Suplemento Política Operária 125

Page 1

SUPLEMENTO

MAI /JUN 2010 Nº 125

O Abrente, jornal porta-voz da Primeira Linha galega, reproduziu no seu nº 56, de Maio, um texto nunca publicado entre nós de Francisco Martins Rodrigues, por ocasião da passagem do segundo aniversário da sua morte, a 22 de Abril (“em homenagem ao nosso querido Chico”). Trata-se da sua comunicação apresentada a 30 de Maio de 2002 nas VI Jornadas Independentistas Galegas, que questiona os falsos paradigmas e fetiches que o reformismo construiu sobre os acontecimentos de Abril de 1974.

25 de Abril: o proletariado deixou escapar a crise de poder FRANCISCO MARTINS RODRIGUES O vosso programa anuncia uma “análise marxista rigorosa do 25 de Abril”. Não direi tanto. Nos debates que temos travado ao longo destes 28 anos, temos procurado inspirar-nos no marxismo e no leninismo, mas a questão não é fácil. Vou só abordar alguns tópicos que podem ser mais polémicos. Primeira questão, a mais frequente: Por que é que uma revolução tão pujante e que despertou tanta esperança foi tão facilmente derrotada? A nossa resposta: porque não chegou a ser revolução. Tornou-se hábito designar a crise de 1974-75 como a “revolução de Abril” para exaltar o movimento popular desses meses, tantas vezes caluniado pela reacção. Mas para que esse grande movimento tomasse a envergadura de uma revolução autêntica teria que inverter as relações entre as classes. Detonado por um golpe militar, o movimento de Abril manteve-se sempre sob a autoridade do exército, o pilar da ordem burguesa. Foi isso que permitiu que, dezanove meses mais tarde, o exército interviesse em sentido oposto e roubasse ao povo o que tinha ganho. Assim, apesar de amputada das colónias e privada da couraça protectora do salazarismo, a burguesia atravessou com êxito o delicado momento da sua modernização.

Entendamo-nos. O movimento popular do 25 de Abril é o maior acontecimento da história moderna de Portugal: derrubou a ditadura fascista, pôs fim às guerras coloniais, conquistou novos direitos para os assalariados, abalou todo o sistema político. Foram nacionalizados os grandes grupos monopolistas, os assalariados ocuparam os latifúndios. Pela primeira vez na nossa história, o povo perdeu o medo dos ricos e fê-los tremer com as ocupações de empresas, terras e casas, as experiências de autogestão e controle operário, a liberdade de greve, a iniciativa nas ruas, as moções dos plenários, o saneamento de fascistas… As criações do movimento de massas enriqueceram o movimento revolucionário português e internacional. Nós, os comunistas da Política Operária, somos discípulos desse grande movimento. Mas é preciso reconhecer que, em face da grandeza das tarefas que se colocavam, toda essa audácia foi tímida. Os trabalhadores consentiram que o novo poder democrático poupasse os fascistas, só tomaram a gestão de empresas quando abandonadas pelos patrões, pediram sempre a legitimação das suas acções ao MFA e nunca recorreram à violência – o “terror anarco-populista” é uma invenção da burguesia.


A ideia da necessidade de conquistar o poder esteve sempre excluída para o proletariado, mesmo o mais avançado. Essa timidez do 25 de Abril ditou a sua derrota e o posterior marasmo do movimento popular. A actual arrogância da burguesia e a resignação do proletariado não são fruto da derrota da revolução, mas de não ter havido revolução. Aliás, grande milagre seria que houvesse uma revolução e uma contra-revolução com duas dezenas de mortos. Tivemos sim uma crise revolucionária que, devido à imaturidade política do proletariado, se deixou sufocar sem chegar a desenvolver plenamente as suas potencialidades. Quando uma parte da esquerda portuguesa evoca romanticamente a “revolução dos cravos”, ela exalta no 25 de Abril não o que ele teve de avançado, mas o que teve de atrasado. Sonha com uma “revolução” pacífica, capaz de levar todo o povo unido a provocar uma miraculosa rendição do poder. Isso não existe. A revolução de que a nossa sociedade está grávida só se poderá realizar através de uma convulsão aguda e violenta. É uma revolução anticapitalista e o mais certo é a burguesia lançar-se na guerra civil para defender os seus privilégios. Como de resto bem se viu pelo comportamento das classes durante o vacilante ensaio de 74-75. Segunda questão: Mas a explosão popular que respondeu ao golpe dos capitães não indicava um movimento revolucionário de grande envergadura, amadurecido em 48 anos de luta contra a ditadura? O milhão de pessoas nas ruas no 1º de Maio de 74 indicou a força do sentimento democrático do povo, mas também a sua menoridade. A propósito da ditadura de Salazar, fala-se sempre na PIDE, no campo de concentração do Tarrafal, no partido único, na Censura. Diz-se menos que ela foi durante décadas apoiada e aceite não só pela grande burguesia, mas pela massa da pequena burguesia e por extensos sectores dos empregados e operários. De outro modo seria impossível uma ditadura manter-se quase meio século no poder com um nível de repressão relativamente baixo (e quando digo “baixo” não estou a minimizar os crimes do salazarismo, mas a pô-los em comparação com o franquismo, por exemplo). Isto nada tem de estranho: num país de capitalismo atrasado e patriarcal, é fácil um regime autoritário impor uma “união nacional” em torno da ideia da estabilidade e da ordem, abafando as vozes contrárias. A deslocação do sentimento popular contra o regime foi lenta: foi preciso uma luta esgotante e isolada dos sectores operários mais avançados, primeiro os anarquistas, depois e sobretudo os comunistas, com o seu árduo trabalho subterrâneo de esclarecimento; foi preciso despertar as grandes massas para a política através das candidaturas oposicionistas de personalidades conservadoras (1949, 1958); mas foi preciso sobretudo a guerra colonial estender-se ano após ano com a perspectiva da derrota à vista para o movimento contra a ditadura ganhar boa parte da população. Só nos 2 últimos cinco anos, quando o regime, gasto, se

