Cafe cartel 2013 [1] coletanea final

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FÓRUM DO CAMPO LACANIANO -­‐ SÃO PAULO

Café Cartel 2013

Mais um(a) volta

Coletânea de textos apresentados


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CAFÉ CARTEL: MAIS UM (a) VOLTA 29 de junho de 2013 das 9:00 às 12:00

“Escolha o seu tema ou invente, mas fale para alguns outros: do funcionamento ou disfuncionamentos dos cartéis; da solução ou dis-solução; da escolha ou não escolha do Mais-um; dos avanços ou impasses; ou, ou, ou...”. Assim foi a chamada para darmos juntos, aqui em São Paulo, mais uma volta ao redor do tema dos cartéis em 2013. Muitas outras voltas antecederam esta, como está dito na

apresentação

da

primeira

coletânea

do

Café

Cartel

em

2011.

(http://issuu.com/forumdocampolacanianosp/docs/textos_cafe_cartel_2011). Esta volta resultou numa “apresentação em ato”, que segue abaixo para a apreciação de vocês. Desejamos a todos, mais uma vez, um “bom espetáculo” – só que, desta vez, de forma impressa. Silvana Pessoa Pela coordenação da Comissão de Cartéis 2013


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PROGRAMAÇÃO EM ATO

PRIMEIRO ATO (duração total # 40 minutos aproximadamente)

Iniciaremos essa apresentação com a contextualização histórica feita pela SANDRA TOLENTINO. Ela fala da origem da formação analítica na IPA, do Ato de Fundação, da Proposição e da estrutura do cartel. Passaremos para alguém que escutou/leu essa proposta e decide escrever para Lacan uma carta. BELKIS. Deixaremos Lacan em Paris e aportamos em Bauru no Estado de São Paulo. Lá alguém tenta achar um cartel. Como é que isso funciona? LUCIANA GUARRESCHI. Estranho, não? Na busca de um ... “Esse negócio não é fácil, não!” PATRIZIA CORSETTO. Tudo bem! Um dia a gente consegue achar nossos parceiros. Achamos! Mas e agora? Como escolher o mais-um? Um pouco mais sobre esta questão! LEANDRO DOS SANTOS. Vimos que Leandro interroga, titila a resposta, instiga ao debate que teremos mais tarde, e também no próximo ato, talvez encontremos essa reposta em tantos outros textos. Afinal essa é uma importante questão!.


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TATIANA ASSADI arrisca uma utilizando como recurso a poesia de François Cheng para falar da sua posição de mais-um. Também podemos dizer que tudo é uma questão de fazer um NÓ com esse maisum. E lá vamos NÓS mais uma vez com DANIELA LARA DI RIBEIRO. Mas numa trama que tece e forma um nó, algo faz e se desfaz. Um cartel quase se desfez...como foi isso? Quase? PAUL KARDOURS vai tentar dizer. Mas às vezes não dá pra segurar...um dos membros não pode mais continuar e se vai ...o cartel tem que dissolver... e agora? o que fazer com aqueles que não querem parar o trabalho? CARLOS EDURADO FRAZÃO MEILRELES. A solução pode ser uma Dis-SOLUÇÃO. Em um cartel algo sempre acon-TECE. Uma trama que “destrama” com CIBELE BARBARA

Fim do primeiro ato INTERVALO PARA UM CAFÉ (20 minutos)

SEGUNDO ATO (Duração total # 40 minutos aproximadamente) Retomando da dis-SOLUÇÂO do cartel à dissolução da Escola. Sim. As Escolas se dissolvem. O que é preciso para um cartel funcionar? O que pode lhe fazer obstáculo? Há que se parar e refletir um pouco. É o que nos propõe SAMANTHA STEINBERG.


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Campo. Os Fóruns são campo que não deixam de estar orientados rumo à Escola e sobre ela recai a questão do cartel e o cultivo do discurso analítico. GLAUCIA NAGEM falará um pouco mais disso. Tem hora que não se tem mais garantia alguma. O que fazer se “não entendo mais nada” ou se “isso não faz mais sentido”? Como lidar com este dispositivo furado é o que nos propõe refletir CONRADO RAMOS. Propriedades do dispositivo e das operações inerente ao cartel. WELSON BARBATO vai tentar dizer um pouco mais disso. Este produto escrito questiona a linguagem e não coincide com ela, pois criará buracos semânticos que favorecem o caminho para topologia. Um pouco disto poderemos apreciar com a produção da CLARISSA NARS e da MICHELLE ABUD DEHN. Com elas verificaremos em ato um pouco dos bastidores da produção de um “texto próprio”. E com MARCOS MUNIZ constataremos os efeitos do trabalho em cartel na formação analítica. Formação analítica. Isso! Diz a SILVANA PESSOA, pois formação implica em um processo aberto a constante transformação. Ela tentará nessa lauda dizer um pouco disso. Com ANA PAULA GIANESI terminaremos esse ato e com ela fazemos uma aposta e um desejo: que cada cartel invente as suas desmaneiras, que os mais-uns não aportem no refúgio do poder e que o horror ao saber tenha lugar para turbilhonar. FIM deste ato. INÍCIO do debate


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DIREÇÃO Silvana Pessoa, Heloísa Ramirez e Luciana Guarreschi

AGRADECIMENTOS Aos autores pelo texto, à CG do FCL-SP pelo apoio e às secretárias Luisa e Raquel pelo delicioso café da manhã.


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SUMÁRIO 07

Sandra Tolentino Cunha - Cartel: experiência de não-saber

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Luciana Guarreschi - Éramos seis

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Patrizia Corsetto - Café cartel ou... com fé, cartel?

14 Leandro Alves Rodrigues dos Santos - Mais um: eleição, escolha, imposição ou pura falta de opção? 16 Tatiana Assadi - Sobre o mais-um, um menos-um que me abre as portas e faz cair para o alto. 19

Daniela Lara di Ribeiro - Nós!

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Paul Kardous - Alguns passos na constituição do cartel

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Carlos Eduardo Frazão Meirelles - Formação e dissolução de cartel

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Cibele Barbará - Não é isso, pois algo acon-tece

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Samantha A. Steinberg - O Cartel e o Discurso do Analista

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Glaucia Nagem - Cartel como decisão

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Conrado Ramos - Transmissão finita e infinita

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Welson Barbato - O necessário e o contingente no cartel

40 Clarissa Carvalho Fongaro Nars - Texto inaugural sobre uma experiência inaugural (como cartelizante) 42

Michelle Abou Dehn - Entrada e Direção de um Cartel

43 Marcos Muniz de Souza - Sobre as contribuições do cartel: uma direção para a formação 45

Silvana Pessoa - Cartel: uma experiência de formação

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Ana Paula Gianesi - Desmaneiras do trabalho em cartel


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Cartel: experiência de não-saber Sandra Tolentino da Cunha* Cartel, possibilidade de passar por um lugar que, sustentado pelo ‘não-saber’, me provoca e me lança em direção a um ‘a-saber’, ‘a-saber’ sobre a psicanálise. Sendo ‘um em um cartel’ me lancei às provocações que este pudesse me propiciar. Na experiência de um cartel circulei, entre outros, por alguns escritos institucionais de Lacan que tornou possível uma contextualização histórica, política e clinica porque não. Lacan, fazendo oposição aos desvios teóricos e a formação analítica praticada pela IPA Associação Internacional criada em 1910 por Freud que visava resguardar sua invenção e assegurar a continuidade da psicanálise, articula a Escola Freudiana de Paris em 1964 que nasce com o Ato de fundação em 21 de junho desse mesmo ano (LACAN, 1964). Cria então uma Escola para a psicanálise que deve realizar um trabalho reconduzindo a práxis da psicanálise instituída por Freud. Ainda neste texto Lacan (1964, p. 242) afirma que “O ensino da psicanálise só pode transmitir-se de um sujeito para outros pelas vias de uma transferência de Trabalho”. Questiona assim se não estaria a formação do analista pautada nos moldes da licenciatura universitária o que estaria em contradição com o lugar do saber introduzido por Freud. Na proposição de 9 de outubro de 1967 com os dispositivos – a instituição do passe e o cartel – Lacan (1967, p. 248) propõe um laço social em relação ao discurso e dá estatuto à questão do analista, na formulação “O psicanalista só se autoriza de si mesmo” e anos depois diz “e com os outros”. Ainda coloca o principio da finitude ao falar sobre a razão de ser da Psicanálise “... constituir a psicanálise como uma experiência original, leva-la ao ponto que nela figura a finitude...”. Assim, a formação de um analista não se dá pela construção de um saber, mas trata-se de ter acesso a um saber com transferência para um trabalho.

