto um sistema equitativo de cooperação e de cidadãos livres e iguais, utilizando os princípios de sua razão prática comum.(RAWLS J. , 2000, p. 135)

Para permanecer neutro para o valor de qualquer noção particular do bem, um Estado liberal não pode se comprometer com uma doutrina religiosa ou filosófica, mas pode regular a busca por interesses morais e espirituais. Além disso, a regulação deve estar em acordo com os princípios que os indivíduos concordariam no sentido em que

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Rawls coloca como sendo “a posição original” (RAWLS, 2005, p. 186)1. O conceito de consenso sobreposto permite defender que há questões fundamentais que todas as pessoas razoáveis irão concordar para formar uma base da qual o progresso político poderá ser alcançado. Negar o consenso construído coletivamente seria atitude “irracional”. (RORTY, 1983, p. 583). Rorty, porém, defende o liberalismo por razões que estão em contraste com a visão de Rawls. Um breve exame sobre as justificativas de Rorty ajuda a esclarecer as discordâncias em relação à necessidade de uma fundamentação metafísica para o liberalismo.

As justificativas de Rorty Richard Rorty considera a si mesmo como um pragmatista, cita com frequência filósofos como William James e John Dewey, que, ele acredita, estavam certos em defender que a procura pela certeza foi improdutiva para a filosofia. A filosofia deveria, segundo essa linha de raciocínio proceder sem fundamentações metafísicas. (ANDERSON, 1991). Ao argumentar contra uma noção de verdade como correspondência, Rorty defende que não há padrões para determinar a objetividade de outros sistemas de pensamento. A filosofia não pode ser usada para fechar a distância entre mente e realidade, ou como Rorty escreve, “Não existe a verdade”. O que isso poderia significar? Por que alguém deveria dizer algo como isso? Na verdade, quase ninguém diz isso. Mas filósofos como eu são acusados de afirmar isso. Porque nós aprendemos (de Nietzsche e James, entre outros) a suspeitarmos da distinção aparênciarealidade. Nós pensamos que há muitos modos de falar sobre o que está acontecendo, e nenhum desses modos nos coloca mais próximos do jeito que as coisas são elas mesmas. Nós não temos ideia do que “elas mesmas” deveria significar como na sentença “a realidade nela mesma”. Então nós sugerimos que a distinção aparência-realidade seja abandonada em favor de uma distinção daquilo que possa ser menos útil e mais útil. Mas, desde que a maioria das pessoas pensa que a verdade é a correspondência com que a realidade “realmente é”, eles pensam que nós negamos a existência da verdade. (RORTY, 1998, p. 1)

A filosofia, então, não é uma questão de encontrar a verdade, mas a de manter as conversações entre pessoas que defendem perspectivas diversas (RORTY, 1991, p. 23). Este tipo de argumento é visto como relativista, porque o sistema de pensamento que 1

“Na posição original, exclui-se o conhecimento de posições sociais, doutrinas abrangentes, raça, etnia, sexo, dons naturais, isto é, as partes escolhem sob o véu da ignorância, para assegurar um ponto de vista não egoísta da escolha. Como o conteúdo do contrato trata dos princípios de justiça pra a estrutura básica , na posição original são estabelecidos os termos justos da cooperação entre os cidadãos. (SILVEIRA, 2009, p. 141) Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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sobressai é reconhecido como relativo às perspectivas e interesses das pessoas em conversação. Não pode ser reconhecido como verdade ou correto, mas simplesmente o “melhor” argumento ganha autoridade pela possibilidade de convencer mais as pessoas. De acordo com essa descrição, o significado da palavra “verdade”, por exemplo, é compatível com a diversidade de referencias. “Verdade” não é algo que se separa da garantia ou das justificativas. Em Objetivity, RelativismandTruth, e em Philosophyand Social Hope, Rorty argumenta que “só há explicações semânticas para serem oferecidas, porque é o caso de que uma dada sentença só é verdadeira quando as condições de verdade são satisfeitas” (RAMBERG, 1998, p. 93) Roty descreve o relativismo pragmatista como

a visão que não há nada a se dizer sobre a verdade ou a racionalidade separadas das descrições de procedimentos familiares de justificação que uma dada sociedade- nossa sociedade – usa em uma ou outra área de pesquisa”(RORTY, 1991, p. 23)

Desconfortável com o título de relativista, Rorty diferencia suas justificativas do relativismo ou do subjetivismo pela virtude do fato de que esses títulos pressupõem a distinção que seu pragmatismo tenta rejeitar (RAMBERG, 1998). Para os nossos propósitos, porém, podemos entender o projeto de Rorty como etnocêntrico, no sentido de que ele mantem que não há meios racionais de resolver conflitos entre visões de mundo concorrentes. Como resultado dessa visãoetnocêntrica, Rorty extrai a conclusão de que não faz sentido dizer que uma visão de mundo é correta e outra incorreta. De fato, sem a defesa de uma verdade objetiva como critério para comparar sentenças feitas por indivíduos de uma visão de mundo, não há alternativa a não ser a de escolher por meio do contraste (RORTY, 1983, p. 587) quais seriam as melhores práticas, defendendo que o que pode ser verdadeiro para um grupo de indivíduos pode ser falsopara outros grupos. Ou seja, argumentar que sentenças incompatíveis podem ser igualmente “verdadeiras” dependendo do tipo de jogo de linguagem que elas fazem parte. Como Rorty expressa, devemos “abandonaro projeto tradicional da filosofia em encontrar algo estável que sirva de critério para julgar os produtos transitórios de nossos interesses e necessidades transitórias” (RORTY, 2000, p. xvi). Diferentes pessoas , portando, poderiam descrever a mesma transação de diferentes modos e poderiam estar corretas dentro de seus jogos de linguagem, nenhuma delas tendo acesso privilegiado à “verdade”.

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Como resultado desse ponto de vista, Rorty abandona a noção de que qualquer noção de ética pode ser verdadeira em termos objetivos. Porque ele nega a possibilidade de encontrar uma verdade moral objetiva, ele é obrigado a encontrar uma teoria moral que seja coerente com seu neopragmatismo. Como Rorty explica,

o problema de perguntar sobre nossas crenças não ése elas são sobre a realidade ou meramente sobre aparências, mas simplesmente se elas são os melhores hábitos de ação para garantir nossos desejos(RORTY, 2000, p. xxiv)

A estratégia neopragmatista é de eliminar a distinção entre conhecimento e opinião, na qual a verdade é identificada com a realidade nela mesma, ou seja, verdade como correspondência. Assim, o que Rorty quer com seu projeto é defender a tese de que as “verdades” que construímos são crenças úteis para lidarmos com o ambiente e nossos desejos (RORTY, 1991, p. 24) e desse modo evitar a noção de que a verdade seja um tipo de acesso privilegiado ao real. Rorty entende que indivíduos vindos de diferentes visões de mundo terão justificativas diferentes para adotar diferentes moralidades. Ele argumenta que não há obrigações morais “incondicionais”, “transculturais” enraizadas em uma natureza humana permanente. A noção de um dever moral objetivo, então, pode fazer perfeito sentido dentro de um jogo de linguagem. Tal dever moral, porém, não pode ser demonstrado objetivamente e uma moral completamente oposta poderia ser igualmente razoável dentro de um jogo de linguagem diferente. É desta visão etnocêntrica que Rorty tenta desenvolver seu suporte para instituições liberais bem como o suporte inicial para a privatização da religião. Porque a “razão” não levará todos ao mesmo tipo de “verdade”. É necessário antecipar a pluralidade dos contrastes das visões de mundo. Como Boefetti afirma, “a ética social de Rorty é dirigida por uma forte crença na incomensurabilidade de projetos privados de „auto-criação‟ e a subsequente necessidade de criar a dicotomia do público e do privado” (BOEFETTI, 2004). Esta visão de mundo particular levará para a única forma de suporte do liberalismo e a justificativa de Rorty de manter a religião longe da esfera pública.

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Pragmatismo e Liberalismo A negação de Rorty de qualquer fundamentação filosófica nos leva a entender a contingência de valores e cultura (RORTY, 1994, p. 31). Como tal, é claro que uma visão não pode proclamar autoridade sobre uma sociedade plural, não em termos de fundamentação. Sem qualquer fundamentação objetiva para abordar o tema, Rorty recomenda uma abordagem neopragmática, salientando que a forma de governo ideal é aquela que procede de forma a obter as melhores consequências práticas. Apoiando-se em JudtihShklar, Rorty defende que evitar a crueldade é a marca da política liberal (RORTY, 1994, p. 17), nesse sentido a tarefa do intelectual, em relação à justiça social, de acordo com Rorty é a de nos fazer cientes de sofrimentos “suportados por pessoas em que anteriormente não tínhamos reparado” (RORTY, 1994, pp. 17-18). Dado o fato de uma incerteza epistemológica, a atmosfera política ideal, de acordo com Rorty, é aquela que é aberta, tolerante e não dogmática (RORTY, 1991, p. 37). Como ele escreve, “encontros livres e abertos entre seres humanos” culminarão “ou em acordos intersubjetivos ou em tolerância recíproca.” (RORTY, 1991, p. 8) Rorty oferece uma defesa para sociedades liberais e seus valores. Como ele escreve as justificativas para os valores liberais são de “tolerância, livre investigação, e a procura por comunicação limpa somente podem acontecer se comparadas entre sociedades que exemplificam esses hábitos e aquele que não podem, nos levando para a sugestão que ninguém que tenha vivido as duas formas de sociedades preferiria a primeira” (RORTY, 1991, p. 20)

Rorty justifica a política liberal e suas instituições usando a mesma linha de argumento, explicando que instituições liberais são justificadas em virtude de suas vantagens práticas, suas vantagens em “permitir indivíduos e culturasa conviver entre si sem se intrometer na privacidade, sem interferir naquilo que eles consideram ser o bem” (RORTY, 1991, p. 209). Ter como objetivo uma sociedade em que asserções sobre as crenças do sentido da vida ou de ideais morais não são um requisito para a cidadania, pelo contrário, estão em sintonia com o “comprometimento para justiça processual rawlsiana” (RORTY, 1991, p. 210). As vantagens para essa abordagem podem ser facilmente observadas, ele argumenta, através de uma comparação histórica entre instituições liberais e sociedades não liberais (RORTY, 1991, p. 209). A preferência de Rorty pelas instituições politicas ocidentais é clara. Como ele declara, nada é mais importante do que a preservação destas “ instituições frágeis e Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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imperfeitas”, que são “a criação dos últimos 300 anos” e “ as conquistas mais preciosas da humanidade” (RORTY, 1987). Isto se justifica porque Rorty vê “as característicascomuns do liberalismo tais como liberdade de pesquisa, liberdade de expressão, eleições dos governantes, e assim por diante” como realizações do seu ideal de política, que ainda continua a se aperfeiçoar. Segundo Rorty, a história do liberalismo mostra queo liberalismo “vem se fortalecendo e se adaptando com o que encontra, e que nossas instituições permitem amplo espaço para melhorias e mudanças” (TAMBORNINO, 1997)

Liberalismo burguês pós-moderno e religião Apesar de sua defesa pelas instituições liberais, Richard Rorty claramente diverge do padrão de interpretação de Rawls sobre a teoria política liberal. Para melhor entender os posicionamentos de Rorty, será útil examinar seu tipo particular de liberalismo, o que ele denomina de “liberalismo burguês pós-moderno” (RORTY, 1983). Rorty considera o liberalismo de Rawls e Dworking “kantiano”, demostrando que eles parecem acreditar “que haja algo como dignidade humana intrínseca, direitos humanos intrínsecos, e uma distinção ahistórica entre demandas de moralidade e de prudência” (RORTY, 1983, p. 583). Rorty coloca a si mesmo em um grupo de pessoas que desejam preservar as instituições e práticas das democracias sobreviventes enquanto abandonam “a distinção ahistórica entre moral e prudência” (RORTY, 1983, p. 583),que servem de coluna. Neste artigo, Rorty demonstra como sua defesa pelas instituições liberais está em acordo com seu neopragmatismo. Aqui, Rorty afirma que sua visão é “hegeliana”, colocando a si mesmo entre aqueles que “dizem que a humanidade” é um ser biológico, mais do que uma noção moral, que não há dignidade humana que não seja derivativa de uma dignidade de alguma comunidade especifica, “e que não há nenhum apelo para além dos méritos relativos de várias comunidades atuais em propor critérios imparciais que nos ajudem a pesar esses méritos” (RORTY, 1983, p. 583). Ainda que consistente com seu anti-fundacionalismo, Rorty deseja preservar instituições democráticas liberais “enquanto abandona suas fundamentações kantianas tradicionais” (RORTY, 1983, p. 584) Diferentemente da visão rawlsiniana que considera o “sujeito moral” como um deliberador original “que pode distinguir ele mesmo de seus talentos e interesses e suas

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visões sobre o bem”, Rorty mantém que “pelos propósitos da deliberação moral e política, uma pessoa é somente uma rede de crenças, desejos e emoções” (RORTY, 1983, pp. 585-586). A visão neopragmática permite Rorty defender que há “hipocrisia envolvida” quando as pessoas defendem que os religiosos de alguma forma não têm direito em “fundamentar” suas visões políticas em sua fé, mas que os ateístas de alguma forma têm todo o direito em basear suas visões políticas na filosofia iluminista. Como Rorty reconhece, “dizer que se assim o fazemos, nós estamos apelando para razões, onde os religiosos estão sendo irracionais, é contraditório” (RORTY, 2000, p. 172) Apesar dessa defesa da religião, em Religion as a ConversationStopper, Rorty nega em aceitarque “ a praça pública deveria ser aberta para o „discurso religioso‟, ou que o liberalismo deveria desenvolver uma política que aceitasse qualquer forma de diálogo que um membro do público oferece‟” (RORTY, 2000, p. 172). A defesa inicial de Rorty desse argumento não é a de dizer que apresentar o discurso religioso na esfera pública seja algo moralmente condenável, mas que privatizar a religião é o único caminho para “manter uma política democrática comunitária funcionando” (RORTY, 2000, p. 174). Rorty posteriormente cede em relação à privatização da religião e percebe o conflito entre seus propósitos de “manter a conversação acontecendo” e sua defesa de uma utopia liberal secularista. Em sua discussão do papel adequado e o tratamento da religião, Rorty argumenta que o tratamento da religião que ele expõe é de algum modo consistente com seu comprometimento neopragmático e seu liberalismo burguês pósmoderno, ponto que gera discordância entre outros pensadores pragmatistas e que será analisado em nosso trabalho.

Pragmatismo e Teísmo Para Rorty, uma comunidade liberal secular ganharia tons mais democráticos se seus cidadãos fossem secularistas, pois “teísmo e democracia estão em discordância um com o outro” (RORTY, 2010, p. 420). Em seus escritos, Rorty descreve seu pragmatismo como uma radicalização do secularismo iluminista. O pragmatismo de acordo com o entendimento de Rorty, compartilha a suspeita iluminista da autoridade, especialmente as autoridades religiosas que são supostamente fundamentadas em algo não-humano (RORTY, 1999). O teísmo “para Rorty é mais ou menos parecido com o „platonismo‟” (SMITH, 2005), não se encaixa em suas concepções antifundacionalistas. Assim, Rorty defende que “o pragmatismo, perseguido como uma

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estratégia anti-metafísica dentro da filosofia, é também anti-teológica” (RORTY, 2010, p. 420) O pragmatismo, segundo Rorty, é a noção “que o acordo social entre seres humanos é a fonte de todas as normas” (RORTY, 2010, p. 420). Apelar para uma fonte não humana de autoridade, seja ela uma visão privilegiada sobre o real, ou a autoridade da fé é contra a noção pragmatista de reconhecer que todos esses discursos são uma questão de arranjos entre humanos. (STOUT, 2010). Segundo o anti-fundacionismo de Rorty, há “potencialmente uma infinidade de modos valiosos de se conduzir a vida” (SMITH, 2005, p.81). Rorty recomenda tentar “poetizar” nossa cultura, “oferecendo descrições e redescrições mais atrativas e mais úteis.” (TAMBORNINO, 1997, p. 61). Como resultado, Rorty defende que “o principal objetivo das organizações sociais, serão de promover a maior diversidade” (TAMBORNINO, 1997, p. 61). Segundo Smith, o teísmo causa uma tensão na visão de Rorty, porque as verdades do teísmo “estão em desacordo com o pluralismo e podem atrapalhar, ao invés de promover a felicidade” (SMITH, 2005, p.81). Outra razão pela qual Rorty diz que a religião está em conflito com o pragmatismo, é que a “mundidade do outro” que acompanha a religião é perigosa porque isso retira a responsabilidade dos humanos sobre suas escolhas e projetos. Como John Dewey observou

os homens jamais usaram seus poderes para progredir, porque eles esperaram algum tipo de poder externo a eles mesmos e a natureza para fazer o trabalho que eles são responsáveis de fazer(DEWEY, 1930).

No fim, Rorty parece resignar para o fato de que o teísmo é perigoso para a saúde de sociedades democráticas, e que o ideal de uma “força exterior” capaz de resolver todos os problemas humanos irá desaparecer.

O projeto de Rorty O liberalismo político promove um ambiente favorável de governo consistente com o pluralismo. Esse aparente ambiente propício para a diversidade faz Rorty se orgulhar das instituições liberais, dado que em um estado liberal as mais variadas formas de vida podem conviver, já que o Estado não atribui valor às formas de vida (SMITH, 2005, p. 81). A ideia é defender um sistema de governo que se mantenha neutro em relação a qual conjunto de princípios sobre a boa vida possa ser defendido. Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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Nesse sentido, o que Rorty persegue é um Estado liberal que reforce como princípio a não interferência no que compete aos discursos concorrentes sobre o bem comum. Deste modo, os princípios liberais permitem uma sociedade tolerante e plural florescer com o mínimo de conflito. Rorty prefere, em um primeiro momento, os discursos secularizados no debate público, pois acredita que esses discursos são mais compartilhados pelos cidadãos do que os discursos religiosos, desse modo ampliando a capacidade de imaginar um cenário de pluralidade de vozes.Já o teísmo que é acompanhado por um discurso carregado de pretensões de verdades objetivas, está em desacordo comoprojeto liberal de Rorty, porque esse discurso procura estabelecer padrões objetivos que se aplicam a todas as pessoas. Para manter uma sociedade tolerante e plural, a religião deve ser privatizada. De acordo com essa visão, Stout critica Rorty, as sociedades modernas estão travadas na dicotomia entre escolher “uma ordem política em que todas as decisões estão idealmente pautadas em termos seculares ou uma ordem política que uma visão religiosa domina todo o discurso.” (STOUT, 2010, p. 527). Como resultado desse argumento, o ideal que Rorty usa para defender suas preferências pelas instituições liberais é, em parte, a visão de um futuro que culminará numa utopia secular (STOUT, 2010, p. 523). Assim, por causa de seu desgosto por expressões fundacionalistas, é seguro dizer que Rorty entende o liberalismo como “essencialmente” secular, “de fato profundamente suspeito sobre as religiões e inclinações religiosas” (OWEN J. J., 2001, p. 67) Rorty descreve seu entendimento do apropriado papel da religião nas sociedades em termos do “compromisso jeffersoniano” que o iluminismo alcançou com as religiões. Rorty expressa esse compromisso com a defesa de manter a religião fora daquilo que Carter chama de praça pública, ou seja, defender a noção de que é ruim trazer o discurso religioso para as discussões sobre a coisa pública. (RORTY, 2000, p. 169). No entendimento de Rorty, “a secularização da esfera pública é a principal conquista do Iluminismo” (RORTY, 2000, p. 168) e, como tal, é de vital importância para o liberalismo de Rorty:

Thomas Jefferson definiu o tom para a política liberal americana quando ele disse: “não me prejudica se meu vizinho diz que há vinte deuses ou nenhum deus”. Seu exemplo ajudou a fazer respeitável a ideia de que a política pode ser separada das crenças sobre questões de última importância – que crenças compartilhadas entre cidadãos sobre tais questões não são essenciais para uma sociedade democrática. Como muitas figuras do Iluminismo, Jefferson

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presumia que uma faculdade moral para o típico teísta e o típico ateísta é suficiente para a virtude social (RORTY, 1991, p. 175)

Ao mesmo tempo reconhece que abolir as religiões de democracias liberais seria uma forma de violência, como Wolterstorff explica (WOLTERSTORFF, 2003, p. 131), Rorty argumenta que as democracias liberais ficariam seguras se os discursos religiosos fossem privatizados. Para Rorty(RORTY, 1991, p. 175), privatizar a religião “seria irrelevante para a ordem social, mas relevante, e possivelmente essencial, para a perfeição individual”. Os cidadãos dessa democracia liberal poderiam ser religiosos, desde que não fossem “fanáticos”, ou seja, que fossem capazes de modificarem seus posicionamentos em questões de última importância(RORTY, 1991, p. 175). Rorty não apresenta em detalhes o que exatamente ele considera ser “a privatização da religião”. Se entendermos a esfera pública como a área da vida social onde as pessoas se reúnem, discutem e identificam problemas sociais, e por meio dessa discussão influenciam a ação política, então o que Rorty parece defender é que os cidadãos, enquanto nessa área, usem vocabulários seculares. “Privatização”, nesse sentido, segue a distinção público/privado da vida humana, a discussão religiosa fica no reino do privado, seria apropriado somente discutir esses temas dentro daquele círculo e com os grupos relevantes da comunidade religiosa. Pois, segundo Rorty, na esfera pública de uma democracia plural, apelar para referênciasmorais de conhecimento religioso sempre nos levará a uma discussão infindável sobre qual fundamento religioso é o melhor (RORTY, 2000, p. 173).