abeirava do fim, por não ser capaz de sair da ratoeira das guerras coloniais, se generalizaram as greves e a oposição à ditadura se estendeu a camadas mais vastas da pequena burguesia e do semiproletariado, da Igreja, até de parte da alta burguesia. Daí o consenso universal em torno do golpe dos capitães, que leva tanta gente a maravilhar-se com esta revolução sem tiros e sem sangue. Esquecem que os cravos em Lisboa foram possíveis graças aos tiros e ao sangue dos guerrilheiros africanos. E por quê, durante décadas, os “democratas”, como eram chamados, hesitaram em passar à acção? Porque receavam o vazio de poder. Tinham mais medo do povo do que do fascismo. Os 16 anos da I República tinham mostrado como era difícil manter a ordem neste país, não por o proletariado ser especialmente forte, mas por a burguesia ser fraca. Essa fraqueza crónica manifestou-se de novo no 25 de Abril: planeara-se um regime militar presidido por um fascista retinto (Spínola) e em poucas semanas já estava tudo de pernas para o ar. Impreparada para lidar com o povo após meio século de “lei da rolha”, a burguesia entrou em pânico ao embate das manifestações e greves; boa parte do MFA começou a vacilar, o aparelho judicial e repressivo ficou paralisado, muitos capitalistas fugiram, os líderes burgueses juravam nos comícios que eram pelo socialismo. As tentativas golpistas de 28 Setembro e 11 Março foram tão frouxas e inábeis que quase se tornaram cómicas. De repente, o inimigo de 50 anos parecia evaporar-se. Isto criou um optimismo enganador entre os trabalhadores. Em vez de uma luta de vida ou de morte para arrancar o poder à burguesia, entrou-se no que parecia um passeio a caminho do “poder popular”, sob a protecção do COPCON, a ala “socialista” do MFA. Terceira questão: Mas não é um facto que os governos provisórios adoptaram uma série de medidas sociais avançadas e que o COPCON apoiou os trabalhadores? É indiscutível. A questão é saber a quem cabe o mérito dessas acções. Durante muitos anos, a gratidão para com os capitães impediu na esquerda uma crítica de classe ao seu movimento. O progressismo do MFA (que, note-se, só despertou quando as guerras coloniais estavam perdidas) era sincero mas tinha o fôlego curto; era um conglomerado de tendências políticas das mais diversas que queriam basicamente fazer a transição da ditadura fascista para uma democracia burguesa, idealizada por muitos sob cores paternalistas. Depois de um ano de escaramuças indecisas, o MFA viu-se a braços com o duche frio do resultado das eleições para a Assembleia Constituinte: um ano após a queda do fascismo, três quartos dos eleitores votaram no centro-direita e na direita (PS e PPD), e não era só gente arrebanhada pelos patrões, pelos padres e pelos caciques da província; eram em grande número empregados, funcionários públicos, professores, operários. O acto “cavalheiresco” de realizar eleições quando estava por desmantelar a estrutura herdada do fascismo e a massa retardatária predominava só pode ser explicado pelo preconceito legalista de uns e pelo secreto

desejo de pôr termo à agitação e restaurar a ordem, da parte de outros. Mas, naquele momento, entregar o governo ao PS significaria criar um conflito de proporções imprevisíveis com o movimento popular avançado. Além disso, o golpe spinolista fracassado de 11 de Março provocara uma viragem à esquerda nas assembleias do MFA. O comando das operações caiu assim durante algumas semanas nas mãos dos adeptos do “socialismo militar”. Para fazer face à pressão da direita (sabotagem, fuga de capitais e ameaça de descalabro económico) e da esquerda (ocupações, plenários, manifestações), o MFA lançou-se na aceleração da “revolução” por cima: nacionalizações, lei da Reforma Agrária, lei do arrendamento rural, imposição de um pacto aos partidos sob o lema da “aliança Povo/MFA”, “poder popular”, “via socialista”… Com estas medidas, que puseram a burguesia a bradar que se queria “implantar o comunismo”, Vasco Gonçalves procurava conquistar apoio popular contra a direita, mas sem deixar sair o controlo dos acontecimentos das mãos dos militares. Teve a reacção clássica dos “moderados” em período de crise do poder: O Estado “socialista” tornava-se o fiel depositário da propriedade burguesa enquanto durasse a crise; e com os órgãos de “poder popular” sob a autoridade do MFA, dava-se uma aparência de satisfação aos revolucionários, evitando o pior (aliás, os “esquerdistas” eram expressamente ameaçados se desobedecessem). Porém, os gonçalvistas subestimavam a reacção da direita. Fortes da sua vitória eleitoral, apoiadas pelo imperialismo, todas as correntes burguesas, do PS e da maioria do MFA à Igreja e aos fascistas declarados, passaram ao ataque, em verdadeira histeria, com os atentados bombistas e os incêndios do ELP e do MDLP no Centro e Norte do país, mas também com grandes manifestações, como as de 18-19 de Julho. No Verão estava em marcha um grande movimento de massas contra-revolucionário apoiado no terrorismo e as fileiras da esquerda começaram a vacilar e a reduzir-se. O que fez a impotência do PCP, da ala esquerda do MFA e da generalidade da chamada “esquerda revolucionária” foi a incapacidade para subir a parada, para dar à direita a resposta mais enérgica que a nova situação exigia: para desarticular a frente “ordeira”, que ia do PS aos fascistas, seria preciso libertar a iniciativa das massas, apelar à revolta dos mais pobres, castigar os bombistas – mas isso seria a terrível “desordem”. Faziam-se grandes manifestações “para meter medo”, quando eram precisas outras formas de coacção para paralisar a instabilidade da pequena burguesia e separá-la da campanha reaccionária. Vasco Gonçalves era na realidade um pobre reformista que tentava satisfazer os trabalhadores com as suas leis e discursos, para evitar que eles “tomassem o freio nos dentes”; ao mesmo tempo lançava advertências inócuas ao campo direitista, que engrossava dia a dia, seguro da impunidade. Depois que o pronunciamento de Tancos fez cair o seu governo, a direita, cada vez mais segura de si, encaminhou o conflito para o desenlace, o golpe de 25 de Novembro. Mesmo a ala otelista do MFA, que se definiu como última esperança da esquerda, era