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Membro do Fórum SP


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Bem, mas se falamos em transferência estamos falando em sujeito suposto saber? Suposto saber sobre a psicanálise? Mas, Lacan (1967, p. 250) diz que “... nenhum ensino fala do que é a psicanálise de maneira declarada, cuida-se apenas de que ela seja conforme”, ou seja, tenha a mesma forma. Ainda a de se considerar que a transferência é sustentada a partir de um saber impossível. Assim, esta colocado em questão o ‘saber’ na e da psicanalise, o que nos angustia, pois, do saber nada se sabe. De acordo com Lacan (1967, p. 254) a questão do psicanalista não é de se dar por satisfeito com esse nada se sabe, mas sim “do que ele tem de saber” diz Lacan colocando que o “não-sabido ordena-se como o quadro do saber”. O dispositivo do cartel, cujo funcionamento se baseia na experiência, propõe um espaço onde quem, se assim o desejar, se coloque sob transferência de trabalho, a produção de um saber, saber este concernente ao saber na psicanalise. A estrutura do cartel apresentada por Lacan (1980, p. 51) assim o faz propondo uma nova lógica coletiva no seu funcionamento e nesta a escolha de um “... Mais-Um [Plus-Un] que, se é qualquer um, deve ser alguém. Será em carregado de velar pelos efeitos internos do empreendimento e de provocar sua elaboração”; então, alguém com a função de velar para que se evitem os efeitos de grupo a quem cabe fazer corte do suposto saber, evitando o efeito de cola, subvertendo a função de mestria. Ainda diz das discussões, das produções individuais e da determinação do tempo no cartel: o produto é próprio de cada um e é resultado de um tempo de trabalho de no máximo dois anos, o que diferencia do ensino que é um saber cumulativo. Se podemos dizer que há algo em comum num cartel é o tema e um ‘não-saber’. O cartel esta destinado ao fracasso, pois se trata de lidar com o horror ao saber, o saber impossível. O dispositivo do cartel é possibilidade de ‘não-saber’, possibilidade de criação, lugar privilegiado de produção não endereçada a um Outro, mas na construção da psicanálise.

Referencias bibliográficas: LACAN, J. (1964) Ato de fundação. In: LACAN, J. Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. P. 235-247.


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______ (1967) Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da escola. Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. P. 248-264. ______ (1980) em D’Écolage. Rio de Janeiro, Letra Freudiana, n.0, s/d.


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Éramos seis Luciana Guarreschi*

Achei que o espaço era propício para dividir uma experiência e, quem sabe, nos servirmos dela. Há tempos tento fazer um cartel em minha cidade, sem, no entanto, obter sucesso. Sempre me perguntava se minhas investidas que eram insuficientes e/ou se os cartéis só são possíveis a partir daqueles que já teriam um bom percurso lacaniano. Pensava no momento histórico da criação do Cartel, nos interlocutores de Lacan, na virada política que ele promoveu, mas também na solução prática, já que era preciso dar continuidade a um agrupamento, mas não o mesmo da IPA. 48 anos depois, isso ainda é possível? Seus interlocutores eram... Bom, sabemos quem eram. Pode-se argumentar: mas não é de saber que se trata, pouco importa se eram sabichões, letrados e doutores. Será? Bom, não estamos em Paris, nem mesmo em São Paulo, mas em um lugar onde se acredita que o único meio de tornar-se psicanalista é passando pelas burocráticas formações oferecidas pelas instituições tradicionais e onde, sabe deus o que é Lacan! Então, no fim de 2012 tomei como tarefa, mais uma vez, talvez a quarta tentativa, montar um cartel. Mudei um pouco de estratégia. Se antes procurava montar um cartel para mim, desta vez anunciei o cartel como possibilidade de entrar em contato com Lacan. Tenho que admitir, fui um pouco marqueteira. Usando toda minha lista de contatos envolvidos com psicanálise, pouco mais de 180 pessoas, enviei, em 02/10, um e-mail com uma pequena explicação sobre o que era o cartel, e um texto, apresentado no Café Cartel de 2011, anexado. Recebi 3 ou 4 vagas respostas, tipo: tem que pagar? Quantas vezes por semana? Insisti, colei cartazes nas faculdades, telefonei, ninguém mais apareceu. Apelei! Mandei um segundo e-mail em 19/10, cujo título era “Reunião de apresentação sobre cartéis” e o conteúdo: “Convido a todos para uma pequena apresentação sobre Cartel. Alguns já mandaram temas. Outros têm mais dúvidas que respostas. Alguns pensam se conseguirão. Outros já acreditam que não. E você? Não quer nem saber como é? Aquele que tem ganas de estudar já tem lugar garantido e você que não sabe como começar também! O estudo da psicanálise não é sem envolvimento e trabalho. O cartel é um dispositivo feito para isso. Venha saber de seu funcionamento!” Incríveis 16 pessoas responderam afirmativamente *

Membro do Fórum SP


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para a apresentação. Destas, 8 apareceram na reunião. Todas com alguma entrada em Lacan. Alguma. Fiz a apresentação com um colega psicanalista, contanto um pouco sobre a história do cartel, que se mistura com a de Lacan, seu funcionamento etc. As pessoas se apresentaram e falaram um pouco de seus percursos ou da falta destes, bem como os temas que tinham interesse. E aí surgiu a primeira dificuldade, eram diversos demais. Como “agrupá-los”? Combinou-se então que eu enviaria uma pequena bibliografia sobre cartéis via e-mail, a qual eles poderiam acrescentar o que achassem em suas pesquisas pessoais, um deles o fez. E que nos encontraríamos dentro de um mês para discutirmos os textos. Neste meio tempo, outras pessoas procuraram por informações, respondi repassando a bibliografia e a data da próxima reunião. Em 24/11, tivemos 16 pessoas e, agrupando temas dentro do possível, saíram dali 3 cartéis. Um findou-se antes da escolha do mais-um, os outros 2 estão em funcionamento. Falarei daquele que faço parte. Em torno de questões sobre cultura, pulsão de morte, mal-estar, ética, sublimação e gozo começamos a trabalhar. Porém, ainda neste “pré-cartel”, 2 integrantes se retiraram via e-mail. E, em um encontro decisivo, seguimos ou não, alguém diz: E então? Éramos seis? Digo: e não é um bom nome “prum” cartel? E assim foi. A partir de um nome que já aponta algo descompletado, faltante, escolhemos uma leitura a seguir, o mais-um, datas, prazos e afins. E assim tem sido, como na antiga Feira do Rolo no centro da cidade, cada um comparece com o que tem: uma faca sem cabo, um balde furado, uma cadeira sem pé, um rádio que não toca e vai trocando por uma xícara sem asa, um chuveiro que não esquenta, um pente para careca... Sim, me parece possível. Ano que vem trago mais notícias!


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Café cartel ou... com fé, cartel? Patrizia Corsetto*

O que Luigi Pirandello e Jacques Lacan teriam em comum? “Manicômio, manicômio”! Na noite de 9 de maio de 1921, o Teatro Odescalchi de Roma veio abaixo gritando que o autor de Seis personagens à procura de um autor, Luigi Pirandello, deveria ser internado por apresentar uma peça absolutamente ininteligível para o espectador. Na peça de Luigi Pirandello, Seis personagens à procura de um autor, o ensaio é invadido por seis personagens que, rejeitadas por seu criador, tentam convencer o diretor da companhia a encenar suas vidas, mostrando que mereciam ter uma chance, deixando o diretor perturbado por ter seu ensaio interrompido, mas ao mesmo tempo seduzido pelo inusitado convite que o instiga a entrar no jogo e colocar-se em cena, tornando-se assim autor e “Mais Um”. A história de Pirandello começa com um ensaio. Mas, já de início, o estranhamento se coloca. A intenção de Pirandello, no entanto, era mais uma resposta ao simbolismo, ao qual ele se opunha como grande representante do realismo. O Real em jogo? E qual seria a aposta de Lacan, no ato de fundação da Escola Freudiana de Paris, em 1964, ao definir cartel como sendo “a condição de admissão na Escola”, e já de chofre, emendando um... “aposto tudo no dispositivo e muito pouco nas pessoas”. Premonição? Ou uma aposta, de que para que dê certo ao final, se é que dará certo, tem-se que primeiro experimentar o fracasso e o estranhamento, tal qual a plateia de Pirandello? Como entrar em cena e participar de uma experiência, de um ensaio, de um laboratório, de um grupo, que tal como nas peças de teatro e nas análises tem como finalidade o término, após uma duração que também já está posta desde o início? Como escolher as pessoas que farão parte deste grupo chamado cartel? Por afinidade e pelo interesse comum pelo tema? E o tal do Mais Um? Que já de cara carrega a insígnia de experiências anteriores (que supomos bem sucedidas), pelo suposto saber desse Outro muito maior que o nosso e, mais ainda, pela tendência de transformarmos o Mais Um, no grande Outro... Ainda que saibamos não tratar-se disso. O Mais Um, não é mais nem menos, é apenas o Mais Um. Outro dia, ouvi de uma amiga psicanalista, diga-se de passagem, lacaniana, durante um bate papo, que a questão do grupo é um verdadeiro obstáculo, mas não uma impossibilidade. Este bate papo, na verdade, era uma entrevista, posto que meu ofício é o jornalismo, na qual ela me responde com uma pergunta sobre a questão do papel da escola e da formação do analista: - “Costumo dizer que em uma instituição psicanalítica encontramos um maior número de neuróticos do que em qualquer outro lugar. Afinal, *