Reconsideração Enquanto Rorty pode ser entendido como instigante pelos temas que aborda, ele também estava aberto às críticas e respeitosamente incorporava o que ele entendia como objeções válidas às suas elaborações. Em resposta à crítica feita por Nicholas Wolterstorff e Jeffrey Stout, Rorty admite que sua resposta original à Carter foi “apressada e insuficientemente cuidadosa” (RORTY, 2003, p. 141). Então, diferentemente de Religion As a Conversation-stopper, no qual Rorty defende uma estrita privatização da religião, em sua reconsideração, ele argumenta que ambas, as leis e os costumes, deixam os religiosos livres para usar seus textos sagrados para defenderem suas causas. Ao reconhecer as consequências lógicas da religião como impedidor de conversaçãoRorty escreve que há necessidade de lei para que se

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regulamenteos tipos de discursos que podem ser usados na esfera pública. Nesse sentido, Rorty entende que a privatização da religião apareça como uma tendência em comunidades democráticas liberais, substituindo as questões que antes eram relevantes por outras questões e problemas práticos que não exijam pressupostos metafísicos, sejam eles de discursos religiosos, ou de teorias políticas (RORTY, 1991, p. 176) Em seu novo posicionamento, Rorty diminui sua repulsa pela religião no geral, e muda o foco de seu ataque para as organizações eclesiásticas: organizações que recorrem a discursos de autoridade e fundamentalismo para convencer os cidadãos religiosos (RORTY, 2003, p. 141). O anticlericalismo de Rorty visa “os bispos católicos, as autoridades gerais dos mórmons, os televangelistas, e todos os outros tipos de profissionais da religião” que se devotam a “promulgar a ortodoxia” e “adquirir poderes econômicos e políticos” (RORTY, 2003, p. 141). Apesar de não apelar para uma espécie de regulamentação formal ou fundamento para ser contra a presença da discussão religiosa na vida pública Rorty defende sua “utopia secularista” que, um dia, a religião será “alocada para o nível da paróquia” (RORTY, 2003, p. 142). A razão da preocupação de Rorty sobre as instituições religiosas é a de que, embora as igrejas façam o bem ocasionalmente, a história mostra que, proporcionalmente, essas instituições tem mais colaborado com danos do que com o bem estar social. (RORTY, 2003, p. 142). Em sociedades contemporâneas, explica Rorty, o dano vindo das organizações eclesiásticas são apresentados como “o tipo o de sadismo cotidiano em que se usa a religião como justificativa para crueldade” (RORTY, 2003, p. 145). O que Rorty tem em mente aqui é o que ele se refere como “rixa exclusivista” que é encorajada pela disputa de poderes políticos e econômicos (RORTY, 2003, p. 146). Rorty reconhece, porém, que ele não pode defender a exclusão de certos apelos à convicções na esfera pública. Ele não pensa ser útil defender que os homofóbicos são “irracionais” desde que não há nada que possa se parecer com a “razão” pairando sobre nossas disputas (RORTY, 2003, p. 146). A falta de um critério objetivo, aos moldes tradicionais, para o consenso, leva à discordância de Rorty com a tese de Robert Audi de que cidadãos de uma democracia liberal devam ter um conjunto de princípios epistemológicos comum para as discussões sobre a política, que é independente de cada religião (AUDI apud RORTY, 2003, p. 144). Rorty,

entretanto,

justifica

seu

anticlericalismo

usando

o

argumento

neopragmático que o dano que vem das organizações eclesiásticas – incluindo a Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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homofobia que elas propagam – de longe pesa mais para o lado negativo do que para o lado positivo e o mundo seria melhor sem elas. Enquanto Rorty reconhece que não há justificação para elabarorar leis que possam banir as insituições religiosas, ou dizer aos fiéis que não levem as recomendações dessas instituições tão a sério, o argumento dele parece ser que porque eles são geralmente autoritários por natuteza, eles são incompátiveis com os valores civis democráticos liberais. Como ele escreve,

simplestemte querer ser informado pelos oficiais da igreja sobre o que é requisito para ser um um membro em uma boa posição, em uma dada denominação parece ser o tipo de coisa que sociedades democráticas devem desencorajar” (RORTY, 2003, p. 147).

Esse desencorajamento, Rorty recomenda, deveria vir na forma de uma defesa da separação da fé e da instituição. Ao mesmo tempo, ele endossa o liberalismo protestante cristão como a forma ideal de comprometimento religioso, porque essa forma de fé melhor se adpta às democracias liberais (RORTY, 2003, p. 147). Apesar de ser um ateu, Rorty defende tal favoritismo baseado no pressuposto de que ele tem o direito de “avisar outros cidadãos contra a maléfica influência” das organizações eclesiasticas (RORTY, 2003, p. 147) Em um cenário em que a homofobia seja problemática em uma democria liberal, Rorty tem dificuldade em reconciliar a homofobia religiosa com a liberdade de credo. Embora reconheça que as pessoas possam citar a Biblia para defender a homofobia, esse tipo de comportamento deveria ser “desprezado e evitado” e que tal citação poderia ser classificada como discurso de ódio (RORTY, 2003, p. 143). Rorty entende que as leis contra o discurso de ódio possam entrar em conflito com os princípios da democracia de não interferir nas práticas religiosas ou na liberdade de expressão (RORTY, 2003, p. 143), e que nós “obviamente” não podemos instituir leis “que digam aos fiéis a não levarem organizações eclesiáticas tão seriamente como os católicos são pedidos para levarem a autoridade papal a sério” (RORTY, 2003, p. 143). Rorty tem dificuldade em oferecer um argumento coeso em relação como a sociedade pode tratar organizações eclesiásticas ou fiéis que citam Levítico 18:22 para influenciar a política pública. No fim, parece que o argumento mais forte que Rorty emprega é que “o que deveria ser desencorajado é o mero apelo para autoridades” (RORTY, 2003, p. 147). A suspeita de Rorty é de que os membros de grupos religiosos assumem a autoridade bíblica, por exemplo, sem entender ou serem capazes de Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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defenderem suas decisões. Segundo Rorty, os fiéis não deveriam se restringir somente ao que é proposto na Bíblia ou à determinada concepção de bem de uma instituição eclesiástica, já que há uma pluralidade de concepções de bem concorrentes na esfera pública. Desse modo, o mais interessante seria considerar as visões de mundo religiosa como uma opção a mais, dentro da variedade de opções, permitindo a expansão do imaginário coletivo sobre o que seria a melhor forma de vida (RORTY, 2003, p. 147)

Conclusão Os esforços filosóficos de Rorty incluem uma negação do fundacionalismo em favor de sua proposta neopragmática,seguido por um comprometimento em defesa da democracia liberal como forma ideal de organização política. Rorty propõeo seu neopragmatismo como uma alternativa à metafísica e defende que a política liberal contemporânea não precisa recorrer a pressupostos filosóficos para funcionar (RORTY, 1991, pp. 176-196). Seguindo essa estratégia, Rorty elabora uma variedade de argumentos em relação ao papel adequado da religião na esfera pública. Sua tese inicial é que as discussões religiosas sejam extirpadas da esfera pública. Porém, argumenta depois que de alguma maneira, consistente com seu pragmatismo, a ideia de que as organizações eclesiásticas

sejam

marginalizadas,

assim,

uma

das

consequências

de

seu

neopragmatismo é de que ele está relacionado a uma utopia liberal secular. Há alguns momentos em que Rorty explora suas próprias objeções morais a algumas observações que cidadãos religiosos fazem na esfera pública, talvez, convidando seus concidadãos a atacar estas visões. Tais observações são adequadas com o neopragmatismo de Rorty, de como ele aceita que visões morais deveriam ser abertamente expressas em uma democracia liberal. O problema, segundo Stout, é quando Rorty parece sugerir que instituições democráticas liberais deveriam proibir pontos de vista religiosos em debates na esfera pública, porque eles são inconsistentes com valores liberais democráticos. Pode-se entender que Rorty sugere que visões religiosas e razão não conduzem para um diálogo democrático, assim qualquer tentativa de fazer funcionar seu ideal secular funcionar, seria necessário defender que a esfera pública fosse secularizada, deste modo mantendoo espaço público aberto a todos os tipos de formas de discurso que participem do jogo de dar e pedir razões (RORTY, 2005, p. 43)

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Há também a possibilidade de que as preocupações de Rorty com a religião na esfera pública sejam do tipo em que se preocupa com o estabelecimento, ou o reconhecimento político de autoridades religiosas. Sob um Estado democrático liberal, na qual exista a separação entre Igreja e Estado de modo que a liberdade religiosa seja preservada, ao mesmo tempo em que esse Estado se mantenha laico, a preocupação de Rorty é em relação à abstenção do Estado em questões religiosas. Há argumentos para defender o princípio da divisão entre Estado e Igreja, porém, nossa interpretação é que Rorty defende um liberalismo secular e que democracias liberais estão constantemente lutando para chegar à secularização. Stout indica que os escritos de Rorty sobre o papel da religião na política revelam certa militância secularista. Assim, em seus escritos sobre a religião na esfera pública, Rorty tenta imaginar um cenário em que democracia e secularismo estão lado a lado.

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A CONSTITUIÇÃO DAS SOCIEDADES EM AGOSTINHO DE HIPONA THE FORMATION OF SOCIETIES IN AUGUSTINE OF HIPPO Ricardo Mantovani*

RESUMO: Neste artigo, pretendemos investigar a formação das sociedades tal como pensada por Agostinho de Hipona em A cidade de Deus. Para tanto, nosso trajeto conterá uma análise do Da República de Cícero bem como de seus pressupostos estoicos, assim como um estudo dos conceitos agostinianos de queda,populuse amor. Palavras-chave: Política. Sociedade. Amor. Justiça.

ABSTRACT: In this article, we intend to investigate the formation of societies as thought by Augustine of Hippo in The City of God. In order to do so, we will analyze Cicero's On the Commonwealth, as well as its stoic assumptions, and also study the Augustinian concepts of fall, populus and love. Keywords: Politics. Society. Love. Justice.

Introdução Nos propomos, aqui, a investigar a dinâmica de formação das sociedades tal como pensada por santo Agostinho em A cidade de Deus. No intuito de aclarar o conceito agostiniano de povo(populus) – tarefa indispensável para levarmos a cabo aquilo que nos propomos aqui -, procederemos, inicialmente, a uma breve análise de alguns pontos do Da República de Cícero, bem como de algumas teses da doutrina estoica que embasam a referida obra. Por meio de tal

*

É bacharel (2009), licenciado (2009), mestre (2014) e doutorando em Filosofia Moderna pela FFLCH-USP. Foi professor efetivo da rede estadual de ensino, bem como editor dos Cadernos de Ética e Filosofia Política (FFLCH-USP). É autor de Limites da apologia cristã: a razão à procura de Deus em Blaise Pascal (São Paulo: Editora Garimpo, 2016) e coautor de O que é o homem? (São Paulo: Editora Garimpo, no prelo). Atualmente é bolsista da CAPES e membro do CEFA (Centro de Estudos em Filosofia Americana). Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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análise, visamos, sobretudo, evidenciar como Cícero forja seu próprio conceito de povo – noção contra a qual Agostinho se insurgirá mais tarde. Num segundo momento, já concentrados especificamente sobre os escritos agostinianos, examinaremos: i) o que o bispo de Hipona afirma a respeito da origem histórica da cidade terrena e da cidade de Deus; ii) aquilo que o filósofo diz sobre a queda adâmica e suas funestas consequências; iii) certa incompatibilidade existente entre a filosofia estoica e a antropologia agostiniana; e iv) a definição de povo oferecida por Agostinho, bem como sua noção de amor. Finalmente, nos dedicaremos – com o auxílio de Étienne Gilson – a expor a lógica intrínseca à constituição das duas cidades às quais, segundo Agostinho, todas sociedades particulares podem ser reduzidas.

O Da República2 de Cícero Entre os anos de 54 e 51 a.C., Marco Tulio Cícero – célebre orador e político romano – dedica-se à redação do Da República, onde versará, dentre outros tópicos, a respeito do melhor tipo de civitas. Como se verá, esta3 obra ciceroniana é bastante permeada por conceitos estoicos que, por assim dizer, fornecem-lhe sua base filosófica. Com efeito, desde as primeiras guerras púnicas – ocorridas entre 264 e 146 a.C. – os romanos deram início a um decisivo processo de incorporação de aspectos da cultura grega, a partir dos quais viriam a construir toda sua produção artística e literária4. De maneira geral, pode-se afirmar que a filosofia que seria desenvolvida em Roma nutriu-se, principalmente, de ideias das três grandes escolas helenísticas, a saber, o ceticismo, o epicurismo e o estoicismo – sendo que o instrumental conceitual desde

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Todas nossas citações do Da República basear-se-ão na tradução brasileira realizada por Isadora Prévide Bernardo. BERNARDO, I.P. O De Re Pública, de Cícero: natureza, política e história, dissertação de mestrado, FFLCH-USP, São Paulo, 2012. 3 Já que, por exemplo, o Cícero dos Academicaparece defender as teses de Carnéades e Filo de Larissa – e, portanto, apresenta-se mais como um filósofo cético do que como um pensador influenciado pelo estoicismo. De qualquer modo, nos absteremos, aqui, de classificar Cícero como pertencente a qualquer escola filosófica em específico. 4 Sobre a absorção da cultura grega por parte dos romanos, Arnaldo Momigliano dirá: “Enquanto lutavam contra Cartago, os romanos aprenderam grego e incorporaram costumes e conhecimentos gregos com rapidez crescente. Não houve crescimento correspondente no interesse grego por Roma. (...) A assimilação da língua, dos costumes e crenças gregos é indistinguível da criação de uma literatura nacional que, com toda a imitação de modelos alheios, foi imediatamente original, autoconfiante e agressiva”. MOMIGLIANO, A. Os limites da helenização, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1990, p.21-22 apud BERNARDO, I.P. O De Re Publica, de Cícero: natureza, política e história, p.12. Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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último revelar-se-ia extremamente adequado à reflexão política concernente aos fundamentos da cidade eterna. O pensamento político da Grécia clássica tinha a pólis por objeto. Como nos lembra Giovanni Reale, “Platão, na sua República, e Aristóteles, na sua Política, não só teorizaram, mas também sublimaram e hipostasiaram, fazendo da Polis não apenas uma forma histórica, mas inclusive a forma ideal do Estado perfeito”5. Ora, uma sequência de importantes acontecimentos viria a decretar o declínio das cidades-Estado gregas enquanto entidades sócio-políticas relativamente autônomas, bem como retirarlhes do foco das reflexões filosóficas. Dentre tais acontecimentos, é digna de nota a Batalha de Queroneia (338 a. C.), por meio da qual Filipe da Macedônia submeteu cidades como Atenas, Corinto e Megara, que, deste modo, viram sua liberdade política dissolver-se. Além disto, a ascensão, com Alexandre Magno, do ideal de uma monarquia divina universal - bem como o posterior florescimento dos reinos do Egito, da Síria, da Macedônia e de Pérgamo - completariam o processo de erosão da pólis, que não mais seria tida como a unidade política par excellence6. A perda de autonomia política das cidades-Estado desencadeou, por um lado, uma profunda desvalorização da vida e espaço públicos e, por outro lado, uma crescente valorização do indivíduo e da vida privada. Tal mudança é facilmente detectável, por exemplo, nas tragédias de Eurípedes, “nas quais o indivíduo conta mais do que a cidade”, bem como na nova comédia de Menandro, “cujo enredo é sempre doméstico (...): os incidentes não se referem aos negócios da cidade, mas à vida familiar”7. É precisamente neste contexto que surge, com Zenão de Cício (333 – 262 a.C.), a maior corrente filosófica da época helenística: o estoicismo. Dentre as teses fundamentais da Stoá8destaca-se a da identidade entre deus e o mundo, que viria a ser 5

REALE, G. História da filosofia: Antiguidade e Idade Média, p.228. A respeito da substituição das cidades-Estadopor outras formas de organização política - tanto historicamente quanto no campo das ideias -,conferir: REYNOLD, G. La formacion de Europa: el helenismo y elgenioeuropeo. Madri, Pegaso, 1950; notadamenteo capítulo intitulado “Alejandro y la conquista de Asia”, onde se pode ler: “(...) a intervenção macedônica não assinala, de modo algum, o final da Grécia, mas unicamente o final de uma época: a época helênica; e de um regime: o da cidade. No campo de batalha de Queroneia, no ano de 338, a cidade - aquela polis na qual Aristóteles contemplava com orgulho uma das criações mais perfeitas do espírito grego – caiu ferida de morte” p. 25. 7 CHAUI, M. Introdução à filosofia: as escolas helenísticas, p.37. 8 O que delinearemos doravante são algumas das ideias geralmente atribuídas ao estoicismo antigo como um todo. Com efeito, como afirma Giovanni Reale, é praticamente impossível discernir o pensamento de Zenão do pensamento de seus seguidores Cleanto e Crisipo. “O pensamento dos primeiros representantes da velha Estoá é dificilmente diferenciável, porque todos os textos se 6

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eternizada na célebre expressão de Sêneca, filósofo estoico do período imperial: natura sive deus9. Na verdade, dirão os estoicos, o universo é formado por dois princípios: um passivo - a matéria – e outro ativo – a forma, princípio enformante ou Logos10. No entanto, ao contrário do que se possa pensar, tal princípio enformante é, também ele, material. O deus corpóreo dos estoicos permeia tudo o que há e submete à sua ordenação a totalidade do ser. “É por isso que o homem pode estar em contato com o deus e encontrar na ordem que o cerca a possibilidade de também ordenar sua vida e lhe dar um sentido”11. Com efeito, a imanência divina – e a consequente divinização da natureza – fazem com que a física e a ética estoicas estejam intimamente imbricadas: afinal, uma vez que a natureza é o palco onde imperam as leis de deus, o que caberá ao homem, senão viver em conformidade com ela? Mesmo antes de poderem buscar esta adequação por meio da razão, os homens são colocados em sintonia com a natureza por seus impulsos (hormé). Ao cuidar de sua autoconservação, que fazem os seres vivos senão buscar o que é conforme sua natureza e rejeitar aquilo que lhe é contrário? É digno de nota que, curiosamente, os estoicos defenderão que o auto-interesse humano, ao invés de constituir o germe de um generalizado estado beligerante, é o verdadeiro fundamento do altruísmo. Se o homem é naturalmente impulsionado a amar-se e a se auto-preservar, “esse instinto primordial não está somente voltado para a conservação do indivíduo: o homem estende imediatamente a oikeíosis12 a seus filhos e a seus parentes e mediatamente a todos os seus semelhantes (...). É a natureza que, como impõe o amar a si mesmo, impõe também amar aos que geramos e àqueles que nos geraram; e é a

perderam e, além disso, aqueles que recuperavam as doutrinas estoicas através de testemunhos indiretos atinham-se às inumeráveis obras de Crisipo, que, elaboradas com dialética e habilidade refinadas, obscureceram toda produção dos outros pensadores da Estoá até fazê-la quase desaparecer”.REALE, G. História da filosofia: Antiguidade e Idade Média, p.254. 9 “Natureza, ou seja, Deus”. 10 No âmbito da filosofia estoica, os termos demiurgo, fogo artífice, forma, princípio enformante, Logos e Deus são sinônimos - ou, pelo menos, são termos que se referem à mesma realidade. Cf. REALE, G. História da filosofia: Antiguidade e Idade Média, p.256-261. 11 CHAUI, M. Introdução à filosofia: as escolas helenísticas, p.140. 12 “Afinidade que um animal experimenta com relação a si mesmo”. CHAUI, M. Introdução à filosofia: as escolas helenísticas, p.157. Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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natureza que impulsiona o indivíduo a unir-se aos outros e também a ser útil aos outros”13. Ao verem o mundo como um lugar inteiramente regido por um mesmo plano racional – onde todos os homens, ao menos em princípio, tendem a cuidar de seus semelhantes -, os estoicos afastam-se do pensamento de Aristóteles, segundo o qual os seres racionais são feitos para associarem-se especificamente numa pólis. Doravante, o próprio cosmos será visto como uma grande cidade - a cosmópolis - onde vigoram as mesmas leis e cujos habitantes são todos concidadãos. Independentemente do local de seu nascimento e de seu papel social, todo homem é partícipe da cidade de Zeus. Dentre as ideias estoicas que marcariam, de maneira indelével, o pensamento político de Cícero, Robert Radford identifica, precisamente, as seguintes: i) a meta fundamental da vida é viver de acordo com a natureza; ii) o homem é feito para viver em sociedade; iii) todo o universo é uma única entidade política; e iv) os sábios devem engajar-se na vida ativa14. Deve-se frisar, entretanto, que esta valorização da vida ativa não é própria do estoicismo antigo – aquele de Zenão, Cleanto e Crisipo -, mas uma inovação introduzida na Stoá por Panécio de Rodes15 (aproximadamente 185 – 100 a.C.) -, filósofo do chamado estoicismo médio que, juntamente com o historiador Políbio, fez parte do grupo de intelectuais que conviveram com Cipião, general e político romano que protagoniza o diálogo Da República, sobre o qual nos concentramos daqui em diante. Como já adiantamos, o que preocupa Cícero nesta obra é, dentre outras questões, determinar o melhor tipo de civitas. Para tanto, o autor empreende analisar as formas de governo tidas como clássicas e que figuram no pensamento ocidental desde a História de Heródoto16, quais sejam: a monarquia (o governo de um só), a aristocracia (o 13