igualmente impotente. Otelo oscilava, como sempre fez, entre as proclamações arrojadas e os gestos dúbios (o pior de todos, a reintegração do fascista Jaime Neves, saneado pelos seus soldados). Os mais activos defensores desta corrente não sabiam como abrir espaço entre as duas grandes forças – gonçalvistas dum lado e “Grupo dos Nove” do outro. Tinham uma crença ingénua nos órgãos de “poder popular” descentralizados; na prática, viam no namoro aos oficiais “revolucionários” a chave da conquista do poder através de um golpe militar das esquerdas, armadilha a que acabaram por ser levados pelas provocações da direita. O êxito fácil de mais do golpe de 25 de Novembro resultou dessa impotência dos que se lhe opunham. O movimento chegou a Novembro derrotado por falta de estratégia própria. Quarta questão: Se não havia condições para uma revolução socialista e para o poder popular, para quê radicalizar ao máximo as reivindicações, levando o proletariado para um impasse e correndo o risco de provocar uma contra-revolução sangrenta? Os M-L não se comportaram efectivamente com imaturidade e aventureirismo? O PCP não teve razão nesse ponto? Primeiro, há que esclarecer que nós não inventámos palavras de ordem radicais: acompanhámos as exigências dos operários mais com-

bativos, das mulheres dos bairros pobres, dos soldados, dos assalariados agrícolas. A nossa inesperada influência resultou disso mesmo: de irmos ao encontro do estado de espírito da vanguarda. E a vanguarda tinha razão; perante uma crise do poder, a única táctica sensata e responsável dos explorados é abrir o mais possível o rasgão, arrancar o máximo de concessões, para ver até onde se pode chegar. Ficar na expectativa é suicida. Naturalmente, esse comportamento da vanguarda não é seguido de imediato pela grande massa, inclusive dos operários. A primeira reacção desta é desaprovar, assustar-se e recuar perante essas “loucuras”. Mas em período de crise revolucionária, quem tem que indicar o ritmo e criar os factos consumados é a minoria de vanguarda. Só ela habitua os espíritos a perceber que chegou a hora de deitar abaixo as velharias. Só pela audácia a vanguarda vai tomando consciência de si própria, ganha a confiança da massa e se educa para futuros confrontos. Sabia-se, dadas as condições internacionais e a juventude do nosso movimento, que não tínhamos a revolução socialista ao nosso alcance. Mas tudo o que se avançasse ajudava a desmantelar a ordem tradicional, com a sua carga asfixiante de abuso patronal, tirania burocrática, estupidez clerical, caciquismo, machismo, chauvinismo, conformismo, ignorância – todo o

peso de uma sociedade que não fez uma grande revolução burguesa e foi passando ao capitalismo por pequenas etapas. Se algum saldo positivo ficou apesar de tudo do 25 Abril, foi graças ao comportamento radical da vanguarda. Além disso, quando se critica o “excesso de ambição dos radicais” esquece-se que o prolongamento da crise poderia ter acelerado a agonia do franquismo. Se em vez da manobra liberalizante de 78 a Espanha tivesse conhecido um levantamento antifascista por reflexo da crise portuguesa, as possibilidades revolucionárias na península teriam dado um enorme salto em frente. Quinta questão, associada à anterior: mas os marxistas-leninistas não poderiam ter procurado a unidade com o PCP contra o avanço da direita? não era o PCP a principal força política no movimento operário e popular? Era, sem dúvida. Único partido implantado nas massas e com uma longa resistência à ditadura, o PCP ganhou desde a primeira hora a hegemonia no movimento popular. Mas usou-a sempre para lhe retirar a carga revolucionária. Deixem-me exemplificar com alguns factos: um mês após o 25 de Abril, um dirigente do PCP (com longos anos de prisão e clandestinidade) foi expulso de uma assembleia de trabalhadores dos CTT por dizer que a sua

3


greve era “útil à reacção”; o PCP esteve contra a exigência surgida na rua de “nem mais um só soldado para as colónias” porque isso enfraquecia o novo governo nas negociações com a guerrilha; quando começaram as ocupações de empresas, o Avante deitava água na fervura assegurando que “o investimento estrangeiro tem ainda vastas possibilidades de uma vantajosa e larga retribuição”; em Setembro de 74, quando os operários dos estaleiros navais fizeram uma combativa manifestação pelo saneamento dos fascistas, o PCP organizava uma manifestação de homenagem a Spínola, para tentar apaziguá-lo; Cunhal, como ministro de Estado, assinou uma lei antigreve que não chegou a ser aplicada devido ao repúdio dos trabalhadores; após o 28 de Setembro, para baixar a temperatura das massas, o PCP lançou a campanha por “um dia de trabalho para a Nação”; o PCP condenou o cerco popular ao congresso dos fascistas do CDS, no Porto, como “um acto desordeiro”; a 7 de Fevereiro, com milhares de operários a protestar nas ruas de Lisboa contra a entrada no Tejo de uma esquadra da NATO, um dirigente do PCP foi à televisão difamar a manifestação e pedir um “acolhimento amistoso” aos marinheiros americanos; no decurso do golpe spinolista de 11 de Março, quando os “esquerdistas” acudiam ao quartel atacado e saqueavam a casa de Spínola, o PCP ordenava aos seus membros a máxima contenção para não agravar as desinteligências entre os militares; no Verão de 75, o PCP desaprovou a greve dos operários do República contra os jornalistas social-democratas; desaprovou a manifestação de apoio aos jornalistas de esquerda da Rádio Renascença, despedidos pela Igreja, proprietária da estação; condenou como “provocação” o assalto popular à embaixada de Espanha quando Franco assassinou cinco antifascistas. Situações destas repetiram-se vezes sem conta. Para estar ao lado do avanço popular, tínhamos que estar contra o PCP, que nos acusava invariavelmente de “aventureiros” e “provocadores”. Isto não foi surpresa. Desde os anos 40 o PCP apostara na mobilização dos trabalhadores como força de choque ao serviço de uma queda controlada do fascismo. Cunhal constituíra-se há muito prisioneiro da democracia burguesa, à qual hipotecara o seu futuro. Logo após o 25 de Abril, o PCP passou a aplicar a estratégia dupla a que seria fiel durante esses dezanove meses: impulsionar as acções de massas como capital para negociar uma normalização democrática, onde o seu lugar estivesse assegurado; e portanto opor-se às acções “excessivas” que poderiam assustar o MFA e a pequena burguesia. A função do “radicalismo” do PCP era servir de pára-raios popular, apoiar as reivindicações para depois as canalizar para objectivos ordeiros. Por isso mesmo, a burguesia exigiu logo no primeiro dia a sua participação no poder, para o ter como refém e garante da manutenção da ordem. No Verão Quente, quando sentiu o perigo de lhe escapar o controlo do movimento de massas, o PCP foi obrigado a radicalizar a linguagem para não deixar os operários passarem para a extrema-esquerda, mas não mudou de 4 estratégia. Exemplo: a adesão em Agosto à