Participante das Formações Clínicas do FCL-­‐SP


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precisamos ser bem mais neuróticos para eleger esta prática, não acha?”. Confesso estar pensando numa resposta até agora. Mas, enfim, o que me traz aqui, paradoxalmente, é o fracasso. O cartel que jamais saiu do papel e que se transformou no tão temido produto final: um texto, no caso aqui, apenas um pequeno recorte. O tema do cartel que não aconteceu era, se não me engano, Surrealismo pela ótica de Lacan, Breton e Dalí. Depois virou Surrealismo e Psicanálise. Depois virou Arte e Psicanálise. Tudo isso, sem sequer nos termos reunido uma única vez. Apenas algumas trocas de e-mails. Depois de tanto esticar e empurrar, furar e reduzir... O que era surrealismo, se transformou em surreal...e não virou. Nem deu tempo de exercitar a condição de ser ímpar entre os pares. Fiquei tal qual as personagens de Pirandello em busca de um autor, em busca de um cartel! Referências LACAN, Jacques. “Ata de fundação da Escola Freudiana de Paris” (1964) Em: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012. Seis Personagens à Procura de um Autor, de Luigi Pirandello. Tradução de Brutus Pedreira. Disponível em http://www.encontrosdedramaturgia.com.br/wpcontent/uploads/2010/10/Pirandello-SEIS-PERSONAGENS-%C3%80-PROCURA-DEUM-AUTOR-Tradu%C3%A7%C3%A3o-Brutus-Pedreira-In%C3%ADcio-do-texto.pdf Cartel: uma aposta no dispositivo, de Silvana Pessoa. Disponível http://www.campolacanianosp.com.br/textos/cartel_uma_aposta_no_dispositivo.pdf

em

Entrevista da psicanalista Flavia http://lacaneando.com.br/flavia-albuquerque/

em

Albuquerque.

Disponível


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Mais um: eleição, escolha, imposição ou pura falta de opção? Leandro Alves Rodrigues dos Santos*

A comunicação aqui proposta origina-se de minha experiência pessoal, portanto diretamente ligada ao conjunto de encontros, desencontros, laços, formação e dissolução de grupos, tentativas e desistências, atravessando um percurso que já chega perto de duas décadas. No que diz respeito especificamente ao cartel, sempre me interroguei pela dificuldade de implantação dessa invenção criada por Lacan, mais ainda, da quase inexistência dessa modalidade de trabalho na região onde atuo; nos limites do Grande ABC, ao lado da cidade de São Paulo. Meu objetivo é justamente problematizar de forma rápida essa constatação, tomando como mote para avançar nas questões que julgo pertinentes quanto ao que subjaz à indicação de um nome como “mais-um”, até mesmo antes do contato propriamente dito. Afinal, antes dessa definição mais ou menos formal, os três, quatro ou cinco participantes de uma empreitada que se pretenda nomear como um cartel inevitavelmente tem de se defrontarem com essa dúvida: quem ocupa esse lugar delicado? Por que ocupa? Como ocupa? Sendo assim, pergunto-me se com isso não se favorece – ou ao menos se potencializa – o surgimento de algo análogo ao que Freud (1921, p. 170) denuncia em seu clássico texto acerca do funcionamento grupal, sobre a psicologia das massas, que rege certa lógica de laço. Ouçamo-lo: Ora, muito mais resta a ser examinado e descrito na morfologia dos grupos. Teremos de partir do fato verificado segundo o qual uma simples reunião de pessoas não constitui um grupo enquanto esses laços não se tiverem estabelecido nele; teremos, porém, de admitir que em qualquer reunião de pessoas a tendência a formar um grupo psicológico pode muito facilmente vir à tona.

A partir desse alerta freudiano, ou ainda, em outras palavras e dito de outra forma, podemos com segurança nos perguntar se, por trás de uma “eleição” de um nome para esse lugar, não há o risco de surgimento de algum tipo de subordinação a uma instância maior (concreta ou imaginária), ou seja, o “mais um” advir necessariamente de um grupo ou *

Membro IF-­‐EPFCL-­‐ Fórum SP


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instituição, com o obvio e consequente risco dos efeitos de idealização, de uma verticalização nociva, fenômeno que considero ocorrer com relativa frequência na já citada região do Grande ABC. Fica então a pergunta; como minimizar esse risco e manter certa condição mínima de iniciação de um processo sabidamente complexo que é fazer surgir e funcionar um cartel, como proposto por Lacan, trata-se apenas de um ideal?

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA: FREUD, S. (1921). Psicologia de grupo e análise do ego. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 18, p. 91-184).


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Sobre o mais-um, um menos-um que me abre as portas e faz cair para o alto. Tatiana Assadi* Para colocar em palavras, ou como disse Fernando Pessoa, para reduzir as ideias em palavras escritas, escolhi chamar aos meus sentidos uma das poesias de François Cheng que mais me toca. Aqui a transcrevo: "O pássaro marca nenhuma Deixa. Pois sua marca é Seu proprio voo. Nenhum traço A não ser o instante lugar, Alegria do puro advento: Lugar duas asas que se abrem, Instante um coração que bate." Poderia acabar minha fala neste instante com a frase: É isso! É isso que esta função de mais-um me convoca, ao instante, ao lugar, ao coração, à experiência. Mas talvez meus esforços de reduzir não sejam tão precisos e belos como este poema. Então me esforçarei para brincando com o duplo canto de Cheng, mostrar- lhes como tem sido esta função. Frase 1- "O pássaro marca nenhuma Deixa." E foi assim que uma a uma, sim, nosso cartel é composto por mulheres, ao menos é esta nossa aposta, uma a uma foi se unindo em torno de um passo para a constituição de um cartel. Fui abraçada pelo tema : Seminário livro 17- O avesso da psicanálise. Aos 17 foi minha primeira experiência com um texto de psicanálise Lacaniana. 17 no 17 - que repetição! Se fosse uma boa jogadora apostaria no Bicho, se fosse astróloga correria para *

Membro da IF-­‐EPFCL-­‐ Fórum SP


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os números, mas como escolhi a psicanálise tomei meu desejo aos 17 e o recuperei aos...... Bem, alguns poucos 17 a mais. 17 nos 17 aos mais que 17 com a função de + 1. Lindo tema de lógica, eu pensei, mas eu preciso mesmo é fazer poesia, poatizar esta escolha. O que faz um mais-um? De imediato respondi: função de menos-um, de um a mais, de um a menos, de um qualquer, de um a um. A função marca e se retira, deixa algo que é sempre da ordem do vazio, ou mesmo do nenhum- marca nenhuma deixa. Comecei por ai ao toque do canto chinês. Frase 2- "Pois sua marca é seu próprio vôo". Como assim? Ao ocupar esta função me questionei como fazê-la, como dela me apropriar, já que tinha aceito o convite. Também logo respondi sem vacilar: com o meu estilo, com a minha marca, com o meu percurso. Nesta experiência me marquei e me marco com o meu vôo, mas não sem escutar os outros vôos e não sem cuidar de cada salto, cada pouso, cada desvio de percurso. Frase 3- "... Nenhum traço A nao ser o instante lugar, Alegria do puro advento: Lugar duas asas que se abrem," Foi e tem sido assim que tenho concebido esta função do mais-um. Função estabelecida e capturada num instante-lugar que busca um traço de cada uma que escreve, que fala, que pronuncia seu percurso de leitura, de sua clinica, de sua experiência. Ali, bem ali, como um salto para o alto um traço pode ser escutado e precisa ser relançado para que naquele lugar possa haver alguma produção. Ali duas asas se abrem e um texto escapa pela voz de uma cartelizante. Frase 4- "Instante um coração que bate." Neste instante, como em um giro mágico, aquilo que vinha sendo amarrado nas leituras, enodado nas considerações é precipitado e algo é causado. Que algo? Algo que escapa ao


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conhecimento e é endereçado ao não saber que põe cada uma, uma a uma das cinco participantes do cartel, uma a uma, uma menos uma, uma mais uma, a se deslocar do 17, Seminário e ir para os seus 17,20,25,32... A função de mais-um me faz trabalhar em um instante, e mais um, e mais um. Difícil, mas assim eu caio para o alto. Estar nesta função neste instante-lugar, neste tempo e neste espaço tem me causado em uma produção diferente das que ocupei até então neste percurso psicanalítico. É preciso vacilar a adição "+" para ser qualquer um, sem ser apenas nenhum e escutar a produção de um a um, de uma a uma. Mais-um não é para mim uma função qualquer, mas tem sido uma função num instante-lugar. Um coração que bate, então eu agradeço ao dispositivo do Cartel, e agradeço uma a uma -Cibele, Dani, Ingrid e Marina. Obrigada por esta experiência.