REALE, G. História da filosofia: Antiguidade e Idade Média, p.264. Frente a este “otimismo” estoico no que tange à sociabilidade humana, não podemos deixar de lembrar das seguintes palavras de Jean-Jacques Rousseau: “Parece que o sentimento de humanidade se evapora e se enfraquece ao estender-se sobre toda a terra e que não conseguiríamos ser afetados pelas calamidades da Tartária ou do Japão como por aquelas de um povo europeu”. ROUSSEAU, J-J. Economia (moral e política), p.99. 14 RADFORD, R. T. Cicero: a study on the origins of republican philosophy. Amsterdam, EditionsRodopi B.V., 2002, p.21, apud BERNARDO, I.P. O De Re Pública, de Cícero: natureza, política e história, p.17. 15 A respeito dos ecos da filosofia de Panécio no pensamento ciceroniano, Reale afirma: “A importância de Panécio está principalmente na valorização dos deveres. A sua obra “Sobre os deveres” influenciou muito Cícero, que reteve de Panécio o conceito de “officium”, transmitindo-o ao Ocidente como uma conquista definitiva do pensamento moral”.REALE, G. História da filosofia: Antiguidade e Idade Média, p.266. 16 “Uma história das tipologias das formas de governo (...) pode ter início na discussão referida por Heródoto na sua História (Livro III, §§ 80-82) entre três persas – Otanes, Megabises e Dario – Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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governo de poucos) e a democracia (o governo de muitos). Uma vez constatadas as deficiências de cada uma destas formas políticas, que fazem com que elas por vezes 17 degenerem-se em seus contrários – respectivamente a tirania, a oligarquia e a oclocracia -, o filósofo identifica no governo misto o gênero ideal de república. Segundo Cipião, personagem por meio do qual Cícero expõe suas teses, o governo misto, ao conter os méritos – e nenhum dos inconvenientes – das outras formas de governo, é, dentre elas, a mais estável e a menos passível de dissolução18. Para Cipião, uma prova disto é o próprio esplendor de Roma - que carregaria, desde sua fundação, elementos do governo misto, único capaz de conferir perpetuidade à res publica19. Entretanto – e é isto que nos interessa aqui -, antes de se debruçar sobre as possíveis formas de governo, Cícero julga ser imprescindível definir o que entende por república. Dirá ele: “ (...) entrarei na discussão com esta regra – que creio dever ser observada ao dissertar sobre qualquer assunto se quereis eliminar o erro – que é conveniente investigar o nome que se tem do tema sobre o qual se vai tratar e explicar o que se indica com esse nome; e, se assim for combinado, só então será conveniente entrar na conversa. (...) Portanto, dado que investigamos acerca da república, vejamos, primeiro, o que é propriamente isso que investigaremos. (...) A república é a coisa do povo, porém o povo não é todos os homens agrupados de qualquer modo, mas congregados em um agrupamento da multidão por seu consenso de justiça e uma

sobre a melhor forma de governo a adotar no seu país depois da morte de Cambises. O episódio, puramente imaginário, teria ocorrido na segunda metade do século VI antes de Cristo, mas o narrador, Heródoto, escreve no século seguinte. De qualquer forma, o que há de notável é o grau de desenvolvimento que já tinha atingido o pensamento dos gregos sobre a política um século antes da grande sistematização teórica de Platão e Aristóteles (no século IV). A passagem é verdadeiramente exemplar porque (...) cada uma das três personagens defende uma das três formas de governo que poderíamos denominar de "clássicas" - não só porque foram transmitidas pelos autores clássicos, mas também porque se tornaram categorias da reflexão política de todos os tempos (razão por que são clássicas, mas igualmente modernas). Essas três formas são: o governo de muitos, de poucos e de um só, ou seja, "democracia", "aristocracia" e "monarquia", embora naquela passagem não encontremos ainda todos os termos com que essas três modalidades de governo foram consignadas à tradição que permanece viva até nossos dias. BOBBIO, Norberto. A teorias das formas de governo, p.39. 17 Dizemos “por vezes” pois, em Cícero, não há nada como a teoria da anaciclosepolibiana, segundo a qual existe um ciclo rígido e invariável de geração e degeneração das formas políticas. 18 A respeito disto, conferir, por exemplo, Da República I, [XLV] 69, p.118. 19 Com efeito, ao longo de todo o segundo capítulo do Da República,Cipião irá narrar a história de Roma com vistas a demonstrar a seus interlocutores que os princípios do governo misto nela se fazem presentes desde o tempo de Rômulo, além de terem sido constantemente aperfeiçoados pelo acúmulo de experiências de inúmeras gerações. De fato, Cícero faz questão de declarar (como, por exemplo, em II, [I], 3, p.122-23) que sua investigação concernente à melhor forma de governo não se baseia senão na investigação da história romana, ao passo que Platão, ao empreender a mesma tarefa na República, teria sido obrigado a forjar uma cidade. Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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reunião de utilidade comum. E a causa primeira para agrupar-se não é tanto a debilidade quanto uma certa naturalidade, por assim dizer, dos homens se congregarem20. De fato, este gênero {humano} não é solitário nem isolado”21. No trecho acima, vê-se que, num primeiro momento, Cícero atém-se à etimologia do termo em questão: república significa coisa do povo. Disto depreende-se, todavia, que, para se saber o que vem a ser uma república, é necessário que, previamente, saiba-se o que é povo. Ora, este é um agrupamento de homens unidos por concordarem quanto ao que é justo, além de estarem dispostos a guiar-se pela utilidade comum. No entanto, esta definição de povo também não é autossuficiente, e nos remete a um problema mais geral. Se não, vejamos. A definição de povo supracitada é, no limite, insuficiente para que se diferencie, por exemplo, o povo romano de uma horda de piratas. Afinal, não é impossível que alguns homens, apesar de manterem-se fiéis uns aos outros, julguem ser justo o saqueamento de navios estrangeiros. Assim sendo, como entender que, do ponto de vista de Cícero, não se possa atribuir o título de povo a um grupo de assaltantes? Bem, a compreensão deste fato passa, necessariamente, pela compreensão daquilo que, na obra que ora tratamos, nosso filósofo entende por ius. No terceiro livro do Da República, dois dos interlocutores de Cipião debatem acerca da justiça: enquanto o orador ateniense Filão tenta demonstrar - utilizando-se de argumentos de Carnéades – que não há direito natural, Lélio, sábio amigo de Cipião, defenderá a tese oposta. De acordo com Filão, caso o direito natural existisse, todos os homens teriam a mesma concepção de justiça: “O direito que procuramos pode ser alguma vez civil, natural nunca; se o fosse, como o quente e o frio, o amargo e o doce, seriam o justo e o injusto iguais para todos”22. Lélio, por sua vez, rejeita todo relativismo jurídico lançando mão de um instrumental conceitual manifestamente estoico. Dirá ele: “a lei verdadeira é a reta razão, conforme à natureza – difusa entre todos, constante, eterna – que chama ao dever ordenando e afasta do mal vetando. Porém, nem ordena nem veta em vão os 20

Aqui, além de assumir a tese estoica da sociabilidade natural do homem, Cícero parece estar contrapondo-se conscientemente à tese platônica propalada por Sócrates no livro II da República, 369b – 369c.: “Uma cidade tem sua origem, segundo creio, no fato de cada um de nós não ser autossuficiente, mas sim necessitado de muita coisa. (...) Assim, portanto, um homem toma outro para uma necessidade, e outro ainda para outra, e, como precisam de muita coisa, reúnem numa só habitação companheiros e ajudantes. A essa associação pusemos o nome de cidade”. PLATÃO. A República. CalousteGulbenkian, 9ª edição, Lisboa, 2001, p.72. 21 CÍCERO, Da República, I, [XXIV], 38 – I, [XXV], 39, p.91-93. 22 CÍCERO, Da República, IIII, [VIII], 13, p.178. Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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probos, nem move os ímprobos ordenando ou vetando. Esta lei não pode ser ab-rogada, nem é lícito derrogar alguma parte, nem sua totalidade pode ser ab-rogada. Na verdade, não podemos ser isentos da obediência a essa lei nem pelo senado nem pelo povo, nem devemos procurar outro comentador ou intérprete dela; nem haverá uma lei em Roma, outra em Atenas, uma aqui, outra depois, mas em todas as gentes e em todos os tempos uma lei eterna e imutável. E deus será o único, por assim dizer, mestre e comandante comum a todos – ele é o inventor desta lei, o juiz e quem a propõe. Quem não a cumprir afastar-se-á da sua própria natureza de homem e sofrerá enormes penas, mesmo se escapar do que chamam suplício”23. Tal declaração será, na sequência do texto, endossada por Cipião – de modo que, por meio dela, é a concepção de direito ciceroniana que se nos torna patente. Nesta passagem, vê-se vir à tona alguns dos conceitos estoicos que, como já havíamos anunciado, embasam o edifício argumentativo do Da República. De fato, o que está por trás do discurso de Lélio é, antes de mais nada, a tese estoica de que o cosmos é uma realidade regida, em sua integralidade, por um mesmo princípio organizador, ou seja, por um deus cujas leis devem, necessariamente, ser obedecidas em todos os lugares e em todos os tempos. Para os estoicos – assim como para Cícero -, a natureza, longe de ser caótica, é completamente ordenada pelo Logos, de maneira que, para conhecer as regras do direito natural, basta ao homem consultar sua razão. Eis por que, não obstante a miríade de constituições discrepantes, é possível falar-se numa justiça universalmente válida, à qual todos homens devem submeter-se: já que, como decreta Lélio, “quem não a cumprir afastar-se-á da sua própria natureza de homem”24. Neste ponto, uma vez que já estamos cientes da concepção de justiça defendida por Cícero no Da República, podemos retornar à sua definição de povo. Vimos que o filósofo considera como constituindo um povo um agrupamento de homens que se unem em prol de seus interesses comuns e que se mantêm num consenso em relação ao que é justo e ao que é injusto. Também vimos que esta definição de povo, por si só, é incapaz de diferenciar, por exemplo, o povo romano de uma horda de piratas – isto porque até um grupo de marginais pode ter uma concepção unificada de justiça.

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CÍCERO, Da República, III, [XXII], 33, p.192. Lembremo-nos, aqui, que a máxima “a meta fundamental da vida é pôr-se em acordo com a natureza” é uma das teses estoicas que, de acordo com Radford, ocupam um papel central no pensamento político de Cícero. 24

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No entanto – agora sabemo-lo -, para Cícero só há umajustiça: aquela que, por meio da reta razão, pode-se depreender da natureza. O direito não é senão direito natural – e a ele devem submeter-se todos os homens, sem exceção.Eis por que, para o cônsul romano, não poderá ser considerado povo – e, por conseguinte, não poderá constituir uma república – senão um agrupamento humano que, além de perseguir o bem comum, viver de acordo com a verdadeira justiça, proposta pelo próprio deus. Como dirá Etienne Gilson, “o que parece dominar a concepção pagã de cidade, que é um corpo ao mesmo tempo político e social, é a noção de justiça. (...) A justiça é, pois, a condição primeira requisitada para a existência de uma cidade”25. Ora, será contra esta concepção de res publica – ou, mais exatamente, contra a concepção de povo que a sustenta – que Santo Agostinho se insurgirá n‟A Cidade de Deus. O que investigaremos a seguir são, precisamente, os fatores que motivaram o bispo de Hipona a pôr em xeque os alicerces do pensamento político ciceroniano e a propor sua própria definição de populus.

A noção de povo e a constituição das sociedades n’A Cidade de Deus Na segunda metade do século I a.C., pouco tempo após a morte de Cícero (43 a. C.), Roma viria a tornar-se um império. No entanto, somente por volta de quatro séculos mais tarde, sob o governo de Teodósio I (347-395 d. C), este império tornar-se-ia oficialmente cristão. Tal fato foi, de imediato, interpretado como sendo providencial por parte dos fiéis da nova religião do estado - afinal, dirão eles, nada poderia ser mais propício à divulgação do evangelho e à própria volta do Cristo. A seguinte passagem do poeta Prudêncio instrui-nos, com particular clareza, a respeito do otimismo vivenciado pelos cristãos de então: “no presente, vive-se no universo como se nele não houvesse senão cidadãos da mesma cidade. (...) Vê-se os 25

GILSON, E. Les métamorphoses de la cité de Dieu, Paris, Vrin, 2005, p.48. Na passagem citada, Gilson refere-se, precisamente, a Cícero. É digno de nota que, aqui, o comentador parece utilizar-se do termo civitascomo sinônimo de res publica. O trecho a seguir nos mostra que, por vezes, o próprio Agostinho chega a atribuir o mesmo significado a ambos os termos (ainda que este significado já não seja mais o ciceroniano): “O que dissemos de tal república e de tal povo (romanos), tornamo-lo extensivo ao povo de Atenas ou de outras regiões da Grécia, ao do Egito, ao da primeira Babilônia dos assírios, quando nas respectivas repúblicas sustiveram grandes ou pequenos impérios (...)”.AGOSTINHO, STO. A cidade de Deus, XIX, xxiv, p.496, grifo nosso. Note-se que, na referida passagem, até mesmo a famigerada cidade da Babilônia é chamada de república. Contudo, se, neste contexto, o bispo de Hipona não parece fazer qualquer distinção entre civitas e re publica, na maior parte do tempo as coisas não se passam assim – já que, enquanto este último termo é raramente utilizado pelo autor, o primeiro frequentemente surge sob sua pena com significados bem diversos daquele que acabamos de mencionar. Voltaremos a isto no próximo tópico. Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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países mais distantes (...) levarem seus casos ao mesmo tribunal e submeterem-se às mesmas leis. Pessoas estranhas entre si pelo nascimento reúnem-se nos mesmos lugares, atraídas pelo comércio e pelas artes; elas fazem alianças e unem-se por meio de casamentos. É assim que o sangue de uns e de outros se mistura, e que de tantas nações se formou um só povo. Eis o que faz o sucesso triunfante do império romano! Ao Cristo que vai logo voltar, creio eu, a rota está aberta, a qual foi construída pela amizade pública de nossa paz sob a condução de Roma. Pois, que lugar haveria para Deus num mundo selvagem, ou nos corações humanos divididos, quando cada um, como outrora, defendia seus direitos à sua maneira? (...) Grande Deus, tua hora é chegada. Penetre estas terras doravante reunidas! Ele está pronto para te receber, ó Cristo, este mundo que é unido por dois laços, a paz e Roma!”26 Este clima de esperança, todavia, não permaneceria incólume durante muito tempo. Em 24 de agosto de 410, Alarico, famoso rei visigodo, invade e saqueia Roma por três dias. O fato inaudito revigora a polêmica já existente entre pagãos e cristãos 27. Os primeiros se apressarão em dizer que a doutrina da nova religião, por pregar que se deve oferecer a outra face a quem nos bate, não pode ser adotada pelo império – que, de resto, era muito próspero quando cultuava os antigos deuses. Esta e outras críticas similares chegaram às mãos de Agostinho através do cristão Marcelino, que remeteu ao bispo de Hipona os questionamentos provocativos que o aristocrata pagão Volusiano havia lhe direcionado, em 412, numa epístola. Ora, a obra A cidade de Deus nada mais é do que a réplica agostiniana a tais invectivas. Vejamos o que o próprio Agostinho diz a respeito disto nas Retratações: “invadida pelos godos sob a condução de seu rei Alarico, Roma foi tomada e devastada. Os adoradores dos deuses tão falsos quanto numerosos, aos quais damos o nome de pagãos, tornaram a religião cristã responsável por esse desastre e espalharam logo contra o verdadeiro Deus blasfêmias mais azedas e mais amargas que de costume. Um zelo ardente pela casa do Senhor me inspirou então a escrever, contra suas blasfêmias e seus erros, meus livros d‟A cidade de Deus”28. Nesta que, seguramente, é a mais abrangente de suas obras, Agostinho empreende uma profunda análise da religião greco-romana, no intuito de patentear suas 26

PRUDÊNCIO, Contra Symmachum, II, 609 - 63 5; Pat. Lat., t.60, col. 228-230 apud GILSON, E. Lesmétamorphoses de lacité de Dieu, p.37-38, grifo nosso. 27 Cf. BOISSIER, G. La fin du paganisme. Étude sur les dernières luttes religieuses em Occident au quatrième siècle, Paris, Hachette, 1894. 28 AGOSTINHO, STO. Retratações, lib. II, cap.43; n.2; Pat. lat., t.32, col.648, apud GILSON, E. Les métamorphoses de la cité de Dieu, p.44. Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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incoerências, suas impudicícias, seu antropomorfismo e mesmo sua ineficiência no que tange à proteção do império. Além disto, ao longo de pelos menos onze dos vinte e dois livros que compõe o todo da obra, vê-se o bispo de Hipona tratar da origem, da evolução e do fim próprios à cidade de Deus e à cidade dos homens. Será exatamente neste último contexto que Agostinho elaborará sua definição de povo, cuja gênese sondaremos a partir de agora. Não estaremos falseando o pensamento agostiniano se, resumida e provisoriamente, afirmarmos que a cidade de Deus é aquela composta por todos os seres racionais que vivem em função do Criador, ao passo que a cidade terrena é aquela que congrega todos que a Ele viraram suas costas. Desde já, é importante que se note que fazem parte de ambas cidades tanto homens quanto anjos: “não existem realmente quatro cidades ou sociedades, duas humanas e duas angélicas, mas apenas duas cidades ou sociedades de bons ou de maus, homens ou anjos”29. Ora, ainda que possamos dizer que a cidade de Deus existe desde o momento em que os primeiros seres racionais vieram à existência, o mesmo não pode, com justiça, ser dito da cidade que se lhe opõe. Esta última não é fruto senão do primeiro pecado, qual seja, o pecado dos anjos que, mesmo antes da queda de Adão, já haviam se rebelado contra a ordem divina. Segundo a exegese agostiniana do Gênesis, todos os anjos foram feitos por Deus no primeiro dia da criação. Aliás, Deus, neste dia, não só os teria feito, mas também têlos-ia distinguido, classificando-os como bons ou maus – o que, de acordo com o filósofo, é atestado pelos seguintes versículos: “E Deus disse: haja luz; e houve luz. E Deus viu que a luz era boa; e Deus dividiu a luz e as trevas.”(Gn.1, 3-4). Agostinho crê que, nesta passagem bíblica, a palavra luz pode referir-se aos anjos em geral, ao passo que a palavra trevas poderia designar os anjos que viriam a insurgir-se contra seu Criador. Neste ponto, todavia, é indispensável que atentemos para o fato de que todos os anjos foram criados partícipes da luz divina, sendo que, se alguns deles tornaram-se trevas, isto ocorreu apenas por dela terem voluntariamente se afastado30. Não há aqui, portanto, nenhum flerte com o pensamento maniqueísta. Todos os seres – inclusive os demônios -, enquanto criaturas de Deus, são certo bem. Com efeito, se o Criador foi capaz de, desde o início dos tempos, discriminar os anjos bons dos 29 30

AGOSTINHO, STO. A cidade de Deus, XII, i, p.77. Cf. AGOSTINHO, STO. A cidade de Deus, XI, ix. Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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anjos maus – e, neste sentido bem específico, ter “fundado”, mesmo antes do primeiro pecado, as duas cidades de que tratamos -, isto não se deve senão à sua presciência perfeita e infinita: “entre a luz, que é a santa sociedade dos anjos e resplandece inteligivelmente pelos esplendores da verdade, e as trevas, contrárias a ela, isto é, as espantosas mentes dos anjos maus, que se apartaram da luz da justiça, apenas pode fazer distinção Aquele para quem não pode ser oculto e incerto o mal futuro, não da natureza, mas da vontade”31. É inquestionável que a cidade terrena – também chamada de cidade do diabo32 – deve sua existência aos anjos que “embriagados por seu próprio poder, como se fossem seu próprio bem, declinaram do bem beatífico, superior e comum a todos”33. Não obstante, ainda nos falta investigar o que levou boa parte do gênero humano a tornar-se concidadã de tão malfadadas criaturas. Ora, o que poderia ser, senão o pecado de Adão e Eva? A interpretação agostiniana do pecado original ressalta que a falta do homem nada tem a ver com a ingestão de qualquer alimento que pudesse ser considerado mau em si mesmo. Ao vetar ao homem que comesse de determinada árvore, Deus estaria, na realidade “encarecendo a obediência, virtude (...) mãe e tutora de todas as demais virtudes da criatura racional”34. Ao propor-lhe uma regra tão fácil de ser cumprida e proibir-lhe tão ínfimo ato qual seja, comer o fruto de uma das muitas árvores de um jardim onde os alimentos abundavam - Deus, de modo algum, quis tentar o homem, mas apenas mostrar-lhe que deveria pautar-se pela vontade de seu Criador, e não por sua própria vontade. O desenlace da história é sobejamente sabido: a exemplo dos anjos caídos – e, em certa medida, por eles instigados -, escolhemos a nós mesmos, em detrimento Daquele que nos fez para si. Nossa falta, no entanto, não se conservaria impune. Dentre as funestas consequências do pecado, pode ser indicada, por exemplo, a morte corporal. De acordo com Agostinho, o homem – diferentemente dos anjos – não foi criado de modo a permanecer imortal independentemente de sua conduta. Assim, ainda que nossos primeiros pais tenham sido criados “em tal estado que, se não pecassem, não sofreriam