FUR (Frente de Unidade Revolucionária), onde havia vários grupos da extrema-esquerda, para sair cinco dias depois logo que negociou um compromisso com os militares conspiradores. Em Novembro esta táctica dupla tinha chegado ao extremo: grandes manifestações para “meter medo” à direita, como o cerco à Assembleia da República pelos operários da construção civil enquanto decorriam conversações secretas para garantir a legalidade do partido depois do golpe. Com o maior desplante, Cunhal veio mais tarde deitar as culpas da derrota para cima do movimento que ele próprio ajudou a fazer abortar. Sexta questão: Se os marxistas-leninistas estavam com a vanguarda, porque foram incapazes de orientar o movimento de forma mais positiva? Os M-L estavam completamente impreparados para as tarefas que lhes cabiam. A possibilidade de levar a cabo uma insurreição antifascista, fazendo da queda da ditadura o início de uma revolução autêntica, tinha sido defendida em 1964 pelo CMLP, o primeiro grupo marxista-leninista. Foram aí lançados os alicerces ideológicos para uma ruptura com o reformismo e para uma nova corrente comunista portuguesa. Todavia, nos dez anos decorridos até ao 25 de Abril, a implantação dos marxistas-leninistas no proletariado progrediu muito lentamente. Tiveram um papel positivo na luta contra as guerras coloniais e pouco mais. O 25 de Abril pôs a nu o tremendo atraso da nossa corrente. Faltava-nos uma linha política que clarificasse o rumo ao movimento de massas e nos afirmasse como real alternativa à esquerda do PCP. A desproporção entre as perspectivas abertas pela crise de poder e a pequenez dos grupos era tal que os activistas deixavam-se ir à deriva dos acontecimentos, agindo por instinto. E faltava-nos consistência organizativa; só no Verão de 74 alguns grupos começaram a negociar a unificação, numa corrida contra o tempo, quando todos os esforços deviam ser virados para o movimento de massas. Estas desvantagens foram agravadas pelo equívoco político em que assentava a corrente M-L, em resultado das contradições em que se debatiam o PC da China e o PT da Albânia. Alguns grupos faziam, em nome do marxismo-leninismo, um ataque ao PCP e à URSS muito semelhante ao da burguesia, de tal modo que vieram a tornar-se colaboradores activos da ofensiva reaccionária no Verão-Outono de 75. A ruptura na corrente M-L entre a verdadeira e a falsa esquerda tardou demasiado e esta confusão sob a mesma bandeira de tendências comunistas e social-democratas desacreditou os “M-L” junto dos operários de vanguarda e dificultou-lhes a desagregação da influência do PCP. A isto somava-se uma errada concepção de Partido. Formados na escola stalinista, os M-L tomavam por sinais de “vigor bolchevique” o medo ao debate, as fórmulas dogmatizadas, o burocratismo organizativo, o revolucionarismo declamatório. Pior ainda, no desejo de ser reconhecidos internacionalmente, abdicaram da sua autonomia e submeteram-se à tutela de autoproclamados “representantes do movimento comunista internacional” (na realidade oportunistas), o que viria a ter um resultado desastroso

no partido, formado justamente a seguir ao 25 de Novembro. Mas essa é já outra história. Sétima e última questão: Pode dizer-se que a insuficiente unidade popular perdeu o movimento de 25 de Abril? Eu diria antes que faltou a unidade popular combativa e sobrou a unidade popular conciliadora. Faltou um corte entre os interesses revolucionários do proletariado e os interesses da burguesia “progressista”, que só queria apoiar-se no povo para modernizar o capitalismo. Por falta de independência política, os trabalhadores deixaram-se “enrolar”. Se virmos o comportamento do conjunto da classe burguesa ao longo da década de 70, é perfeitamente nítido o esquema clássico: para passar dum regime para o outro, a burguesia “democrática” apoiou-se primeiro no povo contra o fascismo para a seguir se aliar aos fascistas contra o povo. O produto desta astuta manobra em duas fases foi a podre Democracia capitalista que nos governa. Com o 25 de Abril aprendemos na prática a lição leninista: não basta centrar o fogo no inimigo principal; há que distinguir rigorosamente os interesses do proletariado dos da camada burguesa que lhe fica mais próxima – a pequena burguesia. A trajectória do PCP, como mais tarde a do PC(R), resultou da ausência dessa distinção. Parecia vantajoso misturar numa corrente única os sentimentos antifascistas das várias classes. Mas a simpatia da pequena burguesia pelo povo era apenas a busca de uma força de choque. Submetido à contraprova da agitação revolucionária popular, o progressismo da pequena burguesia mostrou o que valia. De resto, nas duas últimas décadas, o alinhamento da pequena burguesia portuguesa tem vindo a modificar-se: o capitalismo penetra em todos os poros da sociedade, abatem-se as velhas barreiras entre o capital nacional e o capital estrangeiro, as oportunidades de negócio e de consumo abrem novos horizontes para esses sectores em termos profissionais, culturais, etc. A ânsia de justiça social e a paixão patriótica que mobilizavam boa parte da pequena burguesia no tempo do fascismo evaporaram-se. O esvaziamento das fileiras da extrema-esquerda, em paralelo com o esclerosamento do PCP, correspondem assim à debandada da parte “esclarecida” da pequena burguesia. Ao reorganizar-se, o movimento comunista deverá ter presente que, à medida que a luta anticapitalista se vai definindo com maior nitidez como o objectivo directo do proletariado, mais difícil é contar com o apoio da pequena burguesia, mais vital é assumir os interesses próprios do proletariado. Há agora quem diga que “os portugueses ficaram vacinados contra o esquerdismo”. Estou plenamente convicto, pelo contrário, de que, sob o aparente esquecimento actual, as experiências avançadas de democracia proletária vividas em Portugal estão inscritas na memória colectiva. Ressurgirão forçosamente amanhã, numa nova situação de crise de poder. Haverá então que levá-las à sua consequência: o derrube e expropriação da burguesia.