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Nós! Daniela Lara di Ribeiro

"Vamos. Reúnam-se vários, grudem-se o tempo necessário para fazer alguma coisa, e depois se dissolvam para fazer outra coisa ..." (Lacan, Senhor A, 1980).

Ouvia as pessoas repetirem essa fala de Lacan, sem saber muito bem o significava de fato essa proposição. Conhecia a proposta do Lacan sobre o Cartel, havia tido uma experiência que denominaram cartel, mas nem de longe era disso que se tratava! Era mais um grupo de estudo, que logo se dissolveu. Outros tantos grupos vieram e não se sustentavam, sempre terminavam e novas questões, inquietações eram suscitadas. Diante disso, junto com colegas de trabalho, surgiu a pergunta: Por que não fazemos um cartel? Eu pensava calada: será que isso funciona? Aliás, como será que isso funciona? Tá legal, vamos lá então! E lá fomos nós! Entre alguns encontros, leituras sobre funcionamento do cartel, conversa com o futuro mais um...Cartel montado, agendas organizadas, questões declaradas. Hora de começar desatar os "nós"! Fui me dando conta que apesar de um grupo formado, ali era cada um, cada um com um jeito de trabalhar, de escrever e com sua questão. Esse "nós" foi virando eu, com as minhas inquietudes e angustias, porem sem nunca deixar de ser "nós", nós de cordas que guiam, como um fio condutor, que se entrelaçam entre si, que afrouxam, que se amarram, que desaparecem e no fim viram uma produção. Pode ser apenas um emaranhado de fios ou fios teados de forma organizada, mas uma produção construída por vários fios, fornecidos por cada um de "nós", mas produzidas por um só. E se enganam os que pensam que os nós acabam...restam linhas, com nós, prontos para serem desatados, descontraídos, reforçados, aprimorados! ∗

Participante de Formações Clinicas do FCL-­‐SP


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Bibliografia: LACAN, Jacques. “Senhor A”. (1980). Revista da Letra Freudiana. Escola, psicanálise e transmissão: documentos para uma Escola. Op.cit.


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Alguns passos na constituição do cartel Paul Kardous*

Data de constituição do cartel: 25 de Setembro de 2012 Mais Um: Paul Kardous Tema de estudo: Analisar, desejar e gozar.

1. Adriana Rauci Seabra Tema Individual: O desejo, o Outro e os outros. 2. Claudia Barbosa Bocci Tema Individual: Como se articula o desejo com o gozo. 3. Maria Angélica de Souza Dias Gerassi Tema Individual: A posição do analista: desejo e gozo. 4. Nilza de Almeida Camilli Tema Individual: Pulsão de Morte. 5. Paul Kardous Tema Individual: O erotismo.

Cartel Papal Papa nomeia comissão de inquérito para o Banco do Vaticano Integrantes responderão diretamente a Francisco

Publicado: 26/06/13 - 13h40 Mary Ann Glendon, em 2008, quando ainda era embaixadora dos EUA no Vaticano: a única mulher na comissão para o IOR *

Membro do Fórum SP


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CIDADE DO VATICANO - O Papa Francisco nomeou nesta quarta-feira uma comissão especial de inquérito para investigar as atividades do Banco do Vaticano, que já se viu envolvido em escândalos de denúncias de lavagem de dinheiro. Esta é a principal medida de Francisco, desde que iniciou seu Pontificado em Março, para lidar com uma instituição que tem causado constrangimentos à Igreja Católica há décadas. A poderosa comissão de cinco membros inclui quatro prelados e uma mulher, uma professora de Direito da Universidade de Harvard. Ela é composta por dois cardeais - um francês e um italiano -, por um bispo espanhol, por um monsenhor americano e por Mary Ann Glendon, presidente da Academia Pontifícia de Ciências Sociais e ex-embaixadora dos EUA no Vaticano. Os cinco membros responderão diretamente ao Papa, driblando a burocracia da Santa Sé. O Instituto de Obras da Religião (IOR), como o banco é formalmente conhecido, tem sido frequentemente acusado de falta de transparência. De acordo com a Santa Fé, a comissão, estabelecida por um decreto pessoal do Papa, permitirá que Francisco acompanhe melhor as atividades do banco. Já a comissão vai investigar a estrutura legal da instituição e suas atividades. Ela é anunciada no momento em que um alto funcionário do Vaticano é suspeito de lavagem de dinheiro. Alguns passos na constituição do cartel Fui sondado por um dos quatro participantes deste cartel para saber se eu tinha o interesse de participar como Mais Um de um cartel que estava se montando para estudar o gozo e o desejo. Como venho trabalhando estas questões achei interessante de ouvir mais a proposta de trabalho dos participantes. Assim, sugeri que nos reuníssemos com a intenção de que cada um pudesse falar sobre seu interesse e daí, só num segundo tempo, analisarmos a possibilidade de tentarmos fazer um cartel. Depois de alguns encontros ficou claro que havia uma transferência entre todos nós e um interesse de estudarmos juntos para elaborarmos tais questões. Entramos numa segunda etapa dos encontros preliminares que teve como objetivo firmar os encontros, os textos e o enquadramento da estrutura do cartel. Firmou-se que nossos


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encontros se darão semanalmente com duração de uma hora e meia e que se alguém faltar será automaticamente suspenso o encontro, caso alguém desistisse do cartel o mesmo será desfeito e, que iremos trabalhar juntos durante dois anos com intervalos para férias e feriados. Seguindo a orientação ideal de Lacan, o cartel se compôs por quatro pessoas mais uma, totalizando cinco, que é o máximo para que não se torne uma massa. Nesta segunda etapa tivemos de lidar com uma crise inicial causada pela angustia frente ao engajamento de cada um que foi manifestada por uma das participantes que foi a porta voz e, que teve a coragem de falar de sua angústia. Fiz uma intervenção a respeito de assumirmos o nosso desejo que reverteu uma possível dissolução e ao mesmo tempo situaram os lugares e tempos de cada um frente a esta fase inicial da empreitada. Podíamos apostar que uma decolagem estava sendo feita, decolar, não colar, agem de agir com coragem e liberdade com os limites da determinação da linguagem e a indeterminação de lalíngua. Posteriormente passamos a pensar no tema do cartel e nos temas de cada um. Depois de uma rodada misturada de leituras de textos dos Escritos diversas ideias vieram, mas como notei que não tinha um tema que retratasse algo de singular do cartel então fiz intervenções com a intensão de provocar a todos o desejo de procurarmos um tema que exprimisse o nosso interesse “comum”. Acreditamos que chegamos bem próximo do nosso interesse em comum quando definimos o tema: “Analisar, desejar e gozar”. Após isto feito os temas de cada um foram ganhando forma e conteúdo até a sua definição. No meu caso decantou o tema do “Erotismo”.


24 Formação e dissolução de cartel

Carlos Eduardo Frazão Meirelles*

Venho comentar uma questão relativa à constituição e dissolução de cartel. Fui convidado a ser +1 de um cartel sobre O Seminário 11 (LACAN, 1964/1998), quando estava a procura de operadores para distinguir o que é estrutural da psicanálise e o que lhe é exterior, e considerei um caminho na distinção entre alienação e separação constituinte do sujeito (Id., Ibid., p. 193-217), da alienação social e separação pela crítica da ideologia. Nos encontros iniciais, além da freqüência e da participação, a experiência de sair da reunião diferente do que se entrou, cada um trazendo o que sabe, o que soube do texto, pelo retorno do Outro avançando além do que cada um poderia sozinho, inevitavelmente chegando a algo que não se sabe. Então o cartel foi declarado, 4+1. Depois, um dos componentes escreveu para o Café Cartel do ano passado, Adriana Marino, e o conceito de tiquê (Id., Ibid., p. 55-65) me serviu em um estudo da Ética de Spinoza. Um cartel em funcionamento. Contudo, nesse momento já procurávamos a Comissão de Cartéis do ano passado. Uma das colegas ficara bastante ausente após a declaração, com uma participação ou outra apenas, surgindo, ainda, então, um impedimento mais significativo de horários, por questões profissionais. Após alguns esforços variados de todos, sem sucesso, não houve como não reconhecer que não estava. Saiu oficialmente, -1, e a dissolução foi mencionada. Todos acompanhavam a questão borromeana de que rompido um dos elos todos se soltam, surgindo considerações sobre o quanto o ato de um implica a todos os outros. Alternativas foram pensadas, mas manifestaram, um a um, que no limite simplesmente iriam continuar indo para lá, ligado ao Fórum ou não, continuar o que vinham fazendo até o fim do que se propuseram. Não seria eu a fazer resistência a um trabalho que de fato estava ocorrendo. Muito ajuda quem não atrapalha. Até porque eu também queria continuar a estudar com eles. Causou estranhamento, a mim e a outros, a hipótese de eventualmente esse estudo ficar fora do laço com o Fórum. Diante deste desejo espontâneo e decidido, com o que já vinha se desenvolvendo, após interlocução com a Comissão de Cartéis atual, decidimos pela dissolução do cartel, por um componente ter saído, e a declaração de outro, este que de fato se constituiu, 3+1. *

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25 Referências Bibliográficas LACAN, J. (1964) O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. 269 p.