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AGOSTINHO, STO. A cidade de Deus, IX, xix, p.51-52. Cf. AGOSTINHO, STO, Enchiridion, cap. XXXI. 33 AGOSTINHO, STO. A cidade de Deus, XII, i, p.77. 34 AGOSTINHO, STO. A cidade de Deus, XIV, xii, p.182. 32

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gênero algum de morte”35, a enormidade de sua culpa e sua consequente condenação tornaram tal fato inevitável – para eles e para toda posteridade. É digno de nota que a corrupção da natureza humana ocasionada pela queda36 faz-se perceptível não só na morte de nosso corpo, mas também na revolta deste contra o espírito. Para o pai de Adeodato, tal revolta faz-se perceber, de maneira muito clara, na falta de controle que temos daquilo que ele chama de “membros inferiores”. Estes “membros”, diferentemente de nossas pernas e braços – que, desde que estejam sãos, obedecem-nos -, parecem ter vontade própria, movendo-se a seu bel prazer37: “o que se retribuiu, como pena, ao pecado de desobediência, senão a desobediência?”38 Entretanto, o aspecto da punição divina que mais nos interessa aqui é aquele que nosso filósofo analisará, de maneira detida, em seus escritos ditos anti-pelagianos. Em A natureza e a Graça, lê-se: “Pelágio afirma: „o castigo do pecado constitui matéria de pecado, se o pecador se enfraqueceu a ponto de cometer muitos pecados‟. Não tem em conta que a luz da verdade abandonou com toda justiça o transgressor da lei. Privado da luz, torna-se cego, e forçosamente comete mais ofensas; e, caindo, desequilibra-se, e, desequilibrando-se, não se levanta, a não ser que ouça a voz da lei que o estimula a implorar a graça do Salvador”39. Como se sabe, o monge Pelágio40, contemporâneo de Agostinho, viria a ser condenado como herético em 431 - no Concílio de Éfeso - precisamente por negar que o pecado de Adão tenha contaminado seus descendentes e, consequentemente, por menosprezar o papel da graça na salvação da alma humana. Ora, pelo trecho citado de A natureza e a graça, vê-se que, para nosso autor, os efeitos da queda não podem ser subestimados. Como punição pela falta de Adão, vagamos cegos neste mundo, onde necessariamente portamo-nos de modo injusto - quer por não sabermos mais ao certo em que consiste a verdadeira justiça, quer por não conseguirmos segui-la quando esta 35

AGOSTINHO, STO. A cidade de Deus, XIII, iii, p.121. A respeito da “transferência” das penas referentes ao pecado original a todos descendentes de Adão e Eva, Agostinho afirma: “Com efeito, o homem não procede do homem como o homem procedeu do pó. Na criação do homem o pó foi a matéria, e na geração do homem, o homem é o pai. Por isso, a carne não é da mesma natureza da terra, embora haja sido feita da terra; por outro lado, o filho é tal qual o pai. Todo o gênero humano, que havia de passar à posteridade por meio da mulher, estava no primeiro homem, quando os cônjuges receberam a sentença que os condenou. E tal ocorreu, não no momento de sua criação, mas no momento de seu crime e de seu castigo, e assim se reproduziram as mesmas condições de morte e de pecado”.AGOSTINHO, STO. A cidade de Deus, XIII, iii, p.121. 37 Cf. AGOSTINHO, STO. A cidade de Deus, XIV, xv – xxiv. 38 AGOSTINHO, STO. A cidade de Deus, XIV, xv, p.186. 39 AGOSTINHO, STO. A natureza e a graça, XX, p.133. Grifo nosso. 40 Pelágio da Bretanha (aproximadamente 350-423 d.C.). 36

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nos é apresentada41. Assim, dirá Agostinho, é necessário que concordemos com o salmista quando este afirma que ninguém pode declarar-se justo perante Deus42. Dito isto, cremos que já estamos em condições de começar a compreender por que o bispo de Hipona não poderá aceitar o conceito ciceroniano de povo. No tópico anterior, vimos que Cícero, ao definir a res publica como coisa do povo, é obrigado a apresentar o que entende por populus – que define como sendo um agrupamento de homens unidos por concordarem quanto ao que é justo, além de estarem dispostos a guiar-se pela utilidade comum. Vimos também que, partindo de pressupostos estoicos, Cícero defende que há um direito natural – identificável pela reta razão – que deve ser observado por toda e qualquer sociedade que se pretenda algo mais do que uma horda de piratas ou um grupo de assaltantes. Assim sendo, concluímos que a justiça sobre a qual devem estar concordes os membros de um povo que seja digno desse nome não pode ser fruto de mera convenção, mas deve ser aquela que emana do próprio Logus divino. Mas o que Agostinho pensará de tudo isto? Primeiramente, pode-se dizer que, ao levar em conta o pecado original e suas consequências – notadamente a cegueira e a injustiça intrínsecas ao homem decaído -, o bispo de Hipona sequer poderia conceber a possibilidade da existência de uma sociedade justa arquitetada tão somente pela razão humana. Assim como uma árvore doente não pode gerar senão frutos doentes, os homens corrompidos não podem gerar senão sociedades corrompidas: “se no homem individualmente considerado não há justiça alguma, que justiça pode haver numa associação de homens composta de indivíduos semelhantes?”43 A incompatibilidade entre a antropologia cristã e a política ciceroniana não poderia ser mais evidente: enquanto aquela vê no homem pós-queda uma criatura eminentemente passional e sem qualquer contato imediato com a inteligência divina44, esta supõe que somos capazes tanto de abarcar a verdadeira justiça, quanto de a ela nos submetermos. Disto decorre que, no universo cristão/agostiniano, a definição de populus de Cícero torna-se vazia na exata medida em que é inaplicável a qualquer agrupamento humano real. Num mundo onde as injustiças e instituições iníquas são 41

Cf. AGOSTINHO, STO. Confissões, VIII, 9. Sl. 141, 2. Citado por Agostinho em A natureza e a graça, LX, p.181. 43 AGOSTINHO, STO. A cidade de Deus, XIX, xxi, p.489. 44 Ainda sobre a incapacidade do homem desgraçado encontrar a justiça e a ela submeter-se, Agostinho afirma: “Todavia, se o homem fosse bom, agiria de outra forma. Agora, porém, porque está nesse estado (decaído), ele não é bom nem possui o poder de se tornar bom. Seja porque não vê em que estado deve se colocar, seja porque, embora o vendo, não tem a força de se alçar a esse estado melhor (...)”. De libero arbitrio, III, xvii, p.209. Grifo nosso. 42

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quase tudo o que há, que sentido poderá haver em se pretender considerar legítimas apenas sociedades supostamente justas? Aliás, mesmo que se conceda que a justiça é dar a cada um o que lhe é devido – e que, portanto, conceda-se que o ser humano tem uma vaga ideia do que sejam o justo e o injusto45 -, ainda assim a definição ciceroniana de populusnão será aplicável senão a um conjunto de homens em específico: aqueles que devotam suas vidas a Deus. A razão disto revela-se, de uma vez por todas, na seguinte declaração de Agostinho: “Pois bem, a justiça é a virtude que dá a cada qual o que é seu. Que justiça é essa que do verdadeiro Deus afasta o homem e o submete aos imundos demônios? Isso é, porventura, dar a cada qual o que é seu? Ou será que quem tira a propriedade a quem comprou e a dá a quem não tem direito a ela é injusto e é justo quem se furta ao Deus Criador e serve aos espíritos malignos?”46 Quando se leva a noção de justiça – tal como referida acima - até suas últimas consequências, nota-se que só pode ser considerada justa uma sociedade comandada pelo próprio Cristo – e não pelos homens e por seus ídolos de barro. Aqui, vale ressaltar que uma tal sociedade não é – e nem poderia ser - fruto exclusivo da vontade e do engenho humanos. Com efeito, somente a graça crística pode pôr o homem a serviço de Deus, assim como somente por ela a alma pode imperar sobre o corpo e a razão pode impor-se sobre as paixões. Por tudo quanto afirmamos até aqui, nota-se que a justiça não é um conceito muito profícuo quando se trata de compreender e classificar as diferentes sociedades formadas pelos seres dotados de razão. Será tendo isto em vista que Agostinho irá propor sua própria definição de populus. Dirá ele: “um povo é um conjunto de seres racionais associados pela concorde comunidade de objetos amados”47. Se ao nos concentrarmos sobre a definição de populusciceroniana vimo-nos obrigados a investigar a concepção de justiça sustentada pelo cônsul romano, neste

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Deve-se notar que Agostinho não defende a tese de que os homens sabem propriamente o que é a justiça, já que isto implicaria um conhecimento direto da inteligência divina. Sobre isto, Gilson dirá: “(...) Todas estas noções não têm outro conteúdo que o julgamento pelo qual elas se explicitam: a justiça é dar a cada um o que lhe é devido; a sabedoria é preferir o eterno ao temporal; a caridade é amar Deus acima de todas as coisas, e assim por diante. Enfim, também é certo que santo Agostinho frequentemente qualifica estas noções como “regras” segundo as quais julgamos”. GILSON, É.Introdução ao estudo de Santo Agostinho, Discurso Editorial, 2007, p.188. Cf. op. cit., p.185-190. Tratamos brevemente deste tema em nossa dissertação de mestrado: “Os limites epistemológicos da apologética pascaliana”, FFLCH, USP, 2015 – notadamente no capítulo 6, intitulado “A recusa pascaliana das provas metafísicas da existência de Deus”. 46 AGOSTINHO, STO. A cidade de Deus, XIX, xxi, p.488. 47 AGOSTINHO, STO. A cidade de Deus, XIX, xxiv, p.496. Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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ponto será necessário que investiguemos o que Agostinho entende por amor para que, posteriormente, possamos compreender, de modo apropriado, aquilo que entende por povo. No 13º livro de suas Confissões, o bispo de Hipona, em meio a uma oração, declara: “Em teu dom repousamos, e nele gozamos em ti. Ele é o nosso descanso, é o nosso lugar. É para lá que o amor nos arrebata. O Espírito Santo nos eleva a humildade, afastando-a das portas da morte. Na tua boa vontade temos a paz. Todo corpo, devido ao peso, tende para o lugar que lhe é próprio, porque o peso não tende só para baixo, mas também para o lugar que lhe é próprio. Assim, o fogo tende para o alto, a pedra para baixo. Por seu peso são impelidos para seu justo lugar. O óleo derramado sobre a água aflora à superfície; a água, jogada sobre o óleo, submerge. São ambos impelidos por seu peso a procurar o próprio posto. Onde há desordem, reina a agitação, e na ordem reina a paz. Meu peso é o amor; por ele sou levado para onde sou levado”48. Ao lermos as linhas supracitadas, o primeiro fato que nos salta aos olhos é que, ao tratar do amor, Agostinho nos remete, de modo claro e inequívoco, à física grega – ou, mais especificamente, à física aristotélica. Segundo Aristóteles, todo corpo possui um peso natural, pelo qual é arrebatado a um determinado lugar do universo. De acordo com esta teoria, uma pedra arremessada para o alto tende a descer em direção ao solo não por que seja atraída pela gravidade terrestre – ideia totalmente desconhecida pelos helenos -, mas sim por que este seria o seu lugar natural. Aliás, o mesmo raciocínio pode ser aplicado aos próprios elementos de que é formado o mundo físico: o peso do fogo faz com que este tenda para cima; o peso do ar também faz com que ele tenda para cima, ainda que seu lugar natural seja abaixo do fogo; o peso da terra, por sua vez, faz com que esta tenda para baixo e, por fim, o peso da água faz com que ela tenda a se posicionar abaixo de todos outros elementos. Neste sentido, pode-se concluir que um mundo cujos corpos não tivessem peso estaria condenado à completa imobilidade. Ora, Agostinho entenderá o homem e seu amor de maneira análoga. Sobre isto, Étienne Gilson afirma: “em cada alma, como em cada corpo, há um peso que a arrebata incessantemente e move-a continuamente a buscar o seu lugar de repouso; isto é o amor”49. Da mesma maneira que o peso dos corpos faz com que estes se 48

AGOSTINHO, STO. Confissões, XIII, 9, p.406-407. Grifo nosso. GILSON, É.Introdução ao estudo de Santo Agostinho, p.256-257.

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movimentem em direção a seu lugar natural, o peso – ou melhor, o amor – de cada ser racional tem o poder de guiar todas suas ações voluntárias50 – ainda que, por vezes, confusa e indiretamente - na direção do objeto amado. O amor é, para nós, uma fonte inesgotável de movimento. Em obediência a ele, tendemos intermitentemente em direção a algo que reconhecemos como sendo um bem. Desde crimes como roubos e assassinatos até atos louváveis como a devoção e a caridade, todas ações humanas têm por motor primeiro o amor. Aquele que, acima de tudo, ama os bens materiais, não terá muitos escrúpulos em, por exemplo, enganar seu próximo em prol de certo lucro. Por outro lado, quem ama a Deus sobre todas as coisas jamais será capaz de semelhante conduta, pois sabe que, por meio desta, não lograria senão afastar-se de seu Criador. Assim, dado que - tal como a mera vontade de agir - todas ações fincam suas raízes no amor, cumpre concluir que todos seres racionais amam algo51. Todavia, ainda nos falta entender como tal sentimento é capaz de unir os homens de modo a formarem um povo. Neste intuito, imaginemos a situação proposta por Étienne Gilson52 na tentativa de explicar a origem das sociedadestal como pensada por Agostinho, qual seja, um espetáculo teatral desenvolvido em um espaço público. No momento em que são abertas as cortinas, os espectadores aproximam-se do palco para poderem apreciar a peça. A esta altura, a maioria deles são desconhecidos uns dos outros, não mantendo qualquer laço entre si. Entretanto, ao longo do desenvolvimento do espetáculo, a atuação de certo ator, por sua notável qualidade, chama a atenção de alguns dos presentes. Estes passam, por assim dizer, a amar o profissional que lhes proporciona tamanho prazer estético. Além disso, ao devotarem seu amor ao mesmo objeto, estabelece-se entre eles uma espécie de simpatia mútua. Neste sentido, passam a amar-se reciprocamente, não por causa de seus próprios méritos, mas por causa daquele que foi capaz de despertar seu amor.

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E, no limite, também das involuntárias; afinal, se, por exemplo, submetemo-nos irrestritamente àquele que aponta uma arma de fogo em nossa direção, fazemo-lo em decorrência do amor que devotamos a nós mesmos. 51 Desde que, claro está, sejam excluídas certas situações limites, tais como a de um ser humano totalmente desprovido de consciência. Sobre isto, Gilson dirá: “Nada seria menos razoável do que pretender isolar o homem de seu amor, ou impedir que o use; igualmente, isolá-lo de si e impedi-lo de ser ele mesmo. Subtraído do homem o amor que lhe entranha de objeto em objeto em direção a algum fim confusamente pressentido, necessariamente teremos um corpo material (...). O problema moral que se coloca não é, portanto, saber se é necessário amar, mas o que é necessário amar”.GILSON, É.Introdução ao estudo de Santo Agostinho, p.258. 52 Cf. GILSON, É.Introdução ao estudo de Santo Agostinho, p.326-327. Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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Aliás, se, de certo modo, amamos aqueles que compartilham de nosso entusiasmo por algo ou por alguém, odiamos o desprezo daqueles que não se curvam ao objeto de nossa afeição, de maneira que nosso primeiro impulso é tentar convencê-los de que este último é digno de seu amor. “Assim”, conclui Etienne Gilson – “o amor por um objeto engendra espontaneamente uma sociedade formada por todos aqueles cujos amores coincidem e exclui os que dele se desviam”53. Acreditamos que o exemplo do célebre comentador parafraseado acima será extremamente útil para nos auxiliar a compreender a constituição tanto da cidade de Deusquanto da cidade terrestre – no limite, as únicas existentes e às quais todas sociedades particulares podem ser reduzidas54. No entanto, antes de continuarmos nossa investigação, é essencial que ressaltemos o seguinte: os termos cidade, sociedade e povo são usados de maneira indiscriminada por Agostinho55 – já que, para ele, são apenas maneiras diversas de nomear a mesma realidade56, a saber, um agrupamento de seres racionais57 -, de modo que, doravante, também nós nos utilizaremos de tais termos tal como se fossem sinônimos. É ainda importante que lembremos que, em Cícero, apenas o termo povo referia-se aos diferentes agrupamentos humanos enquanto tais – e não o termo república, que já não fazia menção aos grupos em si, mas sim àquilo que pertence, de modo comum, aos seus membros. Eis por que se pode dizer que a noção

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GILSON, É.Introdução ao estudo de Santo Agostinho, p.327. É importante atentarmos para o fato de que, neste mundo, a cidade de Deus e a cidade dos homens sempre se encontrarão misturadas - ou seja, para o fato de que os cidadãos de ambas cidades deverão, inelutavelmente, viver lado a lado (no âmbito das “sociedades particulares”) até o advento do juízo final. Sobre isto, conferir GILSON, É. Introdução ao estudo de Santo Agostinho, p.334-335. 55 No capítulo VIII do décimo quinto livro da Cidade de Deus, Agostinho assevera, de modo claro, que uma cidade “não passa de uma multidão de homens unidos entre si por algum laço social” – declaração que, ao lado de inúmeras outras espalhadas por toda a obra, autoriza-nos a ver no termo civitasum sinônimo de populuse de societas. Estainterpretaçãotambém é defendidapor Johannes van OortemJerusalem and Babylon – A study of Agostine‟sCity of God and the sources of his doctrine of the two cities, notadamente no tópicointitulado “The concept „civitas‟”, p.102-108.Comentando a passagem supracitada, Oort afirma: “Neste caso, civitas pode denotar o mesmo que societas. Com efeito, há várias passagens em A cidade de Deus nas quais Agostinho usa civitase societas como sinônimos”. Op. cit., p.103. Quanto à sinonímia existente entre os termos civitase populus na obra em questão, cremos que ela pode ser facilmente deduzida das seguintes passagens quando relacionadas entre si:i) “um povo é um conjunto de seres racionais associados pela concorde comunidade de objetos amados”XIX, xxiv, p.496; ii) “dois amores fundam, pois, duas cidades, o amor-próprio, levado ao desprezo de Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial.”XIV, xxviii, p.204. Ainda a este respeito, em GILSON, É. Introdução ao estudo de Santo Agostinho, p.327, lê-se: “Daremos o nome de „cidade‟ ao conjunto de homens unidos por seu amor comum a um certo objeto”. Todos os grifos são nossos. 56 Salvo raríssimas exceções, tal como a assinalada na última nota do tópico anterior. 57 Fazemos questão de ressaltar que se trata de agrupamentos de seres racionais – e não apenas de homens -, pois, para Agostinho, é muito presente a ideia de que, tanto na cidade de Deus quanto na cidade terrena, anjos e seres humanos são concidadãos. 54

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agostiniana de cidade é uma resposta não à noção ciceroniana de república, mas sim à noção ciceroniana de povo. Isto dito, tentemos entender, levando em conta a situação imaginada por Gilson, a constituição da cidade (ou povo) de Deus – ou seja, da sociedade constituída pela totalidade de seres racionais que amam o Deus que se fez homem para redimir os pecados do mundo. Certamente, ao devotarem seu amor ao mesmo Deus, é compreensível que se desenvolva entre todos os cristãos a afeição mútua mencionada pelo comentador – até por que, amar o próximo como a si mesmo é um mandamento proposto pelo próprio Cristo. Além disso, dado que este mandamento não restringe sua prescrição aos outros fiéis, mas a estende à totalidade da humanidade – o que faz com que seja um dever do cristão amar até mesmo aqueles que o perseguem -, é perfeitamente compreensível que os seguidores de Jesus queiram que todos os homens venham a ser convertidos58. Neste sentido, a exemplo dos “espectadores” de Gilson – que chegam a aplaudir o ator de sua predileção com mais afinco afim de convencer os outros de seu talento -, os partícipes da cidade de Deus sempre estarão engajados em conquistar novos membros para a sociedade em que se encontram congregados. Ora, mas será que as coisas se passam da mesma maneira quando se trata da constituição da cidade terrena? Antes de mais nada, pode-se dizer que, para Agostinho, a cidade terrena é o conjunto dos seres racionais que, por terem virado suas costas ao Criador, não são parte integrante da cidade de Deus. Como asseverará nosso filósofo, elaé a sociedade que, intrinsicamente injusta, será “dominada pelo desejo de dominar”59 – uma vez queo amor responsável por sua constituição é, eminentemente, o amor-próprio.60 Este último fato, a nosso ver, permite que se afirme que, se, sob determinado aspecto, todos os membros da cidade terrena amam a mesma coisa – a saber, a si próprios -, sob outro aspecto cada um deles ama um objeto diverso daquele que é amado pelos demais: pois, por definição, o objeto do amor-próprio de cada homem não pode ser senão ele mesmo. Isto posto, pode-se notar que a situação narrada mais acima no intuito de investigar a origem das sociedadesmostra-se limitada quando se trata de explicar a dinâmica própria à cidade terrena. Afinal, enquanto os espectadores do exemplo de 58

Dado que: i) aquele que ama deseja a felicidade do ser amado e ii) a verdadeira felicidade é encontrada somente em Deus. 59 AGOSTINHO, STO. A cidade de Deus, Prólogo, p.39. 60 AGOSTINHO, STO. A cidade de Deus, XIV, xxviii, p.204. Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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Gilson amam, inequivocamente, o mesmo objeto, os cidadãos da Babilônia – outro nome dado por Agostinho à cidade que se contrapõe àquela de Deus (também chamada de Jerusalém) – amam tão somente a si mesmos, de modo individual. Além disso, é importante que se frise que, se o amor que os integrantes de uma plateia devotam conjuntamente ao mesmo ator é capaz de criar uma certa afinidade entre eles – passando, assim, a amarem-se mutuamente -, o amor-próprio que cega os membros da cidade terrena não dá origem senão ao desejo de dominar (ou libido dominandi) mencionado há pouco. Assim, a lógica inerente à cidade do pecado é a do poder e a da conquista. Lá, os príncipes exploram as nações vizinhas e seus próprios súditos, os tidos como heróis pretendem eternizar-se através de seus feitos, os pretensos sábios se vangloriam de seus conhecimentos, os ricos abusam dos pobres e os lascivos chafurdam nos prazeres da carne. Na cidade terrena os homens não amam uns aos outros, mas apenas desejam-se mutuamente – na exata medida em que não consideram seus semelhantes senão como meios que lhes permitem alcançar seus fins narcísicos61. Por fim, se os espectadores de Gilson – bem como os membros da cidade de Deus – tendem a engajar-se na conquista de novas almas que possam compartilhar de seus respectivos amores, os cidadãos da Babilônia só se interessarão por outros homens enquanto deles possam tirar algum proveito. O homem decaído só se interessa por seu semelhante para dominá-lo: o que me atrai no outro são ou seus bens, ou seu corpo, ou ainda, a admiração que ele possa por mim desenvolver. Por tudo quanto dissemos, percebe-se que, do ponto de vista agostiniano (neste aspecto, muito divergente do ponto de vista estoico/jusnaturalista de Cícero), a reflexão relativa à constituição das sociedades deve passar, necessariamente, pela consideração do amor, verdadeiro motor de todas nossas ações. Será levando isto em conta que, no próximo capítulo de nossa tese, tentaremos pensar aquilo que poderia ser tido como o fundamento da vida social em Blaise Pascal.