Rumo à Quinta Internacional? ÂNGELO NOVO

O apelo público surgiu a 21 de Novembro de 2009, no auditório do Hotel Humboldt, em Caracas, na sessão de encerramento do Encontro de Partidos de Esquerdas, organizado pelo Partido Socialista Unificado da Venezuela (PSUV). Apareceu de surpresa, mas certamente não de forma totalmente improvisada. No uso da palavra, o presidente Hugo Chávez disse, a certo passo, que se “atrevia” a convocar pessoalmente a Quinta Internacional Socialista. Marcadamente pessoalizada foi também a visão que Chávez expôs então, em traços a grosso, e de forma extremamente discutível, da história das internacionais precedentes: a primeira teria sido convocada por Marx; a segunda por Engels; a terceira por Lénine e a quarta por Trotsky. Este encontro de Caracas foi, em si mesmo, um acontecimento de relevo, juntando quarenta partidos políticos da América Latina, Caribe, Europa, África, Ásia e Oceania, culminando com a assinatura de um documento político bastante significativo1. Todavia, apesar de avançar com algumas linhas de análise mais genéricas, trata-se em grande medida de um documento centrado na realidade latino-americana e dirigido no sentido de organizar a solidariedade com a sua revolução bolivariana, numa altura em que ela sofria uma agressão e declaração de guerra muito clara por parte da administração Obama, com o golpe militar nas Honduras, a reactivação da 4ª Esquadra e o anúncio da instalação de novas bases avançadas norte-americanas na Colômbia e Panamá, como fortalecimento das já existentes em toda a região. É como uma terceira adenda a esta Declaração de Caracas, datada de 21.11.09, que aparece uma “Decisão Especial” do encontro, rezando o seguinte:

“O Encontro Internacional de Partidos de Esquerda realizado em Caracas nos dias 19, 20 e 21 de Novembro de 2009, recebida a proposta do Comandante Hugo Chávez Frías de convocar a V Internacional Socialista como uma instância dos partidos e correntes socialistas e movimentos sociais do mundo na qual se possa harmonizar uma estratégia comum para a luta anti-imperialista, a superação do capitalismo pelo socialismo e a integração económica solidária de novo tipo, valoriza a dita proposição pela sua dimensão histórica que propugna o espírito de um novo internacionalismo, acordando, com vista a concretizá-la no curto prazo, criar um grupo de trabalho composto por aqueles partidos e correntes socialistas e movimentos sociais que subscrevem esta iniciativa, para preparar uma agenda onde se definam os objectivos, conteúdos e mecanismos desta instância mundial revolucionária, convocando-se um primeiro evento constitutivo para o mês de Abril de 2010 nesta cidade de Caracas. De igual forma, aqueles partidos e correntes socialistas e movimentos sociais que não se expressaram submeterão a proposta à consideração dos seus órgãos directivos legítimos.” Não temos qualquer notícia do funcionamento deste “grupo de trabalho”, mas o que é certo é que Abril de 2010 passou já sem ter sido constituída qualquer Quinta Internacional. Neste mês, estava previsto (e ocorreu efectivamente) o encerramento do Congresso Extraordinário (dito “ideológico”) do PSUV, que decorreu durante cinco longos meses. Na Comissão Internacional do Congresso do PSUV foi ultimado um documento que articula a visão deste partido sobre a Quinta Internacional. Mas a constituição desta foi adiada para uma melhor ocasião, com maior amadurecimento, prevendo-se agora um processo em

várias fases, mediado por diversas reuniões preparatórias a nível continental ou regional2. É de registar que nos parece de todo salutar esta dissociação, no tempo e no espaço, entre o Congresso do PSUV e a constituição de uma Quinta Internacional. Mais do que isso, parece-nos que este processo deve também ser completamente autonomizado do da ‘Declaração de Caracas’ e das legítimas expectativas de constituição de uma urgente e indispensável frente internacional de solidariedade com a revolução bolivariana. Não é certamente a isso que se deve circunscrever ou nisso que se deve centrar o papel de uma Internacional Socialista. A era das internacionais submetidas aos desígnios geoestratégicos de certas ”potências” socialistas (por vezes rivais, ou até inimigas) está hoje definitivamente ultrapassada, assim o esperamos. A inesperada “convocatória” com origem numa conferência que era basicamente de solidariedade com a Venezuela – ou a ALBA – frente à agressão ianque levou já a um comentário sarcástico do académico socialista Heinz Dieterich, que, parafraseando um famoso chiste de Estaline sobre o Vaticano, pergunta “Quantas divisões tem a V Internacional?”3. A ideia da Quinta Internacional, embora não tenha tido um sucesso imediato em larga escala, já fez algum caminho. Recolheu um apoio entusiástico ou mais mitigado de várias correntes internacionais trotskistas. Entre elas, a Corrente Marxista Internacional de Alan Woods e a própria IV Internacional (Secretariado Unificado), da qual o pensador mais destacado é hoje Michael Löwy, que há muitos anos vem defendendo esta mesma ideia4. Dentro do trotskismo, há mesmo já em funcionamento há largos anos uma Liga para a Quinta Internacional5. Numerosos outros partidos já

5


deram a sua adesão, incluindo partidos no poder (e já extensamente corrompidos por ele) como a Frente Sandinista de Liberación Nacional (Nicarágua). Também a vizinha Frente Farabundo Martí para la Liberación Nacional (El Salvador) deu a sua adesão, mas o presidente da República por ela eleito, Maurício Funes, logo se demarcou, dizendo não querer ter nada a ver com socialismo. O conhecido ensaísta post-maoísta egípcio Samir Amin tem-se batido igualmente, há muitos anos, por uma Quinta Internacional. Iniciativas em que se tem envolvido fortemente, como o ‘Manifesto de Porto Alegre’ (2005) e, sobretudo, o ‘Apelo de Bamako’ (2006) ou o Fórum Mundial das Alternativas, que anima conjuntamente com o teólogo belga François Houtart, são notoriamente instrumentos preparatórios dirigidos nesse sentido, procurando uma saída para o impasse profundo em que mergulhou o processo do Fórum Social Mundial (FSM)6. Um dos membros do próprio Conselho Internacional do FSM, Éric Toussaint, presidente do Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM), tem-se associado publicamente à iniciativa por uma Quinta Internacional, dizendo que, se o formato FSM não permite uma intervenção e uma luta política coerente, havendo no seu seio resistências invencíveis a isso, então é altura de criar um novo instrumento7. É, sem dúvida, uma maneira de romper o estéril e bizantino debate formal que se estabeleceu e eterniza de forma paralisante no seio do puro “movimentismo social”. Surgiu, entretanto, na rede Znet, um documento intitulado ‘Proposta para uma Internacional Socialista participativa’, assinado à cabeça por Noam Chomsky e já subscrito desde então por inúmeros intelectuais de grande prestígio