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Não é isso, pois algo acon-tece Cibele Barbará*

Algumas vezes ouvi colegas dizerem que ler um texto sobre psicanálise fora de um dispositivo de cartel é como se nunca o tivessem lido. Este comentário é curioso e devo dizer que em parte concordo. Não é que não seja possível a construção de um saber ou apreender um texto de outra forma. Não é isso. É que de fato parece que em um cartel algo acontece. Frequentemente temos que nos haver com as impossibilidades, disponibilidades das agendas e em geral, quando achamos que agora vai, que aquele horário fica... Algo sempre acontece e temos que entre tantos compromissos apostar mais uma vez. De partida declaramos nossas questões de pesquisa. Fio condutor, que ramifica, desdobra, muda sem se fechar. Podemos até segurar obsessivamente o fio da questão, mas em geral a questão anda, passa. Sim, claro. Algo fica. Mas daquilo que tentou concluir descobre-se certamente que não era bem isso! Organizamos, combinamos o modo de trabalho. Dividimos capítulos, apresentações, responsabilidades e na hora H é de outro modo que acontece. Porque não é isso. Sozinhos, preparamos a leitura: Pesquisamos, esquematizamos, ligamos, desligamos. “Eurecamos”, diga-se de passagem, com muito suor e dificuldade. Para que ali no cartel descubramos que: não é isso é um pouco disso, mas também é aquilo. Passamos longos meses debruçados nos seminários, acompanhando as inúmeras retomadas, recolocações e separações de termos, conceitos, traduções, sentidos, para que logo na sequencia o próprio Lacan fale: tudo isso, para dizer que não é isso, ou que não existe e/ou simplesmente que ex-siste. Assim, penso que em um dispositivo de cartel no afã de encontros, nos deparamos com desencontros e nisso uma experiência. Não quero dizer que em um dispositivo de cartel um saber não se construa. Não é isso! É que algo acontece, tece, um fazer se apreende. Como *

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diz Gilberto Gil* (2013), ora como linho, ora como linha, ora como agulha, ora como nó, como um vazio, com ponto e final. Uma trama... que “destrama”. Isso me faz lembrar a preciosa frase de Lacan (1972, p.59) do seminário 19: “Eu te peço, para recusar-me, o que te ofereço - porquê: não é isso”. Referências bibliográficas GIL. G. Disponível em: < http://www.gilbertogil.com.br/sec_musica.php>. Acesso em: 01 de maio de 2013. LACAN, J. (1971-1972) Seminário 19 ...ou pior. Salvador: Espaço Moebius Psicanálise, publicação interna da Associação Freudiana Internacional.

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Inspirado na música de Gilberto Gil -­‐ A linha e o linho


28 O Cartel e o Discurso do Analista Samantha A. Steinberg* No seminário entitulado D’Écolage, não por acaso, pois se tratou de um trabalho de dissolução, na sua aula de 4 de março de 1980, Lacan se dirigiu aos que não estavam na sua Escola como talvez não intoxicados, para lançar a Causa Freudiana. Não intoxicados pelo que? Pela teoria? Dirigiu-se a eles para restaurar o órgão de base da sua Escola, o cartel. Neste momento procura afinar a formalização do cartel, a partir da experiência. Conclui dizendo que a Causa Freudiana não seria mais uma Escola, mas sim um Campo, onde cada um teria a via livre para demonstrar o que faz com o saber que a experiência decanta” (LACAN, 1980, p.51). Resgato este dizer: O que fazemos com o saber que a experiência decanta? Será que o cartel não seria o lugar privilegiado para fazermos um trabalho com este saber? Em outubro do mesmo ano, na sua carta para a Causa Freudiana, Lacan nos diz que o Cartel funciona, basta não colocarmos obstáculos. O que é preciso para um cartel funcionar, quais são suas invariantes? E o que pode lhe fazer obstáculo? São estas questões que pretendo rearticular com vocês neste espaço tão rico, criado especialmente para estas elaborações. Gostaria aqui de propor um pequeno deslocamento de matema: dos nós, usualmente utilizados para formalizar estas invariáveis, para o discurso do analista. Parto da hipótese que os lugares e letras articulados ao discurso do analista podem nos ensinar e que, talvez, ganhemos em precisão para formalizar a estrutura do cartel. Revisitemos alguns dos nossos pressupostos.

1. Sobre o número de integrantes. Precisamos ter um número mínimo de 3, mais 1, integrantes para um cartel. Esta estrutura quaternário, sabemos, é importante para Lacan desde o início do seu ensino. No entanto, levanto um problema. Será que não coincidimos este número com os indivíduos? Não seria mais rico se pensássemos este número a partir da lógica? Afinal de contas, o sujeito barrado só pode ser pensando logicamente, não podemos encarná-lo no ser vivente. Se pudermos repensar esta articulação, a estrutura do cartel poderia ser ampliada.

Talvez o número de integrantes num cartel poderia ser

pensado como os enlaçados em determinada questão, num determinado tempo e espaço. Um ótimo campo para testarmos esta possibilidade são as nossas redes de pesquisa e

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módulos de transmissão. Quem são os participantes do cartel, os oficialmente nomeados, ou todos aqueles que se enlaçaram na questão num determinado momento? 2. Tempo pré-fixado. O cartel deve terminar, deve haver uma permutação. Lacan assim propõe para prevenir os efeitos de cola, grude, os efeitos de grupo. Também poderíamos articular esta necessidade com o furo do saber no lugar da verdade. Se não podemos por estrutura alcançar uma verdade, se a verdade é sempre um semi-dizer, o tempo pré-fixado tem a função de um ponto de basta para o cartel. Ele barra um gozo que tende a se fundir ao saber e à verdade. Um gozo que levaria o cartel ao infinito em busca de uma verdade do objeto e de um saber sempre a completar. 3. Cada integrante deve ter uma questão. A questão é essencial no cartel, uma questão do grupo e uma questão de cada um. Me parece que só podemos articular uma questão se estivermos como sujeitos barrados. Não é assim se entra em análise, formulando uma questão sobre o desejo do Outro e o próprio? Pude me dar conta que os integrantes do cartel estão, pela referência lógica, sempre como sujeito barrados, inclusive o Mais-Um. Mas qual seria então a especificidade da função do Mais Um, poderíamos nos perguntar? A função do Mais Um não deixa de ser fundamental para que um cartel ocorra. É ele que deve subverter as relações com o saber e manobrá-lo, se necessário. Ele deve desbancar o saber do mestre ou universitário. Se o mais um vacila nesta função, se veste com o uniforme do saber, o cartel estará fadado ao insucesso. Ele institui que todas as perguntas são cabíveis, das mais bestas às mais subversivas. Talvez esta poderia ser a regra fundamental do cartel... Relato uma experiência interessante que tive ao iniciar um cartel de topologia. No primeiro encontro, em que nos dirigíamos ao mais um escolhido, este diz: “Só quero falar um coisa pra vocês, eu não sei NADA de topologia, serei só mais um aqui, mais um mesmo...! ” O que houve aqui? Uma manobra nesta relação com o saber de saída provocada pelo Mais Um.

Outro elemento que gostaria de articular com vocês é o agente do discurso do analista na sua relação com o cartel. Proponho pensarmos que o objeto a, causa de desejo, talvez se articule ao desejo de trabalhar, se debruçar sobre uma questão. Talvez também possamos articulá-lo à experiência, ao vazio, que se impõe pelo saber da impotência, determinado pelo saber no lugar da verdade do discurso do analista.


30 E o Real? O Real se coloca de saída nos discursos pois, como nos disse tão bem Michel Bousseyroux na sua vinda ao Brasil, o Real limita a verdade. A verdade, como Simbólico, já está impossibilitada, inacessível por estrutura pela barreira do Real. E o saber, ao habitar este lugar no discurso do analista, só pode ser da ordem de um furo. Enfim, articulo, não sem a experiência, que todos os integrantes do cartel poderiam ser pensados como sujeitos barrados, inclusive o Mais Um.

O Mais Um, que pode rodiziar entre os

integrantes, que pode ser qualquer um, seria só mais um na maior parte do tempo, mas possuiria uma função clara nos momentos em que o saber se perde, caminha para outro discurso. O Mais Um nesta hora o puxa pela mão e o conduz de novo ao seu lugar no discurso do analista, ao lugar da verdade não toda. Afinal de contas, o Discurso Analítico é o único discurso que convém ao nosso Campo.