REFERÊNCIAS AGOSTINHO, STO. A cidade de Deus. vol. I e II. Petrópolis, Vozes, 2012. _________________. Confissões. São Paulo, Paulus, 2004. BERNARDO, I.P. O De Re Pública, de Cícero: natureza, política e história. Dissertação de mestrado, São Paulo, FFLCH-USP, 2012. 61

Cf.AGOSTINHO, STO. A cidade de Deus, XIV, xxviii. Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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BOBBIO, Norberto. A teorias das formas de governo. Brasília, UNB, 1997. BOISSIER, G. La fin du paganisme. Étude sur les dernières luttes religieuses em Occident au quatrième siècle, Paris, Hachette, 1894. CHAUI, M. Introdução à filosofia: as escolas helenísticas. São Paulo, Companhia das Letras, 2010. GILSON, É. Introdução ao estudo de Santo Agostinho. São Paulo, Paulus, 2007. _________. Les métamorphoses de la cité de Dieu. Paris, Vrin, 2005. MANTOVANI, R. Os limites epistemológicos da apologética pascaliana, dissertação de mestrado, São Paulo, FFLCH, USP, 2015. OORT, J. Jerusalem and Babylon – A study of Agostine‟sCity of God and the sources of his doctrine of the two cities.Boston, Brill, 2013. PLATÃO. A República. Lisboa, CalousteGulbenkian, 9ª edição, 2001. REALE, G. História da filosofia: Antiguidade e Idade Média. São Paulo, Paulus, 2004. REYNOLD, G. La formacion de Europa: el helenismo y elgenioeuropeo. Madri, Pegaso, 1950. ROUSSEAU, J-J. Economia (moral e política)in Verbetes políticos da Enciclopédia: Diderot e D‟Alambert. São Paulo, Discurso Editorial, 2006.

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O LIMIAR ENTRE A FILOSOFIA E AS CIÊNCIAS SOCIAIS EM HABERMAS THE THRESHOLD BETWEEN PHILOSOPHY AND SOCIAL SCIENCES IN HABERMAS Luís César Alves Moreira Filho*

RESUMO: A identidade do eu constituído de consciência hermenêutica possui conhecimento, linguagem e ação dentro das fases do desenvolvimento da consciência moral, desta forma o artigo tem por objetivo iniciar de forma pragmática uma discussão sobre os pontos em comum e as distâncias entre filosofia e as ciências sociais na contemporaneidade. Sem esgotar o assunto, não seguirá uma linha cronológica das obras dentro do pensamento habermasiano, o artigo irá esboçar um princípio de discussão a partir das obras A lógica das ciências sociais (1967) e o Agir comunicativo e razão destranscendentalizada (2001), desta maneira iniciará uma ética do discurso com essa temática que remete ao conhecimento dentro do uso pragmático da linguagem. Palavras-chave: Representação. Formas de representação. Linguagem.

ABSTRACT: The identity of the self consists of hermeneutical consciousness has knowledge, language and action within of the stages of development of the moral conscience, so the article aims to start pragmatically a discussion of the common point and the distance between philosophy and social sciences in contemporary times. Without exhaust the matter, will not follow a timeline of the works within the Habermas thought, the article will outline a principle of discussion from the works: Logic of Social Sciences (1967) and the Communicative action and destranscendentalizada reason (2001), this way initiate a discourse ethics with this theme which refers to knowledge within of the pragmatic use of language. Keywords: representation; Forms of representation; Language.

Introdução *

Possui graduação em filosofia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2010) e mestrado em filosofia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2013). Tem experiência na área de filosofia, com ênfase em filosofia contemporânea, atuando principalmente nos seguintes temas: eu, razão, sociedade, identidade do eu, constituição do eu, Jürgen Habermas, consciência moral, normatividade, intersubjetividade e soberania. E-mail: lcamf@hotmail.com Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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O conhecimento e a ciência são os fundamentos da história da humanidade, o qual gera diversas discussões, portanto ciência é uma representação aplicada à realidade independente da origem do conhecimento, o uso científico é uma questão antropocêntrica, contudo a distinção das formas de representação entre sistema de signos e o sistema de símbolos está na utilização fictícia, afinal a diferença é uma convenção dentro da consciência hermenêutica. A convenção deixa de existir a partir da universidade da consciência que recai no psicologismo lógico62 que estabelece o conhecimento anterior à representação da consciência num realismo sem representação. A ideia de uma consciência universal leva ao conhecimento público negando concepções privadas e particularistas do conhecimento, neste sentido uma ciência é necessariamente pública não privada nem intransferível, ou seja, tal concepção pessoal não permitiria ser conhecida devido ao caráter particularista deste saber. Habermas até o momento não escreveu uma obra sobre hermenêutica, mas a obra Dialética e hermenêutica (1987) é uma coletânea de textos escritos em datas distintas63, assim inaugura uma práxis controversa sobre o método do conhecimento, ao mesmo tempo formula uma perspectiva diferente em relação à Gadamer sobre a filosofia hermenêutica, desta forma adentra no assunto já existente tecendo suas considerações para uma leitura crítica e dialética, já que a regra torna-se pública nos jogos de linguagem. O método do conhecimento proposto em Dialética e hermenêutica (1987) não é objeto deste artigo, contudo o conhecimento é algo fundamental para a ciência, neste sentido é necessário uma revisão das metodologias numa perspectiva da obra Conhecimento e interesse (1968), pois não se trata de uma aplicação imediata do conhecimento, mas da sua formação e discussão histórica através da representação, formas de representação e linguagem. Conhecimento e linguagem em Habermas 64 são intrínsecos e inseparáveis, pois não existe linguagem sem interpretação: “Sabemos que não existem experiências não interpretadas, nem na prática da vida cotidiana muito menos no marco da experiência cientificamente organizada.” (HABERMAS, 1988, p. 181, tradução nossa). Evidentemente Habermas nesta obra que discute as ciências 62

Termo utilizado pela filosofia da linguagem. Sobre Verdade e Método, de Gadamer (1971); A pretensão de universalidade da hermenêutica (1971); Hans Georg Gadamer: urbanização da província heideggeriana (1979); Hermenêutica filosófica: leitura tradicionalista e leitura crítica (1981). 64 MOREIRA FILHO, L. C. A. Conhecimento e linguagem em Habermas. In: III SIMPÓSIO DO NÚCLEO DE FILOSOFIA KANTIANA CONTEMPORÂNEA “ZELJKO LOPARIC”; Londrina, PR: Núcleo Kant, Centro de Letras e Ciências Humanas, 3 e 4 de agosto de 2015, Universidade Estadual de Londrina – UEL, apresentação de comunicação. 63

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sociais identifica a verdade como consenso, ao mesmo tempo ao conhecimento como algo público, o qual todos os indivíduos da mesma espécie estão inseridos e possuem as mesmas condições dentro do conceito identidade do eu. A identidade do eu se constrói com base na ontogênese e na filogênese em sua intersubjetividade obedecendo a uma regra linguística que é pública, porém difere da verdade religiosa que é privada, neste sentido epistêmico a verdade possui regras públicas na relação conhecimento e ciência contra o particularismo. Desta maneira o mundo social possui uma pragmática formal65 entre Sellars e Wittgenstein66, já a pragmática universal vinculada a formas de vida do qual seus membros usam dos mesmos jogos de linguagem entre Mead e Wittgenstein67. Os modelos de conformação histórica da estrutura filogenética estão como pragmática formal por não ser tratada a representação como aspecto cognitivo em seu uso da linguagem, mas em termos de comunicação num contratualismo em seu desenvolvimento histórico, ou seja, um viés desenvolvimentista sem considerar as distintas formas de representação em suas formas de vida, afinal o conceito da pragmática universal busca unidade entre Mead e Wittgenstein dentro dos distintos jogos de linguagem, consequentemente levam a culturas diferentes em seu processo de comunicação como a níveis de desenvolvimento social. Portanto o mundo social se estabelece numa ontogênese em sua pragmática universal e numa filogênese em sua pragmática formal presente na reconstrução do materialismo histórico de Habermas.

O conceito de identidade do Eu não tem evidentemente um sentido apenas descritivo. Ele indica uma organização simbólica do Eu, que, por um lado, reclama para si exemplaridade universal, sendo situada nas estruturas dos processos formativos em geral e tornando possíveis soluções ótimas para os problemas da ação, os quais reaparecem invariavelmente nas diversas culturas; e, por outro lado, uma organização autônoma do Eu não se instaura absolutamente de modo regular, quase como um resultado de processos naturais de amadurecimento, mas termina por ser, na maioria dos casos, um objetivo não alcançado. (HABERMAS, 1983, p. 50)

Habermas deixa claro que o eu não consegue sua autonomia de forma regular dentro dos processos naturais de amadurecimento da inteligência operativa presente em Piaget, assim como o processo de desenvolvimento no pensamento habermasiano está na linguagem como extensão da consciência moral a partir do modelo analítico65

Desde “Verdade e Justificação (1999) Habermas emprega o termo “pragmática formal” em vez de “pragmática universal”. 66 (HABERMAS, 1989b, p. 58). 67 (HABERMAS, 1989b, p. 33). Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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descritivo de Kohlberg68, o qual analisa a fase pré-linguística da primeira topografia freudiana em seus dois sistemas (processo primário e secundário)69 juntamente com Mead70. Neste sentido retoma uma discussão científica do “[...] traço filosófico do positivismo é a necessidade de imunizar as ciências contra a filosofia [...] A substituição da teria do conhecimento pela teoria da ciência evidencia-se no fato de que o sujeito cognoscente não mais se apresenta como sistema de referencia.” (HABERMAS, 1987a, p. 90). O próprio positivismo comteano inaugura tal perspectiva, pois a universalidade da teoria científica está isenta de particularismos subjetivos, desta forma o fenômeno que surge do sujeito cognoscente em Kant a partir da coisa em si passa para Augusto Comte aos fenômenos naturais que devem ser investigados através da formulação científica dentro de critérios que privilegia o sistema de signos; portanto a teoria científica deve descobrir dentro da hierarquia científica os fenômenos naturais sem buscar as causas, mas constatar a ordem do mundo em seus eventos dominantes e constantes. Algo que se deve acrescentar que a linguagem também é extensão do sujeito cognoscente, sendo assim as teorias científicas também não são isentas desta perspectiva filosófica em que a linguagem é pública no processo de comunicação. Portanto ocorre uma integração entre teoria do conhecimento e teoria da ciência, pois o sistema de referência é o uso da regra que é pública nos jogos de linguagem. A verdade positivista desconsidera a linguagem substituída pela observação, ao mesmo tempo a verdade necessita da intersubjetividade para os agentes comunicativos entenderem-se sobre um objeto observado. Habermas vai além desta problemática, pois “[...] „verdade‟ como correspondência entre a representação e o objeto ou entre a preposição e o fato – passa ao largo do sentido cognitivo-operativo da „superação‟ de problemas e do „sucesso‟ de processos de aprendizagem.” (HABERMAS, 2004, p. 35).

Desenvolvimento O problema apresentado está inserido na consciência hermenêutica, pois qualquer verdade depende da aceitação da coletividade e dos interesses em grupo, neste sentido a obra Dialética e hermenêutica (1987) aborda a práxis contraditória da análise e da abordagem do conhecimento através da linguagem. Habermas em Verdade e 68

(HABERMAS, 1989a, p. 205-206). (HABERMAS, 1987a, p. 239); ver também: (FREUD, 1987, p. 492, 493, 495, 545). 70 (HABERMAS, 1987c, v. 2, p. 54), (HABERMAS, 1987b, p. 57); ver também: (MEAD, 1967, p. 15). 69

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justificação (1999) não reduz o conhecimento a análise das formas de representação da linguagem, pois uma visão analítica da linguagem não gera cultura nem identidade, mas uma gênese da comunicação delimitada em juntar fragmentos dentro da visão sintética. Já a capacidade linguística está na consciência hermenêutica que parte diretamente do uso da sua competência linguística sem explicar as regras do sistema linguístico, além de não trazer pressuposições inconscientes à consciência.71 Sem duvidar da realidade ou do mundo físico, a questão é o objeto das ciências sociais, porém devemos problematizar alguns pontos a partir da linguagem que leva ao pensamento social, identidade, cultura e memória, já que o conhecimento não se reduz a filosofia da linguagem.

O mundo objetivo não é mais algo a ser retratado, mas apenas o ponto de referência comum de um processo de entendimento mútuo entre membros de uma comunidade de comunicação, que se entendem sobre algo no mundo. Os fatos comunicados não podem ser separados do processo de comunicação, assim como não pode separar a suposição de um mundo objetivo do horizonte de interpretação intersubjetivamente compartilhado, no qual os participantes da comunicação desde sempre já se movem. O conhecimento não se reduz mais à correspondência entre proposição e fatos. É por isso que apenas a virada linguística, coerentemente conduzida até o fim, pode superar de uma só vez o mentalismo e o modelo cognitivo do espelhamento da natureza. (HABERMAS, 2004, p. 234)

A visão analítica e sintética da linguagem conduz as formas de representação e a regra dos jogos de linguagem, mas se deve considerar que no processo existem limites na relação entre consciência hermenêutica e compreensão hermenêutica72, desta forma a sociologia compreensiva com base na pragmática formal não procura resgatar a teoria do conhecimento nem ser solipsista, mas evidenciar que o discurso teórico está numa discussão científica juntamente com a hermenêutica filosófica. Portanto, existe uma separação de trabalhos entre ciência vinculada à mensuração e a filosofia com a interpretação através da experiência hermenêutica, sem existir uma hierarquia das ciências, ambos dependentes da representação. A verdade sem vincular-se ao sucesso para Habermas está relacionada ao sentido, pois tem sua origem a partir das pretensões de validade delimitada pela representação que confere realidade quando se é confirmado pela práxis da comunicação linguística dentro do processo de desenvolvimento ontogenético73. 71

(HABERMAS, 1987b, p. 33-34). (HABERMAS, 1987b, p. 40). 73 (HABERMAS, 2004, p. 35, 131, 279-280, 283). 72

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Vou a defender a tese de que há ao menos quatro classes de pretensões de valides, que são cooriginárias, e que essas quatro classes, a saber: inteligibilidade, verdade, retitude e veracidade, constituem um entrelaçamento a que podemos chamar racionalidade. (HABERMAS, 1989b, p. 121, tradução nossa)

As pretensões de validade formam o mundo social que procuram orientar uma identidade racional em sua normatividade social para uma verdade consensual, neste sentido argumentação se orienta entre o discurso teórico com o científico e filosófico em seu falibilismo ou no discurso prático parlamentar. A filosofia hermenêutica concilia o discurso teórico e o discurso prático por serem do mesmo mundo subjetivo, cuja preocupação positivista se faz presente no discurso teórico. A orientação progressista do discurso nomológico está preservada na obra Para a reconstrução do materialismo histórico (1976), já a concepção da física social desdobrou-se numa sociologia compreensiva em Habermas na Teoria da ação comunicativa (volume I e II – 1981; volume III - 1984). A linha tênue entre filosofia e ciência acaba por estar na filosofia terapêutica decorrente da autocompreensão da filosofia inaugurada por Wittgenstein74, pois a filosofia não é intervencionista enquanto hermenêutica75 como a ciência, o qual acaba sendo objeto de discussão em Dialética e hermenêutica (1987) dentro da consciência hermenêutica76, pois a ética filosófica possui uma função esclarecedora dentro das diversas correntes e procedimentos, contudo a ética do discurso oferece apenas um formalismo dentro das formas de representação (HABERMAS, 1989a, p. 121). A distinção estabelecida entre ciências da natureza com as ciências humanas está fragilizada, pois ambas dependem da linguagem sendo uma convenção a distinção entre sistema de signos do sistema simbólico, portanto se torna incoerente uma hierarquia pluridisciplinar das ciências em seu isolamento, já que a unidade está numa transdisciplinaridade através da representação que exige o uso de regra no pensamento de Wittgenstein, cuja conexão cultural do conhecimento está no nível da interdisciplinaridade das formas de representação dentro dos jogos de linguagem preso a formas de vida. A unidade do conhecimento entre identidade, não contradição e terceiro excluído são regras da linguagem com base no sistema de signos, pois os elementos da natureza vincula-se a concepção adotada neste artigo por sistema atômico. 74

(WITTGENSTEIN, 1999, p. 65, 187, 206) (HABERMAS, 1988, p. 285, 287, 332, ver nota 02). 76 (HABERMAS, 1987b, p. 35). 75