6

em todo o mundo, de todas as tendências socialistas e também anarquistas8. Na verdade, um dos mais entusiastas apoiantes é Michael Albert, pensador libertário norte-americano, teórico e prospectivista de uma sociedade futura post-capitalista sob uma economia participativa (Parecon). Claramente, o apelo à reunião da Quinta Internacional ganhou outra dimensão e faz um compasso de espera para tomar um fôlego mais aprofundado. Todavia, continua a ser necessário que, nesse passo, a iniciativa não se perca de todo. Começa a ser desenhada como uma confederação mundial de partidos políticos, movimentos sociais e organismos de base com disposição e disponibilidade para coordenar, de alguma forma, entre si, uma luta anticapitalista sustentada, sem directório ou comando centralizado, eventualmente com a interposição no seu seio de diversas formas organizativas de geometria variável. Sem qualquer fetichismo histórico, não nos repugna absolutamente nada que esta iniciativa revista o nome e a série das internacionais do movimento operário do passado. Por outro lado, talvez isso contribua de algum modo para lhe conferir um maior apelo público e clarificar a sua missão. Mesmo com todos os potenciais equívocos que é já previsível virem a gerar-se no seu seio, parece-nos que este pode indiscutivelmente vir a ser um passo em frente no bom sentido. Um passo necessário, provavelmente ainda apenas um passo intermédio, com vista à criação de um sujeito político revolucionário à escala mundial, capaz de dar finalmente alguma coerência e profundidade estratégica à luta contra um sistema capitalista aparentemente em fase de estrangulamento e declínio histórico. Há uns dez anos, foi avistado numa rua

de Manágua um mural com a consígnia “Proletários de todos os países, uni-vos!”, onde alguém tinha sobreposto a advertência: “Último aviso”.

1 - O ‘Compromisso de Caracas’ pode ser consultado em linha, no seguinte endereço: http://psuv.org. ve/files/tcdocumentos/compromiso.caracas_0. pdf. 2 - Cf. Julio Chávez, Kiraz Janicke e Frederico Fuentes, ‘The First Socialist International of the 21st Century’: http://www.zcommunications.org/thefirst-socialist-international-of-the-21st-century-byjulio-chavez. 3 - Pode ler-se o artigo no portal Kaos-en-la-red: http://www.kaosenlared.net/noticia/cuantasdivisiones-tiene-v-internacional. 4 - Michael Löwy, “É necessária uma quinta internacional?”: http://combate.info/index. php?option=com_content&task=view&id=50. 5 - League for the Fifth International: http://www. fifthinternational.org/. 6 - Cf. Samir Amin, ‘Pour la Cinquième Internationale’, Le Temps des Cerises, Paris, 2006. O ‘Apelo de Bamako’ pode ser lido em português no nº 8 da revista electrónica ‘O Comuneiro’: http://www. ocomuneiro.com/nr8_05_ApelodeBamako.html. 7 - Éric Toussaint, ‘Para além do Fórum Social Mundial, a Quinta Internacional’: http://www. brasildefato.com.br/v01/agencia/entrevistas/paraalem-do-forum-social-mundial-a-quinta-internacional/?searchterm=toussaint. 8 - Proposal for a Participatory Socialist International: http://www.zcommunications.org/newinternational.htm.


CHINA

A grande impostura ANA BARRADAS A segunda economia maior do mundo é a China, que há anos a esta parte tem tido taxas de crescimento constantes e acima dos dois dígitos, em contracorrente com o que acontece no resto do mundo. Isto faz sonhar muita gente, convencida de que se trata de um sinal de que a evolução deste país é uma alternativa viável ao capitalismo e uma correcção da histórica incapacidade dos regimes ditos comunistas de superarem o modo de produção actual. Seria bom que se analisasse primeiro a situação da classe operária chinesa. Nas zonas industriais de crescimento rápido do Sudeste e sobretudo no centro controlado pelo Estado, a nordeste, reina a indignação e o desespero entre os trabalhadores. Os protestos laborais sucedem-se em crescendo, como indicam as próprias estatísticas oficiais: o número de “incidentes de massa” (greves, levantamentos, paralisações, etc.), que em 1993 se cifravam em 8.700, em 2005 foram 74.000, em 2008 eram já 1.200.000 e no primeiro trimestre de 2009 ascendiam a 58.000. Na zona industrial do Nordeste, abandonada em detrimento do Sudeste, os operários acusam o governo de trair os princípios maoístas de solidariedade e dedicação ao desenvolvimento social. Em todo o país, milhões de trabalhadores afastados pelo desemprego das suas unidades de trabalho – fenómeno novo num país que garantia trabalho para todos – experimentam pela primeira vez uma profunda sensação de insegurança. A proporção do PIB destinada aos salários diminui a olhos vistos desde 1983. Zhao Jianguo, alto funcionário sindical e chefe do Departamento de Contratos Colectivos da Federação Nacional de Sindicatos da China, afirmou recentemente que o salário de quase um em cada quatro empregados manteve-se invariável nos últimos cinco anos. Entretanto, em 2009 o Estado chinês arrecadou 98.870 milhões de yuans (14.500 milhões de dólares) de lucros gerados pelas empresas estatais, o que revela um grande aumento em comparação com os 44.360 milhões em 2008 e os 13.990 milhões de yuans em 2007. Os rendimentos derivados de contribuições e impostos aumentaram 33,2 por cento entre Janeiro e Abril deste ano, alcançando os 2.630 mil milhões de yuans (384.770 milhões de dólares), segundo dados da Administração Estatal de Impostos. Os proventos derivados dos impostos sobre o valor acrescentado, das receitas de empresas e do comércio aumentaram 13,7, 41,1 e 37,9 por cento respectivamente. Após a Revolução Cultural e a morte de Mao, o Partido Comunista da China tem-se lançado numa política de reformas económicas e de abertura ao comércio externo e ao investimento que transformou grandemente o país. Contudo, ao lado das megacidades dos arra-