Referências bibliográficas:

Revista Letra Freudiana- Escola, Psicanálise e Transmissão- Ano 1- No 0- Documentos para um Escola- para circulação interna LACAN, J. (1980-1981) El seminário, libro XXVII: Disolución: Carta para la Causa Freudiana. Escansion 1 (nueva serie) Ornicar? 22/23. LACAN, J. (1969-1970) O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.


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Cartel como decisão Glaucia Nagem*

“Vamos. Reúnam-se vários, grudem-se o tempo necessário para fazer alguma coisa, e depois dissolvam-se para fazer outra coisa”(LACAN, 1980).

Como um dispositivo de Escola o cartel coloca de saída o rompimento como base. Cartel, um montinho de gente, sem um líder, cada um trabalhando um tema próprio apesar de ter um nortea-dor. Ideal de uma Escola que apesar de ter sido proposta no início dos anos 60 se mostra atual a cada vez que nos juntamos para trabalhar em cartel. Poderia ficar algo ‘demodé’ mas o que ele traz é sempre uma decisão. Parece que cada vez mais é do desejo decidido que o cartel nos dá notícias. Algo que só se faz possível quando um sujeito é posto a trabalhar em sua divisão, às voltas com o que é da castração. Nisso o final da análise, se uma análise chegar até ai, nos mostra que a castração está para cada um dos que nos rodeiam, impedindo que façamos um todo, um bolo. Pois quando estamos andando em massa desnorteada nos tornamos rebanho, direto para o matadouro. As últimas manifestações nos fazem pensar nisso: a massa norteada e a massa desnorteada. Vimos às claras e depois de tudo, o que se pode avançar é a necessidade de que não se perder a direção. Mas qual direção se trata lá e cá? E como não perder a direção? Talvez voltando aos princípios. No caso do cartel, qual o seu princípio? A Escola. E por que falamos disso anualmente neste encontro Naccional? Lemos na carta da IF-EPFCL: “Esses fóruns não são Escola e *

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não outorgam nenhuma garantia analítica ... mas campo ... (mas) terá sua Escola (238)”. Que história é essa afinal? Bem, lemos ainda: “O objetivo principal dos fóruns ... se desdobra em 3 eixos: a crítica, a articulação com os outros discursos, a polarização em direção a uma Escola de psicanálise.”(idem) Pois bem, fiquemos no terceiro item pois é sobre ele que recai a questão do cartel. “Os fóruns não deixam de ser orientados rumo à Escola de onde tomam seu sentido, pois é a Escola que se dedica a cultivar o discurso analítico. A experiência prova que esse discurso, sempre ameaçado pelo recalque, pela tendência a se perder e a se fundir no discurso comum, está à mercê das contingências do ato”(...)”Os fóruns não são Escola, mas eles participam da manutenção desses objetivos da Escola. Eles se dão como objetivo preparar um retorno à Escola que Lacan quis, no contexto das necessidades de nosso tempo”(idem). Com isso me respondi, nessa dúvida recorrente: por que fazer cartéis no fórum? Lembro finalmente (valha me Deus o recalque!) que os cartéis são inscritos na Escola. E esta Escola que coisa estranha: sem sede, sem diretoria, sem nada; parece a poesia de criança: era uma Escola muito engraçada não tinha sede não tinha nada, ninguém podia mandar nela não, por que a Escola não tinha dono, ninguém podia deitar na rede, por que na Escola não tinha parede, ninguém podia fazer pipi porque ouvido não é pinico, mas ela é feita com muito esmero na rua dos tolos número 0. Sim, esparsos disparatados esses tolos que se grudam por um tempo e se desgrudam. Grudam por um tempo pois não pensam iguais, não se vestem igual, não falam igual. É difícil com-viver com o diferente. Mas é principalmente nisso que uma análise opera, não? No fim, contamos-nos um a um. Que trabalho! A ilusão é pensar que se nos contarmos todos seria mais fácil. A pergunta é: mais fácil para quem? Ah, quando não nos contamos de um em um rapidamente surge Um (letra maiúscula) para nos contar à revelia. E disso


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temos notícias na história do movimento psicanalítico. Nos livraremos disso para sempre, de Uma vez por todas? Lamento em informar para aqueles que chegam por agora que não. Dá um trabalhão se contar um a um. Não é a revolução tão almejada, mas a subversão que faz um sujeito. Finalmente, cito mais um pedacinho da carta de princípios: “Em todo lugar onde houver dispositivos de Escola, a intitulação do conjunto Fórum-Escola passa a ser Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano de X. Ora bolas, estamos aqui falando dos cartéis e eu de tolinha falando de Escola! Ah: um não é sem o outro! Bibliografia Lacan, Jacques. Senhor A., in Revista n°0 – Documentos para uma Escola – Letra Freudiana – Circulação interna. Carta da IF-EPFCL – julho de 2006 – in catálogo 2006-2008 da IF-EPFCL.


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Transmissão finita e infinita Conrado Ramos* A fantasia nos serve de anteparo ao real do mesmo modo que a teoria nos serve de anteparo à nossa experiência com o real. A teoria psicanalítica, assim, tem parentesco com a fantasia. Se uma análise pode terminar com a travessia da fantasia, o mesmo não acontece com a teoria, cujo atravessamento é interminável e não nos permite sair da posição de analisantes (JORGE, s.d.). Um saber que se mostre finito e terminado exclui o real e só serve como signo de garantia da autorização de seu portador. Um saber que inclui o real, por sua vez, só pode ser um saber furado, saber que não serve de representante da garantia, mas que põe cada analista, desde o lugar de analisante, a construir a fantasia teórica de sua experiência com o real. A verdade da teoria não é menos mentirosa que a do neurótico. Acreditar na verdade da teoria é fazer dela um discours courant que só serve como fiador imaginário da autorização do analista. Buscar, porém, a verdade que se pode transmitir pela mentira da teoria, verdade que se situa “por supor o que do real faz função no saber” (LACAN, 1970/2003, p.443), faz do autorizar-se a reta infinita da construção teórica. O trabalho de analisante que advém analista termina no divã para continuar interminável na transmissão. De um lugar ao outro, o autorizar-se não é uma conquista do real, mas um deixar-se causar por ele. Há, portanto, duas posições: aquela pela qual a teorização autoriza alguém e aquela pela qual alguém se autoriza à teorização. Se a primeira pressupõe uma volta final, a segunda posição é aquela que implica o “mais uma volta”... Em suma, a autorização está, antes, na debilidade mental que o real implica, do que no douto saber que o tampona dogmaticamente. E o cartel? Pois bem, juntar quatro a seis pessoas, dispostas a interrogar a experiência do real, colocá-las a debater, a furar seus saberes, a furar a teoria construída, a tentar reconstruí-la, a tentar atravessá-la, a buscar tampões ou respostas últimas, a tentar fazer signos de garantia, a produzir saber que possa servir de qualificação ou de fiador, a procurar onde está o conhecimento final e garantido, a desfilar os “não entendo mais nada” *

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ou os “isso não faz mais sentido”, a dizer besteira como quem se acha sábio ou a produzir um achado inesperadamente, a julgar numa semana que se concluiu tudo para sentir que se está começando do zero na semana seguinte, a achar sempre que a resposta está no próximo encontro, a se perguntar “o que é psicanálise?” ou “o que faz um psicanalista?”... Não é por essas vias tortas que a debilidade mental que o real implica vem colocar em questão os saberes doutos que transformam a psicanálise em religião? Se um cartel pode ser um dispositivo furado, furo em torno do qual se pode dar sempre uma volta a mais, então ele se articula com a transmissão infinita. Mas se ele não puder ser um dispositivo furado, se dele se fizer transmissão finita, então ele vira colação de grau, ou melhor: colagem de grau. Vira garantia de qualificação. É somente quando um cartel descola o grau de seus participantes que ele atinge o grau de Escola. Não se trata, de modo algum, da apologia da ignorância. Não se trata, em nenhuma hipótese, da negação do conhecimento. Trata-se de não deixar de lidar com os limites da teoria possível a uma clínica que se apresenta como um “real enquanto ele é impossível de suportar” (LACAN, 1977/1992, p. 7) e para o qual, a bem dizer, alguns se autorizam, mas ninguém se qualifica. Enfim, o real que, numa análise, nos vem de modo rébus-cado no sonho, fora dela é o rebuscado da teoria, um artifício que não cessa de dar voltas em torno do que não se sutura. A “mais uma volta” que um cartel produz é, portanto, o que sustenta o antidogmatismo em uma Escola e o que coloca o autorizar-se como um ato que não se conclui e que faz da transmissão infinita o toro pelo qual se tenta cingir o real da experiência com o inconsciente. Cuidado: não estou a dizer que quem faz cartel é analista e quem não faz, não é. Estou a dizer que o cartel é um dispositivo que permite romper com esta lógica da qualificação/desqualificação, tão pouco apropriada ao princípio de que o psicanalista se autoriza de si mesmo. Junho de 2013. REFERÊNCIAS


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JORGE, M.A.C. A travessia da teoria: como ensinar aquilo que a psicanálise nos ensina? S.d.