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A ciência da cultura parte das formas simbólicas, a qual está caracterizada pela representação simbólica como sistema simbólico, já na perspectiva da ciência nomológica está como sistema de signos juntamente ao sistema experimental. “As ciências das formas culturais procedem, portanto, não em termos analítico-causais, senão analítico-formais; se dirigem ao plexo estrutural de obras, e não à conexão fática de sucessos.” (HABERMAS, 1988, p. 89, tradução nossa). Veja que ciências da cultura que se utiliza da representação linguística pode se dividir em dois aspectos; primeiramente na forma analítico-formais que no plexo das obras não é orientada ao sucesso, o qual se encontra a sociologia compreensiva dentro do pensamento social; já num segundo momento a gênese presente na forma analítico-causal pode ser uma abordagem da filosofia hermenêutica numa filosofia social. A perspectiva reflexiva das causas se encontra numa lógica transcendental vinculada à consciência hermenêutica, porém a representação simbólica culturalmente transmitida e historicamente formada dentro dos jogos de linguagem é um processo público de comunicação, neste caso o processo de unidade das consciências junto à universalidade do conhecimento ocorre dentro da filosofia da linguagem numa lógica transcendental em busca de termos essenciais dentro de uma análise semântica das representações. O psicologismo lógico pensa a unidade do conhecimento antes da representação numa especulação de como é obtido este saber pela consciência hermenêutica; Habermas não retoma uma questão superada dentro da razão destranscendentalizada, pois os limites da comunicação tornam-se os limites de um mundo, neste sentido “Todas as tentativas de reconstruir um sentido material a priori para os possíveis objetos de referência são fadadas ao fracasso” (HABERMAS, 2002, p. 40). O

conceito

de

verdade

possui

uma

função

regulativa

dentro

da

destranscendentalização, ao mesmo tempo o realismo interno nega o conceito de coisa em si para estado de coisas, que leva a uma nova perspectiva como a retomada dos distintos elementos da natureza restritos ao ser, ou seja, a relação da proposição entre fatos e objetos através do sistema de signos deve considerar a combinação de elementos da natureza sem um viés unitário a partir de um único signo, pois ao afirmar um fato ele deve corresponder ao objeto que dentro do sistema de referência está delimitado pela representação interpretada pelo sujeito. A passagem do sistema simbólico para o sistema de signos torna-se uma especulação metalinguística, portanto a prática observacional do sistema experimental define uma abordagem sobre o objetivo investigado que exige Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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dentro da consciência hermenêutica uma distinção esclarecedora sobre as ideias a serem investigadas. As imagens de mundo dentro do sistema de personalidade não variam com as fases de desenvolvimento moral de Kohlberg, neste sentido se deve considerar a distinção entre sócio-cognitivo e aprendizagem. O conceito de aprendizagem procura continuar a visão Iluminista através do processo de desenvolvimento sem fim último ou penúltimo presente nas utopias dos estados de vida ideais, afinal estas representações já se fazem presentes nas imagens de mundo em sua consciência coletiva do qual Habermas toma de Durkheim sobre a origem da religião e do rito 77 constituintes do mundo social. Habermas retoma a crítica ao positivismo através de Kant que pergunta como é possível conhecer78, nesta pergunta ocorre uma virada copernicana como conversão a consciência79 na história da filosofia. Em certa medida, o conceito de coisa em si de Kant passa a ser tratado como reificação (coisificação) dentro do estado de coisas, onde tudo se transforma em coisa decorrente da invasão do mitológico na esfera profana num mundo esclarecido, o estado de coisas se torna indefinido por depender da abordagem que cada um faz sobre aquilo que observa, afinal a consciência hermenêutica depende da compreensão hermenêutica, sendo assim algo que seja produzido é uma coisa e quem produz este algo se transforma em outra coisa, deste modo o homem se transforma em mercadoria, portanto nesta relação entre indivíduo (mundo social) e objeto (mundo objetivo) entra a reificação da consciência (mundo subjetivo) que conduz a reificação da sua existência (mundo da vida), sem excluir a intersubjetividade presente na linguagem. O pensamento kantiano abre caminho ao falibilismo enquanto realismo sem representação por tratar de questões cognitivas dentro do acesso da consciência ao conhecimento, neste sentido o conceito de coisa em si dentro do psicologismo lógico adentra ao pensamento abdutivo80, pois as transformações na consciência são mutáveis, juntamente com a tida virada copernicana em Kant, o qual remete a uma perspectiva terapêutica da filosofia da linguagem. Neste sentido ocorre um limite entre filosofia e ciência, o qual:

77

(HABERMAS, 1987c, v. 2, p. 13) (HABERMAS, 1989a, p. 17) 79 (HABERMAS, 1989a, p. 20-21) 80 “A abdução é a forma argumentativa que aumenta nosso saber; ela constitui a regra em base da qual introduzimos novas hipóteses.” (HABERMAS, 1987a, p. 130). 78

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Devem deixar para os teólogos a tarefa de dar consolo nas situações-limite da existência. A filosofia não pode se apoiar no saber salvífico teológico, nem no saber clínico especializado, o que a impede portanto de prestar „ajuda de vida‟, como o fazem a religião ou a psicologia. Em questões de identidade – quem somos e gostaríamos de ser -, ela pode, enquanto ética, mostrar o caminho rumo a uma autoclarificação racional. Mas o papel „terapêutico‟ da ética filosófica não se esgota, hoje, no encorajamento a uma conduta de vida consciente. Uma „consulta‟ filosófica, que deixa para os próprios interessados a reflexão sobre o sentido da vida pessoal, comporta-se asceticamente, no que tange à „mediação do sentido‟. (HABERMAS, 2004, p. 323).

O interesse ascético pela reflexão filosófica deve partir dos próprios filósofos, portanto não cabe no contexto da filosofia o compromisso com os modelos de intervenção da ciência experimental, sendo assim o plurilinguismo da filosofia busca unidade na pluralidade dentro da sua capacidade hermenêutica limitada pela representação e formas de representação, contudo não se deve romper a cooperação com a ciência, neste ínterim a filosofia adentra nas ciências da cultura quando busca compreender pela universalidade deste conhecimento que é público com seus questionamentos, “A exemplo das ciências, a filosofia sempre se orienta por questões sobre verdade. Mas, diferentemente delas, ela conserva uma ligação interna com o direito, a moral e a arte [...]” (HABERMAS, 2004, p. 321). Como a verdade não é restrita na relação de correspondência perante o nominalismo, pois essa perspectiva observacional da linguagem entre proposição e fato leva a representação do objeto sem distinção no uso linguístico da consciência hermenêutica, sendo assim a diferença entre sistema de signos e sistema simbólico é um problema de representação, ou seja, numa mesma cultura existem duas formas de representação cuja diferença está no sentido numa convenção social, já que é uma ficção arbitrária dentro da convenção de uso linguístico no interior de contextos sociais. Caso alguém busque a retomada do realismo sem representação, este retomará dentro da história da filosofia a virada copernicana kantiana, portanto Habermas acaba por transferir a problemática do sujeito cognoscente em Kant para a consciência hermenêutica que necessita de representação para comunicar algo sobre o mundo entre seus pares, assim mantendo a proposta kantiana do conhecimento através do “Agir comunicativo e a razão destranscendentalizada” (2001); por isso definir um universo à priori leva ao fracasso, o qual necessita das representações para falar deste apriorismo, ao que conduz a uma retomada entre Kant e Aristóteles sobre a mediação do conhecimento. Habermas no uso da práxis linguística não se coloca como nominalista, mas resgata estruturas de pensamento no interior da consciência hermenêutica, pois o Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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nominalismo aristotélico necessita de representação na relação nome e objeto, logo ir além do mundo físico leva à Metafísica81 enquanto totalidade do universo organizado juntamente com a hierarquização científica positivista, tais questões entram no pensamento social, identidade, cultura e memória em especial antropologia da cultura e da religião82. O conhecimento não é limitado à linguagem, ao mesmo tempo não é privado e necessita da linguagem para ser comunicado, neste sentido a ética do discurso é um formalismo com base hermenêutica, portanto a ação pertence ao sistema de crenças estudado na psicologia presente no conceito identidade do eu.

Os problemas de desenvolvimento que podem ser agrupados em torno do conceito de identidade do Eu foram elaborados em três diferentes tradições teóricas: na psicologia analítica do Eu (H. S. Sullivan, Erikson); na psicologia cognoscitiva do desenvolvimento (Piaget, Kohlberg); e na teoria da ação definida pelo interacionismo simbólico (Mead, Blumer, Goffman, etc.). (HABERMAS, 1983, p. 53)

As três diferentes tradições teóricas do conceito identidade do eu oferece o limitar entre filosofia e ciência, pois a representação é um fator necessário para a experiência

hermenêutica

sem

estar

presa

ao

aspecto

científico

nem

descontextualizada83, assim mantém a problemática do conhecimento vinculada com a ciência comportamental psicossocial dividida em intenção (identidade do eu) e ação social (psicologia social)84, assim retoma o sujeito do conhecimento como Kant pensava a partir da representação, além de acrescentar linguagem e ação a partir da representação tida a própria linguagem como fenômeno. Habermas engloba a linguagem na arquitetura kantiana expandindo os limites da argumentação, desta forma a cultura é uma expressão comunicativa que interpreta o mundo; consequentemente a distinção entre sistema de signos e sistema simbólico é uma convenção de abordagem cultural. A classificação das palavras entre homônimos e parônimos remete a questões de sentido e representação, cuja compreensão correta está na aprendizagem, por isso não existe na concepção do ser aristotélico impossibilidade de conhecimento até mesmo de aprendizagem por se referir ao mundo objetivo85, ou seja, a linguagem não é o mundo objetivo, mas retrata-o para os outros, dessa forma a dificuldade presente na coisa em si

81

(ARISTÓTELES, 2001, p. 28, 30, 37). (ARISTÓTELES, 2001, p. 31, 111). 83 (HABERMAS, 1988, p. 257, 292). 84 (HABERMAS, 1988, p. 261, 85 (HABERMAS, 1987a, p. 117). 82

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na questão de dominação de um objeto retoma na questão da aprendizagem os sentidos das palavras entre homônimos e parônimos. A lógica-transcentental kantiana adentra no discurso teórico através da representação que exige combinações nas formas de representação através da linguagem. Decorrente deste processo a filosofia discute a problemática do positivismo que fazia uma gradação de importância sobre o que é tido como científico, desta relação “Como resultado definitivo temos a matemática, a astronomia, a física, a química, a fisiologia e a física social [...] as seis ciências fundamentais, é a única logicamente conforme a hierarquia natural e invariável dos fenômenos.” (COMTE, 1983, p 39), posteriormente os neopositivistas utilizam da filosofia da linguagem para imunizar a ciência da filosofia (HABERMAS, 1988, p. 46). A problemática causada pela dificuldade de obter conhecimento em relação à natureza através da coisa em si passa para a consciência hermenêutica no qual se instala a linguagem como parte da natureza em Habermas. Neste sentido o recorte proposto por este artigo em associar A lógica das ciências sociais (1967) que vincula o fenômeno com a própria linguagem que difere entre as culturas com suas formas de representação com a obra Agir comunicativo e razão destranscendentalizada (2001), evidentemente não exclui a uniformidade natural, pois ao utilizar a perspectiva dos kantianos sobre a virada copernicana trazida por Kant a linguagem torna-se fenômeno enquanto sistema de referência, já o sentido trás a uniformidade natural por meio da associação linguística dos contextos culturais distintos mesmo com outras formas de representação em suas formas de vida. “Certamente que sobre a base da linguagem ordinária como „última‟ metalinguagem podem construir-se hierarquias de linguagens formais. Estes se relacionam entre si como linguagem objeto com uma metalinguagem, com uma metametalinguagem, etc.” (HABERMAS, 1988, p. 278, tradução nossa). Portanto os neopositivistas86 juntamente com a hierarquia científica do Augusto Comte são absorvidos pela estrutura linguística no capítulo da obra A lógica das ciências sociais: a pretensão de universalidade da hermenêutica, pois o sentido necessita da representação obedecendo ao uso da regra que é pública. O fato de o conhecimento equivaler ao realismo sem representação abordado na coisa em si leva a própria representação quanto ao sentido serem fenômenos por serem dependentes um do outro, o qual leva a retomar os elementos da natureza através do ser, 86

Veja a obra: CHALMERS, A. F. O que é ciência, afinal? Tradução de Raul Fiker. 1. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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pois o mundo objetivo enquanto uniformidade natural independente das idiossincrasias culturais leva a desconsiderar a própria comunicação, assim o ser associa-se ao estado de coisas com o fim da coisa em si, desta maneira não com a mesma visão clássica nominalista ocorre uma problemática em relação ao conceito átomo dentro da perspectiva atual, afinal é um objeto indivisível no qual pode ser localizado (HABERMAS, 1990, p. 187-188); neste sentido a definição de partícula poderia ser substituída por átomo e o conjunto de partículas que formariam o átomo seria de fato sistema atômico. Ao definir na perspectiva nominalista a relação nome e objeto, se deve considerar que o sistema atômico não é homogêneo entre prótons, elétrons e neutrinos; consequentemente a relação de identidade entre signos não se aplica a esta definição, pois o sistema atômico é composto por três elementos no qual não cabe o principio de não contradição permitido somente no conceito átomo, já que o terceiro excluído chamado de partícula na verdade é um átomo dentro do sistema atômico, além de formarem outros elementos a partir da química pura com base em elementos não idênticos, neste caso átomo como algo indivisível e localizável dentro do nominalismo a exemplo do aristotélico que relaciona nome e objeto amplia os limites da linguagem em retratar a uniformidade natural do mundo objetivo. A perspectiva acumulativa do conhecimento mantém-se, mas desdobra-se numa sociologia compreensiva ou filosofia hermenêutica, pois a linguagem natural não é fechada, assim os limites entre filosofia e a ciência está na hermenêutica que não possui características intervencionistas na perspectiva cientificista do controle, correção e previsão, mas no sentido de descobrir os limites da experiência hermenêutica através dos mal entendidos gerados sistematicamente (HABERMAS, 1988, p. 273, 281-283); consequentemente as intervenções ficam para a psicologia social e a clínica resgatando a temática linguística da comunicação social para o conhecimento sem investigar a representação escrita, contudo a problemática deixa de ser a incapacidade de conhecer a coisa em si para ser a linguagem enquanto fenômeno na dificuldade em relatar o mundo juntamente com a convicção atrelado a ela, cujo limite está nos paleossímbolos conceito constituinte das obras: A lógica das ciências sociais (1967) e Dialética e hermenêutica (1987).

Antropologia do conhecimento significa aqui que o desenvolvimento do saber deve ser entendido a partir das capacidades naturais e principalmente, por Marx, do trabalho – a forma que a adaptação ao meio ambiente, isto é a evolução da natureza, na história da humanidade. Desde então, a questão

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transcendental kantiana se funda sobre uma antropologia naturalista e se deve renunciar a um idealismo transcendental. (BERTEN, 2009, p. 4)

Uma ciência social nomológica baseada na ciência experimental somente é possível dentro da evolução linguística, ao mesmo tempo inclui as diferentes formas de vida com suas linguagens num processo de uniformidade natural diante da arbitrariedade entre sistema de signos e o sistema simbólico, assim uma antropologia naturalista encontra-se numa psicologia social que vincula identidade, cultura e memória dentro das ciências sociais. O idealismo transcendental rejeitado por Karl Marx é tomado por Habermas por causa da “[...] teoria hegeliana do reconhecimento com o objectivo de interpretar intersubjetivamente o imperativo categórico, sem incorrer no risco de uma dissolução histórica da moralidade nos costumes.” (HABERMAS, 1999, p. 101). Neste sentido as ciências sociais reconstrutiva partem desta análise:

À objeção de que a psicanálise não tolera nenhuma demonstração experimental Freud contrapõe o argumento da astronomia: essa ciência também não experimenta mas está limitada àquilo que observa. Mas a diferença específica entre a observação dos astros e o diálogo analítico está no fato de, no primeiro caso, a seleção quase-experimental das condições iniciais permitir uma observação controlada de eventos possíveis de serem prognosticados, enquanto, no segundo caso, o plano do controle dos sucessos, próprios à ação instrumental, estar totalmente ausente e ser representado através do plano da intersubjetividade, inerente à compreensão mútua acerca do sentido de símbolos ininteligíveis. Que Freud, mesmo assim, teime obstinadamente em ver no diálogo analítico a única base experimental não apenas para o desenvolvimento da metapsicologia mas também para a validade da teoria trai, por outro lado, uma consciência do verdadeiro status desta ciência.[...]Nesse caso não se trata de uma teoria empírica, mas de uma metateoria ou, melhor, de uma, meta-hermenêutica que elucida as condições de possibilidade do conhecimento psicanalítico. A metapsicologia desdobra a lógica da interpretação na situação analítica do diálogo. Nesse sentido ela se localiza ao mesmo nível da metodologia das ciências da natureza e do espírito. (HABERMAS, 1987a, p. 269)

Os limites entre razão, teoria do reconhecimento e a linguagem leva a integração das metodologias das ciências da natureza e do espírito, pois em Verdade e Justificação (1999) no subcapítulo Realismo sem representação evidencia que o conhecimento não se limita a linguagem, contudo não se pode separar e dessa maneira torna-se universal quando regras são iguais a todos numa antecipação formal; consequentemente regras da linguagem para uma compreensão mútua, pois ocorre que nas formas de vida o realismo conceitual gramático é criado de acordo com o mundo da vida, o qual retoma a questão da demonstração experimental que Freud contrapõe ao argumento da astronomia. A Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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problemática inserida no conteúdo semântico não conduz necessariamente ao conhecimento, pois o acesso epistêmico está condicionado à verdade das proposições utilizada pelos interlocutores. Na questão da objetividade do conhecimento que exige anulação da perspectiva do conhecimento construído, ou seja, contra o falibilismo como ampliação do saber através do entrelaçamento entre construção e experiência que admite a possibilidade de gerar um saber falso, leva novamente ao exemplo proposto no artigo sobre o sistema atômico, pois a referência independe das nossas descrições, mas não significa que não exista, sendo o objeto dependente da representação e das formas de representação a ela atribuídas, em outras palavras, nada pode ser dito sobre algo que não tem representação. A problemática conduz ao sentido da representação dentro da consciência hermenêutica numa descrição que usa da linguagem em seu conteúdo semântico, o qual parte da uniformidade natural juntamente com o adualismo dos paleossíbolos, cuja distinção está nas formas de representação das formas de vida. A distinção entre conhecimento não construído e construído torna-se uma abordagem sobre o mundo objetivo que depende da linguagem, já que não parte dele o julgamento, neste sentido o átomo enquanto indivisível localizado no tempo e no espaço dentro do modelo atual seria um conjunto de átomos mantendo a definição clássica, dessa maneira o sistema atômico é constituído de prótons, nêutrons e elétrons; consequentemente uma estrutura que não se altera, mas o que muda é compreensão sobre o objeto adentrando-se no falibilismo. É necessário repensar, mediante a tal fato, as considerações do Augusto Comte na substituição da teoria do conhecimento pela teoria da ciência que desdobra no neopositivismo, pois atualmente se defende a não existência de uma ciência unitária87 nem hierarquizada por ser uma construção cognitiva, faz rever de forma falibilista a teoria da ciência que tem por objeto a teoria do conhecimento. A separação entre ciências da natureza e da cultura se iniciam com Augusto Comte quando estabelece dois gêneros de ciências naturais: uma abstrata em termos gerais e outra concreta em termos particulares em que a segunda aplica o conhecimento da primeira na história efetiva88, portanto os dois caminhos propostos entre o dogmático considerado positivo a que vem substituir o histórico como cronológico89 é um erro abdutivo. Habermas não adota a

87

(HABERMAS, 1987c, v.1, p. 480) (COMTE, 1983, p. 25) 89 (COMTE, 1983, p. 27-29) 88

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teoria do conhecimento, pois a autonomia do conhecimento ou isenção não existe quando se insere a linguagem, por isso conhecimento e interesse.

[...] uma grande operação científica a executar para dar à filosofia positiva este caráter de universalidade indispensável à sua constituição definitiva. [...] Eis a grande mas, evidentemente, única lacuna que se trata de preencher para constituir a filosofia positiva. Já agora que o espírito humano fundou a física celeste; a física terrestre, quer mecânica, quer química; a física orgânica, seja vegetal, seja animal, resta-lhe, para terminar o sistema das ciências de observação, fundar a física social. (COMTE, 1983, p. 9)

O positivismo junto com os neopositivistas está na mudança da filosofia positiva para filosofia hermenêutica que mediante linguagem torna-se a filosofia social dentro da perspectiva analítico-causal, afinal imunizar a ciência da filosofia não é possível nem excluí-la se faz recomendável, no máximo uma divisão de trabalhos entre transdisciplinaridade, multidisciplinaridade e interdisciplinaridade dentro da respectiva cultura, pois a física social mediante linguagem gera a sociologia compreensiva e as ciências sociais reconstrutivas. Neste prisma encontra se o falsificacionismo que busca teorias altamente falsificáveis contra as menos falsificáveis rejeitando teorias falsificadas; teorias como estruturas organizadas através do método de pesquisa que geram programas de pesquisa através da distinção da heurística negativa como núcleo irredutível que deve permanecer intacto sem modificações, já a heurística positiva indica de modo vago novos projetos como núcleo que deve ser suplementado para explicar e prever fenômenos; teorias como estruturas através dos paradigmas de Kuhn que estabelece a validade do conhecimento científico por meio da progressão de esquemas abertos da pré-ciência para ciência normal através das regras de um paradigma, questionado conduz a crise e revolução para uma nova ciência normal e posteriormente nova crise; teoria anarquista do conhecimento de Feyerabend em que a ciência não é necessariamente superior a outras áreas do conhecimento.