nha-céus monstruosos e de um aparente bem-estar e aumento do consumo, proliferam fábricas de equipamento obsoleto, oficinas e secções fabris insalubres, alojamentos para operários que mais parecem ninhos de ratos e uma ausência total de protecção no trabalho. Segundo David Harvey, no seu livro acabado de publicar no Brasil sob o título O Neoliberalismo: História e Implicações, as condições são típicas do neoliberalismo: “Cinco dólares de salário por dia, sem direitos sociais, com forte discriminação contra as mulheres, trabalho infantil sem disfarces, privilégios quase inimagináveis para os altos executivos, subsídios governamentais astronómicos para os capitais estrangeiros, e last but not least, investimentos em ciência e tecnologia necessários exactamente para colocar o imenso exército de reserva em condições de produção competitiva à escala mundial. A China não se especializa em commodities, como nós estamos fazendo, mas numa combinação de mão-de-obra barata e salto tecnológico formidável.” No campo escasseiam oportunidades, obrigando os camponeses a partir para os centros industriais, mesmo assim carentes de mão-de-obra. Esta situação exerce grande pressão sobre as relações de classe e a intensificação das lutas operárias contra a exploração preocupa os dirigentes dos sindicatos, do partido e das fábricas, quase todos abastados e beneficiados por um enriquecimento rápido decorrente das suas funções. É já evidente que a China se orienta para uma sociedade a duas velocidades. O progresso e a modernização são sinónimo de diferenciação com base no dinheiro acumulado por cada um. O desenvolvimento de tipo capitalista agrava a situação dos mais pobres, porque foram abolidos muitos dos serviços públicos existentes no tempo do maoísmo. A reestruturação em curso, muitas vezes traduzida em privatizações ou “racionalização” (eufemismo para os despedimentos) alterou as regras que presidiam às condições de alojamento, educação e saúde, dantes ligadas à unidade de trabalho, que providenciava tudo isso. Devido ao recrudescimento dos protestos dos trabalhadores, as empresas estatais reestruturadas permitem que os despedidos continuem a beneficiar de algumas dessas vantagens, sem as quais ficariam privados de tudo. As novas estruturas económicas, dominadas pelos gestores e com especial peso de pessoal oriundo do exército, têm tendência a reforçar-se por causa do ascenso de uma classe média que procura consolidar a sua riqueza e promoção social através de actividades de tipo capitalista, embora ainda de pequena dimensão. Desapareceu o mito do partido e hoje é claro para todos que ele representa uma estrutura de classe identificada por completo com as estruturas económicas, sejam elas dominadas

pelos militantes partidários ou pelo Estado. Há uma corrida ao dinheiro que origina uma concorrência feroz. Tudo isto se reflecte na evolução das mentalidades. Face à insegurança crescente e à repressão sobre as organizações de base, multiplicam-se, na ausência de garantias colectivas, as associações mutualistas e de solidariedade e entreajuda. A corrupção e o enorme poder económico do exército geraram um grande descrédito, reforçado pelo papel repressivo dos militares. Os serviços de propaganda têm feito um esforço para combater esta tendência e, quando no Verão passado se deram as inundações do Yangtsé e da Manchúria, a intervenção da tropa foi colocada em primeiro plano para melhorar a imagem do exército, ao mesmo tempo que o governo anunciava a intenção de intervir para regular o poder económico detido pelos oficiais de alta patente. Nos campos também foi introduzido um novo sistema de gestão das comunas, em que os candidatos apoiados pelo partido têm perdido posições, por vezes em proveito de membros das antigas famílias de proprietários expropriados pelo maoísmo. Todas estas transformações indicam evoluções que afastam o país dos proclamados objectivos socialistas. Apesar disso, muitos insistem em que a China continua a ser socialista, progressista e anti-imperialista e a desempenhar um papel crucial contra o domínio dos EUA e seus aliados. A controvérsia estende-se também à intervenção económica chinesa em países da Ásia, na África e América Latina. Há quem defenda que os chineses oferecem muitas vantagens aos países do terceiro mundo, sem as contrapartidas injustas e desiguais da “ajuda” ocidental. Outros vêem a ajuda da China como forma de esta garantir o acesso a matérias-primas que lhe são essenciais, como o petróleo, através de assinatura de acordos de cooperação obedecendo a estratégias que não se coadunam com as reais necessidades desses países. Quanto a nós, o chamado “socialismo de mercado” não passa de uma impostura inventada pelos dirigentes do ex-maoísmo reciclado para branquear a consumação de uma contra-revolução iniciada há trinta anos.

7


ELEIÇÕES NO BRASIL

Três propostas de capitalismo regulado VALÉRIO ARCARY A surpresa das presidenciais de 2010 no Brasil é que, pela primeira vez desde 1989, elas não deverão ter nada de surpreendente. O Brasil passou a ser previsível. Não serão surpreendentes por duas razões: porque é improvável que Marina possa disputar de igual para igual contra Dilma e Serra (e seria motivo de estupefação o crescimento de uma das candidaturas da esquerda socialista), e porque é improvável que aquele que vier a ser eleito surpreenda a nação como Collor em 1990 (o choque do congelamento da dívida interna), FHC em Janeiro de 1999 (o choque da desvalorização cambial), e Lula em 2002 (o choque do megaajuste fiscal). Seja eleita Dilma ou Serra, não haverá nem surpresa nem choque algum, mas apenas business as usual, ou seja, a estabilidade para os negócios. Existe um grande consenso entre o mundo empresarial-burguês e os três candidatos favoritos. Dilma como herdeira dos oito anos lulistas de concessões às grandes corporações, e políticas sociais focadas; Serra e os dezesseis anos paulistas de privatizações e choque de gestão dos serviços públicos; e Marina, porta-voz de um lulismo do PT, ou seja, paz social com ajustes reguladores. O consenso remete aos desafios político-econômicos a partir de 2011: manter a busca do superávit fiscal acima de 3% do PIB para permitir a rolagem da dívida, mesmo com taxas acima de 10% ao ano, sem sacrificar um crescimento do PIB próximo a 5% ao ano. COLABORAÇÃO DE CLASSES SEM REFORMAS José Serra, Dilma Roussef e Marina Silva. Haverá diferenças de tom, mas a música será a mesma. Seus programas eleitorais serão, declaradamente, pró-capitalistas, com ênfases variadas sobre o tipo de regulação mais ou menos social, ambiental e desenvolvimentista que pretendem fazer do capitalismo. Os três reconhecem diferenças entre si, mas admitem, também, e com estarrecedora franqueza, que são irrelevantes. Haverá alguma poeira levantada por polêmicas, essencialmente, secundárias. Não foi por outra razão que Marina adiantou que, se eleita, convidaria para ministros quadros do PT e do PSDB. Serra, para não ficar atrás, respondeu que convidaria quadros do PV e do PT. Não há que duvidar que Dilma, se eleita, faria, também, os convites mais esdrúxulos, já que o próprio Lula não hesitou em chamar Roberto Rodrigues para a Agricultura e Meirelles para o Banco Central. Tudo isso é possível. Defensores de Serra, de Dilma e de Marina estão igualmente satisfeitos e reconciliados com quatro apreciações estratégicas: (a) a preservação do aparelho repressivo das Forças Armadas e Polícias Militares herdado da 8 ditadura, inclusive, a anistia aos torturadores,

