Revista Livro Zero numero 1 - Forum do Campo Lacaniano SP

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as contas desse rosário, uma a uma, não seria gozar do inconsciente? A questão é: como bem gozá-lo? Para isso, é preciso distorcer o terço, troçá-lo e destroçá-lo sem misericórdia para fazer restar ali um artifício. Res escrita ou res falada é sempre uma res mostrada. A letra não é propriamente uma res pública, mas uma res signum, ou melhor, res signator, ou melhor ainda, res singuli, o que não a impede de fazer laço, mas laço em que se revela o sujeito na singularidade de seu gozo. A letra é o nome como a assingulatura do falasser. Sua firma, nisso que ele é firmeza. A letra é poder dar, por meio dessa assinatura singular, a liberdade da voz à gula do ronrom. Pela letra, a substância de gozo se converte em mais-de-gozar (S1àa), isto é, o corpo fala. O corpo fala por soluços (singultus, em latim), um a um, cada um (singuli em latim). O corpo soluça, soluciona, soluça e ama, sintoma. Pela letra o corpo acontece. Assim é que, pela escrita, alguém pode colocar seu corpo, na forma letra de seu mais-de-gozar, para muito além de sua própria vida. O livro Escritos é, assim, um exemplo, pois temos nele, no estilo que lhe dá o suporte (hypokeimenon), o incorpóreo materializado de Lacan: Lacan, ali, colocou algo de seu corpo nisso, donde pôde afirmar, apesar de sua morte, sua única verdadeira vida. Para além dos sentidos, significações e informações que os Escritos trazem, um gozo ali fez sua morada e, por isso, pode-se ali ler, de algum modo, o mistério de um corpo falante. Não é essa a dignidade de um artifício? Um escrito qualquer, quando habitado pelo estilo, não vira um artifício? Já no final do Função e campo, Lacan (1953/1998) escreve: O sujeito diz “Não!” a esse brincar-de-passar-anel da inter-subjetividade, onde o desejo só se faz reconhecer por um instante para se perder num querer que é querer do outro. Pacientemente, ele subtrai sua vida precária das agregações docilizantes do Eros do símbolo, para afirmá-la enfim numa maldição sem palavras. Por isso, quando queremos atingir no sujeito o que havia antes dos jogos seriais da fala, e aquilo que é primordial no nascimento dos símbolos, vamos encontrá-lo na morte, de onde sua existência retira tudo o que tem de sentido (p. 321).

Sobre esta morte, Soler (2006) afirma: O sujeito com o uso da morte tenta afirmar-se, é o contrário de desaparecer, se afirma desaparecendo, isto é, sacrifica sua vida

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