Conclusão Os neopositivistas absorvidos pelo uso da linguagem através das representações e das formas de representação que leva a rever critérios teóricos. O objetivismo do falsificacionismo do Popper e das teorias como estruturas através de programas de pesquisa do Lakatos retoma o exemplo do sistema atômico; já o relativismo através dos paradigmas de Kuhn é anulado com o conhecimento construído por meio do desenvolvimento ontogenético de Kohlberg em seu modelo analítico-descritivo com Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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base na inteligência operativa de Piaget, sem excluir a primeira topografia freudiana que conduz as investigações de Mead do qual Habermas parte em seu conceito de aprendizagem construtivo90. O relativismo é desfeito com base no sujeito do conhecimento

pronto

de

Kant

presente

no

Agir

comunicativo

e

razão

destranscendentalizada (2001) problematizando o sujeito até mesmo à coletividade não mundo externo, pois toda a possibilidade do conceito conduzida a priori leva não somente a falsificar como a certeza do falibilismo desse conceito que conduz a abdução, além da teoria do conhecimento a luz da linguagem conduzem a convenção do sistema de signos e sistema simbólico, ambos em busca do conhecimento em sua uniformidade natural. Não cabe no pensamento habermasiano uma teoria anarquista do conhecimento mesmo que aceite o objetivismo de um mundo que independe das nossas descrições, pois na lógica transcendental inserida na necessidade das representações constitui o naturalismo fraco, já numa ética do discurso encontra-se a deontologia que separa o bom do justo, sendo que o bom é uma idealização que parte das imagens de mundo entre abertas e fechadas em sua consciência coletiva. A crítica habermasiana identifica a verdade ao aspecto público, sem vincular ao sucesso. Deste modo inserido nos fragmentos teóricos em que a filosofia se insere numa discussão de consciência falibilista91, introduz a assunção de papéis ideais adotados por Kohlberg92. O limite entre ciências da natureza, a exemplo da psicologia social, com a filosofia está na hermenêutica, no qual “As ciências sociais reconstrutivas que visam entender competências universais rompem, é verdade, o círculo hermenêutico em que ficam presas as ciências do espírito bem como as ciências sociais baseadas na compreensão do sentido [...]” (HABERMAS, 1989a, p. 145). As ciências sociais reconstrutivas com base no falibilismo mantém o caráter nomológico, pois as leis que presidem os fenômenos naturais tem como paradigma a linguagem, ou seja, funciona como designador rígido93 que na perspectiva da evolução social com base na comunicação conduz perante a uniformidade natural a falsificar formas de representação não universais. Por isso a problemática das diferentes formas de representação que formam diversas línguas no mundo social evidencia um mundo da vida não uniforme em suas formas de vida diferenciadas linguisticamente. 90

(HABERMAS, 1989a, p. 50, 146) (HABERMAS, 1989a, p. 30-31) 92 (HABERMAS, 1999, p. 65) 93 Termo utilizado por Kripke junto com os mundos possíveis que remete a compossibilidade iniciada por Leibniz. 91

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A uniformidade natural associado ao sujeito do conhecimento pronto concebido por Kant que através da lógica transcendental investiga todas as possibilidades do conceito que remete não só a questão das palavras homônima e parônima, mas também a dificuldade de compreensão hermenêutica; consequentemente aprendizagem dentro da sua capacidade hermenêutica. As ciências sociais reconstrutivas parte da pragmática linguística, ou seja, o uso da linguagem dentro das formas de vida, desta maneira não se adentra ao psicologismo lógico, pois os limites das discussões ficam dentro do conceito consciência hermenêutica. O uso corrente da palavra está descontextualizada ou se aplica a realidade, o uso do nominalismo atrelado ao falsificacionismo também elimina as distintas formas de representação dentro das diferentes linguagens vinculadas às formas de vida, pois o exemplo do sistema atômico conduz aos termos singulares, neste sentido a unidade natural, além de representar um mesmo objeto de formas distintas, então o problema do conhecimento se mantém no sujeito do conhecimento pronto atrelado a linguagem. O uso pragmático da linguagem faz crítica aos neopositivistas, ao mesmo tempo, estabelece um procedimento hermenêutico de falsificar consciências, de verificar a aplicação teórica, rever paradigmas e relacionar teoria com prática, sendo a prática algo aplicável com base num sistema de referência que vincula conhecimento à linguagem num mundo independente. Evidentemente a lacuna está em evitar cair no psicologismo lógico dentro da perspectiva de explicar através da linguagem o aspecto cognitivo, pois não foi oferecida solução da passagem entre o sistema de signos para o sistema simbólico, nem de Piaget na inteligência operativa para Freud na interpretação dos sonhos, tal questionamento leva aos homônimos, parônimos e representações distintas para um mesmo objeto, cujo uso do sentido vinculado à realidade ou está descontextualizado, pois a representação para ter validade deve remeter a res extensa, caso contrário, se restringe a uma lógica de signos como negar existência de Deus ou através da convicção definir como ele seria remetendo a uma antropologia da religião e até mesmo da cultura que as cerca, sem dúvida, não se nega a existência do signo deus nem a convenção escrita entre Deus e deus altera algo que independe da linguagem verbal e não verbal.

Outra questão que a hermenêutica trás são as três fases do

desenvolvimento social estabelecida pelo Augusto Comte em teológico, metafísico e positivo, numa perspectiva reconstrutivista adentram na evolução da consciência das pessoas em relação ao mundo externo, positivo, além de demonstrar que não é homogênea essa dinâmica social tão discutida nas ciências sociais. Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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CORPOS, INCORPORAIS E ACONTECIMENTO NOS QUADRINHOS BODIES, INCORPOREALS AND EVENT IN COMICS Fabio Mourilhe*

RESUMO: Este trabalho tem por objetivo apresentar as ideias de corpo e incorporais do pensamento estoico (trazidas anteriormente por Émile Bréhier em 1908) para compreender os elementos básicos das histórias em quadrinhos. Considera-se os elementos dos quadrinhos uns em relação aos outros, o que supõe não as ligações que os vinculam, mas “efeitos de superfície”. Além disso, também trazemos aqui a especificidade do acontecimento nos quadrinhos, no que tange o incorporal conhecido como exprimível. Palavras-chave: Histórias em quadrinhos. Incorporais. Corpo. Acontecimento.

ABSTRACT: This work aims to introduce the ideas of body and incorporeal from the stoicism (presented by Émile Bréhier) to understand the basic elements of Comics. We consider the operation of Comics‟ elements relative to each other, supposing that we do not have links between them, but surface effects. Furthermore, we also focus here in the specificity of the Event in Comics, considering the incorporeal known as sayable. Key-words: Comics. Incorporeal. Body. Event.

Introdução Podemos considerar nos quadrinhos a emergência de incorporais e a presença de corpos (elementos internos diversos, autores e leitores) que funcionam como causas (quasecausas ou metacausas) e se articulam entre si. Resultam, conforme a teoria dos estoicos exposta por Émile Bréhier (1908), em efeitos na superfície (os exprimíveis) dos

*

Fabio Mourilhe é pesquisador de pós-doutorado da EBA/UFRJ, onde desenvolve trabalho sobre Angelo Agostini, a Academia Imperial de Belas Artes e a convergência de humor e crítica de arte no século XIX. Doutor em filosofia pelo IFCS/UFRJ, sua tese "A estética do grotesco nos quadrinhos", defendida em 2014, trata de uma ampliação de seu estudo sobre o tema realizado em 2011. Fez doutorado-sanduíche com Richard Shusterman em 2013 na FAU (EUA). Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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corpos94. Podemos perceber a presença dos elementos internos dos quadrinhos nas artes gráficas, pinturas e esculturas, sequenciais ou não, através dos séculos, escolhidos individualmente ou coletivamente por diversos artistas. Estes elementos no século XX compõem os quadrinhos e seus enunciados visuais. Podemos pensar também em uma dispersão e distorção destes aspectos visuais, principalmente nos quadrinhos que flertam com a vanguarda, com a arte e com a literatura, em elementos que podem assumir funções diversas daquelas previstas originalmente e possibilitam abstrações e uma expressão própria para os quadrinhos. O objetivo aqui é considerar o funcionamento dos elementos dos quadrinhos uns em relação aos outros, o que supõe, inicialmente, não as ligações que os vinculam, mas efeitos de superfície. Os elementos básicos das histórias em quadrinhos, que passaram a ser utilizados a partir do começo do século XX, são o balão, legendas, letreiramentos manuais, quadros, onomatopeias e simbologia figurativa. A página e a tira de quadrinhos, por sua vez, trazem diversos quadros montados onde é possível desenvolver uma narrativa. Os espaços entre estes quadros são espaços em branco completos através de processos imaginativos e criativos do leitor. Dentro de cada quadro, temos imagens, que podem variar muito em termos de complexidade, como pano de fundo de textos e elementos dos quadrinhos supracitados. O texto geralmente é disposto no interior das legendas ou dos balões; e as onomatopeias e símbolos figurativos estão presentes como reações aos (ou dos) personagens e eventos que ocorrem nas imagens. As onomatopeias se referem a figuras sonoras através de uma expressão ao mesmo tempo verbal e pictórica, fazendo no desenho “o mesmo ruído que faz o objeto que se quer nomear” (De BROSSES, 1765, p.9); e os símbolos figurativos são construídos por pequenos sinais que denotam emoção e movimento, auxiliando na expressão dos quadrinhos. Para a linguagem verbal, consolidou-se o uso de um letreiramento manual no

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Efeitos incorporais são acontecimentos localizados na superfície dos corpos, que subsistem e insistem (DELEUZE, 2009, pp.5-7). Podemos definir acontecimento, conforme Deleuze (2009, p.1), como o local de "simultaneidade de um devir cuja propriedade é furtar-se ao presente. Na medida em que se furta ao presente, o devir não suporta a separação nem a distinção do antes e do depois, do passado e do futuro". Ao seguir "nos dois sentidos ao mesmo tempo", temos a "estrutura objetiva do próprio acontecimento". Além disso, "como se os acontecimentos desfrutassem de uma irrealidade que se comunica ao saber e às pessoas através da linguagem" (DELEUZE, 2009, p.3), temos os acontecimentos como aqueles que "se efetuam em nós, nos esperam e nos aspiram" (DELEUZE, 2009, p.151), nas superfícies dos corpos onde eles se refletem. "O acontecimento não é o que acontece... ele é no que acontece, o puro expresso que nos dá sinal e nos espera" (Ibid, p.152). Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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começo do século XX. Porém, nas artes sequenciais dos séculos anteriores e no século XX utilizou-se também uma tipografia mecânica e no final do século XX uma tipografia digital. Todos estes recursos visuais junto aos leitores e aos autores são os corpos que funcionam como metacausas. Quando em contato formam efeitos na superfície dos corpos, os incorporais conhecidos como exprimíveis. Os elementos utilizados assumem formatos diversos de acordo com aspectos culturais e tecnológicos, personagens e estórias distintas. O balão pode sofrer modificações de acordo com o modo da mensagem, caráter e características dos personagens, onde as distinções mais comuns ocorrem entre a expressão do discurso e do pensamento. As legendas raramente aparecem em suportes diferentes de caixas com linhas ortogonais. Contudo, em certos casos, podem ser veiculadas através de algum objeto da cena, como podemos perceber em exemplos de trabalhos de Will Eisner. O letreiramento e a tipografia manual podem variar bastante em uma mesma estória dependendo do letrista, contudo existe um padrão adotado no século XX com letras maiúsculas, o que ocorre em grande parte das publicações, e variações de estilo para contrastar certas palavras-chave ou textos dispostos em balão e legenda. Com a tipografia digital, o padrão manual continuou a ser seguido com sua emulação, porém com uma maior consistência em termos de formatos das letras individuais e certos problemas de kerning95 que persistiram. Com as tiras de jornal, os painéis assumiram um formato padronizado para conduzir as estórias. Contudo, certos artistas inovaram no seu uso e aplicação. Ao assumir um caráter expressivo que refletia a cena onde se desenrolava a estória ou o humor dos personagens. Uma variação nos tamanhos dos painéis passou a ser uma prática comum a partir das décadas de 1960 e 1970, conforme mostrou Silva (2010, p.61) em seu livro sobre o quadro. As onomatopeias, por sua vez, não seguem um padrão específico. Talvez sejam os recursos visuais com um caráter mais livre das histórias em quadrinhos. Contudo, utiliza-se com frequência uma tipografia pesada, geralmente acompanhada por outros tipos de grafismo. A simbologia figurativa também é um recurso utilizado com bastante liberdade, porém existem certas convenções associadas aos sentimentos mais recorrentes, como

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É um ajuste de espaço entre duas letras (LUPTON, 2010, p.102). Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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pequenas estrelas para designar a dor ou agrupamentos de linhas paralelas para indícios de movimento na cena.

“Efeitos na superfície” como rotas de fuga Como crítica aos enunciados tidos como comunicativos, pressupostos linguísticos e à gramática96, temos o posicionamento de Deleuze & Guattari (2000, pp. 11-30). Mostram a possibilidade de elaboração de uma nova forma de compreensão da expressão dos quadrinhos, com seus enunciados verbais e visuais. Para além de um caráter sistemático com “palavras de ordem” (DELEUZE & GUATTARI, Ibid), como se deu na conformação do formato do quadro nas tiras de jornal do começo do século XX97, existem rotas de fuga. No sentido resultante da presença da causa-leitor em sua simultaneidade com outros corpos envolvidos na especificidade do instante que modifica a expressão; na expressão que emerge a partir de imagens e texto, multiplicidade de efeitos incorporais na superfície dos corpos; na visão global da página em contato com o pensamento, para o qual a sequencialidade seria estranha e prática distorcida; na potencialidade do gestual; e na ausência de uma raiz única inicial, todos estes aspectos nos fazem pensar os quadrinhos como conjuntos de elementos não estáticos. O leitor com sua capacidade criativa interpenetra na narrativa quadrinística formando com ela uma extensão comum, se desdobrando nela durante a leitura, quando novas interpretações podem ser realizadas (ou neste caso novas realidades imaginadas criadas, por assim dizer), porém não é uma propriedade que um ou o outro ganham, mas um atributo que se ganha (como verbo) e que não designa nenhuma qualidade real, apenas uma situação onde se lê e se transformam/ampliam história em quadrinhos através de um leitor que imagina em determinado momento ou um leitor que se transforma pelo contato com os quadrinhos. Estes efeitos são uma maneira de ser, não mudanças de natureza. Trata-se de resultados que não são ativos nem passivos. Além disso, todo o contexto em que se encontram os quadrinhos e o leitor também influenciarão neste processo, desde o suporte dos quadrinhos (jornal, gibi ou web) e a localização, estado psíquico e ambiência do leitor. 96

Ocultam seu verdadeiro propósito. Dizem que querem informar, quando na verdade não importa o que se entende, importa que se cumpra a ordem. 97 Quando o quadro regular foi imposto com a adequação do sujeito a um comportamento padrão e como forma de adequação à publicidade do jornal (SILVA, 2010, pp.39-45). Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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Desta forma, salientamos a importância da especificidade, da prática e do contexto que envolve a expressão dos quadrinhos, da qual não se pode desvencilhar, inclusive com efeitos e modos de ser dos quadrinhos. Para Frederic Wertham, por exemplo, gibis para desvirtuar, mas, para um professor que aceita os quadrinhos como recurso para o aprendizado, quadrinhos para educar. Na relação entre imagem e texto por si98, os efeitos não corpóreos também são produzidos, não apenas com imagens que acompanham o texto, mas imagens que o acompanham transformando-o naquele contato, imagens que transformam o texto. Esta simultaneidade das causas de imagem e texto no acontecimento está mais próxima do pensamento do que qualquer tentativa de ordenação gramática. A sequencialidade dos quadrinhos parece se aproximar de uma intenção de tal natureza, contudo ainda persiste a ideia da totalidade da página, completamente visível ao olhar livre que pode vislumbrá-la. O pensamento também pode atuar com seu caráter de simultaneidade e perceber a atuação de causas e efeitos anteriormente não previstos mesmo pelo autor original. Relações de simultaneidade também estão presentes nos gestuais incluídos nos quadrinhos. Podem atuar com independência inclusive do texto. Permitem também outra relação diferente do formato proposicional. Indicam um princípio de nomeação primeira (acontecimento/exprimível) que contrabalança a primazia formal do juízo. Envolve gestos e movimentos veiculados através da expressão corpórea. Não há necessariamente uma correspondência direta do gesto com o que está sendo designado, existem, sobretudo, relações de simultaneidade e proximidade. Nos quadrinhos, temos certos exemplos desta prática em Frank de Jim Woodring, Flood de Eric Drooker, trabalhos de Peter Kuper, e He done her wrong de Milt Gross.

Quadrinhos e acontecimento O incorpóreo, com sua plena materialidade incorpórea, está localizado nas superfícies de corpos diversos, como autor, múltiplos autores implícitos, quadrinhos e leitor99. Ou até como a própria personificação, se possível fosse, dos quadrinhos como o

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Uma especificidade que não pode ser ignorada, pois envolverá aspectos próprios dos enunciados visuais em questão. 99 Corpos que funcionam como quasecausas que ao se estenderem até os outros corpos tem como resultado o acontecimento. Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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próprio acontecimento100, em quadros-instantes que se precedem e se seguem, simultaneamente, como signos embaralhados, agindo no limite, contra e colado nos corpos, seccionando, regionalizando e multiplicando suas superfícies. Mas isto não seria possível, pois os quadrinhos tem materialidade corpórea. O espaço aberto entre os quadros está muito mais próximo do que poderia ser um acontecimento, pois é um espaço de acaso, de criação do leitor, de simultaneidade de causas, de superfícies multiplicadas. Os quadrinhos trazem ações, paixões e estados de coisas que estão em um presente que acompanha o ato, a ação e a paixão do personagem. Porém, nos quadrinhos estes aspectos dos personagens podem indicar tentativas de fuga de um presente que acompanha o ato, na medida em que o drama intensifica e transborda o momento presente, com as possibilidades de um devir infinito que aponta para passado e futuro a cada quadro, nos moldes de um acontecimento. Com os quadros, aspectos interiores do quadro ou estados de coisas a que eles se referem como causas de um em relação ao outro101, temos a geração de efeitos incorporais102 que são acontecimentos em sua superfície, subsistindo e insistindo como resultados impassíveis que, como infinitivos se dividem infinitamente em passado e futuro. Podemos pensar os quadrinhos como um corpo relacionado a acontecimentos únicos. Estes acontecimentos, no plano dos fatos, são articulados a partir dos corpos103. Os corpos, como quase causas104 resultam em efeitos incorporais. Neste plano infinito de incorporais - plano dos fatos -, em sua articulação única105, temos a possibilidade de diversas formas de apresentação que correspondem a variações do verbo, verbo que acumula em si atributo e cópula. No exemplo, o menino não “é” mais amarelo, mas o menino amarela ou sem sujeito amarelar. A mistura de corpos, como se dá na junção de imagem e texto, é uma prática própria dos quadrinhos com efeitos resultantes que se dão, contudo, não apenas na relação de diversos corpos envolvidos, mas também em qualquer pequena relação que seja articulada na grande colcha de retalhos da página de quadrinhos. 100

Em relação aos estados de coisas, ações às quais ele se refere. Causas de um para o outro, causas que se ligam entre si. 102 Fora dos estados de coisas ou suas representações na materialidade do gibi. 103 Elementos internos, traços, texto, leitor, autor, pensamentos decorrentes, seus ambientes que acompanham a leitura etc. 104 Quase causas, pois não se trata de relação de causa e efeito, e sim de uma simultaneidade de causas. 105 Processo unívoco que se articula em sua diferença, com efeitos próprios. 101

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Especificamente no caso do texto e da imagem, estes passam a servir de atributos de um e do outro como acontecimento em figurar texto ou textualizar imagem. Como se não houvesse uma essência ou uma dimensão isolada e um passasse a fazer parte da essência do outro, ecoando na proposta estoica de conceber o ser a partir dos corpos e misturas dos corpos. Porém, a dimensão dos fatos não é mais aquela mesma dos corpos. Os corpos podem se estender de acordo com as ações do outro corpo, mas não mudam de natureza. A mistura de essências se dá verdadeiramente no limite dos corpos, como se os corpos pudessem ser estendidos realmente até um limite, onde se dá esta diferença, onde recebem um atributo, uma outra essência, sem que eles ganhem nenhuma outra propriedade nova. Podemos pensar assim em três tipos de ser. De um lado o ser profundo e real, a força, o que para os estoicos seriam os corpos e suas misturas; em um ponto intermediário, temos os quadrinhos, cópia de estados de coisas, caracterizado como cópia imperfeita ou grotesca e na maior parte das vezes sem uma referência explícita, assim, o simulacro e também ser (estoico); e por fim o plano dos fatos que se produzem na superfície do ser e/ou do simulacro quadrinhos e instituem uma multiplicidade infinita de seres incorporais resultantes de ligações das causas entre si. A partir dos quadrinhos, em sua superfície ou na superfície dos outros corpos que como causa com eles se relacionam, temos o simulacro do simulacro. Uma multiplicidade de efeitos possíveis se dá na superfície dos corpos. Este é o limite para a sua diferença, com combinações que dificilmente serão redundantes, pois trata-se de um caráter aberto que envolve a leitura e o papel do leitor. Traz influências distintas externas a cada instante, que se conjugam com imagem e texto, cada qual formando efeitos distintos que se acumulam na superfície dos corpos. No quadro abaixo (Figura 1), temos um personagem (disposto no quadro) que traz a expressão própria de ler texto. O personagem confere sentido ao texto e executa uma ação, ou seja, no próprio quadro já existe um direcionamento para o sentido, que não pode, contudo, ser pensado de forma isolada, pois o sentido é potencializado com a presença do leitor e todos os aspectos externos que influem na leitura. Aqui, temos a expressão do personagem que consegue amargurar balão e o efeito de clicar TV. Estes incorporais apresentados desta forma são, segundo Bréhier (1908), os exprimíveis, intermediários entre o pensamento e a coisa, considerando que não são mais um conceito objeto do pensamento, nem a realidade do ato que é atenuada em proveito do

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ser permanente106. Estes exprimíveis ao serem afirmados são significados. Na irrealidade e incorporeidade do exprimível, temos uma sobreposição dos atributos das coisas, suas causas que se prestam como atributo, mas não modificam como propriedade permanente as coisas, apenas resultam em efeitos.