Disponível

em:

<

http://www.fundamentalpsychopathology.org/uploads/files/ii_congresso_internacional/mes as_redondas/ii_con._a_travessia_da_teoria.pdf >. Acesso em: 05 de jul. de 2013. LACAN, J. (1970). Radiofonia. In: LACAN, J. Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 400-447. LACAN, J. (1977). Abertura da sessão clínica. Traço. Recife: Traço Freudiano Veredas Lacanianas Escola de Psicanálise. Ano 1, n. 0, set./out. 1992, p. 1-11. Disponível em: < http://www.campopsicanalitico.com.br/biblioteca/lacan%20abertura%20da%20se%C3%A 7%C3%A3o%20clinica.pdf >. Acesso em: 05 de jul. de 2013.


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O necessário e o contingente no cartel Welson Barbato

As propriedades das operações inerentes ao Cartel e seus efeitos lógicos giram em torno do saber e de sua vocação metonímica. O dispositivo é sustentado no campo transferencial epistêmico que, por qualidade estrutural, supõe um saber já instituído que se modaliza simultaneamente como esteio peculiar da transferência e também como seu agente invertido e dialético que, sob determinadas condições, permitirá sua interpretação. A materialização desse enunciado exige a imprescindível escansão da sinonímia - clássica em nossa práxis - entre o desejo de saber e a demanda de conhecer ou de trivialmente reproduzir. O relevante é que tais demandas conformam algo do retorno da própria constituição neurótica que, grosso modo, estabelece e legitima - a partir do ordinário da estrutura - posições discursivas universalistas, logo, não condicionadas (LACAN, 196970). Esses efeitos discursivos se alicerçam nos ditos supostos do saber/do desejo/do gozo do Outro, em detrimento dos dizeres e das consequências de sujeito. Sabemos que o Cartel não se restringe e nem se define como palco de ensino, onde uma doutrina ou um método são aprendidos para linearmente serem empregados. Isso formataria perigosamente a clínica analítica (e sua transmissão) como mera teoria aplicada, carente, portanto, de formalizações, de particularidades de estilo e de possíveis e benvindos ineditismos políticos. Em suma, a falha e as inconsistências falhariam. Se a demanda universalista é estrutural, pois se manifesta como semblante de evitação de descontinuidades, a metodologia do Cartel convidaria a uma queda nesse gênero de saber, representada ou autorizada, por exemplo, na indagação contida no voto de cada cartelizante. A priori, a pergunta de cada um produziria uma abertura no tema do Cartel, tema este que se dispõe como um discurso anterior, necessariamente (pré) estabelecido no domínio da psicanálise. No entanto, a experiência analítica revela que a indagação em si mesma não basta para contingenciar e transitivar um dito. O primeiro tempo da interpretação - além da interrogação - comporta um segundo momento essencial: a implicação ou retificação subjetiva no tocante a um "texto vigente" (LACAN, 1958). Na aproximação alegórica da clínica com o Cartel, a ausência desse cálculo facilitará que na pesquisa e no estudo imanentes ao dispositivo, o contingente seja tomado como necessário, ou o relativo tomado como absoluto (GAUFEY, 2007). O resultado dessa falsa coalizão


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restringe qualquer produção ao paradigma nominativo e compromete eventuais sinais de particularidade. A retificação a um saber tomado como certeza, se assim posso dizer, inclui a passagem das inflexões das vozes verbais (passiva > ativa > reflexiva), e é causa e efeito de uma torção fundamental que se torna instrumento de transcendência da vivência do cartelizante no bojo da psicanálise. Essa transcendência, em tese, possibilita a transmutação de vivências em experiências, autenticando algo de transmissível e do possível da autoria - sempre diminuta, já que inevitavelmente todo discurso emana de um antecedente. O termo transcendência aqui deve ser lido no sentido filosófico, onde a "coisa" existente e pensada nunca se submeterá à apreensão plena, o que não é pouco. Retomando. A torção tem duplo vetor: o primeiro se origina na “experiência analisante” e deriva para o lugar de analista; o segundo parte deste último e reenvia indagações e recortes ao campo analítico, reiniciando o ciclo. Daí o Cartel e a particularidade de seu produto. Esse produto escrito questiona a linguagem e não coincide com ela, pois introduz algo da lógica. Tal manobra, de cunho dialético, criará buracos semânticos que favorecem o caminho para a topologia. Cabe, então, discutir nisso a arte e o refinamento tático e estratégico do mais-um no convite sem garantias ao "desuniverso" (LACAN, 1971), em contradição aos preceitos nominalistas. Temos, assim, a escansão entre o necessário e o contingente que, quiçá, dará margens a uma topologia de Cartel.

Referências Bibliográficas:

GAUFEY, G.L. (2007) El Notodo de Lacan, Consistencia lógica, consecuencias clínicas. Traducción Silvio Mattoni. Buenos Aires: Teoría y ensayo, 2007. p. 41-43 LACAN, J. (1958) A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: LACAN, J. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. 604. p. LACAN, J. (1969-70) O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Tradução de Ari Roitman. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. p. 18-21


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LACAN, J. (1971) O seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. 12 p.


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Texto inaugural sobre uma experiência inaugural (como cartelizante) Clarissa Carvalho Fongaro Nars* Quando comecei a produzir esse pequeno texto, havia um recente eco de uma quinta-feira bastante violenta em SP (13/06/2103). Mal conseguia concentrar-me: tomava conta de mim um sentimento de completa indignação, somado a um desejo de mudança e de que é preciso (mais do que nunca) “se posicionar e mudar”. Não pude evitar a livre associação: este desejo de mudança me fez lembrar do último encontro (ocorrido ainda no mês de Junho), do primeiro cartel que participei. Neste encontro, minha sensação era de pesar. Logo comecei a falar sobre isso com as colegas e justamente o que eu dizia é que havia percebido a importância de “me posicionar e mudar”. Algo que senti como um avanço em minha formação! Explico: um pouco antes do início do cartel, eu havia passado por uma experiência de um grupo de estudos que fracassara e saí daquele grupo com a sensação de que era hora de mudar. Mudar de dispositivo e assumir aquilo que, até então, me parecia temeroso e distante: o Cartel (com uma questão própria e ao final, a produção de um texto). Lembro-me da minha angústia: teria que criar algo novo? Sair, portanto, da repetição automática e do modelo aprendido, o modelo escolar? Não me parecia algo simples... Entretanto, foi fundamental o papel de nossa mais um, Beatriz Oliveira, que tantas vezes nos ajudou ante a impasses e que a meu ver, legitimou nossa “iniciação” com um ato: em nosso primeiro encontro, esperávamos o quarto participante do Cartel, que não apareceu. Desapontadas, pensamos que o início seria adiado até que aparecesse novo interessado, mas o ato de nossa mais um foi declarar que assim iniciaríamos. Aqui, não posso deixar de marcar o sucesso da escolha de nossa mais um! Confesso que em alguns momentos achei que não seguiríamos, por conta de duas licenças durante o período. Persistimos. A cada retorno, voltávamos do ponto onde havíamos parado.

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Participante de Formações Clínicas do FCL-­‐SP


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Foi um marco: o funcionamento de uma experiência bem sucedida, que começou com um fracasso, mas que me fez perceber que o pagamento com o desejo e a produção de um texto próprio (assim como já o fizemos para o Debate com Cartéis), pode não ser tão difícil quanto eu imaginava que fosse.


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Entrada e Direção de um Cartel Michelle Abou Dehn* Este trabalho começou a ser escrito quando do convite do último Café Cartel, que convidava a pensar no ritmo envolvido neste dispositivo. Este ano a convite de dar “Mais um(a) volta” opto pela experiência dos deslizes da fala e da escrita – falar à pena. Antes mesmo de decidir pela constituição de um cartel, debruçamos a discutir sobre o modo de funcionamento deste dispositivo: número de integrantes; fixação ou circulação do MAIS UM e sua função; eleição de textos que tentassem esclarecer o que seria um cartel, disponibilidade de horário; frequência dos encontros; manutenção ou alteração do tema. Tempos depois, oficializamos a formação do cartel Direção do Tratamento, decidindo pela composição de 4+1 - ainda que isto não resultasse em 5, pois a primazia da singularidade está marcada a todo tempo, pelo interesse, ritmo, formação, prática clínica e pesquisa particular de cada cartelizante. No embalo deste ato, concordei em colocar à prova que o discurso da psicanálise não se sustenta em um saber que se suponha acabado, ao contrário, ele impõe ao seu praticante assumir o risco da articulação e desarticulação a partir do não saber - “ainda que este balanço pareça deixar a desejar”. Os textos eram claros na exigência de um produto ao final de dois anos de (dis)funcionamento (no máximo). A forma de divulgar os efeitos do cartel inibia-me, angustiava-me – “...se comprometem a informar do produzido e dos impasses para quem deseje sabê-lo.”. Então, tal qual uma peça musical, onde a melodia solista pode ser acompanhada por harmonias, coloquei-me a reger uma escrita de um só e ritmada por discussões bastante interessantes e associações livres dos quatro. A remixagem, ou consequências, que cada um dará à sua experiência no decorrer e na conclusão deste processo orienta-se a partir do percurso singular. Bom, eu, através deste dispositivo, tento conduzir os passos desta dança aos tropeços das palavras, prescindindo da sintonia com meus parceiros, mas não de seus passos

Referências bibliográficas LACAN, J. (1964). Ato de Fundação. In: Outros Escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2003.