como conquista política de um patamar de disputa civilizada; (b) a consolidação da democracia-liberal como regime político, com seus vícios, cronicamente, escandalosos de corrupção eleitoral financiada pelos monopólios, numa espécie de bipartidismo governo /oposição, ampliado pelas coligações regionais que garantiram uma maioria congressual nos últimos vinte e cinco anos (o PV participou, entusiasticamente, tanto dos governos Serra em São Paulo e César Maia no Rio, quanto Lula em Brasília); (c) as desnacionalizações, privatizações e parcerias com o grande capital em áreas como telefonia/comunicações, distribuição de energia, obras públicas e infraestrutura, incluindo a participação estrangeira na exploração do pré-sal; (d) a manutenção de um modelo misto – público/privado – de gestão da educação, da saúde, da previdência e da segurança interna. A VIDA DAS MASSAS NÃO MUDOU A tensão social crônica alimentou lutas de resistência que, rapidamente, pareciam poder transbordar para além dos limites institucionais do novo regime democrático. Foi possível, em mais de um momento, começar, seriamente, a medir forças entre o proletariado e seus aliados sociais e a burguesia. E o que se viu nas ruas entre 1984 e 2002 foi a revolução brasileira engatinhando os seus primeiros passos. Descobriu-se um Brasil urbano e concentrado, em que a força social de choque do proletariado era capaz de atrair a maioria da classe média, e deixar isolado o grande capital. Quando a massa popular saiu às ruas aos milhões para derrotar o Colégio Eleitoral da ditadura exigindo Diretas Já em 1984; quando a maioria do povo aderiu aos métodos de luta da classe operária, com as greves gerais contra Sarney, entre 1987 e 1989; quando a juventude se sublevou e acendeu a ira de milhões contra Collor em 1992; quando as ocupações de latifúndios e as marchas camponesas do MST despertaram a simpatia da maioria da nação, em 1997; quando o Fora FHC foi capaz de unir cem mil na marcha a Brasília em 1999. Em todos estes momentos decisivos, a burguesia brasileira se apequenou, se acanhou, se descobriu socialmente isolada, e politicamente dividida. Paradoxalmente, a direção que alimentou as lutas contra Figueiredo e Sarney – os combates que legitimaram a fundação do PT e da CUT, e a autoridade de Lula – passou a refreá-las contra Collor e FHC. Mas isso não impediu que se beneficiasse do desgaste dos governos da Nova República, e vencesse as eleições em 2002. O mais importante é que esse processo de vinte e cinco anos confirmou que, nos limites do regime democrático-liberal e seu calendário eleitoral, a vida das massas não poderia mudar. Parece inegável que essa es-

RELENDO... LENINE É uma situação sem precedentes na história: o proletariado, a vanguarda revolucionária, possui um poder político mais do que suficiente; e, a seu lado, está o capitalismo de Estado. (...) Um ano se passou nesta situação, e o Estado está nas nossas mãos. Pois bem, podemos dizer que no plano da Nova Política Económica o Estado funcionou como pretendíamos? Não. Embora não o queiramos confessar, a verdade é que o Estado não funcionou como desejávamos. E como funcionou então? O carro não nos obedece. Há de facto um homem ao volante, que parece dirigir, mas o carro não avança na direcção estabelecida. É impelido por uma outra força — força ilegal e ilícita, que ninguém sabe de onde vem, talvez dos especuladores, talvez dos capitalistas privados, talvez de uns e de outros — mas o certo é que o carro não responde às intenções de quem o guia. Este é o ponto essencial a ter presente quando tratamos do capitalismo de Estado. Nesta questão fundamental, devemos aprender tudo desde o começo. Só se assimilarmos esta verdade poderemos garantir o êxito da nossa aprendizagem. (XI Congresso do PC(b)R, Obras, tomo 33, 1922)

perança reformista, com a perspectiva que os últimos oito anos nos oferecem, foi frustrada. As poucas reformas de conteúdo progressivo realizadas sob o regime da democracia liberal, como a extensão da previdência social à população rural, ou a implantação do Sistema Único de Saúde, ficaram muito aquém das necessidades reprimidas durante duas décadas pelo regime militar. As poucas reformas de Lula, como o aumento do salário mínimo levemente acima da inflação, a expansão de vagas no ensino público federal, ou as políticas compensatórias como o Bolsa-Família e as cotas de acesso para afro-descendentes, foram muito pouco, depois de tantas lutas e tanto tempo. Fossem quais fossem as coligações articuladas pelo PSDB ou pelo PT em Brasília, todos os governos, desde a derrota de Maluf em 1985 no Colégio Eleitoral da ditadura, foram incapazes de diminuir, significativamente, as desigualdades sociais acumuladas. Embora a recuperação econômica entre 2004-08 tenha trazido a uma maioria da população uma sensação de alívio, o impacto da crise mundial de 2008-09 não deixará de ter repercussões internas, porque a vulnerabilidade externa do Brasil não só não foi revertida, como se agravou – a previsão é de um déficit em contracorrente de US$ 50 bilhões em 2010 – apesar do aumento das reservas para um patamar em torno de US$ 250 bilhões. O agravamento da crise capitalista pela iminência de uma moratória da dívida externa da Grécia, que seria um terremoto financeiro ainda maior do que a falência do Lehmann Brothers, em 2008, sinaliza que estamos entrando em uma nova situação mundial, que só deverá chegar ao Brasil depois das eleições de Outubro.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.