Figura 1- Ghost World de Daniel Clowes.Fonte: Ghost World, p.9, Fantagraphics Books, 1998.

Em outro exemplo na Figura 2, a partir da palavra “iluminação” (“enlightment”), temos um atributo lógico que se presta à formação de exprimíveis e ao mesmo tempo atributo da coisa, objeto palavra explicitado no interior da imagem. Ambos atributos são incorporais e irreais e se confundem. Um exprimível possível a partir dos elementos do interior do quadro, a bunda ilumina, mostra o caráter humorístico que perpassa os exprimíveis e lhes é inerente, conforme aparece em intenções originais dos estoicos.

Figura 2- Mr. Natural, Robert Crumb. Fonte: The Book of Mr. Natural, Fantagraphics, 2010.

Na Figura 3, o ato de tocar perde a preponderância como proposição lógica (para agir) perante os corpos e sua mistura no contato e simultaneidade entre quadros, 106

Causa ativa de todos os corpos, que dá unidade, e é causa e princípio. Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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personagem, baixo, ambiências, sons e tudo o que existe fora dos quadros, com um atributo lógico que é um fato transitório e acidental do arco do baixo acerta. Temos aqui um fato proposicional em uma simultaneidade de quadros, realidades-instantes em que uns participam dos outros. O texto que se figura dos quadrinhos, seus muitos significantes significados, em sua aplicação do atributo/verbo/predicado ao sujeito gera na superfície um acontecimento, fato proposicional, que, contudo, não será o centro, mas um ponto em uma infinidade de pontos possíveis nesta superfície de incorporais.

Figura 3- Pato Donald de Al Taliaferro, 1940. Fonte: Walt Disney's Donald Duck: The Daily Newspaper Comics, Volume 1: 1938-1940. IDW Publishing, 2015.

Na Figura 4, pode-se dizer que o foco enfatizado no exprimível mulher deita é apenas um dos muitos exprimíveis possíveis no quadro. O exprimivel no caso permite conferir à cena da mulher deitada o movimento realizado de deitar e aponta simultaneamente para o momento em que ela estava em pé e outro onde ela começa a sonhar, localizando-se no circuito mais curto do instante entre estes dois tempos.

Figura 4- Príncipe Valente de Hal Foster, 1940. Fonte: Prince Valiant Vol. 2: 1939-1940. Hal Foster, Fantagraphics, 2010.

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Considerando toda a multiplicidade de incorporais que emergem na superfície de significantes que emprestam suas essências como atributos de outros significantes, tanto como palavras ou imagens, não podemos dizer que há uma primazia de um ou outro nível. Pode-se dizer que há um rompimento da lógica linear-discursiva para esta lógica da proposição do fato, tanto nos quadrinhos sem texto (Figura 5), como naqueles onde o texto se sobresai (Figura 6).

Figura 5 - Ghost World de Daniel Clowes. Fonte: Ghost World, p.80, Fantagraphics Books, 1998.

Figura 6 - The Long Tomorrow, Moebius. Fonte: Heavy Metal vol.1 #4, 1976.

Esta lógica estoica dos fatos com uma simultaneidade de texto e imagem, com essências que se emprestam mutuamente, parece ser ressaltada também nos trabalhos de Katherine e Michael McCoy (

Figura 7).

Nestes trabalhos, são propostos a leitura de imagens e o ato de ver os

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textos (McCOY & McCOY, 1996, p.3), o que nos quadrinhos faz todo sentido, se considerarmos a lógica do fato, onde os efeitos trazem essências, no caso envolvendo o corpo-pensamento e os sentidos humanos em simultânea articulação com os quadrinhos. Ver textos e ler imagens através do tempo.

SEEING

READING Visual rational linear sequential

Visual intuitive holistic simultaneous

Figura 7- Esquema de Katherine McCoy. Fonte: Upper and lower case: Volume 22, number 4, Spring

IMAGE 1996.

TEXT

Nos quadrinhos, o tempo é recortado através do espaço descontínuo que em quadros se fragmenta e, à medida que os efeitos são articulados, temos um acúmulo na superfície e seu desvanecimento com a retirada dos corpos. Além disso, são estendidos em quadros sucessivos a simultaneidade dos corpos-quadros, onde a duração de cada quadro também é corpo e atributo de um quadro que dura, pela simultaneidade não só do espaço físico do quadro, pois como quadro que se espacializa parte da criação de autor/desenhista/editor dos quadrinhos e como quadro que se lê parte do leitor com interpretação e processo de criação, durando o tempo necessário ditado por ele. No espaço entre os quadros, também temos um espaço para estes processos internos do leitor, porém com uma intensificação, pois, como espaço em branco para efeitos múltiplos, espaço que seria a própria superfície dos quadros, é onde prolifera esta lógica do fato com as quase causas e com suas essências se conjugando, se potencializando em superfícies que não estão em um quadro nem no outro, não estão nem nos corpos nem no pensamento. A linearidade interrompida percorre o espaço com elementos descontínuos que podem apontar para diversas direções simultaneamente, processo intensificado quando a intenção do autor original é também a de uma ordem ambígua (Figura 8).

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Figura 8- Valentina-Antropology, Guido Crepax, Fonte: Linus #3, 1978.

De forma semelhante ao pensamento, na página de quadrinhos, todos os elementos são dados num instante, permitindo a emergência de toda uma gama de efeitos incorporais infinitos, articulados a partir de pensamentos e conteúdos presentes, quase causas envolvidas, que compõe os quadrinhos. REFERÊNCIAS BRÉHIER, Émile. La théorie de incorporels dans l‟ancien stoicisme. Paris: Librairie Philosophique JJ. Vrin, 1997 (1908). De BROSSES, Charles. Traité de la formation méchanique des langues, et des principes physiques de l'étymologie. Paris: Chez Saillant, Vincent , Desaint, 1765. DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. A linguagem seria informativa. e comunicativa. In: Mil Platôs 2: Capitalismo e esquizofrenia vol.1. São Paulo: Editora 34, 2000. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2009. LUPTON, Ellen. Thinking with Type: A Critical Guide for Designers, Writers, Editors, & Students. New York: Princeton Architectural Press, 2010. McCOY, Michael. McCOY, Katherine. Design: Interpreter of the millenium. In: Design by degrees: From graphics theory to practice. Upper and lower case: The international journal of graphic design and digital media. International Typeface corporation. Volume 22, number 4, Spring 1996. SILVA, Fabio Luiz Carneiro Mourilhe. O quadro nos quadrinhos. Rio de Janeiro: Multifoco, 2010.

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TRADUÇÃO HILARY PUTNAM (1926 – 2016)* Martha C. Nussbaum** Traduzido por Giovane Martins Vaz dos Santos***

Atualmente a filosofia é muito impopular na América. Marco Rubio diz, com deselegância típica: “precisamos de mais soldadores e de menos filósofos.” O governador da Carolina do Norte, Pat McCrory, também destacou a filosofia como sendo uma disciplina que oferece “cursos inúteis” que “não oferecem empregos para as pessoas.” Em todo o país há uma adulação ilimitada pelas disciplinas STEM107 [ciência, tecnologia, engenharia e matemática], que parecem tão rentáveis. Apesar de todas as humanidades sofrerem desdém, a filosofia permanece atraindo uma especial atenção negativa – talvez porque além de parecer inútil, também pareça vagamente subversiva, uma ameaça aos sólidos valores tradicionais. Esse nem sempre foi o caso. Ao longo da história, a filosofia apareceu muitas vezes abusando das forças da tradição e da autoridade. A fundação americana, entretanto, foi diferente: os fundadores foram homens do Iluminismo, mergulhados nas ideias e obras de Rousseau, Montesquieu, Adam Smith e dos gregos antigos e romanos – especialmente Cícero e os estoicos romanos. Como homens do Iluminismo, tinham orgulho de conduzir seus discursos pela razão e pela argumentação ao invés de conduzilos pela tradição não examinada. A independência intelectual e a reflexão teórica deles serviram bem quando se tratava de criar uma nova nação. Temos viajado um longo caminho a partir dessas raízes, e não tem sido em uma boa direção. No dia 13 de março, a América perdeu um dos grandes filósofos que essa nação já produziu. Hilary Putnam morreu de câncer aos 89 anos. Aqueles de nós que tiveram a *

Texto publicado originalmente em: NUSSBAUM, Martha. Hilary Putnam (1926-2016). 2016. Disponível em: <http://www.huffingtonpost.com/martha-c-nussbaum/hilary-putnam-19262016_b_9457774.html>. Acesso em: 27 mar. 2016. ** Martha Nussbaum é filósofa americana. Atual titular da cátedra Ernst Freund Distinguished Service Professor of Ethics and Laws na Universidade de Chicago. É a autora de diversas obras em filosofia, como A Fragilidade da Bondade (1986). *** Discente de filosofia da PUCRS. Bolsista de Iniciação Científica do CNPq e pesquisador do CEFA – Centro de Estudos em Filosofia Americana. E-mail: giovane.martins1994@gmail.com 107 Sigla do inglês “Science, technology, engineering and mathematics”. Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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sorte de conhecer Putnam como seus orientandos, colegas e amigos relembram sua vida com profundo amor e gratidão, visto que Hilary não foi apenas um grande filósofo, mas também um ser humano de extraordinária generosidade, que realmente queria que as pessoas fossem elas mesmas, não seus acólitos. Mas também é bom, em meio ao pesar, refletir sobre a carreira de Hilary e o que ele nos mostra sobre o que a filosofia é o que ela pode oferecer para a humanidade. Hilary foi uma pessoa de brilhantismo inigualável, mas também acreditava que a filosofia não era apenas para os indivíduos raramente talentosos. Como dois de seus favoritos, Sócrates e John Dewey (e eu adicionaria, como os fundadores da América), ele pensava que a filosofia era para todos os seres humanos, um convite ao despertar para a humanidade em todos nós. Putnam foi um filósofo de incrível amplitude. Como ele mesmo escreveu, “qualquer filosofia que pode ser colocada em poucas palavras pertence a nós.” E na sua carreira prolífica, Putnam elaborou, consequentemente, considerações detalhadas e criativas sobre questões centrais em uma variedade extremamente ampla de áreas da filosofia. De fato, não há nenhum filósofo depois de Aristóteles que tenha feito contribuições criativas e fundamentais em todas as seguintes áreas: lógica, filosofia da matemática, filosofia da ciência, metafísica, filosofia da mente, ética, pensamento político, filosofia da economia e filosofia da literatura. Putnam também adicionou pelo menos duas áreas para a lista que Aristóteles não trabalhou, a saber, filosofia da linguagem e filosofia da religião. (Filosofia da religião porque ele foi um judeu religioso, e entendeu que o judaísmo exige uma vida de crítica permanente.) Em todas essas áreas, também, compartilhou com Aristóteles uma profunda preocupação: que a questão confusa da vida humana não deveria ser distorcida para se ajustar às demandas de uma teoria excessivamente simples, de modo que Putnam disse que “toda a agitação das ações humanas” deve ser o contexto em que a teoria filosófica faz o seu trabalho. Esse compromisso levou-o a se opor a muitos caprichos do seu tempo: pois a filosofia é propensa a modismos redutivos e simplificados, do positivismo lógico até a moda recente de modelagem computacional dos problemas filosóficos. Putnam sabia física como praticamente mais ninguém na área, e por isso mesmo ele também sabia que foi fatal reduzir a filosofia à física: a filosofia é uma disciplina humanística. (Lembrome de um curso maravilhoso e profundamente contracultural que ele lecionou em Harvard, quando o positivismo lógico estava apenas começando a perder força, intitulado “Conhecimento não científico.” O curso cobriu o conhecimento ético, o Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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conhecimento estético e o conhecimento religioso, e Putnam mostrou a loucura que é imaginar que o reducionismo físico poderia substituir esses assuntos normativos). Sua independência em relação às modas também o levou a ter um grande interesse pelo pensamento dos gregos antigos, que pareciam estúpidos para os positivistas, mas que tiveram algumas ideias realmente boas! Aprendeu grego antigo para trabalhar seriamente sobre Aristóteles, e argumentou que Aristóteles teve insights importantes sobre a relação mente-corpo, que deveriam ser assumidos pelos pensadores contemporâneos. A maioria dos filósofos fala muito sobre seguir uma argumentação, mas eventualmente eles caem no erro do dogmatismo, defendendo a todo custo uma posição bem conhecida, não importando os novos argumentos que podem surgir. A glória da maneira de filosofar de Putnam foi a sua total vulnerabilidade. Porque ele realmente seguiu a argumentação, onde quer que o levasse, mudando frequentemente de ideia. Ser conduzido a mudar não era aflitivo, mas profundamente agradável  evidência de que ele era humilde o suficiente para ser digno da sua própria racionalidade. Uma vez, no final dos anos 70, ministrou um curso de metafísica em Harvard com seus colegas Nelson Goodman e W. V. O. Quine. Os outros dois tinham visões muito diferentes das de Putnam, e argumentaram bem. Putnam ficou mais e mais excitado pelo debate – tanto que deixaria uma reunião de departamento no meio do lanche para andar para cima e para baixo pelos corredores com Goodman. No final daquele período, seu discurso presidencial à American Philosophical Association continha um elegante argumento contra si mesmo – um pouco no espírito de Goodman, embora não exatamente. Uma vida racional [A life in reason] era e é difícil. Todos nós – ignorantes em filosofia ou professores de filosofia – achamos mais fácil seguir um dogma do que pensar. O que a vida de Hilary Putnam oferece à nossa nação conturbada é, penso, um paradigma nobre de uma boa vontade permanente para nos submetermos à crítica da razão. Nosso país, fundado por amantes da argumentação, se tornou o brinquedo de retóricos e animadores [entertainers] (personagens que Platão conhecia muito bem). Neste dia em que perdemos um dos gigantes da nossa nação, vamos pensar sobre isso.

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RESENHA

SEGALLA, Giuseppe. A pesquisa do Jesus Histórico. Tradução Silva Debetto C. Reis. São Paulo: Edições Loyola, 2013. Hugo Lopes de Oliveira*

O interesse pelo Jesus Histórico é tão antigo quanto a vida desse homem. Concomitante aos seus primeiros anos de ministério começaram a surgir inúmeras narrativas acerca de sua existência e prováveis realizações. O fascínio por saber quem realmente foi esse homem atravessou os séculos e acabou sendo alimentado pelos livros canônicos da Igreja Católica que abarcaram os quatro evangelistas clássicos com narrativas que basicamente apresentavam proximidades, mas também inúmeros distanciamentos entre si. Esse fato ajudou a alimentar o fascínio pela busca em torno do “verdadeiro” Jesus, o Jesus Histórico. Nos últimos três séculos, com a influência marcante de movimentos como o Renascimento europeu, o Iluminismo e o Liberalismo, e de eventos como a Reforma Protestante, a Revolução Americana e a Revolução Francesa, a busca pelo Jesus Histórico ganhou força e espaço entre os pensadores, inclusive dentro das Universidades europeias. O que Giuseppe Segalla tenta realizar é uma história da pesquisa sobre esta personagem, o Jesus Histórico, porém com uma abordagem mais pragmática, distinta das abordagens tradicionais que tendem a seguir uma teorização abstrata. Segalla, como todo bom religioso, parte da premissa fundamental de que existiu um homem chamado Jesus de Nazaré, que viveu na Judéia Romana há aproximadamente dois mil anos atrás (diferentemente de uma corrente americana que defende a premissa de que a personagem Jesus de Nazaré seria uma criação/construção do Império Romano, para tentar manter sua já decadente coesão). Além disso, o autor amplia seu recorte cronológico ao afirmar que as possibilidades para a pesquisa sobre o Jesus Histórico não foram dadas a partir do Iluminismo, mas sim do Renascimento europeu e da Reforma Protestante. *

Licenciado em História pela UFRuralRJ, cursando especialização em Ensino de História pelo Colégio Federal Pedro II. Professor de História da rede pública no Rio de Janeiro. Pesquisa história antiga, especificamente Jesus Histórico, judaísmo, Judeia Romana e Cristianismo Primitivo. E-mail: hugoufrrj@hotmail.com Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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No livro, Segalla apresenta aos pesquisadores da área um percurso diferente que ahistoriografia sobre essa personagem teria tomado ao longo dos últimos três séculos. Esse trabalho inova ao fugir de certa simplicidade com que a historiografia sobre a área foi tratada. Enquanto que quase unanimemente os pesquisadores que discorreram sobre o desenvolvimento dos estudos acerca do Jesus Histórico o fizeram por um viés mais cronológico no sentido linear, ou seja, dividindo os estudos em três etapas subsequentes, Segalla analisa as obras produzidas a partir de seu conteúdo e direcionamento teórico, em um olhar mais conceitual. Os estudos tradicionais tendem a dividir a historiografia sobre o Jesus Histórico em três etapas: a “Primeira Busca pelo Jesus Histórico” (séc. XVIII até a primeira metade do séc. XX), a “Segunda Busca pelo Jesus Histórico” (segunda metade do séc. XX), e a “Terceira Busca pelo Jesus Histórico” (final do séc. XX e início do séc. XXI). Dessa forma, todas as obras produzidas seriam classificadas a partir desses recortes cronológicos, prevalecendo apenas o período de sua produção. Por outro lado, a obra de Segalla faz a análise da historiografia sobre o Jesus Histórico a partir de pressupostos teórico-conceituais, fustigando sensivelmente o fator cronológico. Segalla então divide o estudo dessa temática em três grandes grupos, aos quais ele nomeia de “Paradigma Iluminista da primeira pesquisa”, “Paradigma Querigmático da nova pesquisa”, e “Paradigma Judaico pós-moderno da terceira pesquisa”, tendo havido entre os Paradigmas Iluminista e Querigmático um período intermediário. Fugindo das análises que levaram em conta apenas o período de produção da obra, sem considerar seus pressupostos teóricos, Giuseppe Segalla define como “Paradigma Iluminista da primeira pesquisa” não apenas as primeiras obras produzidas sobre o Jesus Histórico ao longo dos séculos XVIII e XIX, mas sim aquelas obras cujas bases teóricas estavam e estão assentadas em um racionalismo que considera ser capaz chegar ao verdadeiro Jesus Histórico, puro e livre de qualquer tipo de influência religiosa. Dessa forma, nomes do início da pesquisa sobre o Jesus Histórico nos séculos XVIII e XIX, como Albert Schweitzer e Herrmann Reimarus, fazem parte de um mesmo grupo conceitual que inclui pesquisadores do século XX e início do XXI, como Gerd Theissem, Richard A. Horsley e John Dominic Crossan. O período intermediário que procede o Paradigma Iluminista e precede o Paradigma Querigmático é definido por Segalla como intermediário por ser tratado pelos estudos tradicionais como um período na primeira metade do séc. XX onde não teria havido nenhum tipo de pesquisa ou publicação relevantes sobre o Jesus Histórico. Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, nº 1, 2016


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No entanto, Segalla opõe-se a essa vertente ao afirmar que este período produziu sim novas obras, estando, porém, as mesmas sobre a influência dos estudos e pesquisas de Rudolf Bultmann. Este autor defendeu a tese de que o Jesus da fé seria o único possível de ser conhecido, e que o Jesus Histórico era inacessível. Essa conclusão de Bultmann não teria freado as pesquisas, mas sim dado mais gás a elas. A partir de então, o “Paradigma Querigmático da nova pesquisa” foi, para Segalla, o momento em que a história de Jesus estava sendo recuperada. Cientes de que o “verdadeiro” Jesus não pode ser acessado, e de que suas influências exteriores são consideráveis, os pesquisadores começaram um trabalho na tentativa de resgatarem a história dentro do Jesus Histórico, uma personagem até então dominada pela fé após as pesquisas de Bultmann. Por fim, o terceiro grupo conceitual do “Paradigma Judaico pós-moderno da terceira pesquisa” reuniu, na análise de Segalla, os trabalhos que apresentaram uma tentativa de reconstrução do Jesus Histórico onde os contextos históricos, sociais, políticos, econômicos e religiosos ganharam destaque. Basicamente passou-se a considerar ser impossível compreender o Jesus Histórico sem antes conhecer e compreender seu local de nascimento e moradia, suas condições de vida e as influências que pesaram sobre si. Segalla encerra seu livro expondo quais serão os caminhos que a pesquisa sobre o Jesus Histórico tomará ao longo do século XXI. Os trabalhos mais atuais tendem a direcionar-se para a memória e os testemunhos dos primeiros discípulos, bem diferente do Paradigma judaico pós-moderno que focou no ambiente judaico e sociocultural de Jesus. Serão duas grandes áreas de concentração: o Jesus lembrado, e o Jesus testemunhado, sendo que o Jesus lembradoseria a única forma possível do historiador se aproximar do Jesus Histórico. Ganham destaque e importância nessa vertente de possibilidades a ideia de que só podemos saber algo sobre o Jesus Histórico a partir do impacto que ele causou sobre seus discípulos. Sendo assim, Giuseppe Segalla encerra a obra que começou falando sobre a atração pelo Jesus Histórico, indicando pistas e direcionamentos que alimentam ainda mais o interesse por esse objeto de estudo.

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