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Participante de Formações Clínicas do FCL-­‐SP


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Sobre as contribuições do cartel: uma direção para a formação Marcos Muniz de Souza Cartel: A direção do tratamento Mais-um: Silvana Pessoa Participo de um cartel cujo tema é “A direção do tratamento”. O meu tema especificio é “O lugar do analista na direção do tratamento”. Como atendo em ambulatório e consultório, esta se torna uma questão atual para mim. Desde a gestação do cartel percebi que é um dispositivo de estudo bem diferente de tudo que já participei. Num primeiro momento, tivemos um período de “pré-cartel”, onde os participantes se escolheram em torno do tema. Lemos alguns textos-base de Lacan sobre cartel e Escola e encontramos nossa mais-um. Ou seja, foi todo um processo, um tempo de maturação, onde já estávamos trabalhando há meses desde a ideia inicial, para que pudéssemos oficializá-lo perante a Escola. Não é tão simples assim como parece, dizer “vamos montar um cartel...”; precisávamos sentir o compromisso entre nós em aceitarmos uma empreitada de estudo por dois anos, que depende do desejo de cada um para que alcancemos os objetivos – que são particulares, mas que têm em comum o desejo de saber um pouco mais sobre o tema. Não à toa, todos os cartelizantes estão em momentos próximos na relação de cada um com a Psicanálise. Mas enfim, conseguimos. O que tenho entendido em quase 01 ano de trabalho e o que quero destacar aqui, é a contribuição do cartel na minha formação. No início ficava até mesmo incomodado em alguns encontros, pois não avançávamos nos textos que tínhamos nos proposto a ler. Aos poucos, foi ficando claro para mim, que o “avanço” se dá de outro modo, dificil de traduzir em palavras. Várias foram as vezes em que lemos e discutimos pequenos extratos de textos; todavia, bastava uma frase, ou algo que discutíamos no cartel para que me fizesse todo o sentido em relação a alguma questão sobre o lugar do analista na direção do tratamento. Ou seja, não é um grupo de estudos; são pessoas que se unem, através de um desejo de saber com a transferência de trabalho. Buscam o conhecimento e elaboram um saber particular em relação ao tema do cartel. Cada um com o seu tema de interesse e com


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repercussões distintas. São evitados qualquer tipo de fenômeno de grupo. Não existe o lugar do mestre, do saber absoluto, assim como o funcionamento não é pautado por um discurso universitário, mas sim em uma relação horizontal em que cada um contribui com o que têm para o andamento do cartel. As vezes mais, as vezes menos. Mas é um percurso individual. Desta forma, o cartel se tornou uma contribuição para minha formação, no âmbito do estudo teórico. A partir dele, voltei a fazer supervisão – o que proporcionou uma excelente tabelinha entre as duas vertentes. O cartel não traz um avanço especificamente através de um programa de leitura de textos e estudos dirigidos mas, sobretudo através da experiência, tal qual como em uma análise, onde um saber particular é construído, mesmo estando com os pares. Seja no aspecto teórico como no clínico. Coincidência ou não mudanças também ocorreram na minha clínica. Algo tem sofrido mutação e se refere especialmente ao lugar do analista na direção do tratamento. Ressonâncias da formação. Freud dizia que para se tornar um analista, tínhamos de analisar nossos próprios sonhos. Lacan reafirmava dizendo que um analista é produto de uma análise. Penso que o cartel vai no mesmo sentido, oferecendo uma base de estudo teórico que vai de encontro com a análise e a supervisão, todas dentro do mesmo campo psicanalítico. A formação em Psicanálise é produção de saber em três esferas. E o saber é uma construção. Seja em análise, seja em supervisão, seja no estudo através de um cartel.


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Cartel: uma experiência de formação Silvana Pessoa* Verificamos que o cartel é um pequeno grupo de pessoas que se reúne para realizar um estudo. Esse é o seu ponto de partida, mas não é o ponto de chegada, ou seja, a tarefa que cada um terá que realizar individualmente, que não é sem efeitos para a estrutura e para o sujeito. O que haveria de formativo nesse processo? O conceito de formação implica em um processo aberto de constante transformação. Ao implicar uma pessoa no seu desejo, na sua questão, levá-la até a escrita de um texto, à sua autoria, é uma experiência formativa, pois transforma a relação do sujeito com o saber e com o fazer. Esse processo de formação e transformação não vai sozinho sem o outro, por isso esse trabalho deve ser realizado em uma coletividade. É a sociabilidade exigida na Psicanálise e na educação. Muitas vezes aprende-se mais com quem não tem a pretensão de ensinar, nem sabia que estava ensinando. Outras vezes, se aprende com uma frase feita aleatoriamente. A questão de uma pessoa no cartel pode disparar um interesse ainda não imaginado no outro e isso é que movimenta a trama discursiva, promove rupturas e mudanças na estrutura, que, para nós, sabemos, é discursiva. Nessa multiplicidade de linhas de forças inerentes aos dispositivos e à linguagem é difícil estabelecer de quem é a autoria, porque ela sempre depende do outro. Vale lembrar que Freud, embora fundador, não deixa de indicar, de um modo bem particular, a implicação em suas próprias formulações teóricas daquilo que recebeu de seus mestres e como chegou, a partir disso, a "criar" a Psicanálise; para além das razões pessoais de Freud, parece evidente que continuar atribuindo a procedência da idéia a alguém provém da necessidade de admitir que não se teria chegado a ela sem a participação deste outro. Isso é formativo para todos em qualquer grupo. No cartel, implica-se cada um com o seu nome próprio e daí se extraem as consequências inclusive para o mais-um. Arriscamos dizer que a escrita de um “produto próprio” é no que consiste o caráter formativo presente nos pequenos grupos, especialmente os cartéis. Cada um tem que se responsabilizar pelo

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Membro da IF-­‐EPFCL-­‐ Fórum SP


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seu produto, sua autoria, seu objeto, que terá que colocar no mundo e deixar cair tal como o objeto a no final de uma análise. Mais uma vez isso não é sem efeitos.


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Desmaneiras do trabalho em cartel Ana Paula Gianesi* Um cartel acontece no tempo e no espaço. Instantes, cronologias, lógicas temporais, nós, desenodamentos, e outras figuras topológicas: toros neuróticos e até cross cap (por que não pensarmos momentos fantasmáticos?). Mas, como? Como isso acontece? Será que poderíamos pensar a função de mais um e o funcionamento de um cartel por uma referência que Lacan nos deixou sobre o autorizar-se de si mesmo? Qual seja: O sentar-se como analista ocorre pela “desmaneira que nele impõe à verdade”. Mais, ainda: “somente um saber dá a dita desmaneira” (Lacan, 1970/ 2003, p.426). O saber sobre a verdade, não-toda, saber furado, oco e insabido, fornece-nos, por suporte, uma desmaneira. E isto me pareceu muito interessante – A Desmaneira – mais um termo subversivo e disruptivo em relação aos passos didáticos de uma análise. Autorizar-se de si mesmo por uma desmaneira. Ocupar a função de mais um, apostar em um cartel por uma desmaneira? Definitivamente na há maneira, não há manual, não há Outro que estabeleça os bons modos, ou as boas maneiras. Com sua desmaneira, Lacan já estava às voltas com o saber fazer com – saber fazer com a verdade não-toda! Daí incluir a pergunta: como nos viramos em cartel? Como nos viramos com o oco do saber? Como nos viramos com o real em jogo? Interessante pensarmos que a desmaneira de modo algum exclui princípios e orientação. Afinal, cada cartel é uma aposta de Escola. Assim, posso dizer que há princípios norteadores em torno dos cartéis, mas não há mandamentos. A desmaneira implica a responsabilidade. Há que se inventar a cada vez este saber que estará também a cada vez no forno. Eis o “saber fazer com” próprio ao trabalho em cartel. Pelo menos penso que sim. Lanço, então, minhas apostas, aqui movidas por um desejo presente: que cada cartel invente suas desmaneiras, possa trabalhar fora dos sentidos feitos às pressas ou dos triunfos religiosos. Que os “mais uns” não se aportem nos refúgios do poder e que o horror de saber tenha lugar para turbilhonar, turbilhonar, turbilhonar desde os furos. *

Membro da IF-­‐EPFCL – Fórum SP


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Referência Bibliográfica LACAN, J. (1970) Radiofonia. In: LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.


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